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83 Via Teológica | Raphael Alexis Haeuser, Vol. 14, n.27, jun.2013, p. 83 - 104 MENTALIDADE CRISTÃ: EM BUSCA DE UM PENSAMENTO INTEGRAL A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA BÍBLICA Christian mentality: in search of a holistic mindset from a biblical perspective Raphael Alexis Haeuser. 1 RESUMO Este trabalho discute os obstáculos e as razões para a formação de uma mentalidade cristã que capacite os cristãos a interagirem com conhecimento não-religioso a partir de uma perspectiva bíblica. Para isso, é preciso ter uma estrutura de pensamento que supere a dicotomia sagrado-secular uma vez que ela não se interessa pela realidade total. Uma estrutura mais adequada para essa integração de conhecimento é o motivo-base reformacional criação-queda- redenção-consumação por ter uma abordagem integral. Palavras-chave: Mentalidade cristã; Dualismo; Integração bíblica. ABSTRACT This paper discusses the obstacles and reasons for the formation of a Christian mindset that enables Christians to interact with non-religious knowledge from a biblical perspective. To achieve this, one must have a structure of thought that overcomes the sacred-secular dichotomy since it does not care about total reality. A more appropriate structure for this integration of knowledge is the creation-fall-redemption-consummation reformacional base-motive due to its comprehensive approach. Keywords: Christian Mindset. Dualism. Biblical Integration. INTRODUÇÃO Pensar de forma cristã sobre a realidade chamada “secular” é um desafio. Muitos círculos cristãos não dão o devido valor à 1 Coordenador do Atos, Centro de Formação e Treinamento do Janz Team Gramado. Bacharel em Teologia pela Faculdade Teológica Sul-Americana e especialização em Teologia Bíblica do Novo Testamento Aplicada pela Faculdade Teológica Batista do Paraná. E-mail: [email protected].

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MENTALIDADE CRISTÃ: EM BUSCA DE UM PENSAMENTO INTEGRAL A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA BÍBLICA

Christian mentality: in search of a holistic mindset from a biblical perspective

Raphael Alexis Haeuser.1

RESUMO

Este trabalho discute os obstáculos e as razões para a formação de uma mentalidade cristã que capacite os cristãos a interagirem com conhecimento não-religioso a partir de uma perspectiva bíblica. Para isso, é preciso ter uma estrutura de pensamento que supere a dicotomia sagrado-secular uma vez que ela não se interessa pela realidade total. Uma estrutura mais adequada para essa integração de conhecimento é o motivo-base reformacional criação-queda-redenção-consumação por ter uma abordagem integral.

Palavras-chave: Mentalidade cristã; Dualismo; Integração bíblica.

ABSTRACT

This paper discusses the obstacles and reasons for the formation of a Christian mindset that enables Christians to interact with non-religious knowledge from a biblical perspective. To achieve this, one must have a structure of thought that overcomes the sacred-secular dichotomy since it does not care about total reality. A more appropriate structure for this integration of knowledge is the creation-fall-redemption-consummation reformacional base-motive due to its comprehensive approach.

Keywords: Christian Mindset. Dualism. Biblical Integration.

INTRODUÇÃO

Pensar de forma cristã sobre a realidade chamada “secular”

é um desafio. Muitos círculos cristãos não dão o devido valor à

1 Coordenador do Atos, Centro de Formação e Treinamento do Janz Team Gramado. Bacharel em Teologia pela Faculdade Teológica Sul-Americana e especialização em Teologia Bíblica do Novo Testamento Aplicada pela Faculdade Teológica Batista do Paraná. E-mail: [email protected].

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racionalidade humana por considerarem-na pouco espiritual,

já outros veem uma total desconexão entre fé e razão ou entre

as Escrituras e a ciência. Diante disso, existe a necessidade de

desenvolver uma estrutura de pensamento cristão que supere a

dicotomia sagrado-secular, adotando uma perspectiva integral e

centrada nas Escrituras, a partir da qual é possível analisar os mais

variados campos de conhecimento.

Entende-se que uma mentalidade cristã não apenas é possível,

mas também imprescindível para a formação espiritual integral

de seguidores de Cristo, para o cumprimento mais eficiente da

missão da igreja e para um cristianismo mais relevante e engajado

com a cultura em geral. Isso pode ser alcançado quando se adota

o motivo-base bíblico ou reformacional criação-queda-redenção-

consumação como a estrutura que molda o pensamento e que

capacita o cristão a interagir adequadamente com o conhecimento

não-religioso.

