Mendes Richter
description
Transcript of Mendes Richter
MULTICULTURALIDADE E INTERDISCIPLJNARIDADE 85
Capít:ulo 7
MULTICULTURALIDADE E INTERDISCIPLINARIDADE
lvone Mendes Richter
Dais enfoques importantes presentes hoje no ensino das artes no Brasil, a multiculturalidade e a interdisciplinaridade, apresentam múltiplas facetas e interpreta~óes que vém preocupando os arte-educadores brasileiros.
Torna-se necessário, inicialmente, buscar urna conceitua~áo dos termos que vém senda utilizados em rela~áo a esses dois enfoques. No que se refere a interdisciplinaridade, o enfoque tem estado sujeito a diferentes denomina~óes, especialmente a partir dos prefixos utilizados. Assim, o préfixo "multi"' no termo "multidisciplinar"' estaría indicando a existencia de um trabalho entre muitas disciplinas, sem que estas percam suas características ou suas fronteiras. Já o prefixo "ínter" vai indicar a inter-rela~áo entre duas ou mais disciplinas, sem que nenhuma se sobressaia sobre as outras, mas que se estabele~a urna rela~áo de reciprocidade e colabora~áo, com o desaparecimento de fronteiras entre as áreas do conhecimento.
Os trabalhos interdisciplinares sáo, muitas vezes, realizados sob a forma de projetos. Trabalhar com artes de urna for-
86 INQUI ETA<;:ÓES E MUDAN<;:AS NO ENSINO DA ARTE
ma intE:~rdisciplinar tem se mostrado muito importante, especialmente para projetos em ecologia e rneio ambiente. Náo se trata de tornar as outras disciplinas e integrá-las as artes, nern colocar a Arte a serviºo das outras disciplinas. Ivani Fazenda (1992: 8) dizque a interdisciplinaridade é antes de tuda urna questáo de atitude, "urna atitude diferente a ser assurnida frente ao problema do conhecirnento, ou seja, é a substituiºáo de urna concepºáo fragrnentária para unitária do ser humano".
Outro termo utilizado é "transdisciplinaridade" que, corno indica o prefixo, busca urn rnovirnento de través, de perpasse entre as diferentes áreas do conhecimento. Esse enfoque é tarnbérn chamada de "transversalidade". No Brasil, os Parámetros Curriculares Nacionais apresentarn a questáo da transversalidade ao propór Ternas Transversais a serern trabalhados nos currículos escolares da Educaºáo· Básica. A transversalidade proposta supóe que os ternas sejam objeto de estudo ern todas as disciplinas.
Urn dos ternas transversais propostos pelos PCNs é o da Pluralidade Cultural. Os termos "pluralidade cultural" e "rnulticulturalidade" sáo vistos corno sinónimos, senda utilizados para indicar as múltiplas culturas presentes hoje nas sociedades complexas. No entanto, é a denorninaºáo de "rnulticultural" que se encontra consagrada na literatura, tanto na área da Educaºáo quanto da Arte-Educaºáo, pois é desta forma que a questáo da diversidade vern senda estudada e discutida há rnuito ternpo. Atualrnente, utiliza-se o termo "interculturalidade", que implica ern urna inter-relaºáo de reciprocidade entre culturas. Esse termo seria, portanto, o rnais adequado a urn ensino-aprendizagern ern artes que se proponha a estabalecer a inter-relaºáo entre os códigos culturais de diferentes grupos culturais. No entanto, convivernos hoje corn todas essas denominaºóes, aparecendo corno sinónirnas.
O rnulticulturalisrno no ensino da Arte tern chegado ao Brasil por rnuitos carninhos, vindo de preocupaºóes e discussóes que se iniciararn nos Estados Unidos e na Europa, a partir dos problemas sociais que se acurnulam naquelas sociedades. Corno essas preocupaºóes relacionavam-se princi-
MULTICULTURALIDADE E INTERDISCIPLI NARIDA DE 87
palrnente cornos conflitos étnicos presentes naqueles países, a educaºáo rnulticultural enfocou especialmente esse aspecto. No entanto, tal enfoque foi senda ampliado, tendo ern vista as numerosas culturas presentes ern toda a sociedade, baseadas ern aspectos corno religiáo, idade, genero, ocupaºáo, classe social etc. senda que a questáo étnica é apenas urna das características de urn indivíduo. Muito recenternente, tarnbérn a educaºáo especial vern senda incluída na visáo rnulticultural, considerando-se os portadores de necessidades especiais corno participantes da diversidade cultural, por meio de culturas especiais. ·
Ana Mae Barbosa vern, há rnuitos anos, batalhando pelo desenvolvirnento, ern nosso país, de urna visáo rnulticultural para o ensino da Arte. Sáo inúrneros os artigos em revistas nacionais e estrangeiras ern que a autora aborda o assunto, tanto apresentando problemas e carencias quanto apontando soluºóes. Ern seu livro A Imagem no Ensino da Arte (1991: 24), marco fundamental da nova abordagern metodológica que vern senda proposta ern nosso país, Ana Mae salienta "a idéia de reforºar a heranºa artística e estética dos alunos corn base ern seu rneio ambiente". No entanto, ela imediatarnente adver-. te que se essa proposta "náo for bern conduzida, pode criar guetos culturais e rnanter grupos amarrados aos códigos de sua própria cultura sern possibilitar a decodificaºáo de outras culturas".
