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Universidade de São Paulo
Centro de Estudos Latino-Americano sobre Cultura e Comunicação (CELACC)
Mídia Alternativa, Diversidade Cultural e
Integração Latino-Americana
Relatório Final de Pesquisa de Iniciação Científica (PIBIC)
Ciências Sociais Aplicadas
Carolina Santa Rosa Corrêa [Orientador: Dennis de Oliveira]
2
ÍNDICE
1. Introdução ...............................................................................................p. 02
2. Análise Quantitativa................................................................................p.07
2.1 Especificidades da Folha de S. Paulo........................................................p.09
2.2 Especificidades da revista da ALAI..........................................................p.11
2.3 Comparações.............................................................................................p.15
3. Análise Qualitativa...................................................................................p.22
3.1 Boaventura de Sousa Santos .....................................................................p.22
3.2 Colonialismo e Imperialismo....................................................................p.38
3.3 Desenvolvimentismo e Estado Plurinacional............................................p.42
3.4 A questão da modernidade........................................................................p.43
4. Dificuldades ..............................................................................................p.47
5. Conclusão..................................................................................................p.49
6. Bibliografia...............................................................................................p.51
7. Anexos.........................................................................................................p.52
“ A América Latina tem problemas
modernos para os quais não há
soluções modernas.”
Boaventura de Sousa Santos
3
1. INTRODUÇÃO
Este projeto de pesquisa de Iniciação Científica se insere dentro do projeto central do
Professor Dennis de Oliveira, que pretende fazer um estudo do potencial das mídias alternativas
da América Latina para a promoção da diversidade cultural, por meio de análises da produção na
mídia alternativa impressa.
A partir disso, a proposta deste relatório visa, em contrapartida, também a análise da
grande mídia, por meio do veículo impresso Folha de S. Paulo para a construção de uma base de
dados comparativos que possam ser estudados paralelamente à análise dos veículos alternativos
latino-americanos. Para isso foi escolhido um recorte, que propõe analisar o conteúdo referente
ao continente, com destaque naqueles relacionado às minorias raciais, étnicas e culturais no
Brasil e na América Latina veiculados semanalmente nas edições impressas do jornal Folha de S.
Paulo.
Fundado em 1921, o próprio jornal Folha de S. Paulo define como sua missão editorial,
“produzir informação e análises jornalísticas com credibilidade, transparência, qualidade e
agilidade, baseadas nos princípios editoriais do Grupo Folha (independência, espírito crítico,
pluralismo e apartidarismo), por meio de um moderno e rentável conglomerado de empresas de
comunicação, que contribua para o aprimoramento da democracia e para a conscientização da
cidadania”.1 E segundo o mesmo projeto editorial, a visão do jornal é “Consolidar-se como o
mais influente grupo de mídia do país”.2
Hoje, segundo o estudo divulgado pelo Instituto Verificador de Circulação (IVC)
referente ao ano de 2010, a Folha de S. Paulo é o segundo veículo mais lido no país, com
294.498 exemplares vendidos por dia. O veículo só perde para o jornal popular mineiro Super
Notícias, com uma diferença de apenas 1203 exemplares. Nessa perspectiva, a Folha configura-
se como um potencial formador de opinião da sociedade brasileira, inclusive sobre os temas
referentes à América Latina e suas minorias culturais, étnicas e sociais, tratadas nessa pesquisa.
Inicialmente o projeto previa que a primeira etapa da pesquisa (primeiro semestre) seria
exclusivamente destinada ao levantamento de corpus na Folha de S. Paulo. Entretanto, mediante
algumas dificuldades de método, pôde-se perceber que o futuro trabalho de análise seria
1 Trecho disponível na página institucional da Folha de S. Paulo:
http://www1.folha.uol.com.br/institucional/missao.shtml
2 Idem 1
4
facilitado se a pesquisa também se atentasse ao caminho inverso: acompanhar paralelamente
veículos reconhecidos como “alternativos” para ter disponível também um parâmetro
comparativa no momento de fazer as futuras comparações com o teor do conteúdo veiculado no
tradicional jornal da mídia-hegemônica. Assim, foi acrescentada à minha pesquisa a leitura da
revista mensal equatoriana “America Latina en Movimiento”, no que se tratava a respeito do
continente latino-americano.
A revista America Latina en Movimiento foi escolhida para compor o corpus analítico
por pautar especificamente temas relativos à América Latina, trazendo em todas suas edições
artigos e análises da situação sociopolítica, econômica e cultural do continente, enviesada pelo
discurso declaradamente progressista, em contraposição ao hegemônico, ou seja, “alternativo”:
ALAI tiene por misión formular y desarrollar respuestas a los diversos
desafíos que plantea la comunicación, en tanto área estratégica para la
acción social. Desde 1977, desarrolla una propuesta alternativa de
comunicación que apunta a la conformación de un nuevo tejido
comunicacional, democrático, amplio, descentralizado y pluricultural,
en sintonía con los procesos de transformación social 3
Esta revista é a publicação impressa da Agencia Latino-Americana de Información
(ALAI), que se define em seu projeto editorial como um organismo de comunicação
comprometido com a vigência plena dos direitos humanos, igualdade de gênero e a participação
cidadã no desenvolvimento e em qualquer ocupação pública da América Latina. A agência
também defende a democratização da comunicação como condição básica da vida democrática e
da justiça social.
O material que compõe a publicação é o que a ALAI define como informações
sistematizadas, que prestam particular atenção nas dinâmicas sócio-políticas da América Latina,
destacando a perspectiva dos movimentos sociais e cidadãos, e uma leitura contextualizada dos
acontecimentos. Também aporta elementos de reflexão sobre os desafios da época, contando
para a isso com a colaboração de analistas e pensadores de destaque, como acadêmicos,
organizações e líderes sociais.
O levantamento do conteúdo referente ao tema da pesquisa nos dois veículos descritos
acima foi feito para compor o corpus que permitisse fazer uma análise comparativa quantitativa,
de como a América Latina era abordada e qual o espaço e destaque tinha em cada um dos
veículos.
3 Trecho disponível na página da internet da ALAI “Quem Somos” : http://www.alainet.org/quienes-
somos.phtml
5
Além do levantamento de corpus, a pesquisa também foi constituída por leituras paralelas
e discussões teóricas de autores e temas que envolviam questões ligadas à América Latina e suas
diversidades sociais, culturas e étnicas e raciais, com o propósito de embasar a introdução de
uma segunda análise comparativa, agora de caráter qualitativo, entre o conteúdo veiculado nas
duas publicações para analisar os diferentes olhares, por parte da mídia, sobre a realidade do
continente. Para tanto foram analisadas as fontes consultadas pelos veículos para a elaboração
das matérias, o recorte do tema, o discurso político-ideológico envolvido, as modalidades de
expressões culturais utilizadas na redação.
A Folha de S. Paulo é um veículo diário, e uma característica usual desse tipo de
publicação é privilegiar o conteúdo informativo fatual, ou seja, a Folha publica
predominantemente notícias que abordam fatos recentes, prezando sempre pela novidade e pelos
conteúdos mais relevantes, julgados pelo próprio conselho editorial, como os de maior interesse
público.
O Novo Manual de Redação do jornal, criado para servir como um guia para os
profissionais da Folha a fim de padronizar as redações e a linguagem jornalística de todas as
matérias veículos, define a notícia veiculada no jornal como:
Puro registro dos fatos, sem opinião. A exatidão é o elemento-chave
da notícia, mas vários fatos descritos com exatidão podem ser
justapostos de maneira tendenciosa. Suprimir ou inserir uma
informação no texto pode alterar o significado da notícia.4
Entretanto, apesar da definição do manual acima é possível perceber que a subjetividade
encontra-se intrínseca a notícia, desde o momento em que esta é pautada. Há um motivo, um
interesse subjetivo e particular, seja do jornalista ou do veículo para que determinada notícia seja
publicada em detrimento de outras. Nem todos os temas considerados relevantes e publicados
pela Folha são os mesmos que a ALAI considerou relevantes e dignos de publicação. É o veículo
que escolha se determinado deve ou não ser noticiado segundo seu próprio interesse ou
concepção (subjetiva) do que é relevante para a sociedade, o que é de interesse público.
Ainda que se cobre do jornalismo mantenha uma incessante busca pela objetividade,
muito pautada inclusive pela massa da sociedade e o senso comum, que acredita que os jornais e
os jornalistas devem ser neutros, imparciais e isentos de opinião, essa concepção pode ser
questionada como faz o jornalista Eugênio Bucci, em seu livro Sobre Ética e Imprensa:
4 FOLHA, 1996, p.88
6
Não há nenhum distanciamento cultural entre o homem que é repórter,
o homem que é notícia e o homem que é destinatário da informação.
De onde pode então emergir a objetividade? 5
Na prática, sabe-se que tal objetividade é inviável. Um discurso objetivo é aquele em que as
características próprias do objeto- e não as do sujeito- são expressas. No caso do jornalismo,
porém, o homem é sujeito e o objeto a ser estudado. A linguagem é um meio que permite
permear facilmente o subjetivismo, a escolha das palavras nem sempre são feitas de maneira tão
cuidadosa e, mesmo de modo sutil, acabam revelando opiniões e posições do jornalista, como foi
possível observar na etapa de análise qualitativa desta pesquisa.
O jornal Folha de S.Paulo é apenas um dos veículos que compõe o conglomerado
midiático Grupo Folha, integrado também pelo jornal Valor Econômico, jornal Agora, o site
UOL, a agência de notícias FolhaPress e a agência de pesquisa DataFolha, entre outros. Nessa
perspectiva, o jornal também se apresenta com caráter empresarial. Assim entre as subjetividades
do veículo, enquanto empresa pode ser oportuno considerar seus interesses, econômicos e de
mercado, atrelados ao conteúdo jornalístico publicado, como afirma o teórico da comunicação
Ciro Marcondes Filho:
A própria produção da noticia significa a adaptação do fato social a
alguma coisa mais rentável.6
Já a revista America Latina en Movimiento é mensal, e, diferente da Folha, seu principal
objetivo não é informar o público em primeira mão sobre os últimos acontecimentos do
continente latino-americano. Ao contrário, a ALAI privilegia os conteúdos mais densos, por
meio de publicações de artigos, propriamente ditos, enviesados por uma abordagem analítica e
declaradamente opinativa.
5 BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. Cia das Letras, 2001
6 FILHO, Marcondes Ciro. O capital da notícia – jornalismo como produção social da segunda natureza.
São Paulo: Ática, 1986.
7
2. ÁNALISE QUANTITATIVA
A fim de analisar o conteúdo referente à América Latina destes veículos, foi levantado o
material referente ao período de um ano, compreendido entre o mês de março de 2011 e março
de 2012.
Como o jornal Folha de S. Paulo é um veículo diário, do ponto de vista prático, seria
inviável analisar todo o volume de conteúdo publicado durante o período de um ano. Portanto,
considerou-se suficiente para os objetivos da pesquisa analisar o veículo semanalmente, através
dos jornais publicados aos domingos, que são edições mais extensas e que costumam trazer uma
breve síntese dos fatos que ocorreram durante a semana. Nas edições analisadas, a busca de
conteúdo sobre América Latina foi focada no caderno “Mundo” do jornal, que é a editoria que
trata os temas internacionais.
No caso da ALAI, as revistas publicadas são mensais, assim foi possível analisar todas as
publicações compreendidas entre o período determinado. Exceto nos meses de Agosto de 2011 e
Janeiro de 2012, em que a revista não foi publicada, e nos meses de Setembro e Outubro em que
foi publicada uma única revista dupla referente aos dois meses.
Na Folha de S. Paulo, levando em consideração o conteúdo publicado nos jornais de
domingo durante o período de um ano, foram contabilizadas 96 notícias com temáticas gerais
relativas ao continente latino-americano. Nas doze edições da revista América Latina en
Movimiento que integravam a amostragem, foram publicadas 88 artigos sobre o continente.
Todo material copilado foi classificado segundo categorias mais específicas de acordo
com os temas que mais eram recorrentes nas publicações, para que mais tarde, durante a análise
qualitativa, fosse possível comparar com que frequência determinados temas apareciam, que
temas que apareciam em comum, quais abordagens eram dadas em cada veículo. Por meio dessa
categorização, foi possível perceber que a periodicidade de cada publicação e seus perfis
editorias influenciam diretamente em como cada um deles trata o tema da América Latina.
Desse modo, foram definidas as seguintes categorias: Meio-ambiente/ Ecologia;
Economia; Política interna; Política Externa; Meios de Comunicação; Movimentos Sociais;
Cultura; Educação; Direitos Humanos; Relações Étnicas e Raciais e Drogas/Narcotráfico.
Cada matéria ou notícia podia ser enquadrada em mais de uma categoria diferente. Foram
raras as matérias que tratavam exclusivamente de apenas um dos temas, até porque, muitos deles
estão intrinsecamente conectados. A partir dessa categorização foi possível perceber as
8
disparidades entre os veículos quanto à abordagem de determinados temas, e a coincidência de
outros, como pode ser observado nas tabelas abaixo:
Tabela 1 – Folha de S.Paulo
Tabela 2 – América Latina en Movimiento (ALAI)
Como cada notícia podia ser enquadrada em mais de uma categoria, no caso das Folha de
S. Paulo, 135 categorias couberam nas 96 notícias publicadas. Deste modo, a tabela deve ser lida
da seguinte maneira: por exemplo, no mês de junho, foram publicadas 10 matérias na Folha que
abordavam a América Latina. Dessas 10 matérias, o tema de Política Externa estava presente em
seis dessas 10 matérias. O tema Política Interna estava presente em cinco das 10 matérias. O
tema Economia aparece em apenas duas matérias e o tema Direitos Humanos em apenas uma
9
Folha de S.Paulo
0%
10%
20%
30%
40%
50%
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fico
Folha de S.Paulo
matérias. Os demais temas listados na tabela não aparecem em nenhum das 10 matérias do mês
de junho. A Tabela 2 também segue o mesmo padrão de leitura.
2.1 Especificidades da Folha de S. Paulo
Por ser um jornal diário brasileiro de grande circulação, e não um veículo direcionado
exclusivamente para a América Latina – como a revista da ALAI – as notícias sobre o continente
publicadas na Folha são predominantemente sobre questões políticas internas recentes de
determinados países latino-americanos.
Das 96 notícias sobre América Latina publicadas na Folha, 60 delas abordavam Política
Interna, percentualmente isso significa que a categoria Política Interna coube em 62,5% delas.
Apesar de cada notícia poder ser enquadrada em mais de uma categoria, nem uma das outras
categorias listadas na Tabela 1 acima é tão predominante quanto essa categoria.
O segundo tema mais abordado na Folha é a Política externa, aparecendo em 37,5% das
notícias, e o terceiro é Drogas/Narcotráfico que aparece apenas em 11,5% das notícias. As
demais categorias listadas na tabela aparecem em menos de 10% das notícias, sendo que três
delas não chegaram a ser abordadas por nenhuma das 96 notícias publicadas no período, mas
aparecem na Tabela 1 para estabelecer um parâmetro comparativo com a Tabela 2, da ALAI.
Gráfico A : Temas abordados pela Folha de S. Paulo
10
O Gráfico A, acima, ilustra a distribuição das matérias publicadas durante o período de
um ano segundo os temas listados na Tabela 1 e 2. É possível observar com clareza a disparidade
dessa distribuição e a concentração de matérias que matérias sobre política interna diante das
demais do corpus copilado.
Ao dar preferência para publicação de notícias quentes ligadas a eventos políticos, os
demais temas que exigem uma abordagem mais aprofundada e contextualizada acabam sendo
negligenciados. Isso é perceptível quando se observa a estrutura das notícias publicadas, que
seguem o tradicional padrão jornalístico da Pirâmide Invertida.
Na narrativa noticiosa, a história contada não se estrutura a partir da ordem cronológica
dos acontecimentos. Ou seja: ao se noticiar um acontecimento, não contamos esta história na
ordem temporal clássica das ações que o compõem. É por isso que se diz que a notícia segue a
estrutura da Pirâmide Invertida, isso significa que ela é composta segundo o agrupamento
hierárquico das informações referentes aos elementos básicos da narrativa. Este agrupamento
abre com o Lead 7 informando o fato a ser noticiado, ao respondendo as perguntas “quem?”, “o
quê?”, “como?”, “quando?”, “onde?” e “por quê?” referente ao acontecimento noticioso. Em
seguida o texto traz algumas informações secundárias que não são essenciais, mas que
complementam e esclarecem o fato principal. Nessa hierarquia não há espaço para
contextualização histórica ou de relações de causa/consequência dos fatos aprofundadas como
nos artigos da ALAI.
A Folha de S. Paulo, por ser um veículo noticioso que consequentemente privilegia o
timing, acaba se limitando ao fato jornalístico, à novidade. Nesse sentido, alguns temas como
Educação, Meio-Ambiente, Relações Étnicas e Raciais e Movimentos Sociais acabam se
tornando ausentes nas publicações. Apesar desses temas geralmente não estão relacionados a
grandes novidades ou fatos inesperados, eles certamente estão muito presentes em problemáticas
históricas do continente latino-americano – como reforma agrária, educação pública, racismo e
exclusão social, desmatamento amazônico e aquecimento global – e por isso podem
evidentemente serem considerados de interesse público, tão quanto às questões políticas internas
e externas dos países. Mas por exigirem uma abordagem não só noticiosa, mas também de
aprofundamento, contextualização e debate, não se enquadram no perfil editorial da Folha e não
são publicados.
7 “Lide” é o aportuguesamento da palavra inglesa lead, que significa “liderar”.
11
2.2 Especificidades da ALAI
Já no caso do America Latina en Movimiento, 228 categorias couberam nos 88 artigos
sobre América Latina publicados no veículo durante o período de um ano. Isso evidencia que os
artigos publicados na revista, são muito mais abrangentes e que cada artigo não trata apenas de
um tema específico, mas sim de vários temas ao mesmo tempo.
Esse caráter de abordagem mais ampla se deve ao perfil analítico do conteúdo da revista.
Apesar de muitos artigos, a princípio, terem um tema principal muito específico, o
desenvolvimento do tema é bastante aprofundado. Por isso são comuns introduções apresentando
o contexto histórico do tema, e na mesma lógica também é comum tratar as causas e
consequência do tema central, trazendo a tona também novas temáticas além da principal. Assim,
o artigo possui uma estrutura de afunilamento, começando com uma abordagem mais ampla do
assunto central, que também aborda outros temas, e ao decorrer do texto a abordagem vai se
estreitando rumo uma especificação do tema, até atingir a raiz do tema central.
Essa estrutura de texto é praticamente padrão nos artigos da revista, sendo possível
inúmeros exemplos, como o artigo Consenso dos commodities e mega-mineração8 da socióloga
argentina Maristella Svampa, publicado na edição 473, do mês de março de 2012. Com o título
de capa “Extrativismo: contradições e conflitos”, o tema central da edição era os danos causados
no meio-ambiente pelas práticas extrativistas nos países da América Latina. Mas além de ser
enquadrado na categoria Meio-Ambiente, o artigo também foi categorizado nos temas Política
Externa e Economia devido aos outros fatores que tangem o tema central: causas, consequências
e contexto histórico, por exemplo.
Além do texto, a própria composição da revista e a disposição e ordem dos artigos em
cada edição influencia em como cada volume da revista privilegia alguns temas listados na tabela
em detrimento de outros. O primeiro motivo que justifica isso é as edições da America Latina en
Movimiento são temáticas. Cada uma delas tem um tema central diferente, que sempre aparece
em destaque na capa acompanhado por ilustrações. Assim, geralmente todos os artigos quem
integram uma mesma edição abordam o tema central em comum, além dos temas periféricos que
aparecem segundo as condições já descritas acima (contextualização histórico, relações de causa
e consequência, etc.).
Esse fenômeno pode ser facilmente observado na Tabela 2 acima. Como, por exemplo,
no mês de abril, dos oito artigos publicados sobre América Latina, todos os oito também
8 SVAMPA, Maristella. Extractivismo: contradicciones e conflictividade – América Latina en
Movimiento, No 473. Ed ALAI. Quito: 2012 .Vide artigo na íntegra em Anexos 1
12
abordam o tema Drogas/Narcotráfico e Política Interna, que é o tema central daquela edição, com
o título em português “Grana, Prata, Bala e Poder”. Além do tema central da edição, os artigos
também abordam outros temas específicos, que apesar de serem periféricos ao tema central,
acabam se tornando a especificidade de cada artigo, dentro da temática mais ampla
Drogas/Narcotráfico e Política Interna. Exemplos desses temas específicos no mês de abril são
Economia, Política Externa, Direitos Humanos e Relações Étnicas/Raciais.
O artigo “México: a violência exponencial” 9, da socióloga americana Laura Carlsen,
publicado na edição 464, de abril, por exemplo, foi classificado nas seguintes categorias: Direitos
Humanos, Política Externa, Drogas/Narcotráfico e Política Interna – sendo os dois últimos os
temas centrais da edição. Por fazer um recorte mais específico sobre a questão da política anti-
drogas mexicana, relacionado-a com a violência, casos de violação dos direitos humanos e com a
política externa dos Estados Unidos para a América Latina, que o artigo também foi enquadrado
nos “temas periféricos” Direitos Humanos e Política Externa. Situação semelhante pode ser
observada com os outros sete artigos dessa edição: todos estão enquadrados nos temas centrais
Direitos Humanos, Política Externa, e além deles, em temas mais específicos que os diferenciam.