Dentro dessa proposta, apresentar-se-á a necessidade de

buscar uma mentalidade cristã a partir de John Stott, Luiz Sayão

e Robson Ramos; depois, a partir de Herman Dooerweerd,

conforme discutido por Guilherme de Carvalho, Francis Schaeffer

e Mark Greene, será denunciada a inadequação de concepções

dualistas da realidade; e, finalmente, será discutida a formação de

uma estrutura cristã de pensamento a partir das Escrituras com

base no pensamento de Harold Klassen e Donavan Graham.

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1. A NECESSIDADE DE UMA MENTALIDADE CRISTÃ

1.1. O problema do Anti-intelectualismo

O anti-intelectualismo é uma das características do mundo

atual e um dos grandes desafios do cristianismo evangélico de

hoje. Segundo a Enciclopédia de Bíblia, Filosofia e Teologia,

o anti-intelectualismo é “a ideia de que o intelecto humano

não é suficiente ou digno de confiança para a obtenção do

conhecimento, quer isolado, quer combinado com a percepção

dos sentidos”.2 O anti-intelectualismo também faz parte da igreja

cristã a ponto de muitos crentes hoje considerarem a teologia

com desprazer e desconfiança, ou entenderem que a razão é

inadequada para obter-se conhecimento espiritual, desprezando

a atividade intelectual e o estudo, resultando em ignorância e

crendices, maquiados de espiritualidade.

Dentre as várias possíveis razões por que alguns cristãos

têm essa postura anti-intelectualista, Sayão (2001) e Moreland

& Graig (2005) destacam a compreensão equivocada de

Colossenses e 2:8 e 1 Coríntios 1:21 de que a filosofia é

claramente condenada na Bíblia e, por isso, deve-se rejeitar

a reflexão filosófica e intelectual. É verdade que Colossenses

2:8 traz a única menção da palavra “filosofia” na Bíblia, mas

Paulo está combatendo um tipo específico de filosofia herética,

o gnosticismo; e não à filosofia como um todo e muito menos

o pensamento e o raciocínio. Já em 1 Coríntios 1:21, Paulo não

está fazendo um contraste entre uma apresentação racional e

2 Russel CHAMPLIN & João BENTES, João. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, p. 189.

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uma não-racional do Evangelho, mas sim um contraste entre a

sabedoria humana e a revelação divina.

Outra razão aparentemente bíblica destacada por Stott

(1978) é a noção de que a Queda e o pecado obscureceram a mente

e o intelecto de tal forma que eles são incapazes de encontrar

a verdade e explicar as realidades espirituais, perpetuando o

dualismo e a ideia de que fé e razão são mutuamente excludentes.

Porém, seguindo o conceito reformado de “depravação total”,

cada parte do ser humano se corrompeu, incluindo a vontade e

as emoções, e não só a mente. Embora a Queda tenha provocado

a deturpação das faculdades humanas, ela não as destruiu, pois

ainda na condição de pecadores, as pessoas são convidadas por

Deus a refletir sobre a sua condição.3

Dessa forma, quando se foge à responsabilidade dada por

Deus do uso cristão de nossas mentes e abrimos mão da reflexão

para que as coisas “funcionem”, acabam-se introduzindo ideias e

valores anticristãos nas nossas vidas e igrejas e, consequentemente,

promovendo a secularização do cristianismo. Por isso, Stott não

entende que o anti-intelectualismo seja um símbolo de devoção

como alguns círculos cristãos propõem, mas sim de mundanismo,

pois é no fundo uma forma de se conformar com a mentalidade

da sociedade secular atual.

1.2. Razões para uma Mentalidade cristã

Seguindo a argumentação de Stott (1978), serão apresentadas

três razões por que uma mentalidade cristã faz-se necessária.

Primeiramente, sendo criado à imagem de Deus, o ser humano é

3 Isaías 1:18; Mateus 16:1-4; Lucas 12:54-57.

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dotado com a capacidade única de pensar, pois Deus se comunica

com o ser humano de uma forma que não se comunica com o

restante da criação. Embora os animais tenham cérebros, somente

o ser humano tem o que a Bíblia chama de “entendimento” e,

por isso, espera-se que o ser humano não se rebaixe ao nível dos

animais.4 Por isso, a Bíblia é irônica quando a conduta de animais

é mais “humana” do que a de alguns homens.5

Em segundo lugar, Deus se revelou racionalmente através

da natureza (revelação geral)6 e das Escrituras (revelação especial)

e cabe ao ser humano usar sua mente para compreender essas

duas formas de revelação. O fato de que Deus se revelou por meio

de palavras e proclama o Evangelho ao homem pecador através

de palavras demonstra que nossas mentes não apenas têm a

capacidade, mas também a responsabilidade de entender. Além

disso, toda pesquisa científica parte do pressuposto de que o ser

humano tem capacidade para ler e compreender os processos da

natureza estabelecidos por Deus.

