Maré vaza
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…Maria! Maria, não me ouves?
- Ela saiu – disse Pierre, o francês – acho
que foi ter com o Carlos, ao museu.
O Carlos era um algarvio que estava há mais
de seis anos em Madrid. Diziam que ele tinha sido
PIDE e que se tinha posto oportunamente na
alheta, directo para Amesterdão. Aí orientou-se
bem, meteu-se nos negócios de heroína e coca e
veio para Madrid controlar uma parte dos negócios
do gang a que pertencia. Tinha a melhor branca
que circulava em Madrid e só consumia por
desporto, erva e coca. Estava lá havia mais de
cinco anos e nunca tinha tido problemas com a lei.
Tinha um fraquinho pela Maria e ela fazia-lhe uns
favores sexuais a troco de produto. Outras vezes
também lhe fazia uns transportes, ou entretinha uns
clientes importantes. Era pau para toda a obra, mas
o marafado gostava dela, ainda que não
conseguisse deixar de se aproveitar da coitada.
- Ao museu? Porra, deu-lhe agora p’rá
cultura, ainda por cima a estas horas! Já passa da
meia-noite, não?
- São três e meia, conho, e ela foi ao museu
do jambom.
- Do chamon?!
- Não, mon petit gigante, do jambom, do
presunto. Porra, há quase um ano que estás em
Madrid e ainda não sabes onde é o museu do
presunto? A esta hora é o único sítio onde podes
encontrar de tudo sem precisares de conhecer
ninguém. Às vezes és mesmo um inocente…então
tu achavas que a esta hora havia algum museu
aberto?
- Pensei que fosse meia-noite, já te disse ó
franciú…
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- E que fosse! Mesmo assim achas que a
essa hora ainda há museus abertos? Porra, meu,
vê-se mesmo que nunca entraste num museu.
- Estás-me a chamar burro?
- Burro, não, mas ignorante és. Quem te
ouvir há-de pensar que em Portugal não há
museus. Alguma vez foste a algum museu lá na tua
terra?
- Vê-se bem que não conheceste o sítio
donde eu vim. Nem o país nem a realidade. Na
minha terra, mesmo que houvesse museus, não
eram para mim nem para os meus.
- Os museus são para toda a gente. Tu não
te armes em oprimido pois eu bem sei que saíste de
lá depois da revolução, bem depois. Vocês os
portugueses, lá porque viveram uns anos de
fascismo pensam que se podem armar em vítimas
para sempre.
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- É o que eu digo. Nunca foste a Portugal.
Até me dá vontade de rir quando tu falas em
revolução. A única coisa que mudou com essa
merda a que chamas revolução foi o facto de a
malta deixar de ser chamada para a guerra no
Ultramar. De resto, digo-te sinceramente, nunca
notei nenhuma diferença por causa da revolução, a
não ser o facto de tudo se ter tornado uma
balbúrdia, onde ninguém mandava em nada,
ninguém era responsável. Mais de um milhão de
retornados, uns cheios da guita, armados em
pobrezinhos e outros sem um tostão, mas cheios de
vontade e capacidade de trabalhar. Não imaginas o
que foi aquele período, ó franciú…acho que nunca
foi tão difícil arranjar um trabalho decente. Sabes
como é, aqueles gajos vinham com uma mão à
frente e outra atrás, despojados de vidas regaladas,
carregados de mulher e filhos e não diziam que não
fosse a que trabalho fosse. A malta que estava lá
há mais tempo acabava por não conseguir
empregos porque todos os patrões davam
preferência a quem tinha experiência de trabalho e,
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justiça lhes seja feita, havia malta muito capaz de
fazer fosse o que fosse, e não lhes caíam os
parentes na lama…
- Os parentes na lama?
- Sim, pá, quero dizer que não se sentiam
envergonhados em pegar num trabalho muito
abaixo das suas capacidades e das suas
habilitações. É uma grande verdade, a malta que
veio de África não tem esses complexos de classe a
que os portugueses da Europa sempre se
habituaram. Deve ser por terem convivido muito
tempo com pretos…
- Com os pretos…És racista, meu?
- Os portugueses não são racistas, a não ser
em relação aos franciús rabetas.
- Va te faire foudre…
- Desculpa, estava no gozo. Mas afinal, o que
é que a Maria foi fazer ao tal museu, a estas horas?
- Acho que foi ter com o Xavi. Ele falou que ia
lá passar para ver se encontrava aquele holandês
de anteontem, para ele lhe orientar mais um bocado
daquela erva fantástica e um bocado de pó.