Em complementação à Tabela 2, a Tabela 3, abaixo, evidencia melhor a relação entre os
temas centrais de cada publicação da revista America Latina en Movimiento e como eles são
abordados nos artigos, gerando essa concentração de um mesmo tema em cada edição:
Tabela 3 – Temas centrais abordados na ALAI
MÊS Artigos sobre
América Latina
Título da capa
Tema Principal
Nº de matérias enquadradas no tema
principal
Mar/11 7 Redes Sociais – nem tanto nem tampouco Meios de Comunicação 7
Abr/11 8 Grana, Prata, Bala e Poder
Drogas/Narcotráfico
Política Interna
8
Mai/11 9 Cuba: “transformações necessárias”
Política Interna 7
Jun/11 7 Ajustes e desajustes
Economia e Política Externa 6
Jul/11 11 Afrodescendencia: memória, presente e perspectivas.
Relações Étnicas e Raciais 11
Set,Out/11 14 O conto da Economia Verde Meio-Ambiente 13
Nov/11 9 América Central no coração da globalização Política Interna 8
Dez/11 9 De indignações e alternativas Política Externa 8
Fev/12 6 Educação: justiça social e ambiental Educação 6
Mar/12 8 Extrativismo: Contradições e Conflitos
Meio-Ambiente 8
Total 88
9 CARLSEN, Laura. Pasta, Plata, Pomo y Poder – America Latina en Movimiento, No. 464. Ed. ALAI.
Quito: 2011. Vide matéria na íntegra em Anexos 2.
13
Ao retomar a Tabela 2, é possível perceber que semelhante à Folha de S. Paulo, os temas
mais tratados pela ALAI também são Política Interna e Política Externa, apesar de não terem
tanta disparidade em relação aos demais como no caso do jornal. Pela diferença de apenas uma
matéria e abordando 55,7% do total de artigos, Política Externa Aparece na liderança dos temas
mais abordados. Em seguida vem Política Interna com 54,5%; Economia com 33% e depois
Meio-ambiente com 31,8%.
Diferentemente da Folha de S. Paulo, é possível perceber uma distribuição mais
equilibrada dos temas abordados entre as matérias, não há grandes disparidades entre os
temas.Todos os temas listados na Tabela 2 estão presentes em pelo menos três das matérias
publicadas ao longo de um ano pela revista, o que representa 3,4 % de representação do tema,
como se pode observar no caso do tema Cultura na Tabela 4 e no Gráfico B, a seguir:
Tabela 4 – Porcentagem com que cada tema foi abordado nos veículos
TEMAS Folha de S. Paulo ALAI
Meio-ambiente 0% 31,80%
Economia 9,40% 33%
Política Interna 62,50% 54,54%
Política Externa 37,50% 55,70%
Meios de Comunicação 6,25% 9%
Movimentos Sociais 0% 18,20%
Cultura 4,10% 3,40%
Educação 0% 8%
Direitos Humanos 8,30% 16%
Relações Étnicas/ Raciais 0 18,20%
Drogas/ Narcotráfico 11,50% 11,40%
14
Gráfico B – Temas abordados pela revista America Latina en Movimiento
Diante da própria proposta editorial da revista – que se define como um veículo de
comunicação comprometido com a vigência plena dos direitos humanos e da igualdade – é
possível justificar que os artigos tenham uma diversidade de temas maior que a Folha. Por não
ser um veículo apenas informativo e noticioso, a América Latina en Movimiento não se detém
simplesmente ao fato jornalístico. Os temas dos artigos publicados são com o objetivo de atingir
a missão de “formular e desenvolver respostas aos diversos desafios que envolvem a
comunicação, enquanto área estratégica para a transformação social” 10
, definida pelo próprio
veiculo. Assim, temas que parecem ser negligenciados na Folha de S. Paulo apresentam
destaque significativo na revista, como Meio-ambiente (31,8%), Movimentos Sociais (18,2%),
Relações Étnicas e Raciais (18,2%), como se pôde observar anteriormente no Gráfico B.
Na medida em que a revista se apresenta como um instrumento para a transformação
social, a abordagem de temas como Educação (8%), Direitos Humanos (16%) e Meios de
Comunicação (9%), além dos temas citados acima, são mais constantes que na Folha de S. Paulo.
Essa maior uniformidade na distribuição dos temas também acontece porque a própria
definição dos temas para a categorização e análise quantitativa do corpus foi baseada na grande
diversidade de temas abordados pela ALAI, para que a maioria dos assuntos pudessem ser
10
Idem 3
ALAI
0,00%
10,00%
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30,00%
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ALAI
15
incluídos na classificação. Caso fosso feito o contrário, se os temas fossem definidos com base
nos assuntos que mais apareciam nas matérias da Folha, a classificação ficaria praticamente
restrita entre Política Interna, Política Externa e Drogas/Narcotráfico, fazendo com muitos
artigos publicados na ALAI não pudessem ser enquadrados em nenhuma categoria. A opção de
definir as categorias baseada nos assuntos mais recorrentes na ALAI, resultou no fenômeno
observável na Tabela 1, em que há ausência de matérias da Folha de S. Paulo que abordem três
das categorias criadas.
2.3 Comparações
O Gráfico C a seguir ilustra em termos comparativos como cada um dos veículos de
comunicação estudados na pesquisa abordaram os diferentes temas listados nas tabelas.
Gráfico C – Temas abordados
Temas Abordados
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
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tráfic
o
Folha de S.Paulo
ALAI
É interessante notar que os dois veículos tiveram uma quantidade próxima de matérias em
três categorias: Meios de Comunicação, Cultura e Drogas/Narcotráfico. Sendo que em
Drogas/Narcotráfico a percentagem com o tema aparece é exatamente igual nos dois veículos:
11,5%, com onze matérias publicadas na Folha e dez artigos publicados na ALAI. Entretanto, o
conteúdo e a maneira com que cada um dos veículos tratam o tema são muito distintas, como
será observado adiante na Analise Qualitativa.
Apesar de Política Externa ser o tema que mais apareceu nos artigos da ALAI, a diferença
entre ele o Política Interna é pequena, e Política Interna também foi o tema mais abordado nas
16
matérias da Folha. Por isso, foi considerado que uma análise quantitativa mais especifica sobre o
tema deveria ser feita, para saber como cada um dos veículos o tratava. Assim, todo o conteúdo
que anteriormente tinha sido classificado como “Política Interna” nos dois veículos, foi
novamente classificado segundo sub-categorias de Política Interna.
Ou seja, as 60 notícias da Folha e as 48 da ALAI sobre o tema foram reclassificadas,
como mostra a tabela e o gráfico abaixo, para criar um novo parâmetro de comparação e
diferenciação de como cada veículo trata o tema da Política Interna, que será aprofundado mais
adiante durante a análise qualitativa.
Tabela 5 – Classificação por país do conteúdo sobre Política Interna
Política Interna - Temas: Folha de S. Paulo ALAI
Meio Ambiente 0 6
Movimentos Sociais 0 4
Drogas e Narcotráfico 10 10
Eleições 20 0
Imprensa/ Meios de Comunicação 6 2
Extrativismo 0 4
Saúde de Hugo Chávez 6 0
Afrodescendentes 0 6
Congresso PCC 1 4
Ditadura Argentina/Direitos Humanos 3 0
Crise 0 4
Bem Viver/ Estado Plurinacional 0 2
Governo Kirchner 3 0
Questão Agrária 2 0
Transição de Cuba 2 4
Integração 0 2
Outros 7 0
Total de matérias/artigos sobre Políca Interna 60 48
17
Gráfico D – Classificação do conteúdo sobre Política Interna
Classificação do conteúdo sobre Política Interna
0 0
20
6
0
6
01
3
0 0
32 2
0
76
4
10
02
4
0
64
0
4
20 0
4
20
10
0
5
10
15
20
25M
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Tra
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e
Cuba
Inte
gra
ção
Outr
os
Folha de S. Paulo
ALAI
Apesar do tema Política Interna se destacar nos dois veículos, é possível observar como
ele é dado um enfoque diferente em cada um deles. A Folha, por ser um veículo
predominantemente informativo, como já foi dito acima, privilegiou no conteúdo sobre América
Latina o que era noticia no momento, que basicamente eram assuntos ligados às eleições na
Argentina e na Venezuela, a doença do presidente Venezuelano Hugo Chávez e episódios
ligados ao tráfico de drogas, principalmente no México. Outro tema que apesar de menos
abordado, também recebeu certo destaque foram notícias sobre as tentativas de
regulamentação/controle da imprensa por parte dos países latino-americanos.
Já a revista America Latina en Movimiento, por ser do gênero analítico e ter um projeto
editorial que coloca o veículo como instrumento para a transformação social, não se direciona
apenas aos recentes fatos políticos internos dos países, mas privilegia debate de problemáticas
que não são não necessariamente novidades ou notícias, mas que contribuem para seu objetivo
editorial. Desse modo, a publicação da ALAI não tem o conteúdo concentrado praticamente em
torno de um mesmo assunto, como a Folha de S. Paulo faz com o tema “Eleições”. Ela aborda de
modo mais equilibrado diferentes assuntos sobre Política Interna, como Movimentos Sociais,
Meio-Ambiente, Extrativismo, Afrodescendentes, Congresso do Partido Comunista de Cuba e as
transições políticas sofridas pelo país – que são assuntos praticamente ausentes na abordagem de
política interna da Folha.
Mesmo os subtemas que são abordados nos dois veículos com uma frequência
semelhante, apresentam qualitativamente uma abordagem diferente do conteúdo, muitas vezes
18
até ideologicamente contrária, como foi possível observar na análise qualitativa das notícias e
artigos sobre Imprensa e Drogas/ Narcotráfico durante a análise qualitativa.
Durante a separação por subtemas, as matérias de Política Interna também foram
classificadas de acordo com o país sobre o qual ela tratava. Como seria inviável, do ponto de
vista prático, fazer essa classificação com toda a amostragem copilada durante um ano, foi feita a
opção de classificar por países apenas as notícias sobre o tema principal nos dois veículos, para
saber sobre quais países se concentram o conteúdo de cada veículo, como é possível observar nos
gráficos abaixo:
Gráfico E – Classificação por país do conteúdo de política interna da Folha
Gráfico F – Classificação por país do conteúdo de política interna da ALAI
O
Folha de S. Paulo - Países
2%
10%
3%
0%
5%
2%
3%
3%
38%
10%
18%
2%
0%
2%
2%
Geral
Argentina
América Central
Peru
Equador
Bolívia
Honduras*
Venezuela
Uruguai
Brasil
Cuba
México
Colombia
Paraguai
Haiti
ALAI - Países
40%
0%
13%4%
8%
8%
2%
2%
2%
4%
13%
2%
2%0%
0%
Geral
Argentina
América Central
Peru
Equador
Bolívia
Honduras*
Venezuela
Uruguai
Brasil
Cuba
México
Colombia
Paraguai
Haiti
19
Os países foram listados de acordo com sua aparição nas pautas das notícias e artigos. O
conteúdo de política interna que não tratava de nenhum país especificamente, mas sim da
América Latina de uma maneira mais ampla, foram classificados na categoria “Geral”, nos
gráficos acima. Outra observação importante é que o conteúdo sobre a América Central
geralmente abordava mais de um país daquela região do continente, sendo assim foi feita a opção
de fazer uma única categoria “América Central” em que todos aqueles países se adequassem. A
única exceção é o caso de Honduras, que por ter em recentemente sofrido um importante
episódio político que envolvia a deposição do presidente Manoel Zelaya, obteve destaque entre
os demais países centro-americanos em notícias separadas. Por isso, na legenda do gráfico,
Honduras aparece com o símbolo de um asterisco (*), sinalizando que o conteúdo referente
àquele país não foi contabilizado junto como restante do conteúdo sobre América Central, de um
modo geral.
O gráfico abaixo permite comparar como o conteúdo sobre Política Interna aparece
distribuído entre os países latino-americanos em cada um dos veículos, e como determinados
países são privilegiados nas duas publicações:
Gráfico G - Classificação por país do conteúdo de política interna
Classificação por país do conteúdo sobre Política Interna
1
23
1
6
10
1
11
2
0
3
6
12 2
19
0
6
2
4 4
1 1 12
6
1 10 0
0
5
10
15
20
25
Ger
al
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Amér
ica Cen
tral
Peru
Equad
or
Bolívia
Hon
dura
s*
Venez
uela
Uru
guai
Brasil
Cub
a
Méx
ico
Colom
bia
Parag
uai
Haiti
Folha de s. Paulo
ALAI
No gráfico acima podemos perceber que a Folha de S. Paulo privilegiou notícias sobre a
política interna da Argentina, estabelecendo um grande desequilíbrio com os demais países. Esta
20
concentração de notícias sobre Argentina aconteceu também porque o período de compilação do
corpus coincidiu com o período de campanha eleitoral e eleições presidenciais do país, assim a
maioria do conteúdo da Folha sobre política interna da América Latina se focou nesse episódio,
cobrindo muitos dos fatos centrais e adjacentes às eleições, disputas entre os candidatos e
partidos e campanha. Depois da Argentina, os países mais abordados pela Folha foram
Venezuela, Peru e México.
Um dos motivos para que a Argentina seja o país que mais aparece na Folha, é um
considerado critério de noticiabilidade: proximidade11
. Ou seja, quanto mais próximo do público
alvo do veículo é o fato jornalístico, maior é a probabilidade de ele receber destaque na
publicação. No caso da Argentina, o país não só é fronteiriço com o território brasileiro, mas
além da proximidade física, também detém uma histórica proximidade política e econômica com
o Brasil12
. Essa relação bilateral torna assuntos ligados à política interna argentina relevantes
para o Brasil, já que podem interferir e gerar consequências na política bilateral dos países, como
no caso das eleições.
Outro critério de noticiabilidade do conteúdo internacional da Folha de S. Paulo, é a
relevância do fato jornalístico para os demais países do mundo, principalmente para aqueles que
assumem papel de destaque na geopolítica internacional, como os Estados Unidos e os países da
Europa. A Venezuela e o México, por tratarem de países latino-americanos que também possuem
maior destaque no próprio cenário internacional extra-América Latina, cabem nesse critério.
O polêmico boliviarismo do governo de Hugo Chávez e o próprio estado de saúde do
presidente, que muitas vezes foi associado a um possível uma futura crise e fragilidade do estado
bolivariano, do qual o presidente Chávez era o maior símbolo e sustentação13
. O conteúdo sobre
o México está sempre relacionado com a questão das Drogas e do Narcotráfico e como essa
questão influencia nas relações entre o país e os Estados Unidos faz o tema ganhar uma
11
Quando as noticias saem nos meios de comunicação social, como a televisão ou os telejornais, elas
foram previamente sujeitas a um processo de seleção. Ou seja, nem todos os acontecimentos são
suscetíveis de serem transformados em notícia, mas apenas aquelas que respondem a uma série de
critérios – são esses os critérios de noticiabilidade, como define Nelson Traquina. No caso da
proximidade, quanto mais próximo for um acontecimento, mais possibilidades tem de ser selecionado.
Esta proximidade é vista em termos afectivos, socioprofissionais, temporais, geográficos e culturais.
12
Fonte: Agência Brasil de Comunicação. “Na Argentina, Dilma fala em fortalecer a América Latina no
século 21”. [http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-01-31/na-argentina-dilma-fala-em-fortalecer-
america-latina-no-seculo-21] 13
Vide o exemplo da matéria Câncer de Chávez agrava caos venezuelano, disponível em Anexos 3
21
dimensão internacional, não propriamente por se tratar do México, mas mais na perspectiva de se
tratar de um país fronteiriço dos Estados Unidos14
.
Por ambos serem países que aparecem ligados a assuntos de destaque internacional e que
também são considerados como relevantes para a Europa e para os EUA é que recebem destaque
na Folha, que é um veículo hegemônico cujo próprio caderno internacional “ Mundo” privilegia
o conteúdo ligado aos EUA e a Europa, em detrimento da América Latina.
Já o conteúdo sobre política interna da ALAI aborda os países latino-americanos de
maneira mais diversificada e publica mais notícias que tratam de questões sobre a América
Latina de um modo geral, sem se deter a países específicos. Depois de “Geral”, com 40% dos
artigos, as categorias que mais aparecem são “América Central” e “Cuba”, as duas com 13%.
Isso ocorre porque a categoria América Central acaba incluindo todos os artigos sobre os países
daquela região do continente, concentrando uma quantidade maior de conteúdo em uma mesma
categoria. Já no caso de Cuba, há esse destaque na abordagem do país porque a publicação da
revista do mês de maio de 2011, Cuba: "transformações necessárias", tratava exclusivamente de
questões envolvendo a política interna do país devido a conclusão do último Congresso do
Partido Comunista de Cuba.
A classificação em países do conteúdo sobre política interna foi a última etapa da análise
quantitativa prevista neste projeto de iniciação científica. É importante ressaltar que todo o
trabalho quantitativo foi feito com o objetivo de constituir um banco de dados juntamente com as
informações coletadas pelos demais colegas envolvidos no mesmo projeto de pesquisa central do
orientador – Mídia Alternativa, Diversidade Cultural e Integração Latino-Americana – que
analisaram outros veículos midiáticos alternativos: o jornal Brasil de Fato, a versão brasileira do
jornal Le Mond Diplomatique e o site do jornal argentino Página/12.
A próxima etapa deste projeto foi a análise qualitativa de parte do conteúdo compilado
durante o período de um ano, em complementação a analise quantitativa na busca de chegar a
conclusões mais concretas e entender melhor os fenômenos ilustrados nos gráficos e tabelas
anteriores.
14
Vide o exemplo da matéria Tráfico encurrala candidatos no México, disponível em Anexos 4
22
3. ANÁLISE QUALITATIVA
É importante ressaltar que a análise qualitativa apresenta um papel de complementação da
análise quantitativa, não ocupando, assim, uma função central no projeto de pesquisa. Ela se
coloca na perspectiva de tentar responder alguns dos fenômenos constatados no trabalho de
comparação durante a análise quantitativa.
Diante da dificuldade de se analisar qualitativamente todas as matérias e artigos do
corpus, foram selecionadas aquelas julgadas como importantes exemplos na perspectiva de
estabelecer comparações qualitativas entre o material publicado na Folha de S. Paulo e na revista
América Latina en Movimiento e aquelas que estabeleciam algum paralelo com as referências
bibliográficas que basearam a formação teórica do projeto.
Para basear a análise qualitativa, foram feitos leituras e discussões teóricas com os demais
integrantes do núcleo de pesquisa acerca de textos de autores que debatiam questões políticas,
sociais, culturais e históricas referentes ao continente latino-americano. Entre eles estão o texto
do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, o sociólogo peruano Aníbal Quijano, o
antropólogo argentino Nestor Garcia Canclini e o escritor mexicano Octávio Paz.
3.1 Boaventura de Sousa Santos
A obra deste sociólogo, “Refundación del Estado en América Latina: Perspectivas desde
uma epistemologia Del Sur”, que foi a principal referencia bibliográfica que baseou a análise
qualitativa do conteúdo, é dividida em duas partes.
3.1a ) Primeira Parte
Na primeira parte da obra, Boaventura questiona os dogmas da teoria do direito e do
Estado, a equação estado-nação, o estado de direito e a própria hegemonia eurocêntrica sobre o
conhecimento, a ciência e a cultura, que historicamente foram introduzidos por meio do
colonialismo e do imperialismo ao redor do mundo, e a partir daí reproduzidos em territórios que
pouco ou nada se assemelham com a realidade política, social ou cultural europeia. Assim, o
autor defende que essas heranças coloniais e imperialistas europeias, que perpetuam até hoje em
nosso continente, pouco contribuíram para inclusão e melhorias na vida das minorias no Brasil e
na América Latina, já que foram criadas em um contexto eurocêntrico. Em contrapartida, ele
propõe a criação de uma epistemologia própria do Sul, que corresponda às necessidades locais da
America Latina.
23
Diante disso, Boaventura considera que há dois grandes desafios das políticas
progressistas no continente: o pós-capitalismo e o pós-colonialismo. E para superá-los, é
necessário o protagonismo do movimento das minorias: indígena, campesino, afrodescendente e
feminista. As bandeiras desses movimentos, que são reflexos da opressão colonialista, e as
dificuldades da política progressista latino-americana determinam a necessidade de se distanciar
em relação à tradição crítica eurocêntrica.
A dominação de classes e a dominação étnico-racial se alimentam
mutuamente, portanto a luta pela igualdade não pode estar separada da
luta pelo reconhecimento da diferença15
.
A revista America Latina en Movimiento, por ter como projeto editorial a própria
publicação como instrumento da transformação social, também defende o protagonismo popular
e a superação do colonialismo e do imperialismo em muitos de seus artigos, o que vai
diretamente de encontro com os desafios políticos defendidos acima por Boaventura, como nos
trechos dos artigos publicados na revista abaixo:
É possível criar uma plataforma de luta em confluência com
movimentos muito distintos entre si e governos comprometidos com a
auto-determinação dos povos das Américas16
.
É o momento para que a população diga basta, que comece a
organizar a vida de uma maneira que nos recupere como humanos, que
nos recupere o melhor dos avanços da civilização, como o Bem
Viver17
.
Além disso, alguns artigos publicados na ALAI fazem uma digressão partindo do mesmo
raciocínio do sociólogo descrita na citação acima, em que relacionam a questão racial, que teve
início com o colonialismo e a escravidão, com a desigualdade social e estruturação da sociedade
em classes como temos até hoje. O sociólogo peruano Aníbal Quijano também partilha de uma
concepção semelhante sobre a questão racial, como será observado mais adiante.