Por fim, uma mentalidade cristã nos ajuda na tarefa

da evangelização e do discipulado, pois não é aconselhável

menosprezar a influência do poder das ideias e do pensamento

humano. Como afirma Sayão, “É preciso entender que o mundo

é governado por ideias. As ideias e os valores acabam tendo muito

mais peso do que as coisas”.7 Mais forte do que o poder político ou

militar é o poder ideológico que domina e governa o mundo. Nesse

4 Salmos 32:9; 73:22.5 Provérbios 6:6-11; Isaías 1:3; Jeremias 8:7.6 Salmos 19:1-4; Romanos 1:18-21.7 Luiz SAYÃO. Cabeças Feitas: filosofia prática para cristãos, p. 10.

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sentido, cabe a pergunta: o que significa conquistar o mundo para

Cristo? A resposta óbvia é que faz-se necessário o desenvolvimento

de uma mentalidade cristã. Nas palavras de Charles Malik: “A

evangelização tem duas tarefas: converter as pessoas não apenas

espiritualmente, mas também intelectualmente”.8 Ademais, o

Evangelho nunca é ouvido no isolamento, pois sempre é recebido

dentro de um contexto cultural. Por isso, saber articular uma

apresentação do evangelho que seja ao mesmo tempo fiel às

Escrituras e relevante no mercado de ideias é uma questão crucial

para o cristão. Nessa tentativa de contextualização, Schaeffer

(1978) alerta que é preciso levar em conta que há certos fatos

imutáveis e verdadeiros, e que se forem alterados, o Cristianismo

se converte em algo diferente, deixando de ser Cristianismo, e ele

destaca que:

Cada geração da igreja, em suas circunstâncias particulares, em seu cenário próprio, tem a responsabilidade de comunicar o evangelho em termos que se possam entender, consideradas a linguagem e as formas de pensamento do ambiente ou período específico em que a comunicação se processa.9

Sendo assim, o objetivo de uma mentalidade cristã é

“compreender o mundo ao nosso redor, influenciados pela

verdade de Deus, a ponto de, mesmo imperfeitamente, pensarmos

os pensamentos de Deus a respeito de qualquer assunto”,10 uma

vez que, de acordo com Harry Blamires, “uma mente cristã é uma

mente treinada, informada e equipada para manusear os dados

8 Citado por J. P. MORELAND & William Lane CRAIG. Filosofia e Cosmovisão Cristã, p. 15.9 Francis SCHAEFFER. A Morte da Razão, p. 93.10 Robson RAMOS. Evangelização no Mercado Pós-Moderno, p. 20.

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de uma controvérsia secular dentro de um quadro de referência

constituído por pressuposições cristãs”.11

2. A INADEQUAÇÃO DO DUALISMO SAGRADO-

SECULAR

Um quadro de referência supostamente bíblico que ainda

tem muita influência sobre o Cristianismo e a espiritualidade

cotidiana é o dualismo sagrado-secular. Por isso, esta seção

discutirá a sua origem e funcionamento, bem como apresentará

argumentos em favor da sua inadequação.

2.1. A origem do dualismo

Carvalho (2006), sintetizando o pensamento de

Dooyerweerd, afirma que, embora a Queda signifique que o

ser humano e restante da criação não funcionem mais como

deveriam, o ser humano ainda é portador da imago Dei e,

portanto, um ser que não pode ser não-religioso; e, por isso,

propõe que “o princípio motivador e controlador de uma cultura

não é, primariamente, a política, a economia ou as ideias, mas

a religião”.12 Somos movidos por um “motivo-base religioso” que

controla “a cultura por meio do centro religioso do homem”.13

Esse centro religioso ou é orientado pelo Espírito Santo, “que

direciona o homem, e com ele, toda a criação para a reconciliação

com Deus”,14 formando um motivo-base bíblico; ou pelo espírito

11 Ibid., p. 20.12 Grifo do autor, citado por Guilherme de CARVALHO, O Dualismo Natureza/Graça e a Influência do Humanismo Secular, p. 125.13 Ibid., p. 126.14 Ibid., p. 125.

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da apostasia, “que distancia o homem de Deus e direciona seu

coração para o horizonte temporal da experiência, para que ele

adore a um ídolo,”15 formando motivos-base apóstatas.

Além de serem essencialmente idólatras, os motivos-base

apóstatas ocidentais são “irrecuperavelmente dualistas”, uma vez

que introduzem tensões insolúveis. Uma tentativa insatisfatória

de conciliar essas tensões é absolutizar o relativo (criar um ídolo),

porém, simultaneamente, os outros relativos se levantam num

eterno contraponto, impossibilitando a conciliação. Outra opção

inviável é buscar fazer uma síntese entre motivos-base apóstatas

e o motivo-base bíblico. No entanto, como o motivo bíblico é

integral, ele resiste ser interpretado a partir de um motivo dualista.