- Ah, bom, e será que ela ainda demora
muito?
- E eu é que sei…sabes como ela é. Se
encontrar um gajo carregado até é bem possível
que nem venha dormir a casa. Ainda estou para
entender porque é que ela continua a contribuir
para a renda desta merda, nunca cá dorme.
- Sabes como é, guarda aqui a tralha dela e
tem sempre aquela sensação de ter um porto de
abrigo para as necessidades. Tens uma seringa? A
outra já está a ficar toda romba, olha para isto –
arregaçando a manga – acho que a vou deitar fora.
Empresta-me lá a tua.
- Bom, está bom, mas sabes que eu não
gosto de partilhar as seringas com quem calha.
Faço isto contigo porque sei que és um tipo
saudável, e também limpinho, vá! Toma lá, mas
também vou querer. Se quiseres fazer um speed-
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ball arranjo-te um bocadinho de branca para
misturares e dividimos o pico, vale?
Fez que sim com a cabeça. O Pierre era um
maricas fixe, e acabava por ser o único dos seus
companheiros de casa com quem conseguia ter
uma conversa minimamente normal. O Xavi era um
basco que vendia heroína desde que o conhecera,
há cerca de dois anos, e raramente estava em
casa. Quando estava em casa, ou era para dormir
ou para desatinar com tudo e com todos por causa
da porcaria das drogas. Achava que por ser o
fornecedor de todos estava dispensado de arrumar
e limpar a sua parte ou de pagar as contas como os
outros. O nosso homem não sabia se era por ser o
dealer ou se era por ser o único espanhol, sem
contar com a Maria, mas ela era gaja e além disso
era puta. A verdade é que estava a começar a ficar
farto desta casa e começava a apetecer-lhe voltar
para Portugal. Para casa ou para outro qualquer
sítio. Tinha saudades do pão, dum café decente, de
ouvir falar a sua língua nas ruas, de não se sentir
um estrangeiro. Aqui sentia-se meio deslocado,
toda a gente sabia que não era espanhol; a maior
parte pensava que ele era nórdico, pois negava-se
a aprender a falar espanhol direito e porque não
estavam habituados a ver um ibero louro, olhos
azuis e quase dois metros de altura…sentia-se
mesmo muito estrangeiro, se é que estrangeiro tem
grau, muito ou pouco. Enquanto pensava nestas
coisas ia fazendo o caldo – “dá lá então a branca
para misturar nisto” – mas a verdade é que estava
mais do que decidido a voltar para casa, pelo
menos para a sua terra. Tinha dúvidas que a mãe o
recebesse de braços abertos, depois da maneira
como a tinha abandonado sem dizer água vai.
Encheu a seringa, deu metade no Pierre e a outra
metade em si. Caiu como um tordo…
O Pierre dormia exactamente na mesma
posição em que o deixara. Olhou para o relógio,
eram dez da manhã. Abriu a janela e deixou entrar
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o sol na sala. Foi até ao quarto, tirou a roupa toda
da cama e fez uma máquina de lavar. A casa
tresandava, um cheiro esquisito, uma mistura de
cheiro a heroína, a erva e haxixe, a suor e
ressacas. Havia uma série de grunhos que vinham
lá a casa fazer negócios com o Xavi, às vezes bem
nojentos e ressacados. Ele estava farto de lhe dizer
para não meter lá dentro qualquer ressacado, sem
os conhecer, mas Xavi só pensava em vender e
vender, cada vez mais, para dar para o seu
exagerado consumo, para os da casa e para as
despesas. No fundo era o espanhol que acabava
por sustentar toda a casa, e a peida do Pierre…ele
limitava-se a ser um consumidor, de tudo. Da casa,
do pó, da Maria. Só não consumia o Pierre, mas
aturava-o e dava-lhe protecção. Havia gajos que
pensavam que eram namorados, o que o chateava,
mas ia tolerando, desde que não fosse à frente de
amigos de Portugal. O que se passava em Espanha
deveria morrer em Espanha. Mas não queria
mesmo que essa ideia chegasse a Portugal.
Contrariamente ao que Pierre pensava, o 25 de
Abril não abrira as cabeças dos portugueses, havia
ainda um longo caminho a percorrer em termos de
mentalidades. Na altura ainda não o sabia, mas
viria a sofrer isso na pele, e de que maneira…
Saiu de casa decidido a encontrar alguém
para ir para lá morar e nessa mesma noite fez as
malas e despediu-se de todos, dizendo estar de
abalada rumo a França, para tentar a sua sorte.