15
SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: Perspectivas desde uma
epistemologia Del Sur; p.29. Instituto Internacional de Derecho y Sociedad. Lima , 2010 * Em tradução
livre 16
ROBINSON, Willian. ¿El capitalismo global en jaque? Crisis estructural y rebelión popular
transnacional; De indignaciones y alternativas. Revista America Latina em Movimiento. Ed. ALAI.
Quito: 2011 *Em tradução livre 17
PÉREZ, Pedro. Entevista: La nueva arquitectura financiera: alternativa viable aquí y ahora De
indignaciones y alternativas. Revista America Latina em Movimiento. Ed. ALAI. Quito: 2011* Em
tradução Livre
24
Um exemplo do destaque que as questões raciais receberam nas publicações da ALAI no
corpus da pesquisa é a edição especial de julho de 2011, chamada “Afrodescendencia: memória,
presente e perspectivas”, que tratava exclusivamente da questão do povo negro na América
Latina, envolvendo temas como exclusão e desigualdade social, como os exemplos abaixo:
[...] A condição étnica e racial dos e das afrodescendentes os coloca
numa situação social e econômica de desvantagem , pelo legado da
escravidão e como consequência do racismo estrutural e dos modelos
de desenvolvimento excludentes, o quais se manifestam em
desigualdade sociais e econômicas, insuficiente representação política,
acesso limitado a educação superior e técnica, serviços de educação
pública deficiente nas comunidades, maiores índices de mortalidade
materna e infantil, um menor acesso aos serviços de saúde, inclusive o
de saúde sexual e reprodutiva para mulheres, sub-registro dos bebês ao
nascer e a criminalização dos jovens.
Este Ano Internacional, deve ser o início de uma década de ações que
permitam o gozo efetivo dos direitos humanos de afrodescendentes,
com debates e decisões para avançar a democracia intercultural e
paritária, para não só garantir a representação de homens e mulheres
dos diversos grupos, povos e comunidades, como que permite uma
distribuição justa dos recursos e oportunidades em um modelo de
desenvolvimento humano sustentável 18
.
E também o seguinte trecho da edição “Grana, Prata, Bala e Poder”, de abril de 2011:
[...]É importante repensar as estratégias de combate ao tráfico,
principalmente porque a atual repressão militar vitimiza os setores
mais frágeis da sociedade: classes sociais baixas, jovens, imigrantes,
indígenas, negros. [...]O combate ao narcotráfico como ele tem sido
feito criminaliza a população indígena, que desprovida de terra e sem
chance de competir na economia agrária legal encontra no tráfico de
drogas uma saída para a miséria19
.
No Gráfico C, disponível na Análise Quantitativa, é possível perceber como a Folha de S.
Paulo não dá nenhum destaque para a questão racial, tanto negra quanto indígena, e nem a
relaciona com temas como pobreza, violência e tráfico de drogas. As próprias notícias sobre
narcotráfico, nunca fazem o debate social em conjunto e se focam apenas na questão da violência
propriamente dita, sem questionar as causas que estão por detrás dela.
18
BARR, Epsy - Um ano para reafirmar compromissos de inclusão; America Latina en Movimiento,
p.09 - No. 467. Ed. ALAI. Quito: 2011. * Tradução Livre 19
SOBERÓN, Ricardo - As tendências do narcotráfico na América Latina – América Latina en
Movimiento. ALAI. Quito: 2011 * Tradução Livre
25
Em outros casos, a questão das drogas aparece inclusive apenas em pautas que abordam
conflitos eleitorais e de campanha. Este é o caso das matérias “Narcotráfico vira tema de debate
em eleições argentinas”20
, publicada dia 09 de outubro de 2011 na Folha e “Tráfico encurrala
candidatos no México”21
, publica dia 02 de outubro de 2011. Ou seja, a narcotráfico e a
desigualdade social aparecem muito mais em um contexto de disputa política do que em um
contexto de debate social.
Muitos dos temas discorridos por Sousa Santos são também pautas de análises na revista
America Latina en Movimiento. A edição de fevereiro, por exemplo teve como título: “Bem-
viver: germinando alternativas ao desenvolvimento”; e seu conteúdo não defende o popular
“desenvolvimento alternativo”, geralmente defendido por empresas e indústrias que diante do
contexto de degradação ambiental resolveram levantar a bandeira verde, mas ao contrário,
defende uma alternativa ao desenvolvimento.
Essa alternativa seria baseada na inclusão e na equidade (tais como na educação, saúde,
segurança, comunicação social, transporte, ciência, etc), com enfoque na conservação da
biodiversidade e manejo dos recursos naturais, que são princípios vinculados aos saberes
tradicionais dos povos indígenas latino-americanos. E ainda rompe com a tradição crítica
eurocêntrica, como prevê Boaventura.
Essa relação pode ser observada claramente no seguinte trecho:
El socialismo é uma das grandes tradições próprias da modernidade
européia e o Bem-viver deseja justamente romper a subordinação
dessa perspectiva. Isso explica porque o boliviano Simon Yampara
sustenta que o ‘homem aymara não é nem socialista, nem capitalista22
.
Esse sistema defendido na revista é algo muito próximo do que Boaventura chama de
Epistemologia do Sul:
A primeira premissa da Epistemologia do Sul é ter a compreensão de
mundo muito mais ampla que a compreensão ocidental de mundo.
Logo, a revolução poderia ocorrer por caminhos não então previstos
nas teorias ocidentais, incluindo o marxismo. Nessa epistemologia
20
Vide artigo na íntegra em Anexos 5. 21
Vide artigo na íntegra em Anexos 4. 22
Texto “La crítica desde dentro”; America Latina en Movimiento. ALAI. Quito: Fevereiro, 2011 * Em
tradução livre
26
deve-se considerar toda diversidade e alternativas que são
negligenciadas pelo norte23
.
Para o autor, um dos modos de atingir na prática a Epistemologia do Sul, é superando o
que ele chama de Sociologia da Ausência, que segundo ele é muito comum dentre as
epistemologias do norte: O estado de não-existência, ou ausência, é produzido sempre que certa
entidade é desqualificada, se tornando invisível. Um dos exemplos dado é o caso da ignorância,
que é a ausência de conhecimento na medida em que apenas certas tradições culturais e suas
teorias são designadas “conhecimento”.
A ignorância ou a incultura é resultado da monocultura do saber. A
ciência e a cultura moderna são estabelecidas como únicos e
verdadeiros, se tornando canais exclusivos de produção de
conhecimento e de produção artística. Tudo aquilo que esses canais
não legitimam ou reconhecem é tratado com inexistente24
.
Seguindo a mesma lógica, considera-se pertinente afirmar que é também a Sociologia das
Ausências determina o que é considerado notícia e o que não é, sendo que os acontecimentos que
segundo esse raciocínio não podem ser considerados notícia, são como se não tivessem
acontecido: cria-se um estado de não-existência de um fato a partir do designação de notícia.
Portanto, a Sociologia das Ausências é aplicada todos os dias nas redações de veículos de
comunicação do sul e do norte, como foi possível perceber na classificação das matérias por
temas durante a análise quantitativa, em que em alguns temas foram mais ausentes na Folha do
que na ALAI e vice-versa.
A partir disso faz sentido falar em democratização da comunicação, que daria o poder de
voz tanto ao existente quanto ao ausente, como defende o projeto editorial da revista America
Latina en Movimiento.
Não são esses os únicos exemplos que mostram os encontros entre obra de Boaventura
com o jornalismo. Sua obra também apresenta uma boa perspectiva de análise do uso de
determinados substantivos e adjetivos, e carga político-ideológica que eles vinculam nas
publicações da imprensa.
23
SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: Perspectivas desde uma
epistemologia Del Sur; p.43. Instituto Internacional de Derecho y Sociedad. Lima , 2010 * Em tradução
livre 24
SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: Perspectivas desde uma
epistemologia Del Sur; p.37. Instituto Internacional de Derecho y Sociedad. Lima , 2010 * Em tradução
livre
27
Atualmente, as teorias progressistas, também chamadas de teoria
crítica, adjetiva os substantivos próprios das teorias conservadoras ou
convencionais. Não se usa mais os substantivos que marcavam a
diferença com relações às teorias convencionais burguesas. Por
exemplo: socialismo, comunismo, lutas de classes, alienação, frente de
massas e etc. Ao invés disso, a teoria crítica adjetiva os mesmo
adjetivos que são próprios das teorias convencionais, fazendo uso de
termos como ‘desenvolvimento alternativo’, ‘desenvolvimento
sustentável’, ‘democracia radical’ e ‘democracia participativa25
.
Segundo Sousa Santos, há uma enorme discrepância entre o que prevê a teoria, e as práticas
progressistas de lutas que estão em curso no continente. Nos últimos 30 anos, as lutas que
avançaram foram protagonizadas por grupos sociais (indígenas, campesinos, mulheres,
afrodescendentes e desempregados) cuja presença na história política não foi prevista por
nenhuma teoria eurocêntrica. A teoria crítica tradicional só prevê, por exemplo, a organização
por meio de partidos e sindicatos que habitariam majoritariamente os centros urbanos industriais.
Para o sociólogo, quando os movimentos sociais latino-americanos traduzem seu discurso
nas línguas coloniais, não aparecem termos familiares às teorias eurocêntricas, nem mesmo as
socialistas, mas sim termos como dignidade, respeito, território, autogoverno, o bem-viver e
mãe-terra. A identificação dessas palavras também pode ser muito proveitosa para a análise do
discurso dos veículos de comunicação.
Podemos identificar esse fenômeno na matéria “Peru: incompatibilidade de uma aposta
extrativista” da ALAI, que faz uma crítica aos atuais meios de se atingir o desenvolvimento do
país, em contraposição com a matéria “PIB da América Latina tem maior alta em três décadas”,
sobre o crescimento econômico do continente, da Folha de S. Paulo.
O crescimento de 6,1%, o maior registrado desde o ano de 1980, faz
mudar o status de ‘região esquecida’. Os olhares de fora voltados para
ela se explicam pelo desempenho econômico. Em 2010, houve
crescimento de 6,1%, a mais alta taxa de expansão desde 1980, antes
da crise da dívida externa. Outros dados econômicos positivos de 2010
não eram registrados há, pelo menos, 30 anos. A América Latina foi a
segunda região que mais cresceu no ano passado, perdendo apenas
para a Ásia. Além disso, na lista dos 15 países do mundo com taxas de
25
SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: Perspectivas desde uma
epistemologia Del Sur; p.30. Instituto Internacional de Derecho y Sociedad. Lima , 2010. * Em tradução
Livre
28
expansão do PIB mais altas, havia quatro sul-americanos: Paraguai,
Argentina, Uruguai e Peru26
.
No trecho acima da matéria da Folha podemos observar vários termos econômicos da
tradição crítica europeia – PIB, taxa de expansão, dívida externa, desempenho econômico– que
são indicadores diretamente ligados com concepções também eurocêntricas de crescimento e
desenvolvimento dos países.
Já o trecho abaixo do artigo “Hegemonia ou Emancipação?” publicado na ALAI em
dezembro de 2011, observamos exatamente o contrário:
As revoltas americanas inauguraram um ciclo lutas contra
descolonização e a alienação; pela desobjetificação dos sujeitos; pela
complementaridade da diversidade; para a recuperação de
intersubjetividade, para humanidade e contra a carreira suicida de um
sistema insustentável e perverso. Baseado no mundo onde caibam
todos os mundos, proclamada pelos Zapatistas das profundezas da
diversidade negada até as revoltas andino-amazônicas, que chama para
reestabelecer a relação com a natureza e restaurar a integridade da
Mama Pacha, tem-se percorrido um caminho conceitual, que emana
uma política subversiva e libertária, cujo poder só pode ser medido em
horizontes de tempo e espaços mais amplos, em que estão localizados
nos movimentos emancipatórios, que crescem em todos os cantos do
mundo27
.
Neste trecho podemos observar, ao contrário da Folha de S. Paulo, alguns outros termos
que não estão ligados á tradição crítica eurocêntrica principalmente no que diz respeito á
estratégias econômicas e de desenvolvimento. Alguns desses termos são “diversidade”,
“integração com a natureza” e “Pacha Mama”, que tem origem nas concepções ancestrais e
nativas indígenas de desenvolvimento, bem estar, qualidade de vida – não ligadas ao crescimento
da indústria, comércio e consumo. O trecho faz inclusive menção ao movimento Zapatista e às
revoltas andino-amazônicas, como referência para os movimentos sociais contemporâneos, ou
seja, faz referência às doutrinas de raízes latino-americanas e não às europeias, bem como o
sociólogo Boaventura alertou na citação acima.
26
PIB da América Latina tem maior alta em 3 décadas. Folha de S. Paulo. Caderno Mundo. Dia
01/05/2011 27
CECEÑA, Ana Esther. Hegemonía o emancipación. América Latina en Movimiento; nº 471. Ed. ALAI.
* Em tradução livre
29
3.1b) Segunda Parte
Na segunda parte da obra, Boaventura se concentra em caracterizar o atual contexto
latino-americano, e diagnosticar os desafios de se atingir a Epistemologia do Sul. Para o
sociólogo, o primeiro passo foi discorrer sobre a questão da democracia no continente.
Segundo ele, tomando o continente latino-americano como unidade de análise, assistimos
a uma dualidade poderes de um novo tipo, que se cruzam, no marco democrático, as lutas
socialistas e as lutas fascistas, sem que seja possível, por agora, saber quem vai vencer:
As lutas de vocação ou potencial socialista se manifestam nos
processos de radicalização da democracia; da democracia participativa,
comunitária e intercultural; da democratização do acesso a terra; da
redistribuição das rendas de exploração dos recursos naturais;da
promoção de alternativas ao desenvolvimento, como são o bem viver (
o Sumak Kawsay e o Suma Qamaña); o da negação de separação entre
sociedade e natureza, concebida como a Mãe Terra ( Pachamama).
As lutas fascistas se manifestam na defesa da uma democracia de
baixa intensidade representativa e com baixa capacidade de
redistribuição social; o clamor de autonomia/descentralização para
proteger os interesses oligárquicos contra o Estado central nacional-
popular; em formas de violência (assassinatos políticos e ameaças)
por parte dos atores estatais ou como resultado de alianças
publico/privadas (o paramilitarismo); a violência estrutural do
racismo; a repressão brutal (incluindo massacres) do protesto social; a
negação dos direitos trabalhistas; o sempre reemergente trabalho
escravo; o silencio diante dos crimes contra a humanidade cometidos
nas ditaduras militares ou a repressão dos grupos que lutam pelo
direito a memória das vítimas desses crimes e etc. Se trata de um
fascismo de um novo tipo, fragmentado, que busca impedir que o jogo
democrático seja utilizado para as lutas mais avançadas28
.
O conteúdo publicado na revista America Latina em Movimiento, se posiciona
claramente a favor da “luta socialista” descrita por Boaventura. Isto pode ser observado inclusive
nos trechos da revista já citados anteriormente, em que se questiona a teoria capitalista e suas
respectivas concepções de desenvolvimento e bem-estar.
Já a Folha de S. Paulo, não se declara estar em nenhuma das duas posições, e ao contrário
da revista da ALAI, que se posiciona publicamente de um lado, o jornal se declara neutro e
imparcial – como descrito em seu projeto editorial já mencionado anteriormente. Entretanto, ao
28
SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: Perspectivas desde uma
epistemologia Del Sur; p. 63-65. Instituto Internacional de Derecho y Sociedad. Lima , 2010. * Em
tradução Livre
30
observar o conteúdo publicado, é possível perceber que a Folha privilegia determinados temas
justamente direcionados a temas que o Boaventura enquadra dentro das “lutas fascistas” como na
matéria “Brasileiro faz fortuna e má fama no Paraguai”.
Isso nos faz questionar qual a concepção ideológica de democracia intrínseca ao conteúdo
veiculado por cada uma das duas publicações. Como podemos observar nos trechos enumerados
abaixo desta matéria da Folha, publicada no dia 5 de Fevereiro de 2012:
Brasileiro faz fortuna e má fama no Paraguai 29
(1) O maior produtor de terra individual no país vizinho é tachado de
usurpador pelos sem- terra.
(2) Radicado há 42 anos do outro lado da fronteira, ele chama
acampados de “delinquentes" e diz que odeia a pobreza.
(3) Esse catarinense nascido na pequena cidade de Videira chamou os
camponeses que cercam sua fazenda de delinquentes; elogiou o
governo do ditador Alfredo Stroessner (“Naquela época você podia
dormir com a janela aberta e ninguém te roubava. Só estamos piorando
desde então”); e disse que é inútil lidar com os sem-terra na base da
diplomacia, que eles têm de ser tratados "como mulher de malandro,
que só obedece na base do pau".
(4) Os sem-terra, segundo Favero, insistem em um sistema obsoleto de
agricultura: “Um sistema à base de carros de boi, usados na época do
meu avô. Hoje, se não podemos competir lá fora, morremos”.
(5) Odeio a pobreza, mas não acredito em esmola para gente sã. Nem
em milagres. Sou católico, mas se ficar ajoelhado diante de um salame
pendurado, rezando “Pai nosso que estais no céu', morro de fome. E o
salame não vem".
Duas das características descritas por Boaventura de Sousa Santos como parte de
democracias fascistas podem ser identificadas nos trechos acima: a repressão brutal (incluindo
massacres) do protesto social e a baixa capacidade de redistribuição social. É também importante
relatar que a única fonte que aparece no texto da matéria é o próprio produtor Tranquilo Fávero.
Em nenhum momento a Folha de S. Paulo dá a palavra a algum representante do movimento
sem-terra, cujas ações são caracterizadas e julgadas apenas pelas próprias palavras do produtor,
fazendo com que os sem-terras não possam se defender ou expor os motivos da acusação feita.
29
Vide matéria na íntegra em Anexos 6.
31
Os trechos 1 e 2 fazem parte da linha fina e da chamada da matéria, e já introduzem parte
do teor político ideológico contido no conteúdo que vem a seguir. O trecho 1, ao iniciar com o
termo “o maior produtor de terra” e contraposição com o termo “tachado de usurpador pelos
sem-terra”, parece criar um efeito de valorização e destaque ao status de maior produtor de terra,
e consequentemente, pode gerar o efeito de sentido que deslegitima a acusação de usurpador
feita por aqueles que não possuem nenhuma produção, ou seja, os sem-terras. Como se não
pudesse ser legítima a reivindicação daqueles que “nada produzem” acusar o maior produtor
agrícola do Paraguai de usurpador, sendo que segundo a matéria ele símbolo do agronegócio,
setor que responde por 80% do PIB do país e seria em grande medida responsável pelos 15,3%
de crescimento da economia verificados em 2010.
Nos trechos 2 e 5, o jornal dá destaque a duas declarações da fonte se colocando contrário
a pobreza, mas ao mesmo tempo, indiretamente se colocando também contrário às reivindicações
políticas de redistribuição de renda e redistribuição de terras, considerada por ele como uma
“esmola” da qual ele nunca precisou para conseguir atingir seu status de maior produtor
paraguaio. Ao mesmo tempo, o próprio jornal se ausenta de debater a questão de políticas de
redistribuições de terra, as reivindicações dos movimentos-sociais não dando voz a eles na
matéria, mas colocando em destaque apenas as afirmações de Fávero contrárias ao movimento.
No trecho 3, Fávero se coloca a favor do regime ditatorial de Alfredo Stroessner, o que
evidencia também o silêncio diante dos crimes contra a humanidade cometidos nas ditaduras
militares, considerado pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos como uma característica
semelhante a dos movimentos democráticos de vertente fascista. Em sua fala, Fávero parece
desconsiderar todas as violações dos direitos humanos cometidas durante o governo de Alfredo
Stroessner e com o consentimento dele; o produtor destaca como a ditadura lhe trouxe vantagens
individuais, desconsiderando as consequências geradas pelo regime nos demais setores da
sociedade paraguaia. No mesmo trecho Fávero ainda defende a repressão violenta aos sem-terra:
“É inútil a diplomacia [...] Eles só obedecem na base do pau”. Esta colocação se enquadra na
repressão brutal (incluindo massacres) do protesto social, que para Boaventura é uma
característica do movimento democrático fascista.
No trecho 4, Fávero considera métodos de cultivo que são base da agricultura familiar e
dos pequenos produtores como obsoletos, ou seja, coloca o agronegócio como prioridade e como
objeto central para o desenvolvimento econômico do país, pautado em uma política econômica
32
de exportação – diferente da política que os movimentos sociais defendem para o uso da terra
(pequenas propriedades, agricultura familiar voltada para o mercado interno).
Através dessa matéria escolhida como exemplo, é possível afirmar que a seleção das
fontes, as citações privilegiadas, e de um modo mais amplo o conteúdo abordado tendia muito
mais para a defesa do que Boaventura define como uma democracia mais restrita, de baixa
intensidade representativa e com baixa capacidade de redistribuição social; além do clamor de
autonomia/descentralização para proteger os interesses oligárquicos – na matéria claramente
representado pelos interesses econômicos do latifundiário Fávero, que defendeu publicamente a
repressão aos movimentos sociais, o regime militar paraguaio.
Já a revista América Latina en Movimiento, ao contrário ta Folha, se aproxima muito
mais do que Boaventura define como a luta buscada pelos movimentos socialistas, que se
manifestam nos processos de radicalização da democracia; da democratização do acesso a terra;
da redistribuição das rendas de exploração dos recursos naturais; da promoção de alternativas ao
desenvolvimento, como são o bem-viver.