2.2. O dualismo nos motivos-base apóstatas do Ocidente

Dooyerweerd identificou três motivos-base apóstatas na

cultura ocidental: o motivo-base grego matéria/forma, o motivo-

base escolástico natureza/graça e o motivo-base humanista

natureza/liberdade.

Embora todos os três sejam dualistas e tenham exercido

influência no pensamento cristão, é o segundo, o motivo-base

escolástico natureza/graça, que é mais relevante para essa pesquisa.

Schaeffer (1974), por exemplo, entende que embora existam

muitos pontos de partida distintos para se explicar a mentalidade

do homem moderno, mas foi Tomás de Aquino (1225-1274) que

“transformou o mundo de um modo muito real”. Ele “abriu

caminho para a discussão que convencionalmente é designada de

15 Ibid., p. 126.

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‘natureza e graça’”.16 Para Aquino, o mundo é dividido em dois

“andares”, o superior é o da graça, e o inferior é o da natureza.

O andar superior da graça é o “sagrado” que inclui o Criador

(Deus), as coisas celestes, a alma humana, a unidade e toda a

dimensão espiritual e sobrenatural; enquanto que o andar inferior

é o “secular”, que inclui a criação (natureza), as coisas terrenas, o

corpo humano, a diversidade e toda a dimensão natural.

Ao abrir espaço para o andar inferior, Aquino conseguiu

valorizar a natureza, o que é bíblico, uma vez que ela faz parte da

boa criação de Deus. Porém para ele, a Queda fez com o que o

ser humano perdesse um dom sobrenatural (graça), mantendo a

sua natureza intacta. “Na concepção tomista a vontade humana

estava decaída, mas não o intelecto. Dessa noção incompleta

do conceito bíblico de Queda, defluíram todas as dificuldades

subsequentes. O intelecto humano se tornou autônomo”.17 Isso

abriu a porta para a autonomia do andar inferior, o que teve

uma série de desdobramentos negativos, como (1) a autonomia

da razão humana, que não presta mais contas a Deus; (2) uma

visão reduzida da vida humana, vista no desprezo pelo “prazer,

o cuidado do corpo, as atividades artesanais e técnicas e uma

supervalorização das atividades contemplativas”;18 (3) o surgimento

de uma teologia natural, formulada à parte das Escrituras; e (4),

finalmente, a total ausência de um ponto de contato real entre

o andar superior e o inferior. “Na perspectiva escolástica, a fé

deveria orientar a razão para que esta compreendesse as verdades

16 Francis SCHAEFFER. Op. Cit., p. 7.17 Ibid., p. 9.18 Guilherme de CARVALHO. Op. Cit., p. 135.

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do evangelho, mas tal orientação não era considerada necessária

para que a razão compreendesse a natureza!”.19

2.3. Implicações práticas de uma mentalidade dualista

Esse dualismo não é meramente abstrato ou acadêmico, pois

como afirma Schaeffer: “Tais coisas jamais são apenas teóricas,

pois que o homem age de acordo com o seu modo de pensar”.20

Assim, esse dualismo se manifesta na dicotomia diária entre o

sagrado e o secular, o que Greene (2010) identifica como sendo

o maior desafio que a Igreja enfrenta hoje. Segundo ele, tem-se

a crença geral de que a vida é uma bergamota e não um pêssego,

no sentido de que apenas alguns segmentos da vida humana são

realmente importantes para Deus, como oração, igreja, culto,

atividades na igreja, ministério, mas outros não, como trabalho,

escola, universidade, esportes, artes, música, descanso, sono

e lazer. Para Greene, o problema-chave não é que se falhou em

considerar isto ou aquilo como importante, mas que tem-se

falhado em considerar a totalidade da vida como importante.

Ter uma mentalidade dualista além de não fazer jus à

revelação bíblica e ao Evangelho de Cristo traz em si uma série de

implicações teóricas e práticas negativas denunciadas por Padilla

(2009). Uma é a distinção entre clero e laicato que está na raiz

do problema de muitos cristãos “domingueiros” que frequentam

nossas igrejas, e outra é a apresentação de um evangelho deficiente,

em que Deus estaria apenas interessado em “salvar almas” como

se a obra de Cristo na cruz visasse apenas à reconciliação do ser

19 Ibid., p. 134.20 Francis SCHAEFFER. Op. Cit., p. 26.

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humano e Deus, e não a reconciliação de todas as coisas.21