Saiu de casa sem ninguém se aperceber, a meio da
noite, e apanhou um comboio expresso, rumo a
casa. Só voltou a Madrid passados catorze anos,
em noventa e cinco, mas isso contarei mais adiante.
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O som do comboio, juntamente com o abanar
e a moca que trazia, estavam a embalá-lo de uma
forma agradável. Deveria estar preocupado e
nervoso, mas não. Nem o receio de voltar a casa da
mãe, que muito provavelmente, pensava ele, não o
iria receber de braços abertos, nem o facto de
trazer mais de cem gramas de heroína na
bagagem, lhe tiravam a calma. Sentia-se leve e
satisfeito com a sua decisão de regressar. Estava
farto da vida de Madrid e de aturar as manias do
Xavi – a esta hora já devia ter dado pela falta do pó,
pois estavam a arder-lhe as orelhas.
Com efeito, o seu amigo basco já tinha dado
pela falta do produto e tinha mesmo colocado de
sobreaviso todos os mafiosos que conhecia junto da
fronteira francesa. Se o apanhassem, a ordem era
para resgatar a mercadoria e castigar o amigo, da
forma que entendessem. Felizmente o nosso
homem conhecia bem a peça e, inocentemente,
tinha dado o destino errado, o que lhe permitia
descansar tranquilamente a caminho de casa. Não
sentia qualquer espécie de remorso por ter roubado
o companheiro, desculpando-se interiormente com
o pensamento “ladrão que rouba a ladrão”…nestas
coisas de drogas não há cão que conheça o dono,
essa é que é a verdade. Ou existe medo ou não
existe nada, o respeito e a amizade não têm lugar
nestes meios onde as ressacas são mais violentas
e dolorosas que os remorsos e as amizades
excessivas facilmente conduzem a situações de
overdose, ou uns meses na cadeia.
Tentou não pensar na preciosa carga que
transportava, passou a fronteira sem nervos ou
sobressaltos e, chegado a Aveiro, tratou de se
instalar numa pensãozita onde tratou da sua
ressaca e fez uns pacotes que mais tarde vendeu,
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assegurando assim a sua subsistência por uns dias.
Estava temporariamente estagnado na Veneza
portuguesa, realizando alguns pequenos negócios e
preparando-se para o encontro com a mãe, o que
não deixava de o assustar. Resolveu escrever-lhe
uma carta a preparar o terreno. A pobre senhora
morava na Póvoa de Varzim, na mesma casa onde
ele nascera, viúva desde que ele andava na escola
primária. Vivia com muitas dificuldades, mas
sempre com o mesmo ânimo com que o criara,
completamente inocente do crime de ter posto no
mundo aquele monstro, como a vizinhança o
costumava apelidar. Depois de tanto tempo sem dar
notícias, a pobre senhora já não alimentava
esperanças de o ver regressar, situação pela qual
ansiara durante tempo demais; o seu regresso era
agora encarado mais com receio do que com
esperança, pelo menos era nesse sentido que a
pobre senhora se esforçava por encarar as coisas.
Afinal de contas, mãe é mãe, e ela temia fraquejar e
ceder face às exigências usuais do seu querido
filho.
O marido morrera demasiadamente novo,
embora muito desgastado pela tuberculose,
contraída na cadeia após meses de torturas
infindáveis, de noites inteiras passadas mergulhado
em água até ao pescoço. Era inevitável que a
doença acabasse por o consumir, ainda que toda a
vida tenha sido um homem saudável, um verdadeiro
homenzarrão, de quem o filho herdara a estatura e
a irreverência. Agora era uma simples imagem a
preto e branco, desfocada, emoldurado a prata e
envolto num terço, diariamente observado por uns
olhos molhados, que se erguiam aos céus,
enquanto eram segredadas infindas avé-marias
envoltas em soluços e ranho. Fora a sua grande
perda na vida e era-lhe difícil admitir uma outra, a
deste filho tresmalhado, a quem o pai tanta falta
fizera. A vida arrastava-se agora de uma forma
lenta e dolorosa, entregando a uma sobrinhita os
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afectos sem destino que muito precisava de
transmitir. As horas eram passadas na companhia
do gato, do cão, dos vasos de plantas e, mais
raramente, na de algum amigo do filho que lhe
fizesse uma visita. Para melhor sobreviver, e
também para ter alguma companhia, alugara um
quarto a um hóspede, senhor sério, empregado nas
finanças e sem família, de poucas conversas,
característica que ela lamentava, pois fazia-lhe falta
alguém com quem dialogar. Evitava as conversas
com as vizinhas, pois estas ainda tinham as marcas
deixadas por imensas discussões causadas pelo
mau génio do filho, marcas insaráveis, que o seu
orgulho não permitia atirar para trás das costas.