Essa mesma diferença de perspectiva democrática é possível perceber quando os dois
veículos tratam de temas relativos aos meios de comunicação e à imprensa. No período de
compilação do corpus, houve uma considerável concentração de notícia sobre meios de
comunicação, mais especificamente sobre a relação entre regulamentação da imprensa e os
governos de esquerda latino-americano, como é o caso das matérias “Vingada, Cristina acirra
atrito com a imprensa argentina”(1); “Correa aperta cerco a mídia Equatoriana” (2) e “Lei
boliviana dá mais poderes a Morales sobre comunicações”(3) da Folha de S. Paulo. Veja alguns
trechos abaixo:
(1)
"É impossível fazer jornalismo na Argentina. Se hoje é o "Clarín" que
não pode circular, amanhã posso ser eu”
“O Grupo Clarín, desde 1989, extorquiu todos os governos da
Argentina. Cristina foi a única capaz de resistir”, afirma Bulla. “Além
do quê, um monopólio como o do ‘Clarín’ ameaça qualquer projeto
democrático”.
“O nível de concentração da mídia na Argentina é absurdo, nem a
Globo no Brasil é assim. O Clarín vai continuar grande, talvez
33
continue a ser o maior grupo do país. Mas terá que reduzir sua
participação na TV a cabo”, diz.30
(2)
A ratificação da condenação de três diretores e um editor do jornal "El
Universo" pela Justiça equatoriana, na última semana, assinala uma
nova etapa dos ataques do presidente Rafael Correa à imprensa de seu
país.
“A situação está muito mais grave no Equador. Há uma campanha
agressiva do governo contra a liberdade de expressão”, disse à Folha o
diretor da Sociedade Interamericana de Imprensa, Ricardo Trotti.
Desde que iniciou sua gestão, em 2007, o presidente Correa deu início
a um processo de expropriação de canais de TV e rádio, uso
discriminatório de verba para publicidade oficial e condenação judicial
por injúria de jornalistas que criticam o governo. Já são 21 os meios
governistas, que se dedicam a propagandear ações de Correa.31
(3)
O congresso boliviano, controlado pelo partido do presidente Evo
Morales, aprovou na noite de quinta-feira uma polêmica lei de
telecomunicações que dá ao governo e seus aliados dois terços das
licenças de rádio e televisão e permite escutas telefônicas. A oposição
afirma que a lei ameaça a independência das redes privadas de
telecomunicações.
A lei reserva para o Estado 33% do espectro eletromagnético, outros
33% para o setor privado e 34% para organizações sociais e indígenas,
que são aliadas do governo.
Segundo os críticos, na prática, Evo Morales vai controlar até 67% das
ondas eletromagnéticas do país, ameaçando as redes privadas. “As
rádios comunitárias e indígenas, como não têm faturamento, precisam
do Estado para sobreviver, e portanto o governo terá na prática 67%”,
disse Raúl Novillo, presidente da Associação Boliviana de
Radiodifusoras. “É séria ameaça à liberdade de expressão’, disse.”32
30
Vingada, Cristina acirra atrito com a imprensa argentina . Folha de S. Paulo. Caderno Mundo. Dia
28/08/2012. Vide matéria na íntegra em Anexos 7.
31 No Equador, presidente Rafael Correa aperta cerco à mídia. Folha de S. Paulo. Caderno Mundo. Dia
19/02/2012. Vide matéria na íntegra em Anexos 8. 32
Lei boliviana dá mais poderes a Morales sobre comunicações. Folha de S. Paulo. Caderno Mundo. Dia
21/07/2011. Vide matéria na íntegra em Anexos 9.
34
Todos os trechos das matérias acima fazem menção, de algum modo, à “censura e
cerceamento à liberdade de imprensa”. E ainda é possível afirmar que essas matérias da Folha se
concentram nesse aspecto dos fatos, relacionando-os como um ataque a liberdade de imprensa.
Isso pode ser observado também através das fontes escolhidas, no trecho 3, sobre o caso
equatoriano, apenas se afirma que os setores minoritários da sociedade (indígenas, campesinos,
movimento sociais) terão direito ao usufruto de uma porcentagem do espectro eletromagnético,
mas colocam esses grupos apenas na perspectiva de serem aliados ao governo de Rafael Corrêa,
ou seja, cria o efeito de sentido que apenas por isso eles receberão essa quota.
É importante relembrar aqui, o jornal Folha de S. Paulo, pertence ao grupo Folha, um dos
maiores conglomerados midiáticos do país, como já foi dito na Introdução. Este fato somado a
preocupação do jornal em condenar a política de regulamentação dos meios de comunicação nos
países vizinhos podem significar o próprio interesse da Folha em legitimar os monopólios dos
meios, já que faz parte de um, e simultaneamente prestar solidariedade aos jornais vizinhos, de
perfil semelhante ao dela e que estão sofrendo “prejuízos” com essas políticas de
regulamentação.
Em nenhum momento os fatos são debatidos na perspectiva de democratização da
comunicação – de dar voz ao povo – como fazem os artigos publicados na revista America
Latina en Movimiento, que quando tratam das relações de imprensa a fazem numa direção
contrária à Folha.
É possível observar isso em alguns trechos abaixo, dos artigos publicados na edição de
março de 2011, “Redes Sociais – nem tanto nem tampouco”:
A internet abriu brechas para que novas vozes pudessem se expressar
na sociedade. Mas ela não deve ser idealizada. Quem detém maior
audiência são os portais de noticias e entretenimento dos mesmos
grupos midiáticos. A publicidade, que cresce na rede ( nos EUA, ela
superou pela primeira vez na historia os anúncios dos jornais
impressos) é totalmente absorvida pelos barões desses meios. A
internet é um meio de disputa. Sem ampliar e qualificar essa produção,
a blogosfera progressista será derrotada e falará para pequenos nichos.
Além disso, a tecnologia não é neutra. Os monopólios da comunicação
já estudam mecanismos para cercear a liberdade na rede33
.
33
BORGES, Altamiro. As forças e os limites da blogosfera.América Latina en Movimiento; nº 463. Ed.
ALAI. * Em tradução livre
35
O ciberespaço é um território em disputa em que estão presentes tanto
atores estatais e transnacionais que tratam de controlá-lo e moderá-lo
de acordo com suas visões e interesses como atores que apontam a
projetos emancipadores e democratizantes. Esse território está aberto a
todas intervenções, e sai composição interna reproduz, com mínimas
variações, a relação de forças existentes no mundo exterior, de onde
sem duvida não são favoráveis as mídias alternativas. A tentação de
controlar e moderar o ciberespaço para fazer prevalecer a hegemonia e
os objetivos imperiais faz parte das visões estratégicas de Washington.
Essa tentação é enganadora, pois vem disfarçada de liberdade de
expressão na internet 34
.
Apesar de esta edição tratar majoritariamente da comunicação via internet, o contraste
com a abordagem feita nas matérias da Folha de S. Paulo é evidente. Para a ALAI, que em seu
próprio projeto editorial se coloca a favor da democratização da comunicação – sendo a própria
revista um instrumento para tal –, são essenciais leis de regulamentação da mídia para garantir a
pluralidade de vozes e a representatividade democrática também nos meios de comunicação.
Assim, enquanto a Folha destaca argumentos e citações que colocam a regulamentação da mídia
como um afronto a liberdade de imprensa, e portanto a democracia, os artigos da ALAI
consideram como antidemocrático justamente a concentração e os monopólios dos meios de
comunicação, defendido pela Folha. Os dois trechos acima, da ALAI, inclusive conhecem o
argumento utilizado pelo jornal de tratar a regulamentação dos meios de comunicação como
censura e alertam o leitor a tomar cuidado com esse argumento, que para os autores dos artigos
não passam de disfarces.
O segundo trecho acima, de um dos artigos da ALAI, também menciona o imperialismo
em relação à mídia, e o condena. O imperialismo é também um tema muito recorrente nos artigos
da revista, como será observado mais adiante.
No que diz respeito á democracia latino-americana, o sociólogo Boaventura também faz
uma outra observação a respeito, e relaciona a democracia com as minorias étnicas, sociais e
culturais do continente:
[...] Esses movimentos mudaram de modo radical os pontos de partida,
e os prováveis pontos de chegada das transições. Para todos eles, a
duração da transição é muito mais longa que a duração das transições
democráticas. Para os povos indígenas, a transição começa com a
resistência a conquista e ao colonialismo, e só termina quando a
autodeterminação dos povos indígenas seja plenamente reconhecida.
34
TAMOYO, Eduardo. A luta pela hegemonia na Internet. América Latina en Movimiento; nº 463. Ed.
ALAI. * Em tradução livre
36
Para os movimentos afrodescendentes, a transição começa com a
resistência a escravidão e o aprofundamento do colonialismo e do
capitalismo, feito possível por causa da escravidão, e só termina
quando acabarem o colonialismo a acumulação primitiva que até agora
sustentam a permanência do racismo e de formas de trabalhos
análogos à escravidão. Finalmente para os campesinos em sentido
amplo (cholos, mestiços, pardos, ribeirinhos, caboclos, pescadores,
indígenas ou negros), a transição começa com as independências e
com a resistência ao saque das terras comunais, a concentração de
terras nas mãos das oligarquias, agora livres do controle imperial e ao
patrimonialismo e ao coronelismo e só terminará quando a reforma
agrária for finalmente comprida.
Esses movimentos tem subvertido toda a trabalhosa investigação sobre
as transições ao mostrar que suas durações são demasiadamente curtas
e que as transformações canonizadas por elas, sem minimizar ou
menosprezar, surgem como muito limitadas uma vez que situam no
contexto muito mais amplo da emancipação e liberação 35
.
É possível observar sutilmente que a Folha de S. Paulo considera a democracia um
regime já consolidado na sociedade latino-americana, sendo que para Boaventura ela está
consolidada apenas para o grupo hegemônico na sociedade. A Folha parece considerar enquanto
cidadãos exatamente esses setores da sociedade, cujos direitos democráticos estão restritos a eles.
Isto é perceptível no tratamento que o jornal dá a temas que envolvem movimentos sociais,
pobreza, distribuição de renda e democratização da mídia, nos trechos da Folha citados
anteriormente. Há uma subversão, de modo que qualquer tentativa de estender esses direitos
(deter e ter acesso aos meios de comunicação, terra, por exemplo) aos outros setores da
sociedade acabam sendo consideradas de medidas antidemocráticas – como no próprio caso das
matérias sobre imprensa, em que enquanto a ALAI chama de democratização da comunicação, a
Folha chama o mesmo fato de censura.
Já o conteúdo veiculado na revista América Latina em Movimiento, parece partilhar da
mesma concepção de Bovetura de Santos descrita nos trechos acima: a ALAI sempre parte do
pressuposto que a América Latina vive uma democracia restrita aos setores hegemônicos, ou
seja, às classes com mais recursos, branca, enquanto a população pobre, indígena, negra e
campesina ainda vive a margem desses direitos, mesmo depois dos processos de democratização
após o período das ditaduras militares no continente. Nessa perspectiva, a própria revista se
coloca como instrumento de transformação desta realidade social, visando a democracia plena,
35
SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: Perspectivas desde uma
epistemologia Del Sur; p.64-65. Instituto Internacional de Derecho y Sociedad. Lima , 2010. * Em
tradução Livre
37
que inclua todos os setores e grupos da sociedade latino-americana. Na edição 467, especial
sobre Afrodescendentes, é possível observar muitos exemplos disso:
O povo afro-boliviano é um dos menos estudados e relativamente
pouco conhecidos no continente. Essa invisibilidade, esse sentimento
de não existência, tem sido um obstáculo para considera-lo como
sujeito com direitos36
.
Atualmente, quase 10% da população uruguaia é afro-descendente.
Mais da metade vive abaixo da linha da pobreza, pleo mesmo trabalho
se paga 35% menos, as mais prejudicadas são as mulheres afro,
predominantemente subempregadas e trabalhadoras do setor
doméstico37
.
No Brasil republicano do século 21, a igualdade só existe no papel e na
lei. Não há efetivamente igualdade de condições e oportunidades. A
república brasileira não se emancipou socialmente os milhões de
homens e mulheres negros que saíram da escravidão. Mas do ponto de
vista constitucional, todos são iguais ‘perante a lei’. Sem vida, a
desigualdade entre negros e brancos se mantém: 64% dos pobres e
70% dos indigentes brasileiros são negros. A discriminação racial
amplia as desigualdades sociais porque são reforçados pelo racismo,
machismo e homofobia. 38
Os trechos acima da revista America Latina em movimento, que identifica a necessidade
de inclusão do povo negro, e consequente, dos demais povos excluídos do atual regime
democrático latino-americano, conversam com a definição de democracia defendida por
Boaventura de Sousa Santos para o continente, a democracia intercultural, que consiste em:
1. a existência de diferentes formas de deliberação
democrática, do voto individual ao consenso, de eleições a rotação,
da luta por assumir cargos a obrigação e responsabilidade de assumi-
los.
2. diferentes critérios de representação democrática
(representação quantitativa, de origem moderna eurocêntrica e
representação qualitativa, de origem ancestral indocêntrica)
36
TAMOYO, Eduardo. Bolívia : Se tem avançado mas ainda falta muito para vencer. América Latina en
Movimiento; nº467, p.20. Ed. ALAI. Quito: 2011 * Em tradução livre
37
ANDRADE, Susana. Afrodescendentes no Uruguai – A hora de exercer a cidadania efetiva. América
Latina en Movimiento; nº467, p.26. Ed. ALAI. Quito: 2011 * Em tradução livre
38 LEÓN, Osvaldo. Brasil: tímidos passos importantes. América Latina en Movimiento; nº467, p.28. Ed.
ALAI. Quito: 2011 * Em tradução livre
38
3. reconhecimento dos direitos coletivos dos povos como
condição do efetivo exercício dos direitos individuais (cidadania
cultural como condição de cidadania cívica)
4. reconhecimento dos novos direitos fundamentais
(simultaneamente individuais e coletivos): direito a água, a terra, a
soberania alimentar, aos recursos naturais, a biodiversidade, as
florestas e aos saberes tradicionais
5. educação orientada para formas de sociabilidade e
subjetividades assentadas na reciprocidade cultural: um membro de
uma cultura somente está disposto a reconhecer a outra cultura se
sente que a sua propria é representada, e isto se aplica tanto as
culturas indígenas quanto as não indígenas. 39
3.2 Colonialismo e imperialismo
Como já dito anteriormente, outro fenômeno frequente no conteúdo do ALAI é relacionar
a problemática central do artigo com as práticas de imperialismo e colonialismo no continente.
Esses temas são centrais na obra do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, já que para ele é
necessária uma Epistemologia do Sul e a refundação dos estados latino-americanos justamente
por levar em consideração o passado colonial do continente, e considerar que mesmo com o fim
do período histórico colonial, o colonialismo e o imperialismo persistem de diversas formas nas
relações sociais no continente. Portanto ele considera que há dois grandes desafios das políticas
progressistas do continente latino americano: o pós-capitalismo e o pós-colonialismo.
A presença do imperialismo [...] é mais do que nunca visível na
determinação imperial de controlar a terra, a água doce, a
biodiversidade e os recursos naturais por via da guerra, ocupações,
pressão diplomática e instalação das bases militares. Assim se explica
que o Banco Mundial, ao mesmo tempo em que saúda as novas
políticas sociais em alguns países do continente (Ex. Bolsa Família no
Brasil), antes satanizadas, segue pressionando o sul global para
privatizar a água, a educação, a saúde, os recursos naturais, assim
como para eliminar formas comunais de propriedade da terra, privando
por essa via os Estados nacionais dos recursos financeiros para
sustentar as políticas sociais focais, agora legitimadas pelo próprio
Banco40
.
39
SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: Perspectivas desde uma
epistemologia Del Sur; p.98-88. Instituto Internacional de Derecho y Sociedad. Lima , 2010. * Em
tradução Livre
40
SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: Perspectivas desde uma
epistemologia Del Sur; p.58-59. Instituto Internacional de Derecho y Sociedad. Lima , 2010. * Em
tradução Livre
39
Alguns artigos publicados na ALAI, parte da mesma concepção exposta acima pelo
sociólogo, como é possível observar no trecho do artigo Honduras: Colonialismo, militarismo y
presencia extranjera, abaixo:
A militarização de Honduras, como em todo continente, se iniciou com
o ato brutal e violento da conquista, que continuou com a cruzada de
colonização e evangelização nos marcos de se executar o maior
genocídio da história, pretendendo destruir nossas populações nativas,
roubando os bens da natureza e destruindo a Mãe Terra. A partir da
independência, a dominação continuou de outras formas. Os setores
liberais e locais abriram a economia para entrada de capitais
estrangeiros para o cultivo do café, de banana, para o desenvolvimento
da mineração, a indústria florestal, a indústria turística entre outras.
Simultaneamente com essa abertura para o capital estrangeiro, se
criaram forças militares e policiais para protegê-los. Militarismo e
colonização são duas caras da mesma moeda. Desde 1854 em Hoduras
os governos tem sido subservientes aos EUA, com que firmaram
acordos muito vantajosos para as companhias bananeiras41
.
O trecho acima é o exemplo clássico de como a ALAI aborda o tema, colocando o
continente latino-americano numa perspectiva imperialista em relação aos Estados Unidos,
Europa e o neoliberalismo de um modo geral. Entretanto, pude observar algumas exceções a essa
perspectiva quando se tratava das relações externas entre os próprios países do continente.
Nesses casos, o Brasil aparecia na posição de vilão imperialista pelos artigos da revista,
criticando publicamente a política brasileira para com os países vizinhos. Isto pode ser observado
no trecho abaixo do artigo Una mirada macroscópica al conflicto del TIPNIS, de outubro de 2011.
No ano 2000, os presidentes neoliberais da região lançaram uma
iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional (IIRSA), o mais
agressivo plano de “Desenvolvimento e Integração da Infraestrutura
regional sul-americana”. IIRSA é um pacote de 514 megaprojetos
hidroelétricos, carreteiros, gasíferos, portuários, com uma inversão
inicial estimada de 69 bilhões de dólares, financiados pelo Banco
Interamericano de Desenvolvimento, a Corporação Andina de
Fomento, FONPLATA ( os mesmos da antiga ALCA na região), a
União Erupéia, Banco Santander, o Banco Nacional de
Desenvolvimento Economico e Social (BNDES) do Brasil para
beneficio imediato das construtoras majoritariamente brasileiras, tais
como: Odebrecht,Andrade Gutiérrez, Camargo-Correa, OAS, Furnas,
Suez-Tractebel. Esses mega projetos são parte da histórica estratégia
brasileira de colonizar a Amazônia continental, já disseminada pela
41
COPINH. Colonialismo, militarismo y presencia extranjera. America Latina en Movimiento; nº 470.
Ed. ALAI. * Em tradução livre
40
ditadura militar e chamada sucessivamente: Brasil em Ação, Avança
Brasil e agora Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).
Desenvolvimento? Sim para as corporações multinacionais
mineradoras, metalúrgicas, petrolíferas, agroindustrial, farmacêutica, e
engenharia genética, empresas construtoras e florestais. Para os
subcontratantes locais sobram migalhas suficientes para gerar o apoio
político necessário para a implementação.
Integração? Clara, mas subordinado ao Brasil em primeira instância, e
logo a economia capitalista global liderada pelos BRICS, ou seja, por
empresas multinacionais que operam neles e a partir deles42
.
Este trecho coloca o Brasil enquanto país imperialista, que quer expandir seus projetos
desenvolvimentistas para os países vizinhos através de empresas, muitas delas privadas, que
exploram a mão de obra local, mas concentram todo o lucro e arrecadação do projeto na matriz
brasileira – incluído projetos do Programa de Desenvolvimento Econômico (PAC), criado pelo
ex-presidente Lula – subordinando os países vizinhos ao Brasil. Apesar de não ser uma crítica
constante no conteúdo da ALAI avaliado sobre a política externa do Brasil, esta colocação
apareceu algumas vezes em artigos que tratavam a questão do continente latino-americano mais
geral e que também tocava no tema da integração entre os países. O trecho acima coloca que
existe alguma integração a integração no continente, mas que ela está subordinada a uma
situação de desigualdade nas relações econômicas entre os países.
Na Folha de S. Paulo apenas uma matéria, Em clima eleitoral, Peru lança PAC e
beneficia brasileiros 43
, também ilustra essa relação econômica entre o Brasil e os demais países
que a ALAI denomina como imperialistas. A Folha, entretanto, aborda o fato como uma notícia
de economia e política externa padrão, e por ser um veículo brasileiro, se atenta aos benefícios
que o evento traz ao nosso país, sem fazer qualquer tipo de menção aos prejuízos que o negócio
pode trazer ao Peru e também sem fazer qualquer crítica ou reflexão política sobre o
comportamento do Brasil com o país vizinho.
Apensar de o Brasil ser criticado como imperialista no continente pela revista da ALAI, a
Folha de S. Paulo também publicou algumas matérias em que o país, as políticas brasileiras e a
personalidade do Lula aparecem como referencias e exemplo a serem seguido pelos demais
países da América Latina. É o caso das matérias “Candidatos a eleição do Peru tentam vincular
42
SANTIESTEBAN, Gustavo Soto. Una mirada macroscópica al conflicto del TIPNIS . America Latina
en Movimiento; nº 468/469. Ed. ALAI. * Em tradução livre 43
Em clima eleitoral, Peru lança PAC e beneficia brasileiros. Folha de S. Paulo. Caderno Mundo. Dia
03/04/2011. Vide matéria na íntegra em Anexos 10.