As implicações acima são consideráveis e merecem um

estudo à parte. Mantendo o foco na questão da mentalidade

cristã, vemos que esse dualismo perpetua o anti-intelectualismo

já discutido anteriormente, pois a razão não participa da fé

e vice-versa. Frequentemente, a falta de impacto da Igreja é

atribuída a fatores ideológicos externos como o surgimento da

pós-modernidade, ou econômicos como o poder do consumismo,

ou culturais promovidos pela mídia e pela indústria do

entretenimento. Porém, para Greene

o problema com esse diagnóstico é que ele tende a sugerir que o evangelho de Jesus crucificado e ressurrecto é impotente para resistir aos ataques violentes dessas forças externas, e não tem credibilidade para oferecer uma alternativa transformadora. Em outras palavras, nós culpamos o mundo pela deterioração dos valores cristãos no mundo, e talvez não nos perguntamos até que ponto nós somos responsáveis.22

Essa dicotomia tem levado à falta de envolvimento cristão

nas esferas tidas como “seculares” ou “mundanas”, e, ao fazermos

isso, estamos abrindo mão do nosso chamado para sermos sal e luz

do mundo, promovendo inconscientemente e involuntariamente

a secularização tanto da sociedade como da Igreja. Na análise de

McDowell & Beliles:

O século XX provou ser o maior período de apostasia e secularização da cultura americana. [...] O triste é que isso não aconteceu porque o paganismo suplantou o pensamento cristão. Isto aconteceu simplesmente porque os cristãos começaram a aceitar uma premissa teológica errônea [...] que lhes ensinava

21 Colossenses 1:20.22 Mark GREENE. The Great Divide, p. 7.

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a se separar das coisas que eram ‘mundanas’ ou não espirituais e que seria desperdício de tempo se envolver com tais coisas porque tudo só iria piorar até a vinda de Cristo.23

Essa realidade precisa ser contraposta com uma premissa

teológica correta de santidade integral e do envolvimento do

cristão em todas as esferas da vida. Essa conexão pode ser vista na

interpretação de Greene sobre a santidade no livro de Levítico.

Ele diz que:

A santidade se manifesta em como vivemos nossa vida no mundo material. Tem a ver com controle de doenças (Lv 12-16); relacionamentos piedosos (Lv 18); pesos e balanças honestas (Lv 19:36); falar a verdade, evitando a maledicência (Lv 19:11 e 16); assegurando que os pobres tenham alimentos (Lv 19:9) - fazendo tudo isso para a glória de Deus.24

3. A ESTRUTURA INTEGRAL DO MOTIVO-BASE

REFORMACIONAL

A solução para o problema do dualismo é a redescoberta de

um cristianismo integral que molda todas as atitudes e atividades

daqueles que se propõem a serem verdadeiros discípulos de

Cristo, capacitando-os a pensarem de forma cristã, mesmo que

fora do contexto religioso. Esse era o caminho dos reformadores

que entendiam que “o cristianismo monástico não poderia ser

superior ao cristianismo do sapateiro, porque não havia uma esfera

ideal ‘superior’ à esfera ‘natural’”.25 Greene também concorda ao

afirmar que

23 Stephen McDOWELL & Mark BELILES. Libertando as Nações: princípios bíblicos de governo, educação, economia e política, p. 161.24 Mark GREENE. The Great Divide, p. 16.25 Guilherme de CARVALHO, Op. Cit., p. 137.

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Uma perspectiva integral nos capacita a ver que cada contexto que nós nos deparamos não é apenas um lugar para mostrar um caráter cristão - modelar o jeito de Jesus - mas também um lugar para ministrar aos outros, para ser um porta-voz da verdade, da justiça e do evangelho, para fazer discípulos e para fazer cultura - modelar a maneira como as coisas são feitas26.

Assim, o motivo-base reformacional, que é centrado na

direção do Espírito Santo, rejeita tanto o dualismo quanto o

humanismo autônomo dos motivos-base apóstatas e faz das

Escrituras a sua autoridade final, embora não única. Graham

(2009) destaca que ao utilizar-se a Bíblia dessa forma, deve-se levar

em consideração que ela não deve ser usada de forma simplista

como uma fonte de textos-prova sobre os mais variados assuntos,

mas sim como a “base para construir uma estrutura de pensamento

que informa e orienta nossa investigação sobre qualquer assunto”.27

Schaeffer acrescenta: “Com base nas Escrituras, embora não

tenhamos conhecimento completo [porque ela não é exaustiva],

podemos alcançar um conhecimento verdadeiro e unificado”,28

a fim de desenvolver essa estrutura ou sistema. Ele ainda afirma:

Admiro o sistema bíblico visto como sistema. Embora possamos não gostar da conotação do termo sistema, pois que se afigura um tanto frio, não quer isto dizer que o ensino bíblico não constitua um sistema. Tudo recede ao princípio e, dessa forma, o sistema se reveste de beleza e perfeição únicas, uma vez que tudo se acha sob o ápice do sistema. Tudo começa com a espécie de Deus que está ‘presente’. Este é o princípio e o ápice de todo, tudo daí defluindo de maneira não contraditória.29

26 Mark GREENE. Op. Cit., p. 22.27 Donavan GRAHAM. Teaching Redemptively, p. 14.28 Francis SCHAEFFER. Op. Cit., p. 20.29 Ibid., p. 24.