A rnesrna autora dedica todo urn capítulo de seu livro Tópicos Utópicos para a discussáo da rnulticulturalidade que precisarnos para o Brasil. Criticando a proposta de transversalidade presente nos PCNs, Ana Mae declara: "Entretanto, rnais do que terna de estudos de todas as disciplinas, as questóes de rnulticulturalidade só seráo resol vidas pela flexibilizaºáo de atitudes e valores. Por outro lado, náo se trata de problema transversal, mas básico para urna educaºáo que se configure corno democrática" (1998: 89) .
A Antropología descreve a educaºáo rnulticultural corno o processo pelo qual urna pessoa desenvolve competencias ern múltiplos sistemas de perceber, avaliar, acreditar e fazer.
________________________________ .................... ...
g,¡sa visao tcm a ver com dois concoitos antropológicos fun:lamcntais: cducn~o e cultura. Para os antropólogos, a edu:a~o refero·so nos processos fonnais o i nformais por meio :los quais o cultura ó transmitida aos Individuos. A escola é ¡omento um dcsscs processos. A educa~úo, no cntauto, é unl>ersal, pois ó a experiencia básica do sor humano para aprenier a ser compotonto na sua cultura.
A educo~úo mullicultural. vista dcssu forma, en vol ve o :lesenvolvimonto de compeléncias cm muilos sistemas cul:urais. Ela rcconhece similaridades entre gnopos étnicos ao .nvés de salienlar as diferen~as, promovendo o cruzameoto :ultural das fronteiras entre as culturas. sojam olas quais fo:em. e nao a sua permanéncia. Justamente porque o ser bu:nano é capaz de múltiplas compel~nclas cullurais, a lroca ;ultural, asshn como a troca de códigos, nao requer o aban:lono de identifica~;oes primeiras do seu grupo cultural, como ~ proocupa~llo do algumas minorios, nom !ovará inevitavel:nente h ruptura da pcssoa com seus sistemas de valores.
Os educadores devem criar ambientes do npreodizagem ~ue promovom a otrabetiza~áo cultural do seus alUllos nos :liferenles códigos culturais, e condu•.am 6 compreensáo ge:.éricn dos proccssos cullurais básicos o ao reconhecimento :lo contexto mncrocultural em que a escoJa o a familia esliio .morsas.
No en tonto. a educa~o multiculturol náo é nem moral:nente nem politicamcnte neutra, mas ó t>a rte de urna ten· :lencia reformista mais ampla que objetiva promover a igual· :lado por intorm6dio dn mudan9a educacional. Sua caracte:lstica principal rosido cm considerar o divcrsidade como u m :ecurso e umo for~;a para a educn~;üo. em vez do um proble· TOa. lslo cnvolve o rejei~o daquclas dcrivo«6es do curr!culo 1ue considoram o conhecimento "real" como apoiado em um :onceito único do cducn~o. que é de fato resultante de urna :radi~o particular, masculin.a e européio.
O problema para a educa~ao multicultural reside cm :lesenvolvcr um esquema conceitual transcultural cuja ex· ?ressáo na ¡Jrót icn educacional demonstro que o c:onhecimcnlo
.. é urna propriedado comum de todos os povos e de todos os grupos humanos. Negligonciar alguma parte dessc problema resulta, de um lado. cm um relativismo que afosta quolquer possibilidade de comprccnsáo inlercullural. ou, polo outro lodo. urna suporficinlidado que enfatiza o rolclórico ou o bi· ?.arro.