41
imagem a Lula”44
(1), “Chávez faz seu ‘Minha Casa, Minha Vida’”45
(2) e “ Campanha na
Argentina experimenta fator Lula”46
(3).
Candidatos á eleição do Peru tentam vincular imagem a Lula Keiko Fujimori e Olanta Humala disputarão o segundo turno. Os dois
candidatos estão competindo para convencer o eleitorado de quem é
mais Lula.
Chávez faz seu ‘Minha Casa, Minha Vida’
Megaprograma do líder venezuelano promete construir 350 mil casas
até o final do mandato e 2 milhões até 2017.
Campanha na Argentina experimenta fator Lula
Candidatos a presidência incorporam ideias como ‘Fome Zero’ e
Conselhão. Para tarair eleitorado à esquerda, Eduardo Duhalde e
Rivcardo Afonsin aproximam imagem da do brasileiro
Os trechos acima mostram outro aspecto que parece comum a alguns países do
continente, podendo até gerar algum tipo de relação de integração entre eles: a referência que os
demais governos progressistas dos países latino-americanos têm no ex-presidente Lula. A
popularidade e aprovação de Lula no Brasil o tornou um exemplo a ser seguido pelos seus
companheiros dos países vizinhos. Entretanto, poucos artigos da ALAI defendem publicamente
que Lula deve ser um exemplo a ser seguido nos outros países, alguns artigos mencionam que
algumas políticas efetivadas durante seu governo são exemplares, como programas de
redistribuição de renda e inclusão social, mas em nenhum momento se faz um apelo a figura
pessoal do presidente, como foi frequente nas matérias da Folha.
Ao contrário, já foi observado anteriormente que os artigos da ALAI, na perspectiva de
defender o bem-viver, ou seja, uma espécie de bem estar social em total harmonia com a
natureza – estabelecendo com ela uma relação horizontal de eqüidade – , frequentemente
condenam o desenvolvimentismo (representado pelo PAC, por exemplo), que foi uma das
políticas centrais do governo Lula e dos demais governos latino-americanos, inclusive aquelas
mais progressistas, como Bolívia e Equador com seu projeto plurinacional de Estado:
44
Candidatos a eleição do Peru tentam vincular imagem a Lula. Folha de S. Paulo. Caderno Mundo, p.
A26. Dia 08/05/2011. Vide matéria na íntegra em Anexos 11. 45
Chávez faz seu ‘Minha Casa, Minha Vida’. Folha de S. Paulo. Caderno Mundo, p. A20. Dia
22/05/2011. Vide matéria na íntegra em Anexos 12. 46
Campanha na Argentina experimenta fator Lula . Folha de S. Paulo. Caderno Mundo, p. A22. Dia
22/05/2011. Vide matéria na íntegra em Anexos 13.
42
A ideia de um novo projeto de país é forte nos dois casos, tal como a
ideia de pluranacionalidade, de outra política nacionalista centrada em
outra relação com a natureza e o horizonte de um caminho pós-
capitalista, seja o socialismo do século XXI, o socialismo comunitário
ou o socialismo da revolução cidadã. Em ambos países há uma certa
ambiguidade em relação a esses objetivos: um certo
desenvolvimentismo conduzido pelo estado (que alguns não vacilam
em sesignar como capitalismo nacionalista de Estado e outros
capitalismo andino-amazônico) é uma condição previa para que a
sociedade protagonize um socialismo de um tipo novo, social e não
estatal. Esses dois processos políticos as conduzidos por seus lideres
carismáticos47
.
3.3 Desenvolvimentismo e Estado Plurinacional
Esta dualidade entre o desenvolvimentismo, nos moldes neoliberal e de referência
eurocêntrica que vem sendo aplicado na América Latina , e uma alternativa ao desenvolvimento
foi uma questão muito tratada por Boaventura de Sousa Santos, em que ele evidente se posiciona
ao lado de uma alternativa, chamada por ele de Epistemologia do Sul. Porém, o sociólogo
reconhece que mesmo nas tentativas mais genuínas de alguns governos por transformações
sociais, ainda existem significativas diferenças conceituais e diferentes referências de projeto de
futuro entre o governo e os setores mais populares:
A concepção de tempo linear que sustenta a modernidade ocidental, as
transições são sempre uma trajetória que vão do passado ao futuro. O
que pensar então, no caso dos movimentos indígenas, quando de
cultiva uma transição em que o regresso ao passado ancestral, pré-
colonial se transforma na versão mais capacitada do projeto/vontade
de futuro? Como imaginar o contrário, partir do que não existe para o
que já existiu, recuperando de suas ruínas sobreviventes, reais ou
imaginárias, para um futuro que não ter que ser inventado, mas que
tem que ser “des-produzido” como ausente ou inviável?
[...] As transições canônicas das décadas passadas são transições no
seno das totalidades hegemônicas: ditadura e democracia enquanto
subespécies de regimes políticos modernos. No caso dos indígenas e
negros, as transições ocorrem entre civilizações distintas, universos
culturais com visões próprias, cujo diálogo possível, apesar de tanta
violência e de tanto silêncio, somente é possível através da tradução
intercultural e sempre com o risco das ideias mais fundamentais, os
mitos mais sagrados e as emoções mais vitais se percam no trânsito
entre universos linguísticos, semânticos e culturais distintos. Ou seja,
47
SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: Perspectivas desde uma
epistemologia Del Sur; p. 114. Instituto Internacional de Derecho y Sociedad. Lima , 2010. * Em tradução
Livre
43
quando exitosa, a transição neste caso é também é também uma
transição conceitual , que se configura com mestiçagem conceitual48
.
Assim mesmo, quando as Constituições do Equador e da Bolívia estabelecem o bem
viver como principio orientador da organização econômica, política e social, recorrem a um
dispositivo conceitual e normativo hibrido, que junta o texto jurídico matricial da modernidade
ocidental – a Carta Política – recursos linguísticos e conceituais coloniais e não ocidentais.
Entretanto, Sousa Santos ainda questiona como seria possível incluir nas comunidades
dos beneficiários de políticas públicas e direitos humanos aos antepassados, os animais e a Mãe
Terra? Então ele conclui que são possíveis novas hibridações baseadas no reconhecimento do
duplo direito humano pós-colonial: temos o direito de sermos iguais quando a diferença nos
inferioriza, temos o direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza. Assim para
o sociólogo, a plurinacionalidade não seria a negação da nação, mas sim o reconhecimento de
que a nação não está concluída.
3.4 A questão da modernidade
Mas além de Sousa Santos a teoria sociólogo peruano Aníbal Quijano, também parte do
princípio questionador do e estabelecimento histórico e linear de desenvolvimento e progresso, e
nessa perspectiva o atrasado é resultado do estabelecimento um único sentido em direção ao
desenvolvimento, progresso e modernidade. Essa lógica produz estado de ausência na medida em
que determina atrasado aqueles que segundo a norma temporal são diferentes dos avançados.
Produz-se assim a não contemporaneidade do contemporâneo: o selvagem, o primitivo e o
obsoleto.
Pressupondo uma trajetória civilizatória que parte de um estado de
natureza e culminam onde imaginam estar situados os europeus
ocidentais, estes se colocam como os modernos da humanidade e da
história, e ao mesmo tempo como os mais avançados da espécie 49
.
Em sua obra Colonialidade do Poder, Quijano expõe que apesar de difundirem essa
perspectiva histórica como hegemônica, não tardou surgir uma resistência intelectual, quando no
48
SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: Perspectivas desde uma
epistemologia Del Sur; p.64-65. Instituto Internacional de Derecho y Sociedad. Lima , 2010. * Em
tradução Livre
49
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad Del Poder. Em Edgardo Lander, comp. Colonialidad del Saber, Eurocentrismo y
Ciencias Sociales. CLACSO-UNESCO 2000, Buenos Aires, Argentina.
44
fim do século XIX e inicio do século XX foi vinculado o debate de desenvolvimento -
subdesenvolvimento. Um dos argumentos sustentava que a modernização não implica
necessariamente na ocidentalização das sociedades e culturas não europeias, colocando a
modernidade como um fenômeno de todas as culturas, e não só da europeia.
Se a modernidade for associada apenas a ideia de novidade, de
avançado, de racionalidade científica, de laico e de secular – que são
as ideias e experiências geralmente associadas a esse conceito, não há
duvidas de que é necessário admitir que ela é um fenômeno possível
em todas as culturas e em todas as épocas históricas50
.
Cabe aqui então questionar qual visão a respeito da relação entre moderinização e
ocidentalização que a Folha de S.Paulo e que a América Latina em Movimiento tem sobre a
América Latina. No caso da Folha, ela parece defender a concepção de um desenvolvimentismo
baseado nessa ocidentalização, basta observar os parâmetros e padrões que ela se utiliza nas
matérias: índices econômicos baseado na industrialização. Ex. X; comparação da situação dos
países latino-americanos com a Europa e os EUA, sem em nenhum momento considerar a
diferença histórica entre, sem ponderar o passado colonial, escravista e imperialista.
Ou seja, na perspectiva da Folha de S. Paulo a América Latina tem, ou deveria ter, que se
modernizar e desenvolver, tomando sempre nos moldes europeus ou norte-americanos. O jornal
não considera as sociedades nativas indígena, por exemplo, como moderna a seu modo, como o
sociólogo Aníbal Quijano cogita em seu texto, sim como atrasada e arcaica, que deve ser
modernizada aos moldes europeus. Isso acontece porque o que a Folha entende por modernidade
tem muito mais a ver com atingir o auge em produção e consumo, aliado com a melhor qualidade
de vida possível dentro do sistema neoliberal do que com buscar uma receita de modernidade
própria da América Latina, que leve em consideração o passado colonial, os povos nativos e
escravizados, que até hoje vivem a margem da sociedade, em que a busca por modernidade não
parece considerar prioritariamente o desejo de inclusão social – como faz a ALAI. Ao contrário,
desse modo, a Folha acaba por assumir a concepção do colonizador de modernidade.
Este é outro debate feito por Aníbal Quijano: como a Modernidade, enquanto período
histórico, e suas conquistas se deram na Europa, e como os europeus repercutiram essa
modernidade mesma modernidade de um modo diferente na América Latina.
50
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad Del Poder. Em Edgardo Lander, comp. Colonialidad del Saber,
Eurocentrismo y Ciencias Sociales. CLACSO-UNESCO 2000, Buenos Aires, Argentina.
45
Na Europa, em 1979 Revolução Francesa marcou o início da Modernidade, com a
ascensão da classe burguesa, e consequentemente a consolidação do liberalismo. Junto a isso, foi
proclamado os Direitos dos Homens e Cidadão, na defesa dos três grandes motes da Revolução –
Liberté, égalité, fraternité – valores que foram difundidos no restante da Europa pelos
intelectuais Iluministas.
Entretanto é curioso observar que a escravidão africana permaneceu até 1888, ou seja, a
proclamação de Liberdade, Igualdade e Fraternidade pareceu ficar restrita apenas no continente
europeu, enquanto os próprios países que defendiam esse mote para o seu sistema político
interno eram os mesmos que por meio da apropriação da liberdade, estabelecia sociedades
desiguais através de relações pouco fraternas com suas colônias na América Latina.
Esse fenômeno traz o questionamento: Que igualdade e liberdade viviam os países latino-
americanos? Para começar o sistema colonial por si só, em que os países não tinha nenhuma
liberdade enquanto colônia, já que eram politicamente e economicamente totalmente
dependentes da metrópole, e assim, se estabelecia um status desigual, entre a população da
metrópole e a população colonial. Além disso, a própria estrutura da sociedade colonial era
pautada na desigualdade: portugueses, espanhóis e seus descendentes constituíam a elite que
tinham cargos administrativo governamentais, e detinham de privilégios por serem
representantes da metrópole na colônia. E simultaneamente, para manter esse sistema colonial e
essa relação de exploração da metrópole em relação à colônia, eram mantidos sistemas de
escravidão e servidão da população africana e indígena. Assim, na verdade, o grande mote da
Revolução Francesa que ecoava na América Latina colonial era o liberalismo – a exploração das
riquezas coloniais que garantia a consolidação da burguesia europeia.
A modernidade foi colonial desde seu ponto de partida. Na América, a
escravidão foi deliberadamente estabelecida e organizada para
produzir mercadorias para o mercado mundial e desse modo, servindo
ao capitalismo, assim como a servidão dos povos indígenas e
escravidão dos africanos 51
.
Mesmo parecendo um fato histórico conflituoso, na realidade eram fenômenos
dependentes, já que o grande marco da modernidade na Europa foi o estabelecimento do Estado
burguês. Então era a partir da manutenção da desigualdade da relação colonia-metrópole versus
(égalité) e da escravidão (versus liberté) nas colônias que se assegurava a ascensão e
consolidação da burguesia e do liberalismo burguês na Europa. Desse modo, a modernidade
51
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad Del Poder. Em Edgardo Lander, comp. Colonialidad del Saber,
Eurocentrismo y Ciencias Sociales. CLACSO-UNESCO 2000, Buenos Aires, Argentina.
46
europeia se estabeleceu também a partir da manutenção colonialismo na América Latina – que
para Boaventura e Quijano, permanecem até mesmo após os processos de independência até
hoje.
“ A América Latina tem problemas
modernos para os quais não há
soluções modernas.”
Boaventura de Sousa Santos
47
4. DIFICULDADES
Algumas dificuldades foram encontradas durante a execução do projeto. A primeira está
relacionada com a dificuldade de analisar um corpus muito volumoso, correspondente a
publicação de dois veículos diferentes durante o período de um ano. Devido a dificuldade de
conseguir analisar minuciosamente qualitativamente todo o conteúdo, como era a proposta inicial
do projeto, fez-se a opção de centrar o projeto na análise quantitativa. Assim a análise qualitativa
ficou restrita apenas à parte específica do conteúdo, que pudesse servir como exemplos típicos
que servissem para a estabelecer uma comparação entre a abordagem que cada um veículos fazia
do tema, e relacioná-lo com os textos teóricos que integravam a pesquisa.
A segunda dificuldade se deu durante a análise quantitativa, ao perceber certos dilemas
no momento de enquadrar as matérias da Folha e os artigos da ALAI dentro das categorias
estabelecidas. A maioria dos artigos e conteúdos sempre cabiam em muitas categorias diferentes
dependendo da leitura que se fazia do tema, ou seja, a classificação foi certamente uma tarefa
subjetiva, apesar do esforço de tentar sempre focar nos temas principais de cada matéria/artigo e
enquadrá-los em não mais de quatro categorias. Isto se deu principalmente nos artigos da revista
América Latina en Movimiento, que devido ao aprofundamento do tema central, abordando
contextos históricos, causas e consequências dos fatos, acabavam por abordar muitos temas
importantes para artigo além do tema central.
Uma terceira dificuldade foi conseguir relacionar a teoria de todos autores lidos e
discutidos durante a pesquisa com o conteúdo publicado na Folha de S. Paulo e na America
Latina em Movimiento. Assim, autores como Nestor Garcia Cancline, Octavio Paz e Noberto
Bobbio não foram citados neste relatório, mas tiveram um importante papel nas leituras e
discussões feitas nas reuniões do núcleo de pesquisa, que muito proveitosas para entender a
América Latina e suas relações sociais, econômicas e culturais de maneira mais ampla. Portanto,
neste relatório foi privilegiada as obras teóricas dos sociólogos Boaventura de Sousa Santos e
Aníbal Quijano, pois se relacionavam mais facilmente com o conteúdo publicado nos veículos
estudados.
É também pertinente observar aqui que tanto todo o conteúdo da revista da ALAI quanto
as obras dos sociólogos Quijano e Sousa Santos foram lidos dos originais em espanhóis, deste
modo as citações dessas publicações presente neste relatório estão em tradução livre, feita por
mim.
48
Apesar das dificuldades, elas foram essenciais para incentivar a busca por soluções, que
geraram novos questionamentos e acabaram por enriquecerem os projetos. Assim, avalio que
mesmo diante delas, o projeto pôde ser concluído com sucesso.
49
5. CONCLUSÃO
Por meio deste processo de pesquisa de iniciação científica, foi possível perceber que o
jornal a Folha de S. Paulo e a revista America Latina en Movimiento possuem diferentes olhares
sob o continente latino-americano, e isto se refletiu tanto na análise quantitativa quanto na
análise qualitativa.
A Folha de S. Paulo, por ser um veículo nacional, de grande circulação e que privilegia o
gênero informativo factual, publica conteúdos sobre a América Latina a partir de uma
perspectiva externa ao continente, sob o mote da imparcialidade. Ou seja, o jornal se coloca
como se não fosse parte do continente latino-americano, privilegiando o conteúdo sobre política
interna de apenas alguns países da região: daqueles que mantém estreitas relações políticas e
econômicas com o Brasil e aqueles que possuem destaque no cenário internacional, segundo a
concepção europeia e norte-americana. Em suas notícias, o jornal se detém praticamente apenas
ao fato jornalístico, ou seja, a pauta é tratada apenas no que diz respeito ao assunto principal da
notícia e não se resgatam contextos históricos, debates e discussões de outros temas diretamente
relacionados ao tema da notícia. Desse modo, o veiculo se ausenta de tocar na raiz, nas causas e
nas consequências do que está sendo ali noticiado, negligenciando assuntos que são
problemáticas centrais no continente latino-americano, principalmente aquele de caráter social.
Assim, é possível concluir que o conteúdo sobre América Latina da Folha é publicado na
perspectiva dos grupos hegemônicos da sociedade, já que: não considera e nem levanta o debate
sobre os setores das sociedades latino-americanas ainda sofrem consequência do passado
colonial, escravista e imperialista que do continente; parte do pressuposto que a democracia é
efetiva no continente apenas no sentido de garantir os direitos democráticos dos grupos
hegemônicos mas não ao estendê-los aos demais setores da população; projetam a América
Latina na incessante busca pelo desenvolvimentismo, ao molde europeu, mas sem considerar as
óbvias diferenças históricas e sociais entre este continente e os demais. Ou seja, a Folha de S.
Paulo, diante dessas conclusões, defende a manutenção do status quo, considerando mudanças
apenas na medida que possam aperfeiçoá-lo.
Ao contrário, a revista América Latina en Movimiento não se declara imparcial em
nenhum momento e já em seu projeto editorial se coloca como instrumento para a transformação
social. Por ter perfil analítico, a revista não se restringe aos fatos jornalísticos, à notícia e à
novidade, e assim publica conteúdos mais diversos acerca do continente, tanto no que diz
respeito a um melhor equilíbrio entre os temas tratados bem como entre os países do continente.
50
Os textos que compõem os artigos são muito aprofundados e abordam o contexto
histórico, relações de causa e consequência com o tema principal do artigo, fazendo com que um
mesmo artigo trate de diversos temas. Grande parte dessas abordagens sempre coloca a América
Latina na perspectiva de um continente que ainda sofre grandes consequências do passado
colonial, escravista e imperialista, considerando algumas vezes, inclusive, que essas formas de
dominação persistem em alguns aspectos no continente.
Assim, as soluções trazidas nas problemáticas apresentadas nos artigos da revista, são
sempre na perspectiva de superar essas heranças do passado colonial, presentes no sistema
neoliberal vigente e em um sistema democrático inconcluso. Então a revista incentiva promover
a transformação social com o protagonismo dos setores excluídos da sociedade e dos
movimentos sociais, e a partir daí instaurar uma nova sociedade em que as minorias étnicas,
culturais e sociais sejam incluídas, respeitadas e seus valores preservados; estabelecendo uma
nova sociedade, com inspiração nos valores dos povos nativos latino-americanos, que se viva em
harmonia com a natureza e em um novo sistema de produção, contrário ao desenvolvimentismo.
Portanto, a revista América Latina en Movimiento e a Folha de S. Paulo possuem
diferentes olhares e perspectivas sobre o continente. A revista defende uma transformação social,
com a liderança das classes subalternas e dos setores historicamente excluídos da sociedade, para
estender a eles os direitos que, segundo ela, ainda são restritos apenas ao grupo hegemônico.
Enquanto isso, a Folha de S. Paulo, através da análise do conteúdo publicado parece sutilmente
defender o que a ALAI considera a restrição desses direitos ao grupo hegemônico, e através de
um jogo argumentativo disfarçado de imparcialidade, subverter as mudanças que visam estender
esses direitos aos demais setores, as considerando, inclusive, antidemocráticas.
51
6. BIBLIOGRAFIA
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Ed. Campus, 2004.
CARVALHO, C.. Sobre limites e possibilidades do conceito de enquadramento
jornalístico. Contemporanea - Revista de Comunicação e Cultura, América do Norte, 7,
mar. 2010. Disponível em :
http://www.portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/3701/2885.
Acesso em: 30 Jan. 2012.
BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. Cia das Letras, 2001
CUNHA, Karenine Miracelly Rocha: Agora é Lula: Enquadramentos do Governo do PT
Pelo Jornal Nacional – tese. Unesp (Universidade Estadual Paulista); 2005.
FILHO, Marcondes Ciro. O capital da notícia – jornalismo como produção social da
segunda natureza. São Paulo: Ática, 1986.
MORIN, Violette. El tratamento periodistico de la informacion. Barcelona, A.T.E; 1974.
PAZ, Octavio. Lós hijos Del Limo. Ed. Planeta Pub Corp. Edição espanhola; 1995
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad Del Poder. Em Edgardo Lander, comp. Colonialidad del
Saber, Eurocentrismo y Ciencias Sociales. CLACSO-UNESCO 2000, Buenos Aires,
Argentina.