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De acordo com Graham (2009) e Klassen (2006), é possível

elaborar uma estrutura ou sistema de pensamento cristão a partir

da identificação de temas, conceitos e doutrinas encontrados

nas Escrituras. Assim, a estrutura do motivo-base bíblico se

caracteriza pela existência de quatro momentos que trazem

diferentes contribuições para a formação de uma mentalidade

cristã sobre qualquer assunto. Estes quatro momentos serão

analisados a seguir.

3.1. A Criação e os reflexos do Criador

O motivo-base bíblico reconhece que todo o cosmos foi

criado por Deus e é, portanto, intrinsecamente completo e bom,

refletindo o caráter do Criador de modo que o universo tem

uma estrutura, uma ordem e uma unidade mesmo em meio à

diversidade. Graham (2009) argumenta que a criação passou por

três estágios: (1) Deus criou a “matéria” a partir do nada, (2) Deus

organizou essa matéria caótica de modo que a natureza funciona de

modo harmonioso, demonstrando que há uma ordem normativa

no universo e (3) Deus continua a governar sobre a sua criação e

recrutou os seres humanos para cuidarem dela como mordomos,

refletindo assim a ordem normativa ou “lei” estabelecida por

Deus. Essa lei ou ordem normativa se manifesta de duas formas:

nas leis da natureza: (gravidade, movimento, termodinâmicas,

etc.) e nas leis da cultura e sociedade. Essas leis ou ordem foram

estabelecidas por Deus para que indivíduos e instituições sociais

se relacionem e funcionem de modo que Deus seja glorificado.

A Criação esclarece que além da revelação especial de

Deus através das Escrituras, temos a revelação geral de Deus na

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natureza, o que assinala que essas leis da natureza e da cultura

e sociedade podem ser discernidas através da integração entre

o que descobrimos através do estudo das Escrituras, bem como

o que descobrimos através da pesquisa, observação e estudo da

natureza, da cultura e da sociedade. Se é verdade que o Espírito

Santo nos guiará em toda a verdade (e não apenas à verdade

“religiosa”), então isso significa que Ele pode nos guiar e corrigir

as interpretações e compreensões não só do ensino bíblico, mas

também dos estudos científicos.

Partindo do conceito de Criação, vê-se primeiramente que

Deus está envolvido com tudo o que os seres humanos fazem e/

ou pensam, porque Deus criou todas as coisas, visíveis e invisíveis

para Ele,30 e tudo era bom.31 Segundo, isso significa que todas as

coisas têm um propósito e uma direção estabelecida por Deus,

sendo que um desses propósitos é revelar a Si mesmo e o Seu

caráter,32 mesmo que, devido à finitude humana, não seja possível

apreender Deus plenamente. E, finalmente, entende-se que todas

as estruturas da criação são boas, incluindo a ordem normativa

que Deus estabeleceu para a cultura e a sociedade.

Na prática, isso implica que a natureza deve ser tida em alta

estima, pois mesmo caída, ela ainda reflete o caráter do Criador.

Pensando mais especificamente na questão de uma mentalidade

cristã, a criação ensina que mesmo o estudo de material não-

bíblico deveria revelar reflexos de Deus. Embora a ciência não

possa ser vista como autônoma, interpretando as Escrituras,

30 Romanos 11:36; Colossenses 1:16; Hebreus 2:10.31 Gênesis 1:31.32 Romanos 1:19-20; Salmos 19:1-4.

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98 Raphael Alexis Haeuser, Vol. 14, n.27, jun.2013, p. 83 - 104 | Via Teológica

ela possibilita um entendimento melhor de vários aspectos do

caráter, da criação e da atividade de Deus. Nesse sentido, é possível

aproveitar criteriosamente os produtos culturais de não-cristãos,

pois eles também foram criados à imago Dei e são receptores da

graça comum de Deus, evidenciando capacidades e talentos que

mostram a glória de Deus, ainda que não reconheçam a origem

divina dos seus dons.

3.2. A Queda e as distorções do pecado

A Queda não trouxe alienação apenas para o ser humano,

mas para toda a criação, fazendo com que tudo ficasse sujeito à

poluição e perversão, afetando também a cultura e a sociedade

com as suas instituições. As coisas já não são mais boas como

eram quando Deus as criou, pois não estão mais no seu estado

original. Logo, presumir que tudo ainda é bom inevitavelmente

levará à decepção e à perda de todos os padrões de bondade. Por

outro lado, presumir que tudo está errado com a criação pode

levar ao desespero total.