Precisamos ter cuidado para que a aplicac6o do ens ino multicullural cm oosso pafs náo venba carrcgada do inOulincias norte-americanas ou ouropéias. lraduzindo urna realidadc que náo é a nosso. Para tanto. é necessário. om prlmciro lugar. conheccr as origons do ensino multicultural, como ele se apresenla naqueles países. quais suas caractcrfslicns e sua evolu~o. e contra~r o isso o conhecimcnto do nossa realidado, extremamente complexa em seu amálgruno social. Ana Mae Barboso. embora núo negando a importlincia do con he· cimento e da análiso do processo de doseuvolvlmonto por que passou o enfoque do oduca9iio mullicultuo·ol nos paises do Primeiro Mundo, lovnnto urna quesláo extremomontc pertinente para o cnsino multicultural em nosso pa(s. Olz e la:
"Os esludos de multlculturalidade, divcrsldadc cultural e até de história cultural produ:ddos pelo Primciro Mundo nAo aju· dam muito o Tnrcolro Mundo porque sao rcsposto• a probloauu da sua soclodnde, o quo é absolulamcoto justificado. O Primeiro Mundo nAo cslá dando importAncia paro precooceito socia) nos scus o.siUdos sobre muJticuJturalidade l)()rque esta é uma varitivcl significante somen•e no Tcrcciro Mundo"'. (T6-picos Utópicos. 1998: 87)
Portanto, ao ubordHr o questiio da plurolldude cultural cm nosso país, náo podemos nos limitar ao estudo do riqueza do nossa diversidado cultura l. tantas vezes decantada, mas precisamos levantar. tombóm, o problema da dcsiguoldode social e da discrimina~o. Por muito lempo, acobcrtoda pelo "milo das tres ra!;OS". a socicdado brasileira ncgou a discrimi· na~o. lomando-a a indo mais cruel. pelo fato de núo sor ex· pllcita. Hoje. precisamos rever esta situa~o e tentar reverter csse quadro. Existo uma grande diferen~a entro o diversidade cultural, fruto da diforoncla~áo entre as culturas o dn slngu·
JO
laridade de cada grupo social, e a desigualdade social, fruto da rela~o de domina~áo existente em nossa sociedade. Precisamos desenvolver urna consciéncia cr!tica de nossa sociedade, e buscar. por meio da escota, encontrar caminhos que nos conduzam a urna situa!fii.O social mais justa.
Um educador que tem tido grande influencia sobre a educa9áo multicu ltu.ral em nosso pals é o canadense Peter MeLaren, cujos estudos sobre multiculturallsmo crítico, e mais recentemente, multicul turalismo revolucionário, destacam as possibilidades abertas pela educa!;áO mulücultural a partir de urna concepc;áo critica do mulliculturalismo. Para ele. somente a resistencia crllica a dominac;áo cultural pode conduzlr o multicuJturalismo ao seu verdadeiro caminbo de humani.zac;ilo e isso se dará por interméd io do diálogo e da paz. Da mesma forma, a educac;i\o mullicuJtural e intercultural deve familiarizar os al unos com as realiza9oes de culturas náo dominantes, de maneira a colocá-lo em contato com outros mundos. e levando-o a abrir-se para a riqueza cultural da humanidade. "O pluralismo. como filosofia do diálogo. deverA fazer parte integrante e essencial da educac;áo do futuro" (1997: 16). Para ele, os sistemas existentes de diferen!;as. que organ izam a vida social de acordo com as eslruturas de domina~;áo e subordina!;áO devem ser reconstruidos.
Um dos aspectos do multiculturalismo pouco enfatizado nos Parámetros Curriculares Nacionais é a questáo de genero. No en tanto. essa questáo apresenta-se da maior importíincia quando pensamos no ensino da Arte, pois os padxóes estéticos familiares que as crian!;aS trazem de casa para a escota sáo esscncialmente construidos a partir dos pad.róes estéticos rentininos. Pelo rato de que tu do o que se relaciona com o enreilar. o tornar agradável, o fazer especial. ero nossa sociedade, foi seudo transformado em un>a preocupa~iio exclusivamente feminina. e, portento. de certa forma subalterna as questóes mais inlpOrtantes e pragmáticas do ganhar a vida. tarefa predominantemente masculina- runda hoje. o trabalho da mulher é considerado como inferior. em qualidade e valoriza!;liO finaoceira. pois essa distor!;ao do papel feminino é ai nda preponderante e m nossa socicdade.