SANTOS, Boaventura de Sousa: Refundación del Estado en América Latina:
Perspectivas desde uma epistemologia Del Sur. Lima , Instituto Internacional de Derecho
y Sociedad, 2010.
Corpus
Revista America Latina en Movimiento; Ed. ALAI. Quito, Equador.
Jornal Folha de S. Paulo; Grupo Folha. São Paulo, Brasil.
52
7. ANEXOS
1. Consenso de los commodities y megaminería
Maristella Svampa
ALAI, América Latina en Movimiento
03-22- 2012
En el último decenio, América Latina realizó el pasaje del Consenso de Washington, asentado sobre la
valorización financiera y una política generalizada de privatizaciones, alConsenso de los Commodities,
basado en la extracción y exportación de bienes primarios a gran escala, sin mayor valor agregado, hacia
los países más poderosos. Al compás de una nueva división territorial y global del trabajo, el Consenso de
los Commodities cerró la etapa del mero ajuste neoliberal y abrió a otro ciclo económico en América
Latina, caracterizado por las altas tasas de crecimiento y las ventajas comparativas -que en líneas
generales persisten, aún en el marco de la reciente crisis económica y financiera global-, gracias al boom
en el precio de las materias primas.
Convertido en algo más que un orden económico, el Consenso de los Commodities fue definiendo un
espacio de geometría variable, que habilita cierta flexibilidad –hasta donde la globalización lo permita- en
cuanto al rol del Estado-nación, según las orientaciones político-ideológicas de los gobiernos, sobre la
base común de un acuerdo acerca de lo que se entiende por Desarrollo (matriz productivista, modelo
primario-exportador), así como de la aceptación acrítica del rol histórico asignado a América Latina
(“sociedades exportadoras de Naturaleza”, como afirmaba el venezolano Fernando Coronil).
Sin embargo, por encima del discurso triunfalista y del retorno de una ideología desarrollista como gran
relato, la contracara de este proceso de adaptación de las economías latinoamericanas, ha sido la creciente
consolidación de un estilo de desarrollo extractivista, ligada a la sobre-explotación de recursos naturales
no renovables y a la expansión de las fronteras hacia territorios antes considerados como improductivos.
El extractivismo resultante contribuyó a agravar aún más el patrón de distribución desigual de los
conflictos sociales y ecológicos entre, por un lado, los países del centro y las potencias emergentes y, por
otro lado, los países periféricos. En consecuencia, impacto socioambiental mayor y explosión
generalizada de la conflictividad, aparecen como rasgos inherentes a dicho estilo de desarrollo.
Por cuestiones vinculadas con las características negativas del modelo, potenciado cada vez más por
razones de índole histórica -la memoria larga del saqueo colonial-, la megaminería metalífera a cielo
abierto se convirtió en la actividad extractiva más cuestionada por las poblaciones latinoamericanas. No
obstante, lejos estamos de asistir a una oposición contra todo tipo de minería. Las poblaciones, se trate de
comunidades campesino-indígenas o de asambleas de vecinos, multiétnicas y policlasistas, en pequeñas y
medianas localidades, se oponen a un modelo de minería metalífera: el sistema de explotación minera a
cielo o tajo abierto (open pit). Dicho sistema, hoy generalizado frente al progresivo agotamiento a nivel
mundial de los metales en vetas de alta ley, utiliza técnicas de procesamiento por lixiviación o flotación,
esto es, sustancias químicas contaminantes, y requiere de enormes cantidades de agua y energía.
Hay que tener en cuenta que, debido a la aplicación de dichas tecnologías, América Latina es una de las
regiones que tiene las reservas minerales más grandes del mundo, lo cual explica que, en 2011, haya
concentrado el 25% de la inversión mundial en exploración minera[1].
Ahora bien, el cuestionamiento a la megaminería no se refiere exclusivamente al uso de tecnologías
lesivas en relación al ambiente. Uno de los rasgos principales de este tipo de minería es la gran escala de
los emprendimientos, lo cual nos advierte sobre las grandes inversiones de capital que exige (se trata de
actividades capital-intensivas, antes que trabajo-intensivas), el carácter de los actores involucrados
(grandes corporaciones trasnacionales, que controlan la cadena a nivel global), así como de los mayores
impactos y riesgos –sanitarios, ambientales, sociales, económicos- que dichos emprendimientos
conllevan. Asimismo, otro de las consecuencias es la consolidación de economías de enclave, visible en
los escasos encadenamientos productivos endógenos y la fuerte fragmentación social y regional, lo cual
termina configurando espacios socio-productivos dependientes del mercado internacional y de la
volatilidad de sus precios.
53
Es entonces esta combinación de aspectos –máxima expresión del despojo económico y destrucción
ambiental-, lo que convierte a la megaminería en una suerte de figura extrema, símbolo del extractivismo
depredatorio. A esto hay que sumar el establecimiento de “áreas de sacrificio”, con lo cual los territorios
intervenidos aparecen como “socialmente vaciables” y desechables, en función de la rentabilidad y la
mercantilización, lo cual posteriormente repercute y tiene efectos visibles sobre los mismos cuerpos. En
consecuencia, la minería metalífera a gran escala es muy cuestionada, no por falta de cultura productiva o
simple demonización de la actividad, sino porque las poblaciones comprenden que ésta constituye una
síntesis acabada del maldesarrollo, que pone en riesgo la vida presente y futura de las poblaciones y los
ecosistemas.
Conflictividad y lenguajes de valoración
Si hay algo que no puede ser minimizado, ni siquiera por el propio discurso tecnocrático prominero, es la
fuerte conflictividad social desencadenada de manera creciente por los proyectos extractivos.
Actualmente, no hay país latinoamericano con proyectos de minería a gran escala que no haya suscitado
conflictos sociales entre las empresas mineras y el gobierno versus las comunidades: México, varios
países centroamericanos (Guatemala, El Salvador, Honduras, Costa Rica, Panamá), Ecuador, Perú,
Colombia, Brasil, Argentina, Chile y, recientemente, Uruguay.
Según el Observatorio de Conflictos Mineros de América Latina (OCMAL) existen actualmente 120
conflictos activos que involucran a más de 150 comunidades afectadas a lo largo de toda la región. Sólo
en el Perú, la Defensoría del Pueblo de la Nación da cuenta de que la actividad minera concentra el 70 %
de los conflictos socioambientales y éstos a su vez, representan el 50 % del total de conflictos sociales en
ese país.[2] Asimismo, la conflictividad contribuye directa o indirectamente a la judicialización de las
luchas socio-ambientales y a la violación de los derechos ambientales y colectivos, en la medida en que
no se generan procesos de consultas en las comunidades involucradas, y en no pocas ocasiones los
dispositivos institucionales existentes (como, por ejemplo, el convenio 169 de la OIT) tienden a ser
bastardeados por los propios gobiernos, interesados en la rápida aprobación de los proyectos.
Incluso en aquellos casos donde la megaminería fue rechazada y la actividad no logró instalarse, tal como
sucedió en Intag (Cotacachi, Ecuador), en dos oportunidades (en 1995 y en 2006); o en Famatina (la
Rioja, Argentina), en 2007 y recientemente en 2012, asistimos a la reactivación cíclica del conflicto, con
sus corsi e ricorsi, frente al arribo de una nueva empresa que reemplaza a la anterior, ya expulsada, y puja
por obtener por todos los medios una licencia social que la población ya ha denegado. Asimismo, una vez
instalada la empresa, la conflictividad tiene una sobrevida que excede largamente la del período de
explotación del yacimiento, tal como se puede verificar en casos emblemáticos de la minería
latinoamericana, como en Guanajuato y Zacatecas (México), Cerro de Pasco, La Oroya o la Bahía de Ilo
(Perú)[3]
En consecuencia, gracias a la estrecha alianza entre gobiernos y grandes empresas y por encima de la
orientación político-ideológica de los gobiernos, el actual escenario de conflictos ilustra el modo cómo el
extractivismo pone en jaque a las democracias latinoamericanas, pues se trata de un modelo que avanza
sin el consenso de las poblaciones, generando todo tipo de conflictos sociales, divisiones en la sociedad, y
una espiral de criminalización y represión de las resistencias que sin duda abre un nuevo y peligroso
capítulo de violación de los derechos humanos.
Por lo general, las acciones de oposición arrancan con reclamos puntuales (económicos o ambientales) y
van configurando una nueva “comunidad del no”[4]; pero en la misma dinámica de lucha éstas tienden a
ampliar y radicalizar su plataforma representativa y discursiva, incorporando otros temas, tales como el
cuestionamiento al modelo de desarrollo hegemónico y la exigencia de desmercantilización de los bienes
comunes. Así, los procesos de movilización van conduciendo a una concepción de la territorialidad
opuesta a las nuevas formas de colonización de la Naturaleza, ilustradas por el discurso eficientista y el
neodesarrollismo dominante. Para el caso que nos ocupa, asistimos a la emergencia de una nueva ecología
política del agua, de defensa de las cuencas hídricas, fuertemente amenazadas por la actividad minera, tal
como lo refleja la consigna “el agua vale más que el oro”, que hoy recorre este tipo de luchas en todo el
continente.
Otro de los elementos más novedosos de las resistencias contra la megaminería es la articulación entre
actores diferentes, que incluyen desde organizaciones o comunidades de vecinos, pequeñas
54
organizaciones ambientalistas (ONGs), y profesionales y universitarios. Este diálogo productivo entre
disciplinas y organizaciones heterogéneas, ha ido produciendo un saber experto independiente de las
corporaciones y de los gobiernos, desde el cual plantear una disputa, a la vez epistémica y política.
Resulta imposible realizar un listado de las redes auto-organizativas nacionales y regionales contra la
megaminería que hoy existen en América Latina, además de las organizaciones campesino-indígenas
preexistentes. A título de ejemplo, podemos mencionar la CONACAMI (Confederación Nacional de
Comunidades Afectadas por la Minería, nacida en 1999, Perú); la Unión de Asambleas Ciudadanas
(UAC, Argentina), surgida en 2006, que congrega unas setenta organizaciones de base que cuestionan el
modelo minero; y la Asamblea Nacional de Afectados Ambientales (ANAA, México, que incluye
diferentes frentes de lucha), creada en 2008, en instalaciones de la UNAM, con el apoyo de la Unión de
Científicos Comprometidos con la Sociedad (UCCS).
Entre fines de 2011 y comienzos de 2012 las luchas contra la megaminería adoptaron una mayor urgencia
y dramatismo: en Cajamarca, Perú, se llevó a cabo la Marcha en defensa del Agua y de la Vida, en contra
del proyecto Conga, que amenaza con secar cuatro lagunas, para extraer cobre y oro, impactando sobre la
vida de unas 100 mil personas; en Famatina, Argentina, en enero de 2012, se produjo una gran pueblada,
que permitió la visibilización de otras luchas contra la megamineria y colocó la problemática en la agenda
política nacional; en Panamá, en febrero de 2012, hubo una gran represión que costó la vida de dos
miembros de la comunidad indígena Ngäbe Buglé; en México, en el Estado de Veracruz, crece el rechazo
contra la instalación del proyecto minero Caballo Blanco, que pretende desarrollarse a pocos kilómetros
de una central nuclear; en Cajamarca, Colombia, la población se ha movilizado en contra de una
gigantesca mina de oro, La Colosa; en fin, en marzo de 2012, en Ecuador, las manifestaciones se
intensificaron, como lo muestra la ocupación y posterior desalojo de la embajada de China en Quito, de
un grupo de mujeres que querían entregar una nota de protesta contra un proyecto minero de capital chino
que sería la primera explotación a gran escala de la historia de ese país. Estos pocos ejemplos ilustran la
rápida generalización de las luchas continentales en contra de este modelo.
Por último, vale aclarar que no todas las formas de resistencia a la megaminería plantean una redefinición
del modelo de desarrollo aunque sí promueven una democratización de las decisiones (consultas públicas,
audiencias, plebiscitos). En países con una larga tradición de minería a gran escala, como el caso de
Bolivia, Chile y Perú, los escenarios son muy complejos, así como múltiples las visiones de la
territorialidad hoy en disputa. Sin embargo, visto el fracaso de la megaminería como “motor de
desarrollo”, visto la dinámica creciente de desposesión que convierte en sacrificables los territorios, así
como la peligrosa espiral de criminalización y represión de las luchas, los procesos de radicalización de la
población suelen ser impredecibles, tal como lo muestra actualmente el caso peruano, el primer país
latinoamericano en donde se implementó este tipo de minería.
- Maristella Svampa es investigadora del Conicet (Centro Nacional de Investigaciones Científico
Técnicas) de Argentina y profesora de la Universidad Nacional de La Plata. Coordinadora del Grupo de
Estudios Críticos del Desarrollo.
Este texto es parte de la revista “América Latina en Movimiento”, No 473, correspondiente a marzo 2012
y que trata sobre "Extractivismo: contradicciones y conflictividad” -http://alainet.org/publica/473.phtml.
55
2. México: La violencia exponencial
Laura Carlsen
ALAI, América Latina en Movimiento; 06-29-2011
Felipe Calderón está enojado. Enfáticamente golpea, una y otra vez, el atril mientras insiste que la
violencia desatada en territorio mexicano es culpa del crimen organizado y de nadie más. Reafirma por
enésima ocasión su compromiso con la guerra contra el narcotráfico que lanzó en diciembre de 2006 y la
decisión de seguir con el combate frontal a los delincuentes.
Esta defensa feroz de la estrategia de seguridad se dirige no hacia los criminales, sino hacía una sociedad
que en su mayoría rechaza el camino trazado por el presidente hace cuatro años. El 6 de abril, sólo unos
días antes del discurso pronunciado a un grupo de empresarios por Calderón, decenas de miles de
personas marcharon en las calles de más de veinte ciudades mexicanas en repudio a “la guerra de
Calderón” y contra la violencia.
Para el presidente, la protesta social que crece en el marco del nuevo movimiento mexicano “NO +
SANGRE” es una respuesta equivocada, politizada e injusta a su causa predilecta. Insiste en que la
ciudadanía debe protestar contra el crimen organizado y no contra su gobierno. En su discurso acusó al
movimiento social indirectamente de utilizar el discurso de la paz como escudo para promover “el deseo
político de atacar al gobierno federal.”
Los miles de jóvenes, padres y madres de familia, mujeres, indígenas y sindicalistas que se han sumado a
las protestas no lo ven así. No niegan que la brutalidad y la audacia de los carteles de la droga han
rebasado todo límite. Pero la razón por la cual aumenta el descontento social contra el gobierno se puede
resumir en un solo dato: en los años antes de que Calderón lanzara la guerra, el número de homicidios
relacionados al narcotráfico fue un poco más de 2,000 al año (2,119 en 2006); para el año 2010 alcanzó
15,273.
Y la crisis de violencia en México desde el 2007 no se puede resumir únicamente en cadáveres. Un
informe reciente del Centro de Monitoreo de Desplazamientos Internos calcula que 230,000 personas(1)
han sido desplazadas por los conflictos y amenazas. Existen aproximadamente 10,000 huérfanos por
causa de la violencia. Los feminicidios se dispararon en la frontera norte en el contexto de la guerra
contra el narcotráfico, junto a otras formas de violencia de género y ataques a defensoras de derechos
humanos. Además de las mujeres, las personas migrantes han sido víctimas de una respuesta no prevista
de los carteles al expandir sus actividades lucrativas hacía el secuestro, la extorsión y el reclutamiento de
migrantes. La masacre de 72 migrantes en San Fernando, Tamaulipas en abril de 2010 fue sólo el
ejemplo más escandaloso de un fenómeno que se ha extendido por toda la república.
La guerra que no se llama guerra
El caos generado por la estrategia se deriva de su carácter militar/policíaco y la falta de cálculo del
impacto de declarar la guerra en el mundo volátil del crimen organizado. Hace unos meses Calderón
negó que hubiera nombrado “guerra” a su estrategia de combate a la delincuencia, lo cual provocó un
diligente trabajo por parte de la prensa de recoger múltiples citas suyas que incluyeran la palabra en
referencia a la estrategia contra el narco.
Llámese como quiera, el modelo parte de la tesis de que la mejor manera de luchar contra el tráfico de
narcóticos prohibidos es cortando el abasto desde los países de producción y tránsito hacia el mercado
principal, que es Estados Unidos. Entonces la mayor parte de los recursos y esfuerzos están dirigidos al
enfrentamiento con los narcotraficantes, buscando detener la droga y capturar a capos. En México, se han
desplegado unos 50,000 soldados a las calles con este propósito.
El resultado es una explosión de violencia en múltiples formas que supera la mortalidad de muchas
guerras formales. Con el ataque del Estado contra un cartel se invita a otro a tomar su lugar y suelen
entrar en batalla. Las luchas por las “plazas”, es decir, las rutas para llevar sustancias ilícitas al mercado,
son una de las fuentes principales de la violencia.
56
La violencia se vuelve más compleja y extensa en lugares donde las acciones de las fuerzas de seguridad
han provocado una fragmentación de los carteles. Complicidades entre políticos, policías o militares, con
uno de los rivales ha extendido la violencia en la esfera pública. Los enfrentamientos entre las fuerzas
armadas y los carteles en las calles han cobrado muertes de civiles y se reportan casos de violencia y
extorsión por parte de las mismas fuerzas de seguridad contra sectores de la sociedad. El reporte de
violaciones de derechos humanos cometidos por el ejército ha aumentado más de seis veces en los
últimos años, entre ellos ejecuciones extrajudiciales, tortura, violación sexual y desapariciones.
La guerra contra las drogas y la violencia que la acompaña han erosionado la gobernabilidad en varias
zonas del país y roto el tejido social por el miedo, la militarización y la presencia más activa que nunca
del crimen organizado. Es increíble que el gobierno siga con la retórica triunfalista frente a estos
resultados e indigna que en las esferas del poder esperen que el pueblo mexicano —o cualquier pueblo del
mundo— acepte 40,000 muertos como daño colateral o el precio que hay que pagar para ganar una guerra
que parece no tener fin.
Para el gobierno de Calderón es imposible admitir el fracaso de la mano dura después de haber invertido
tanto capital político y en vísperas de las elecciones presidenciales. Además, desde el inicio, la guerra
contra el narcotráfico en México ha tenido unos objetivos no-enunciados. Calderón lanzó la guerra unas
semanas después de tomar el poder entre protestas masivas y acusaciones de fraude nunca esclarecidas.
La alianza entre el ejecutivo y las fuerzas armadas y el cultivo del miedo frente un enemigo común —el
crimen organizado— funcionó para consolidar su poder en los hechos frente a la falta de legitimidad.
Desde su origen, entonces, la guerra ha privilegiado la militarización por encima de las instituciones
democráticas del país. La presencia del ejército en las ciudades y comunidades sirve para inhibir
protestas y construir una imagen de un Estado fuerte a pesar de su debilidad institucional.
El apoyo de EE.UU. a la guerra
El gobierno de los Estados Unidos, primero de George W. Bush y después de Barack Obama, juega un
papel crítico en sostener la guerra de Calderón con recursos, declaraciones, capacitación y entrenamiento.
De hecho, desde las fases del diseño del modelo, pasando por la instrumentación de la “Iniciativa
Mérida” anunciada por el entonces presidente Bush en octubre de 2007, la guerra contra el narcotráfico en
México ha sido para el Pentágono un sueño realizado.
Washington propuso una colaboración militar más intensa desde el Acuerdo de Seguridad y Prosperidad
de América del Norte que salió del TLC, para proteger sus intereses políticos y económicos en la región
más allá de sus fronteras. La Iniciativa Mérida se presentó como un plan “contra-terrorismo, contra-
narcóticos y para la seguridad fronteriza”. Esos son sus objetivos. Incluye el envío de equipo militar y de
espionaje a México con el fin de incrementar el control del territorio y promover la militarización del
país. Fue presentada como un reconocimiento de “responsabilidad compartida” por parte de EEUU, sin
embargo, abarca una serie de programas en México, sin incluir ninguna obligación de EEUU en su propio
territorio donde el negocio de la droga rinde sus beneficios.
Si antes el gobierno mexicano rechazaba la participación directa de su poderoso vecino en asuntos de
seguridad nacional, con la Iniciativa Mérida —extendida indefinidamente por el gobierno de Obama— se
ha iniciado un periodo de injerencia estadounidense sin precedentes. Sigue el modelo del Plan Colombia
que ha promovido más de una década de militarización del país andino y de presencia militar de EE.UU.,
con los conocidos resultados en violaciones de derechos humanos, desplazamiento y expropiación de los
recursos de los pueblos.
Detrás de la retórica de la guerra contra el narco, los objetivos de la Iniciativa son:
1) Proteger los intereses económicos e inversiones estadounidenses y garantizar el acceso a recursos
naturales estratégicos en México.
2) Imponer la Doctrina de Seguridad Nacional elaborada por el gobierno de Bush que posibilita la
presencia militar de EEUU --o la amenaza de intervención— en todo el mundo como garantía de
estabilidad del sistema y avanza el propósito de integrar a México a la zona de seguridad nacional de
EE.UU.
57
En términos prácticos, la Iniciativa rompe con las barreras que había mantenido históricamente por
razones de soberanía nacional el gobierno mexicano a una mayor intervención de los estrategas y agentes
estadounidenses dentro de su territorio.