O motivo-base bíblico propõe que o pecado não tem existência

autônoma ou própria, pois tudo o que é capaz de fazer é distorcer

e corromper a criação, mas jamais destruir. Ou seja, as estruturas

que Deus criou ainda são boas, mas agora, via de regra, movem-

se em direção contrária a Deus, seguindo o espírito da apostasia.

Graham exemplifica isso bem quando diz que a prostituição é uma

distorção do sexo, mas isso não torna o sexo em si em algo maligno.

“Um relacionamento doloroso ainda é um relacionamento, uma

escola ímpia ainda é uma escola, um governo corrupto ainda é um

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99Via Teológica | Raphael Alexis Haeuser, Vol. 14, n.27, jun.2013, p. 83 - 104

governo, adoração idólatra ainda é adoração”.33

Graham sublinha que quando se confundem estrutura e

direção, corre-se o risco de eleger “alguns aspectos da criação de

Deus como sendo vilões da vida humana em vez de resultados

da incredulidade e rebeldia humana”.34 Além disso, como a

direção das coisas é oposta a Deus, “não é possível pensar a fé a

partir de um sistema apóstata, sintetizando doutrinas cristãs com

perspectivas anticristãs”.35

A maioria das pessoas consegue ver as distorções mais óbvias

da boa criação de Deus, embora elas nem sempre vão admitir que

o pecado seja a fonte dessas distorções. Essas distorções incluem

usar coisas boas para fins egoístas, usar parte da verdade como

se fosse toda verdade, ignorar verdades inconvenientes e esperar

que criaturas consigam realizar o que somente o Criador pode. A

queda exige discernimento porque ao mesmo tempo em que não-

cristãos podem fazer contribuições valiosas por serem portadores

da imago Dei, pressuposições centradas no ser humano, em vez de

em Deus, podem causar falhas na metodologia e nas conclusões

desses pesquisadores.

3.3. A Redenção e as revelações das Escrituras

A redenção de toda criação é alcançada pela obra de Jesus

Cristo, reconstituindo o propósito original de Deus para o ser

humano e o restante da criação, já que o termo traz a imagem

da recuperação de um objeto perdido ou o resgate de uma

33 Donavan GRAHAM. Op. Cit., p. 30.34 Ibid., p. 30.35 Guilherme de CARVALHO. Op. Cit., p. 142.

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100 Raphael Alexis Haeuser, Vol. 14, n.27, jun.2013, p. 83 - 104 | Via Teológica

pessoa sequestrada. De acordo com as Escrituras, Deus sempre

esteve envolvido com a sua criação caída no sentido de trazê-la

de volta para si.36 A vida, morte, ressurreição e ascensão de Jesus

confirmam o amor do Pai bem como Sua completa provisão para

nossa restauração com Ele mesmo e com Seus propósitos para

nossas vidas.37 Assim, Cristo não veio apenas para libertar o ser

humano da escravidão e da cegueira do pecado para que ele possa

fazer a vontade de Deus, mas também para que ele possa ver Deus

na Sua criação.

Isso tem alguns desdobramentos importantíssimos para

a construção de uma mentalidade cristã. A base está no fato de

que não há autonomia humana, e, por isso, a resposta para as

distorções do pecado nunca é encontrada nos esforços humanos,

mas numa mudança de coração do ser humano, que só pode

ser realizada pelo próprio Deus. Além disso, há uma diferença

qualitativa entre o ser humano e Deus. Como Deus é tão maior

do que o ser humano, mesmo que este tenha sido feito à Sua

imagem, ainda é dependente da Sua autorrevelação nas Escrituras

e pelo Espírito Santo. Nesse sentido, as pessoas redimidas podem

ver a realidade terrena da perspectiva de Deus, pois têm o Espírito

que as capacita, corrige e orienta. O cristão não está abandonado

aos seus próprios recursos para determinar o que é um reflexo de

Deus e o que é uma distorção. Isso está revelado nas Escrituras.38

Pensando mais praticamente, verifica-se que soluções

externas para restringir o mal são úteis, mas ineficientes para

36 João 6:44.37 João 3:16; Hebreus 4:15.38 1 Tessalonicenses 5:21.

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101Via Teológica | Raphael Alexis Haeuser, Vol. 14, n.27, jun.2013, p. 83 - 104

mudar o coração das pessoas.39 As verdadeiras soluções lidam com

a presença real do mal no interior do ser humano, bem como

com a influência destrutiva de Satanás no mundo. Por isso, as

pessoas redimidas são chamadas a “dar testemunho do caráter de

Deus na cultura, servindo como placas apontando para o reino”.

Olhando a questão dessa perspectiva, a missão da igreja não é

apenas “evangelística”, mas muito mais integral.