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O quarto do filho, com a sua janelinha rente
ao chão do lado da rua, continuava igual ao que ele
deixara, só sendo pontualmente ocupada por algum
hóspede de Verão, desses que vêm quinze dias ao
ano e não chegam a criar raízes na habitação nem
a atrever-se a fazer qualquer alteração na
decoração. Por duas vezes tinha alugado o
pequeno quarto, aproveitando-se do facto de morar
a menos de duzentos metros da praia. Era uma
senhora moderna na sua forma de encarar o
mundo, mas mantinha as velhas tradições da sua
classe, sempre vestida de preto, modesta e
apagada nas suas deslocações, sempre reduzidas
ao imprescindível: umas compras, idas à igreja e ao
cemitério, sempre só, sempre de luto e carregando
as suas pesadas mágoas, sem esperança no futuro,
sem desejos de nada, a não ser o de um final calmo
e na companhia do filho; era um desejo que não
alimentava, que duvidava ver realizado, mas que
não conseguia evitar. Foi, por isso, com grande
surpresa que encontrou a carta no correio, na qual
o filho lhe dizia encontrar-se em Aveiro, esperando
chegar à Póvoa na próxima semana. Um misto de
alegria e indignação invadiram-na: recebê-lo-ia de
braços abertos ou, orgulhosamente limitar-se-ia a
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deixá-lo voltar, sem grandes manifestações de
afecto ou de saudades.
- Como queiras, filho. Vais ver que a sopa
está mesmo como tu gostas, a colher aguenta-se
em pé sozinha, e as couves são do nosso quintal.
Está bem assim ou ponho mais?
Contudo, repito, mãe é mãe, e foi de braços
abertos e lágrimas nos olhos que o recebeu
passados quinze dias, magro, branco e esfomeado.
Estava já a dormir quando a campainha da porta se
fez ouvir, seriam dez da noite. Ele olhou-a a medo,
ela fitou-o com firmeza e assim ficaram por uns
demorados instantes. Derretido o medo e o orgulho,
abraçaram-se demoradamente sem trocarem uma
palavra. Depois, como se todo o tempo de ausência
não tivesse existido ela disse:
Sentado num banco de cozinha observava a
diligente senhora a abrir e fechar móveis, a mexer
em talheres e copos, limpando de vez em quando
os olhos com o eterno lencinho que trazia debaixo
da manga do casaco de malha preto, vestido à
pressa sobre a camisa de dormir. Nem uma
palavra, os olhos concentrados no que estava a
fazer, séria e com um semblante carregado, sem
parar de inventar gestos que a mantivessem
ocupada. Colocou-lhe um prato, uma colher, um
guardanapo de pano e uma cesta de pão à frente.
Serviu-lhe várias conchas de sopa e sentou-se à
sua frente, agora observando-o enquanto comia
aquele caldo que tantas recordações lhe traziam à
memória, o mesmo sabor de sempre, quente como
só em casa se pode comer.
- Vai pousar o teu saco no quarto que eu
vou-te aquecer alguma coisa para comeres. Estás
cansado? Queres tomar um banho? – arriscou, na
esperança de ele aceder.
- Não, mãe, só quero uma sopinha e estar
contigo um bocado. Tenho saudades tuas e dos
teus temperos. Pode ser?
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- Não queres mais? A tua cama está feita de
lavadinho, se quiseres podes ir já descansar,
amanhã conversamos. Um beijo, querido, descansa
bem – e mais não disse, retirando-se para o seu
quarto, onde certamente iria rezar um terço
agradecendo a Deus a alegria de lhe ter trazido o
seu querido filho, olhando a fotografia do falecido
enquanto chorava as costumeiras e beatas
lágrimas. Hoje, porém, estas lágrimas tinham algo
de felicidade nelas dissolvido. Estava quase feliz e
dormiu nessa noite como há já muito tempo não era
capaz, descansada e com um pequeno sorriso
esboçado nos lábios finos.
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Ele acordou com o som dos sinos da sua
infância. A roupa que deixara na cadeira
desaparecera. A mãe não perdia tempo e, na
esperança de poder apagar todas as suas asneiras
dos últimos tempos, levara já toda a roupa para
lavar. Sempre a mesma, no controlo das operações,
pensou. Esfregou os olhos largando um longo
suspiro e quedou-se de fronte da janela,
observando as pessoas que calcorreavam a rua
que tantas memórias lhe trazia. Estava em casa.