Hasta ahora han sido asignados más de $1,500 millones de dólares a México en la guerra contra el
narcotráfico. Además se ha reorientado la relación binacional hacia la cooperación en cuestiones de
seguridad. La mayoría de los recursos está destinada a equipo militar y servicios a las fuerzas armadas, la
policía y las agencias de inteligencia. La relación entre los dos países vecinos ahora está siendo definida
por el Pentágono y los Comandos Norte y Sur, con el apoyo del Departamento del Estado, en el contexto
de la seguridad regional.
La presencia ampliada de agencias de seguridad estadounidenses en México tiene graves consecuencias
para la soberanía nacional del país. Se tiene que justificar con un discurso que define a México como una
amenaza a la seguridad nacional del país del norte que se enmarca en una nueva lectura de los carteles de
la droga como “narco-insurgencia” y como una fuerza que desafía directamente la autoridad del Estado.
Abre la puerta a la militarización de México bajo la batuta del Pentágono y el uso del término
“insurgencia” recuerda la manera en que el Plan Colombia fue ampliado por el Congreso de EE.UU. para
apoyar la guerra interna. En México, varias organizaciones de derechos humanos han documentado un
proceso de criminalización de la protesta y represión de la oposición. La postura de EE.UU. promueve
este proceso e impulsa la guerra violenta contra el crimen organizado a pesar de todas las evidencias de
sus impactos negativos para la población.
Hay otra razón por la cual el gobierno de los Estados Unidos tiene interés en mantener la guerra contra el
narcotráfico y la violencia en México. Los términos de la Iniciativa Mérida no permiten la entrega de
dinero a México. Los contratos financiados en la Iniciativa Mérida van a empresas estadounidenses de la
industria de defensa que tienen mucho poder de cabildeo en el Congreso y mucho interés en abrir un
nuevo mercado hacia el sur.
Empresas como Boeing y Lockheed que venden aviones y helicópteros por millones de dólares, y de
seguridad privada como Blackwater y Dyncorp que proveen servicios de capacitación y entrenamiento,
ven en México una oportunidad de expandir su negocio por medio de los contratos de “outsourcing” que
consiguen del gobierno estadounidense. Algunas de estas empresas han sido involucradas en casos de
muerte de civiles y sus actividades no cuentan con mecanismos efectivos de transparencia y rendimiento
de cuentas. Ya tienen contratos de la Iniciativa Mérida y su presencia en México constituye otra amenaza
a los derechos humanos y un obstáculo al proceso de fortalecimiento de las instituciones democráticas en
el país, por promover la privatización y extranjerización de la seguridad cuando no existen reglas claras ni
la capacidad del Estado para aplicar las reglas vigentes. Es decir, gozan de la misma impunidad que los
criminales.
Existen otros caminos
El impacto totalmente contraproducente de la guerra contra las drogas en la sociedad es innegable. Se ve
no tanto en las cifras citadas, sino en el profundo dolor de las familias de las víctimas y en la cultura de
miedo y violencia que distorsiona el futuro de los jóvenes. Las encuestas(2) muestran un cambio
importante en la opinión pública: la mayoría ya no cree que el gobierno está ganando y no apoya la
estrategia.
Tan innegable que en las últimas fechas Calderón ha dejado al lado el mensaje reiterado de que México
está ganando la guerra contra el narcotráfico. Con severos problemas de credibilidad, el presidente ahora
dice que no existen alternativas y ha retado a la gente que exige fin a la violencia que ellos propongan
algo mejor.
El gobierno de Estados Unidos también ha expresado dudas en el modelo. En cables de Wikileaks,
miembros de la embajada en México expresaron sus preocupaciones por la corrupción y falta de
resultados de las fuerzas de seguridad y los tres niveles de gobierno de México, y cuestionan la eficacia
del enfoque en la detención de capos. La última versión de la Iniciativa Mérida presentado al Congreso
por el gobierno de Obama se presenta como Mérida II y hace énfasis en una transición de apoyo militar a
capacitación para impulsar reformas en el sistema judicial y las policías. Sin embargo, el financiamiento
sólo transfiere la ayuda militar directa al rubro de control del narcotráfico, sin aumentar
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significativamente el apoyo a programas sociales ni integrar obligaciones básicas de su país, que sigue
siendo la fuente de la mayor parte de las armas y el dinero del crimen transnacional.
Los esfuerzos de los dos gobiernos, por un lado, para consolidar el apoyo binacional a la guerra y, por
otro, para darle una imagen reformada, reflejan un reconocimiento implícito de que su fracaso es
evidente. Ante este reconocimiento y la quiebra del modelo, la sociedad organizada contra la guerra está
intensificando las protestas y respondiendo al reto de proponer alternativas no-violentas en la lucha contra
el crimen organizado. Algunas de estas alternativas están en la propuesta del pacto nacional que propone
el poeta Javier Sicilia, después del asesinato de su hijo. Su tragedia ha inspirado una nueva ola de
movilizaciones en el país.
La primera es tratar el problema de la demanda de drogas como un problema de salud, con prioridades en
la prevención, la rehabilitación, el tratamiento y la reducción de daños, en México y sobre todo en
Estados Unidos donde el gobierno no ha asumido plenamente su responsabilidad. Hacen falta mayores
oportunidades educativas y de empleo para que los jóvenes tengan proyectos de vida y para enseñar los
riesgos de la adicción. Es una solución que mejora la calidad de vida y reduce la demanda.
Segundo, la manera más rápida y efectiva para reducir la demanda de drogas ilícitas que enriquecen los
criminales es legalizar las drogas, empezando con la marihuana. Es una propuesta que tiene cada vez más
apoyo entre la población y los expertos y merece más estudio y debate público.
Tercero, es urgente desmantelar las estructuras financieras que permiten el lavado y el traslado del dinero
del crimen organizado.
Finalmente,promover las soluciones que están surgiendo desde abajo. Los proyectos autogestionarios en
Ciudad Juárez y otros lugares ofrecen opciones viables y dan a la sociedad un papel que no sea sólo de
víctima. Cuando se utiliza el ejército o la policía como herramienta principal contra el crimen
organizado, la sociedad queda marginada y expuesta a abusos. Se crea una situación peligrosa que se
acerca a una ocupación interna, o un estado militar/policíaco, con la pérdida de derechos humanos y
civiles.
Una sociedad civil fuerte y participativa es mucho más capaz de resistir la infiltración del crimen
organizado. Comunidades fuertes -con empleos, vivienda, educación, recreo sano, e espacios propios-
pueden defenderse a la vez que fortalecen las instituciones democráticas.
(1)
http://mexico.cnn.com/nacional/2011/04/07/los-desplazados-en-mexico-en-busca-de-un-hogar-para-huir-
de-la-violencia
(2)
http://www.consulta.mx/Estudio.aspx?Estudio=percepcion-seguridadmx-2010
Laura Carlsen, analista y escritora, es directora del Programa de las Américas en la Ciudad de México.
Publicado en América Latina en Movimiento, No. 464: http://alainet.org/publica/464.phtml
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3. São Paulo, domingo, 03 de julho de 2011
Câncer de Chávez agrava caos venezuelano
País vive sucessão de crises; nos últimos meses, rebeliões prisionais somaram-se a inflação alta e
falta de energia
Para analistas, situação desgastou o governo sem debilitá-lo, mas o impacto do câncer ainda não se
fez sentir
Harold Escalona-23.jun.2011/Efe
Parente de preso rebelado na penitenciária de Rodeo 2, perto de Caracas, pede ao governo Chávez que
evite violência
FLÁVIA MARREIRO DE CARACAS
A revelação de Hugo Chávez de que tem câncer, sua prolongada estada em Cuba e as incertezas que a
situação abre no cenário eleitoral engrossam o caldeirão de uma crise que se arrasta na Venezuela desde o
fim de 2009.
Na terça, Chávez completa um mês fora do país e 25 dias de convalescência em Havana. Durante sua
ausência, problemas recrudesceram.
No começo do mês, o governo reconheceu que a deficiência elétrica surgida no fim de 2009 não fora
sanada.
Voltaram os apagões programados, as multas por alto consumo. As medidas derrubaram as expectativas
de crescimento econômico do país, justamente quando o governo comemorava o fim da recessão de dois
anos.
A pasta econômica sustenta que o país vai crescer 3%, com inflação ao redor de 30% anuais. Já são três
anos consecutivos de queda do salário real, diz a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), e a
previsão é que 2011 não seja distinto.
Em meio à falta de transparência sobre a doença de Chávez -só na quinta-feira ele revelou que fora
operado para retirada de um tumor-, a Venezuela seguia pela TV a tentativa da Guarda Nacional de
retomar o controle de dois complexos prisionais.
Cerca de mil detentos se amotinaram, fortemente armados, em batalha com os soldados nacionais,
seguida com desespero pelos parentes do lado de fora.
Na sexta, o governo dispersou um protesto de familiares com gás lacrimogêneo.
"'É uma situação delicada. Já havia um mal-estar acentuado num país dividido. Um número recorde de
60
protestos desde os anos 80. Há uma crise de gestão, que é muito má. A doença de Chávez adiciona
pressão à panela", diz a socióloga Margarita López Maya.
As crises simultâneas desgastaram, mas não debilitavam o governo como se esperaria. A explicação,
segundo o analista Javier Corrales, vem do que ele chama de caráter híbrido do regime (eleições livres,
mas não justas, deterioração progressiva da separação de Poderes).
"Os regimes híbridos têm mais condições de resistir a crises. A cada novo dia no poder, Chávez avança
mais no domínio do Estado. Indica mais funcionários, juízes", afirma o especialista.
Num país onde uma massa importante é funcionária pública e depende de alinhamento político para
manter o posto, o efeito de três anos de recessão pode não se refletir nas urnas como outros países,
completa Corrales.
Hoje, a popularidade de Chávez é pouco superior a 50% -fora da sua "zona de conforto" e em empate
virtual com os antichavistas, mas nada ruim para um governante há 12 anos no cargo.
'INVULNERÁVEL' O panorama de dano controlado rumo às eleições presidenciais de 2012 deve se alterar com o fator "saúde
do presidente bolivariano".
"O anúncio muda dramaticamente a situação política da Venezuela. A revolução é Chávez. Não existe
sem ele. A declaração de Chávez é tão importante que não é possível prever seu impacto antes que ela se
assente", diz Luis Vicente León, do instituto de pesquisas Datanálisis.
"Estamos falando de um líder invulnerável, controlador. Nem ele sabe bem qual pode ser o desenlace."
4. São Paulo, domingo, 02 de outubro de 2011
Tráfico encurrala candidatos no México
Debate político está focado na estratégia do presidente Felipe Calderón para combater os cartéis de drogas
no país
Conflitos já causaram mais de 40 mil mortes; jornalistas e usuários de redes sociais são novos alvos da
violência
Ronaldo Schemidt - 26.ago.2011/France Presse
Manifestantes acendem velas no palácio do governo do México em homenagem aos 52 mortos em
incêndio de cassino
FLÁVIA MARREIRO
DE CARACAS
SYLVIA COLOMBO DE BUENOS AIRES
61
A guerra contra o narcotráfico, declarada pelo presidente Felipe Calderón, do PAN (Partido da Ação
Nacional), quando assumiu o poder no México em 2006, encurrala os candidatos à sua sucessão.
A menos de um ano para a votação, em julho de 2012, os pré-candidatos medem palavras para falar do
tema.
Sobram críticas à estratégia do governo, mas há desalento pela falta de alternativas -inclusive no campo
opositor- e temor de que o crime organizado influencie a campanha.
O conflito já causou até hoje mais de 40 mil mortes.
No caso da mídia, os novos alvos são as redes sociais, revertidas em refúgio para jornalistas e cidadãos
num ambiente de escalada da autocensura na imprensa.
No fim de semana passado, uma jornalista que escrevia sob pseudônimo para um site de Nuevo Laredo,
na fronteira com os EUA, foi decapitada por narcotraficantes.
Eles deixaram um aviso de que o crime era um castigo por falar demais na rede. Foi a quarta vítima do
gênero na cidade em um mês.
Em agosto, um ataque a um cassino em Monterrey deixou 52 mortos. O atentado foi atribuído ao cartel
mexicano Zetas.
Calderón, na reta final de seu mandato, promete manter a luta contra os cartéis.
Porém, no momento em que a estratégia se reflete em mal-estar e paranoia, a bandeira governista é um
fardo pesado de carregar para os aspirantes à Presidência do governista PAN (conservador). Mas se torna
uma vantagem para os opositores do PRI (Partido da Revolução Institucional, de centro).
A corrida eleitoral já começou, com a desincompatibilização dos pré-candidatos dos seus cargos. Pelo
PAN tentam ser candidatos o ex-ministro da Fazenda Ernesto Cordero e a ex-chefe do partido na Câmara
Josefina Vázquez Mota, entre outros.
Já o PRI -que perdeu a Presidência para o PAN em 2000 após 70 anos de governo- tem até agora o nome
mais forte da disputa, o midiático Enrique Peña Nieto, ex-governador do Estado do México.
No entanto, nem o priista nem os pré-candidatos esquerdistas do fragilizado PRD (Partido da Revolução
Democrática) sinalizam um recuo total das ações de Calderón. Peña Nieto, por exemplo, diz que Calderón
improvisou a guerra às drogas, mas evita se pronunciar sobre um de seus pilares: o uso das Forças
Armadas contra o crime.
"Na situação atual, há margem de manobra para corrigir a estratégia de Calderón, mas não muito ampla",
diz Eduardo Guerrero, especialista em segurança.
O escritor Jorge Volpi concorda que o debate eleitoral vai estar circunscrito à "guerra ao narcotráfico" de
Calderón. "O PRI tentará sugerir de maneira não muito clara que em sua época as coisas estavam mais
sob controle."
Guerrero diz que a mensagem pode se voltar contra o PRI se os adversários conseguirem colar a ideia de
que a tranquilidade era fruto do pagamento por conivência com o crime e acomodação.
5. São Paulo, domingo, 09 de outubro de 2011
Narcotráfico vira tema de debate em eleições argentinas
Oposição acusa governo de permitir controle de parte do país por traficantes; Cristina não aborda
o assunto
Recente apreensão de cocaína mostra ação de cartel mexicano Los Zetas, um dos mais violentos do
mundo
LUCAS FERRAZ
SYLVIA COLOMBO
DE BUENOS AIRES
Um dos temas mais incômodos na corrida eleitoral argentina, principalmente para a presidente Cristina
Kirchner, é o expressivo aumento do narcotráfico, que se desenvolve inclusive com a presença do cartel
mexicano Los Zetas, um dos mais violentos do mundo.
Antes rota do tráfico internacional, a Argentina se transformou também num polo de processamento de
cocaína, facilitado pela demanda de seu mercado interno e pela grande quantidade de laboratórios e
produtos químicos em circulação no país.
62
Há duas semanas, surpreendeu o anúncio feito pelo governo da província de Buenos Aires de que um
integrante dos Zetas havia sido detido em La Plata com 50 kg de cocaína.
Esse foi apenas mais um registro entre dezenas de apreensões de drogas e detenções de traficantes. Em
janeiro, três argentinos foram presos quando tentavam entrar na Espanha com quase uma tonelada de
cocaína num jatinho. O voo tinha partido do aeroporto de Ezeiza.
Com os recentes episódios no meio da campanha eleitoral, o assunto entrou no debate político. Francisco
de Narváez, candidato à província de Buenos Aires, atacou o governo local e nacional por, segundo ele,
deixar o entorno da capital sob o controle do narcotráfico.
Favorita para ser reeleita no primeiro turno, daqui a duas semanas, Cristina não aborda o tema. "Na
verdade toda a classe política precisa se desculpar, pois nós todos subestimamos esse assunto", disse à
Folha o deputado socialista Fábian Peralta, presidente da Comissão de Combate ao Narcotráfico da
Câmara dos Deputados.
Para ele, a Argentina oferece pouco risco para os traficantes e é o segundo país que mais consome cocaína
na América Latina, perdendo apenas para o Brasil, conforme dados da ONU. "E o pior é que o governo
não sabe como lidar com a questão."
Parte do problema está na desavença dentro da Casa Rosada sobre os produtos químicos controlados pelo
governo -são 60 atualmente, mas uma ala do governo diz que a lista está defasada.
Outro problema, não muito diferente do Brasil, é a falta de controle nas fronteiras. O governo Kirchner
ainda não implementou, como havia prometido, um sistema de vigilância aérea em toda sua faixa de
fronteira.
A falta de controle leva ao crescimento dos cartéis e das pistas clandestinas, que, segundo a Associação
Antidrogas da Argentina, chegam a mais de 1.500, principalmente no norte do país.
6. São Paulo, domingo, 05 de fevereiro de 2012
Brasileiro faz fortuna e má fama no Paraguai
Tranquilo Favero, 74, o maior produtor individual de soja no país vizinho, é tachado de usurpador
pelos sem-terra
Radicado há 42 anos do outro lado da fronteira, ele chama acampados de "delinquentes" e diz que
odeia a pobreza
LAURA CAPRIGLIONE ENVIADA ESPECIAL A ASSUNÇÃO
O brasileiro Tranquilo Favero, 74, tem seu nome gravado em inúmeras faixas no acampamento dos sem-
terra instalado bem na frente de suas propriedades, no município de Ñacunday, a 95 km de Foz do Iguaçu.
"Favero cue", a frase em guarani que significa "Favero já era", também aparece em camisetas usadas
orgulhosamente pelos sem-terra.
É que Favero, o maior produtor individual de soja do Paraguai, transformou-se em símbolo do
agronegócio, setor que responde por 80% do PIB do país e é em grande medida responsável pelos 15,3%
de crescimento da economia verificados em 2010.
Mas, além do fato de ser muito rico em meio a uma população em que 35% vivem abaixo da linha da
pobreza, Favero é um brasileiro no Paraguai, país que até hoje lambe as feridas da derrota humilhante
sofrida na guerra contra o Brasil, Argentina e Uruguai, no século 19.
Na entrevista que concedeu à Folha, no QG de seu grupo empresarial em Assunção, esse catarinense
nascido na pequena cidade de Videira chamou os camponeses que cercam sua fazenda de delinquentes;
elogiou o governo do ditador Alfredo Stroessner ("Naquela época você podia dormir com a janela aberta
e ninguém te roubava. Só estamos piorando desde então"); e disse que é inútil lidar com os sem-terra na
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base da diplomacia, que eles têm de ser tratados "como mulher de malandro, que só obedece na base do
pau".
Favero pilota um império que inclui terras, produção de sementes, fábrica de agroquímicos, máquinas
agrícolas, linhas de financiamento à produção, silos de armazenagem e até um porto.
Os sem-terra dizem que suas propriedades somam mais de 1 milhão de hectares.
"Eles querem pregar em mim o rótulo de 'latifundiário gringo de mierda'. Tenho bem menos terras", diz.
Quanto? Favero não conta.
Há 42 anos no Paraguai, ele descobriu o país logo após a inauguração da Ponte da Amizade, entre Foz do
Iguaçu e Ciudad del Este. "Foi só olhar o mato para perceber que era terra extraordinária."
O preço foi definitivo. "Um dólar comprava um hectare. Terra com escritura, diga-se. Vendendo 50
hectares de terra no Paraná, dava para comprar 5.000 hectares aqui."
Segundo ele, "naquela época, quando se falava no Paraguai era para dar notícia de brasileiro que cruzou a
fronteira, fugindo da Justiça".
Hoje, há 300 mil brasiguaios, brasileiros que foram ganhar a vida no Paraguai.
Os sem-terra, segundo Favero, insistem em um sistema obsoleto de agricultura: "Um sistema à base de
carros de boi, usados na época do meu avô. Hoje, se não podemos competir lá fora, morremos. Você não
é dono do preço do produto. O preço vem de fora. Somos obrigados a ser eficientes."
Favero se considera paraguaio. "Eu me naturalizei paraguaio há 25 anos." Quando indagado se fala
guarani, a língua indígena que sobreviveu como símbolo da nacionalidade, ele se esquiva: "Um amigo me
disse que eu não precisaria aprender guarani se tivesse muitos deles no bolso". Guarani é também o nome
da moeda do país.
"Odeio a pobreza, mas não acredito em esmola para gente sã. Nem em milagres. Sou católico, mas se
ficar ajoelhado diante de um salame pendurado, rezando 'Pai nosso que estais no céu', morro de fome. E o
salame não vem."
7. São Paulo, domingo, 28 de agosto de 2011
Vingada, Cristina acirra atrito com a imprensa argentina
Casa Rosada interpreta a vitória da presidente em prévia eleitoral como respaldo à
sua política para setor de mídia
Governo diz que irá "até o final" em seu plano de combater os monopólios do setor com leis
restritivas
LUCAS FERRAZ
SYLVIA COLOMBO
DE BUENOS AIRES
Respaldado pelo apoio de mais de 50% do eleitorado nas votações primárias, o governo de Cristina
Kirchner prevê aprofundar as medidas contra o monopólio da mídia.
A Casa Rosada, em guerra declarada contra a imprensa desde 2008, a considera a maior derrotada do
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pleito de duas semanas atrás, uma espécie de prévia da disputa presidencial, que acontece em outubro. As
primárias confirmaram o favoritismo de Cristina à reeleição.
À Folha, Gustavo Bulla, um dos formuladores da lei contra o monopólio da mídia, disse que a
"acachapante votação da presidente legitimou a vigência da legislação".
E afirmou: "Não há uma vinculação explícita entre uma coisa e outra, não foi um plebiscito, mas as
pessoas votaram também na lei, que é uma das políticas mais importantes do governo".