Como afirma Carvalho:

A missão da igreja é, ao lado de Cristo, realizar o plano original de Deus numa nova criação e, esse propósito deve manifestar desde já na cooperação da igreja com Cristo para o desvelamento das riquezas que ele pôs na criação, por meio da atividade cultural em todos os níveis da vida, a partir da fé no evangelho.40

3.4. A consumação e as aplicações dos propósitos

Enquanto que algumas discussões sobre o motivo-base

reformacional e integração bíblica mencionem os quatro

elementos da nossa estrutura, outras apenas mencionam três.

Aqueles que não mencionam a consumação geralmente incluem

as ideias básicas da consumação dentro da redenção e da criação.

Para Klassen, porém, discutir a consumação separadamente

tem a distinta vantagem de abordar claramente o que acontece

depois que uma pessoa torna-se cristã. O perigo de entender a

conversão como o fim de tudo cria “uma mentalidade centrada

no ser humano, como se resolver o problema do pecado humano

fosse o único papel de Deus no universo”.41 A consumação, por

39 Colossenses 2:20-23.40 Guilherme de CARVALHO. Op. Cit., p. 128.41 Harold KLASSEN. Visual Valet: personal assistant for christian thinkers and teachers, p. 19.

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102 Raphael Alexis Haeuser, Vol. 14, n.27, jun.2013, p. 83 - 104 | Via Teológica

outro lado, remete à reflexão nos propósitos eternos de Deus

que existem desde antes da criação e continuarão ao longo da

eternidade. Ao fazer isso, adota-se uma perspectiva da realidade

que está centrada em Deus.

Sendo assim, quem quer pensar de forma cristã precisa

identificar as leis ou a ordem normativa presente na criação a

partir da estrutura do motivo-base reformacional e, então, aplicá-

las ao cotidiano. Isso implica (1) que o cristão, como filho de

Deus, não deve rejeitar nenhuma área de pesquisa da criação

porque todas as áreas revelam algo sobre Ele, produzindo uma

intimidade maior com o Deus-Pai; (2) que o cristão, como membro

do corpo de Cristo, é dotado pelo Espírito Santo com diferentes

motivações, papéis e resultados ministeriais a fim de realizar

propósitos de Deus no mundo e (3) que o cristão, como uma

pedra viva do Templo do Espírito, é lembrado que a consumação

dos propósitos divinos sempre envolve uma resposta de gratidão,

louvor e adoração.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para ir em direção a uma mentalidade cristã, é preciso

reconhecer as conexões entre o que a Bíblia tem a dizer e o que

cada ser humano é, sabe e faz como indivíduo. Pensar de forma

cristã não é sobre encontrar a única forma cristã de se lidar

com determinado assunto, mas sobre encaixar o conhecimento

humano, mesmo o não-religioso, dentro da estrutura do motivo-

base reformacional. Essa estrutura certamente não responderá

todas as perguntas pertinentes a essa ou àquela área de

conhecimento, mas fornecerá um ponto de partida para a reflexão

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103Via Teológica | Raphael Alexis Haeuser, Vol. 14, n.27, jun.2013, p. 83 - 104

bíblica sobre a realidade, bem como uma forma de avaliar e filtrar

perspectivas não-cristãs sobre os mais variados assuntos.

Um exemplo rápido é suficiente para ilustrar a importância

dessa perspectiva. Se o trabalho for analisado a partir de uma

perspectiva dualista, será perpetuada a dicotomia clero-laicato

ou uma falsa hierarquia de santidade que entende que “pessoas

realmente santas se tornam missionários, pessoas meio santas

se tornam pastores, e as pessoas que não são muito próximas

de Deus arrumam um emprego”.42 Por outro lado, uma visão

integral enxerga o trabalho como algo bom porque reflete o

caráter de Deus, o primeiro trabalhador (Criação). Porém, não

podemos nos esquecer de que o trabalho pode se tornar um

ídolo, ser abusivo e opressivo, ou até mesmo financiar crimes,

vícios, etc. (Queda), mas isso não o torna mau em si, pois ele

pode ser redimido através do discernimento do Espírito sobre

como proceder em cada situação (Redenção). Por fim, o motivo-

base bíblico nos lembra que Deus usa todas as coisas, inclusive

um emprego aparentemente pouco espiritual, para a realização

dos seus propósitos eternos (Consumação).

Assim, demonstrou-se que essa forma de pensar tem

implicações revolucionárias à medida que pode ser facilmente

aplicada a outras áreas do conhecimento humano, gerando

transformação pessoal e benefícios sociais duradouros.

REFERÊNCIAS

CARVALHO, Guilherme de. O dualismo natureza/graça e a influência do humanismo secular. In: LEITE, Cláudio. A. C.,

42 Mark GREENE. Op. Cit., p. 11.

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