.. Essa questáo se reproduz no ensino da Arte na escoJa,
que usual~ente aparece ca.rregado dos códigos begeml\nícos norte-amencanos e europeus. com urna visao distorcida de qu~ a Arte di~a erudita, ou importante. é feita por brancos, do sexo. mascuhno, europeus ou de origem européia, segundo os canones form3ls da modermdade. Ficam usualmente excluidas todas as man.ifesta9óes artlsticas nao condizentes com esses padxóes. ou relegadas as categorías de folclore arte po-pular, arte indigena e tc. '
No nosso entender, o ensillo da Arte deve se caracterizar por ~ma educa?ío predominantemente estélica, em que os pad.roes c~ltu.raJS e estéticos da comunidade e da familia se¡am res!-'e•tados e inseridos na educac;áo, aceitas como códig?s bá.s•cos ~ partir dos quais deve-se construir a compreensao e_ •rnersao. em o utros códigos cultu rais. Trabalhar com a
JJll;ll!icu.IWralidade no eosino da Arte supóe ampliar o conce• to de ~te, de um sentido mais restrito e excludente, para uro sentido ma1s amplo, de experiéncia estética. Somente desta fo~~a é posslvel combater os conceilos de arte ori undos da v¡sao das artes v isuais como "betas artes", "arte erudita•' ou "arte maior", ero conLTaposi~áo A idéía de ·•artes meno· res" ou "artes populares". A própria denominacáo de folclore ~ artesan~~o ¡á ve":' ca.rregada de preconceito, pois o termo folkclore ro1 uliJ.IZSdO para representar a arte ''do outro" d~quele que náo tinha acesso as camadas maís eruditas da so: Cledade, e O termo artesanaiO tem s ido vinculado a idéia da reproducáo sem cria~o. ou sem urna maior perfei!;áo técnica. -
A tendencia, no ensino da Arte. 6 reproduzir conceitos de Arte Modernista largamente aceitos nos meios académicos. Este enfoque exclui todas as Artes cham adas "menores", e coro elas toda a possibilidade de um trabalho mullicultural em Arte. Até muito recentemente, historiadores, crlticos e professores de Artes visuais tem sido relutantes em estudar a~ arte_s p~pt~!ares. o folclore e o artesanato, que, por de(i.oi~ao, nao sao Arte e rud1ta" nem "dcsign".
Consideramos que o universo cultural da comuoidade em que a escota está inserida precisa ser estudado pelo p·rofessor, para que ela possa aluar nesse contexto de tnaneira
" eficiente o niio invaslva. Especialmente o professor de artes precisa conheccr e buscar compreender os códigos visuals e estéticos presentes. do maneira a ulili>.:á-los como scu referencial e ponto de partida, construiD do a partir dala abor· dagem metodológica o a eslrutura de conleúdos a serem tra· balbados. Para urna compreensAo desses padróes é importante verificar como so compóe étnica e socialmente o comunidade escolar, o quanto ola é beterogenea, quais sous pontos de enconlros e dcscnconlros.
Considerando que cabo l mulher o papel de esUmulodort< estética na familia. scrúo seus padróes de referfincia estótica aqueles que InOuonclarAo os valores esté ticos que sorfio trazidos para a oscolo polos ostudantes. Existem já muitos Lrabalbos referentes 11 quostAo da mullicltlturalidade acoutecoudo em nossas escolas. mas ó preciso ter cuidado com o cnfa«uo multicltltltfal o sor u tilizado. Simplesmente adicionar informa<;óes sobro nutras culturas, o cbamado multicu llltfalismo aditivo, nAo afoto a supremacía do código dominante, sondo por vezes maís projudicial do que positivo.
Trabalbar com a Arte Contemporánea pode ser de grande uUlidado, cm fun~o da relevAncia desta Arte para a ArtoEduca~o intercullural, conformo salientam Cahan o Kocur (1996). pois, nos últimos anos, os(as) artistas vém demons· trando urna grande proocupa~o com a quesláo das díforcnt;as. questíonando as visóes monoiiUcas e begemonicos da Arte em nomo do d ivcrsidode, da mulUplicidade o da heterogeneidodo do perspectivas.
Referencias bibliográficas
BARBOS A. Ano Moo. Tópicos Utópicos. Bolo Horizonte. C/Arto. 1996. __ .A lmagcm no Ensino do Arte. SAo Pauto, Po.rspcc;livo: Porto
Alegre. ~·undo~M IOCIIPE, 1991. CAHAN, Suson: KOCUR. Zoya (cd.). Contemporory Art ond
MuJUculturol Educotion. Ncw York, Tbe Museum of Contem· ponny Art. 1996.
.. f AZENDA. lvani. Intcgro~o a lntorchsci'plinaridode no F::nsino Bra~
sileiro: Efelividode ou ldiJOIOfliO. Sao Pauto. Edi~ Loyola 1992. •
MASON, Rache!. lssuos in Multiwlturo/ M Educolion: a Personal View {Por uma Arto--Edue3CAo Multicultural: urna Ví.sáo Pes· soal). Campinus, Ed. Mcrc.ado do Letras. (No prelo).
MeLAREN. Peter. A1ulüculturollsmo Rovolucionório. Porto Alegro Artes Médicas Su l. 2000. '
--· Mulliculturolismo CrWoo. Sfto Pauto. Cortez, 1997.