Bulla, diretor nacional de supervisão e avaliação da Autoridade Federal de Serviços de Comunicação
Audiovisual, órgão responsável pelo tema, diz que não há "possibilidade de retrocesso, o governo vai até
o final".
Elaborada logo depois do conflito entre produtores do campo e o governo, em 2008, quando o "Clarín"
passou de aliado a principal inimigo dos Kirchner, a legislação foi aprovada pelo Congresso em 2009. Ela
visa regular o setor de rádio e TV, limitando a participação de empresas privadas nesses mercados.
O Grupo Clarín, maior conglomerado de mídia da Argentina, é o principal afetado. No ano passado,
obteve liminar judicial que suspendeu a aplicação da lei.
"Esses poderes concentrados fizeram reféns não só os governos argentinos, mas também o poder
judiciário", comenta Bulla. O governo recorre, e o caso será julgado pela Suprema Corte, provavelmente
no início de 2012.
PAPEL-JORNAL Mas há outras medidas.Uma delas é tirar a empresa de papel-jornal Papel Prensa do controle dos jornais
"Clarín" e "La Nación", que são sócios do Estado argentino no empreendimento desde a última ditadura
militar (1976-83).
O governo argumenta que os jornais se alinharam à ditadura e cometeram crime de lesa-humanidade para
controlar a empresa. Relatório recente do Ministério da Economia aponta má gestão dos diários, que se
beneficiariam ao comprar papel por valor abaixo do praticado no mercado.
Cristina enviou ao Congresso, neste ano, projeto que considera o papel-jornal um insumo de interesse
nacional -ainda não foi votado. Outra medida é fortalecer a TV aberta, atacando por tabela o Grupo
Clarín, dono da Cablevisión, a maior operadora de TV a cabo do país.
O primeiro passo foi dado com a estatização do campeonato argentino, exibido atualmente na TV pública
-antes os jogos só eram exibidos em um canal pago, pertencente ao Clarín.
Em 2012, o governo multiplicará por sete o número de canais na TV aberta. Foi anunciada a licença de
mais 273 canais no sistema de TV digital. Além das frequências, o governo vai abrir uma linha de crédito
para financiar a produção de conteúdo. "O objetivo", diz Bulla, "é garantir a multiplicidade de vozes".
Para o "Clarín", "são movimentos que preocupam, sobretudo a necessidade de criar um adversário.
Ninguém questiona a legitimidade do governo, mas isso não pode dar margem para atos
inconstitucionais", declarou Martín Etchevers, porta-voz do grupo.
Apesar dessas medidas, o sub-diretor do jornal "La Nación", Fernán Saguier, crê que a tensão pode
diminuir num próximo governo Cristina. "A população está pedindo moderação, por isso acho que há
uma chance de que se amenize o conflito. É essencial para a democracia que a imprensa possa ser
exercida livremente", disse.
Para o jornalista Jorge Lanata, fundador do "Página12", o governo deve ampliar a ofensiva ao "Clarín" no
sentido de tentar "desmanchar o monopólio".
A Folha apurou que a permanência de algumas figuras no governo Cristina incomoda os meios. É o caso
do atual ministro da Economia e candidato a vice-presidente, Amado Boudou da província de Buenos
Aires.
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8. São Paulo, domingo, 09 de Fevereiro de 2012
No Equador, presidente Rafael Correa aperta cerco à mídia
SYLVIA COLOMBO
DE BUENOS AIRES
A ratificação da condenação de três diretores e um editor do jornal "El Universo" pela Justiça
equatoriana, na última semana, assinala uma nova etapa dos ataques do presidente Rafael Correa à
imprensa de seu país.
"A situação está muito mais grave no Equador. Há uma campanha agressiva do governo contra a
liberdade de expressão", disse à Folha o diretor da Sociedade Interamericana de Imprensa, Ricardo Trotti.
Desde que iniciou sua gestão, em 2007, o presidente Correa deu início a um processo de expropriação de
canais de TV e rádio, uso discriminatório de verba para publicidade oficial e condenação judicial por
injúria de jornalistas que criticam o governo. Já são 21 os meios governistas, que se dedicam a
propagandear ações de Correa.
Nas últimas semanas, dois casos ganharam relevância. Os jornalistas Juan Carlos Calderón e Cristian
Zurita foram condenados em primeira instância a pagar multa de US$ 2 milhões por conta da publicação
de "El Gran Hermano", livro em que denunciam casos de corrupção vinculados ao irmão de Correa.
A causa contra o jornal "El Universo" ganhou repercussão internacional.
O diário foi condenado por injúria devido a uma coluna do editor de opinião, Emilio Palacio, que
chamava Correa de ditador e questionava sua atuação durante uma revolta policial. A pena é de três anos
de prisão e pagamento de multa de US$ 40 milhões.
Palacio pediu asilo político nos EUA e dois dos irmãos proprietários da empresa estão no exterior. O
terceiro pediu asilo ao Panamá.
"Está piorando o cerco. As nossas ações estão cada vez mais limitadas. O governo fecha as fontes e cria
novos meios para fazer propaganda todos os dias. Mas não vamos desistir", disse à Folha o editor-geral
do "El Universo", Gustavo Cortez.
Outro caso exemplar é o do jornalista Wilson Cabrera, dono e locutor da rádio La Voz de la Esmeralda,
da cidade de Macas. Em abril do ano passado, sua rádio foi tirada do ar pela polícia e até seus cabos e
antenas foram arrancados. Cabrera é acusado de transmitir sem autorização.
"Não é verdade, me tiraram a rádio porque eu noticiava casos de corrupção locais. Esse governo, em vez
de investigar as denúncias, vai contra os jornalistas", diz Cabrera, que há três meses tenta sair do país para
levar seu caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
"Esses casos são sérios e muito chamativos, mas há algo ainda mais perigoso. A lei eleitoral e a de
comunicação. Se ambas forem aplicadas, não será mais possível fazer jornalismo lá", diz Trotti.
A lei eleitoral, aprovada em 4 de fevereiro, impede os meios de fazerem matérias apontando aspectos
negativos ou denúncias a candidatos às eleições de 2013.
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Já a lei de comunicação está no Congresso e, se aprovada, determinará que apenas 33% dos meios
poderão ser privados. "Na prática, significa que serão 66% do Estado, porque a cota das minorias é
controlada por Correa", afirma Trotti.
O presidente justifica suas ações dizendo que, assim como qualquer cidadão, tem direito a ir à Justiça
quando se sente injuriado.
Por meio de sua conta de Twitter, anteontem, Correa disse que estava formando um grupo de "ofendidos
e perseguidos pela imprensa" para unidos se defenderem "da imprensa corrupta".
9. São Paulo, domingo, 31 de julho de 2011
Lei boliviana dá mais poderes a Morales sobre comunicações
Projeto aprovado pelo Congresso reserva dois terços de licenças de rádio e TV para o governo e
seus aliados
A medida também deverá permitir escutas telefônicas em caso de haver perigo ao Estado e de
ameaças externas
DAS AGÊNCIAS DE NOTÍCIAS
O Congresso boliviano, controlado pelo partido do presidente Evo Morales, aprovou na noite de quinta-
feira uma polêmica lei de telecomunicações que dá ao governo e seus aliados dois terços das licenças de
rádio e televisão e permite escutas telefônicas.
A oposição afirma que a lei ameaça a independência das redes privadas de telecomunicações.
O Senado sancionou a legislação, que agora deve ser promulgada por Morales, disse o presidente da
Câmara, René Martínez.
A lei reserva para o Estado 33% do espectro eletromagnético, outros 33% para o setor privado e 34% para
organizações sociais e indígenas, que são aliadas do governo.
Segundo os críticos, na prática, Evo Morales vai controlar até 67% das ondas eletromagnéticas do país,
ameaçando as redes privadas.
"As rádios comunitárias e indígenas, como não têm faturamento, precisam do Estado para sobreviver, e
portanto o governo terá na prática 67%", disse Raúl Novillo, presidente da Associação Boliviana de
Radiodifusoras.
"É séria ameaça à liberdade de expressão", disse.
Já o senador governista David Sánchez afirmou que o objetivo da iniciativa é dar ao setor rural "uma
distribuição mais igualitária das frequências no país".
A lei também permite ao governo fazer escutas telefônicas "em caso de perigo ao Estado, ameaça externa,
comoção interna ou desastres".
Para o senador da oposição Bernard Gutiérrez, a lei preocupa porque pode permitir que políticos e
jornalistas sejam alvos de grampos.
10. São Paulo, domingo, 03 de abril de 2011
Em clima eleitoral, Peru lança PAC e beneficia brasileiros
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FLÁVIA MARREIRO
DE CARACAS
PATRÍCIA CAMPOS MELLO
DE SÃO PAULO
A poucos meses de deixar o cargo, o presidente do Peru, Alan García, baixou decretos para facilitar
investimento privado em 33 grandes projetos de infraestrutura, num "fast track" para o PAC (Programa de
Aceleração do Crescimento) do país.
Grandes empresas brasileiras, algumas delas as maiores doadoras da campanha eleitoral do Peru, estão
entre as grandes interessadas nesse "PAC peruano".
No próximo domingo, ocorre o primeiro turno da eleição presidencial no país.
Empresas como a Odebrecht já atuam ou têm interesses nas obras do pacote de "necessidade nacional e
de execução prioritária", cujo custo é estimado pelo governo em US$ 9 bilhões.
O PAC peruano foi alterado para incluir o item "energia das novas centrais hidrelétricas". O ponto é
estratégico para o Brasil, que assinou pacto em 2010 para construir ao menos seis usinas de uso
compartilhado na selva peruana, investimento que pode chegar a US$ 16 bilhões.
Ao menos três dos cinco candidatos com chances ir ao segundo turno prometeram revogar o "fast track"
(via rápida) de García: Alejandro Toledo (centro-direita), Keiko Fujimori (direita) e Ollanta Humala
(esquerda).
"O governo está tratando de hipotecar o país", afirma Daniel Abugattás, um dos porta-vozes da campanha
de Ollanta Humala.
A pedido de um grupo de congressistas, o Tribunal Constitucional está avaliando se a via rápida de
García viola a Constituição.
O Brasil entrou em cheio na eleição quando as construtoras brasileiras Camargo Correa e Queiroz Galvão
apareceram como as maiores doadoras, até agora, da campanha do ex-presidente e candidato Alejandro
Toledo.
As somas não são altas para os padrões brasileiros (menos de US$ 100 mil no primeiro caso e pouco mais
de US$ 200 mil no segundo), mas foram suficientes para desatar uma discussão sobre conflitos de
interesses com o "novo imperialismo" do sul.
NEGÓCIOS DO BRASIL
As hidrelétricas no PAC de García são só uma fatia dos negócios brasileiros no país.
Segundo estimativas compiladas entre as empresas, as múltis brasileiras têm investimentos de US$ 3,5
bilhões a US$ 5 bilhões no Peru, mas esse número deve triplicar com outras obras públicas no país. Os
investimentos se concentram em mineração, construção e energia.
"De 2005 para cá, o ambiente político, econômico e de negócios do Peru mudou muito. Fechamos
contratos importantes e passamos a atuar como concessionária das obras executadas", diz Breno
Saldanha, diretor da Andrade Gutierrez no Peru.
"Hoje, o Peru tem a maior taxa de crescimento da região, instituições fortes e muita disposição
para atrair investimentos", completa.
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A Odebrecht, por exemplo, está há 31 anos no Peru. A empresa já fez 54 obras no país e hoje
participa de projetos que representam investimentos de US$ 4,4 bilhões --entre eles, a rodovia
interoceânica, que conectará o Brasil à costa do Pacífico.
11. São Paulo, domingo, 08 de maio de 2011
Candidatos à eleição no Peru tentam vincular imagem a Lula
Keiko Fujimori e Ollanta Humala disputarão o segundo turno
PATRÍCIA CAMPOS MELLO
BERNARDO MELLO FRANCO
DE SÃO PAULO
Os dois candidatos da eleição presidencial do Peru estão competindo para convencer o
eleitorado de quem é "mais Lula". A candidata de direita Keiko Fujimori, que disputará
o segundo turno em 5 de junho com o esquerdista Ollanta Humala, afirma que quer
fazer um governo "como o de Luiz Inácio Lula da Silva".
"Gosto muito do que Lula fez em política social, que resultou em números
extraordinários na luta contra a pobreza", disse Keiko em entrevistas recentes.
À Agência France Presse, ela elogiou a política de segurança do ex-presidente
colombiano Alvaro Uribe e depois afirmou que "se há um estilo de governo a ser
seguido, é o do Brasil, o gigante sul-americano".
"Todo o mundo no Peru virou seguidor de Lula", disse Paola Ugaz, editora do site
político peruano Lamula.
APOIO
Petistas que acompanham a eleição no Peru disseram que Lula é simpatizante de
Humala e condenaram o uso de seu nome por Keiko.
"É oportunismo, uma piada", disse Valter Pomar, do diretório nacional do PT. "Ela é
neoliberal, não tem nada a ver conosco", disse.
A secretária de Relações Internacionais do PT, Iole Ilíada, acusou Keiko de tentar
"confundir o eleitorado" com os elogios a Lula.
Keiko, filha do ex-presidente Alberto Fujimori (1990-2000), que cumpre prisão por
corrupção, tem um programa de governo baseado no livre mercado e no
assistencialismo.
Mas ela passou a adotar pontos da plataforma de esquerda de seu rival, como impostos
sobre os ganhos das mineradoras e ampliação de programas sociais.
Já Humala contratou como assessores os petistas Valdemir Garreta e Luís Favre, que o
ajudaram a formular uma "Carta ao Povo Peruano", nos moldes da carta que Lula
divulgou na eleição de 2002.
Segundo uma fonte próxima a Lula, o publicitário João Santana, que coordenou a
campanha de Dilma Rousseff, foi ao Peru neste ano para aconselhar Humala. Desde o
início da campanha, Humala tentou se mostrar como um "novo Lula", um esquerdista
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que migrou para o centro.
Ele teve maior votação no primeiro turno da eleição (31,6% contra 23,5% de Keiko).
Uma pesquisa do Ipsos/ Apoyo, de 4 de maio, mostra Humala com 39% das intenções
de voto, um ponto à frente de Keiko (38%).
Colaborou NATUZA NERY , de Brasília
12. São Paulo, domingo, 22 de maio de 2011
Chávez faz seu "Minha Casa, Minha Vida"
FLÁVIA MARREIRO
DE CARACAS
"Casa digna só é possível no socialismo", diz o papelzinho amarelo, como comprovante de compra, que
Leidy Cona, 26, exibe na praça Bolívar, no centro de Caracas.
O tíquete é a comprovação de que Leidy --grávida, mãe de um bebê de 14 meses e de um menino de 12
anos-- está inscrita na "Gran Misión Vivienda Venezuela", espécie de "Minha Casa, Minha Vida"
venezuelana que é o carro-chefe da campanha de Hugo Chávez para tentar garantir a sua terceira eleição à
Presidência em 2012.
"Tenho esperança. Conheço gente que ganhou uma casa do presidente", diz ela, que paga cerca de R$
632, ou mais de um salário mínimo local, para viver num quarto de pensão com a família.
Leidy faz parte do meio milhão de venezuelanos que, desde 7 de maio, responderam à convocação para se
registrar no programa. Por enquanto, só é possível fazê-lo em cinco Estados mais atingidos pelas chuvas
de 2010.
"Mãe solteira tem prioridade. Ordem do comandante", grita um senhor que distribui formulários na praça.
"Não tem fila! É num instante!"
Ali perto, uma mulher que, desconfiada, não quer dar o nome, diz que foi se inscrever "por via das
dúvidas", vai que a sorte a toca dessa vez...
A estratégia de promoção do programa inunda a TV. O slogan lançado por Chávez é metafísico: "Para
viver vivendo", em contraste com o "viver morrendo" do capitalismo nas favelas que cobrem as
montanhas da capital.
MÁQUINA DE ESPERANÇA
Habitação é agora tema obrigatório de analistas e políticos do governo e da oposição. Em geral, eles
concordam que Chávez conseguiu transformar a tragédia das chuvas e um problema crônico do país --o
deficit de 2 milhões de casas-- em espécie de máquina de esperança.
Em 12 anos, o governo Chávez lançou ao menos três grandes programas habitacionais, com pouco
resultado. O ministério responsável admite que é de 29 mil/ano a média de casas construídas pelo setor
público.
Mas nenhum até agora teve a ênfase dada à ofensiva atual, já aplicada antes para a saúde e a educação (as
missões cubanas) ou alimentação (as redes de mercadinhos com comida subsidiada).
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A meta ambiciosa martelada por Rafael Ramírez, presidente da estatal petroleira PDVSA --a empresa é o
grande caixa do país e a responsável pelo esforço-- é construir 350 mil casas até 2012.
O número soma produção estatal, privada, por mutirão ou por convênios com China, Brasil, Rússia, entre
outros.
Empresários miram a cifra com desconfiança: apontam que a falta de insumos como cimento e vigas de
aço é um gargalo, sem falar dos problemas de execução orçamentária do governo, turbinado pela alta do
petróleo.
"Se a equipe do presidente conseguir entregar parte das casas prometidas, o efeito será muito forte,
alavancará a esperança de um grupo enorme. O importante é a percepção", diz Jesse Chacón, ex-ministro
de Chávez e diretor do instituto de pesquisa GIS 21, próximo do governo.
Com planilha da popularidade do presidente, Chacón diz por que considera que Chávez acertou ao
apostar no tema. Mostra que foi justamente no final do ano passado, com chuvas que deixaram 130 mil
desabrigados, que a sua avaliação subiu.
Hoje a aprovação a Chávez está em 51,1%, segundo a GIS 21, praticamente o mesmo do Datanálisis, o
instituto privado mais importante do país.
Mas o esforço pode se voltar contra o presidente, advertem analistas e o próprio Chacón. "Se não
conseguir entregar casas, aí será o efeito bumerangue", afirma.
13. São Paulo, domingo, 22 de maio de 2011
Campanha na Argentina experimenta "fator" Lula
Candidatos à Presidência incorporam ideias como o Fome Zero e o Conselhão
Para atrair o eleitorado à esquerda, Eduardo Duhalde e Ricardo Alfonsín aproximam imagem à do
brasileiro
LUCAS FERRAZ DE BUENOS AIRES
Para tentar vencer nas urnas a presidente Cristina Kirchner, a oposição da Argentina utiliza como receita
eleitoral o sucesso do Brasil sob Lula, motivo de admiração entre os argentinos.
Dois dos principais pré-candidatos à eleição presidencial de outubro já fazem campanha utilizando
propostas lulistas.
Ricardo Alfonsín (UCR), 59, e Eduardo Duhalde (União Popular), 69, querem desenvolver na Argentina
programas sociais inspirados na gestão de Lula, como o Fome Zero, e adotar medidas econômicas como
as desenvolvidas no Brasil, que permitiram ao país crescer e tornar-se uma referência no cenário
internacional.
Além de repetir a estratégia dos candidatos à Presidência do Peru, que prometem governar seguindo a
cartilha do ex-presidente, Alfonsín e Duhalde buscam ainda identificação à esquerda, espectro político
associado ao governo Kirchner.
Mas não só por isso: Lula, depois do presidente dos EUA, Barack Obama, é o líder estrangeiro mais bem
avaliado na Argentina, segundo pesquisa de opinião divulgada recentemente.
A presidente Cristina Kirchner ainda faz mistério, mas deve se candidatar à reeleição. Sua gestão -assim
como a do seu marido e antecessor, Néstor Kirchner (2003-07)- é criticada por adotar políticas radicais
que deixaram a Argentina próxima de países como Venezuela, Bolívia e Equador e distante de exemplos
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considerados bem-sucedidos, como Brasil, Chile e Uruguai.
É nessa diferença que aposta a oposição.
O Comitê Nacional da UCR (União Cívica Radical), partido de Alfonsín, elabora atualmente o plano de
governo do candidato.
Segundo disse à Folha Agustín Campero, um dos coordenadores de campanha, uma das principais
propostas de Alfonsín é organizar um "conselhão" nos moldes do Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social, criado por Lula no início de seu governo.
"O objetivo é desenvolver políticas estratégicas, minimizando as tensões e buscando coincidências", diz.
A área social é o ponto em que Alfonsín e Eduardo Duhalde têm mais coincidências em relação ao
espólio de Lula. Ambos querem criar na Argentina uma espécie de Fome Zero para tentar aplacar a
pobreza no país.
Estima-se que atualmente 30% dos argentinos estejam abaixo da linha da pobreza, embora o governo diga
que o índice seja de 9%.
Ex-presidente que dirigiu o país após a crise de 2001, Duhalde (União Popular) é um antigo admirador de
Lula. Em 2003, após passar a faixa presidencial a Néstor Kirchner (morto em 2010), ele deixou a
Argentina de férias no avião do brasileiro, que viajou a Buenos Aires para a transmissão do cargo.
Duhalde lançou no mês passado o livro "De Tomás Moro al Hambre Cero" (de Thomas Morus ao Fome
Zero), com prólogo assinado por Lula, em que apresenta o programa como a principal solução para
combater a fome no país.
Lançado por Lula em 2003, o Fome Zero não decolou, sendo substituído depois pelo Bolsa Família, o
programa social de maior êxito em seu governo.
"Lula é muito relacionado ao combate à pobreza e é apontado como o responsável por transformar o
Brasil numa potência internacional. Isso impressiona muito o argentino", disse à FolhaRoberto Lavagna,
ex-ministro da Economia de Kirchner e candidato à Presidência derrotado na última eleição.