Abriu as gavetas da cómoda, o guarda-fatos,
coscuvilhou as suas gavetinhas da mesa de
cabeceira e constatou que tudo estava igual ao que
deixara. Um banho quente vinha mesmo a calhar, e
dirigiu-se para a casa de banho, pondo a água a
correr enquanto se olhava ao espelho, observando
os olhos arregalados. Foi ao quarto buscar uma
dose e voltou, desta vez fechando a porta à chave
atrás de si. Passado um quarto de hora estava
fresquinho, barba aparada, a cheirar bem, pronto
para o pequeno almoço que estava inevitavelmente
à sua espera sobre a mesa da cozinha.
- Bom dia, filho, dormiste bem?
- Bom dia, mãe. Sim, uma maravilha, já tinha
saudades da minha caminha e destes seus mimos.
- Vá, come sossegado e conta-me o que
fizeste este tempo todo. Por onde andaste, com
quem, conta-me tudo, vá.
Segue-se um chorrilho de mentiras bem
intencionadas que deixam a mãe satisfeita com o
relato, embora nitidamente incrédula.
- Falei com o senhor Tavares. Se quiseres
passa lá na loja dele que ele é capaz de te arranjar
trabalho, pelo menos umas biscatadas para te
aguentares até encontrares algo mais definitivo. Já
pensaste no que vais fazer da tua vida?
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Ele já tinha um plano traçado que não
passava por trabalhar afincadamente fosse no que
fosse. Confiava nas suas qualidades de rufia o
suficiente para saber que com facilidade arranjaria
trabalho à noite numa discoteca qualquer, ou a
trabalhar como guarda-costas de um qualquer
mafioso. É claro que não revelou à mãe estes seus
intentos e foi-lhe dizendo que sim, que sim a tudo.
Levantou-se da mesa e saiu porta fora, sem
esclarecer a ansiosa mãe dos seus planos.
Também não era nada que ela desejasse ouvir e
ele sabia-o. A pobre senhora era tudo menos parva
e sabia bem, bem demais, com quem estava a lidar.
Não precisava que o filho se abrisse para que entre
eles não houvessem muitos segredos. Foi com os
olhos de novo humedecidos que se despediu dele à
porta de casa com um muito pouco convicto desejo
de boa sorte. Ficou a vê-lo andar pela rua fora, com
os seus passos enormes, os seus noventa e tal
quilos, afastando-se lentamente sob a imensa
cabeleira loura de bárbaro do norte.
Nesse dia não apareceu nem para o almoço
nem para o jantar, tendo telefonado já altas horas
dizendo que não viria dormir a casa. Ela sabia que
ele estava de novo fora, fora do ninho, fora dos
seus conselhos e mimos.
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4 Marco conhecia o Horrível desde crianças e
foi com alguma surpresa que o viu entrar cheio de
confiança e rodeado de gorilas naquela discoteca
de ambiente tão pesado. Fernandinho avistou-o
imediatamente, era impossível aquela figura loura e
enorme passar despercebida, e dirigiu-se para ele
com um sorriso nos lábios.
O Fernandinho era um menino da mamã,
subdesenvolvido para a idade, que sempre vivera à
sombra dos amigos, comprados a troco de dinheiro
e de todo o tipo de favores. Com o passar dos
tempos ter-se-ia dedicado ao tráfico de drogas e já
não era o mesmo puto coitadinho de que ele se
lembrava. Era agora possivelmente o maior
traficante da região e dava-se com toda a espécie
de bandidos. Tinha um apartamento no topo de um
dos mais chiques arranha-céus da Póvoa e
controlava o tráfico de droga desde Vila do Conde
até Viana do Castelo, Famalicão e Guimarães. Já
ninguém o tratava por Fernandinho, nem sequer por
Fernando. Era conhecido por Horrível, alcunha que
apelidava melhor o seu comportamento do que o
seu aspecto.
- E então Marco, que é feito de ti? Ouvi dizer
que estavas em Espanha…
- E estava, Fernando, e estava, mas vim-me
embora esta semana, já tinha saudades da terra.
- E estás aonde? Com a tua mãe?
- Sim, mas não é definitivo. Quero ver se
arranjo alguma coisa para fazer para não lhe pesar
e depois procuro um sítio para ficar por minha
conta.
- Gosto muito da tua mãe, meu. Estive com
ela há dois ou três meses, perguntei-lhe por ti mas
ela só me soube dizer que estarias em Espanha,
porque o Álvaro passou lá em tua casa e disse-lhe,
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senão acho que nem isso ela saberia. És indecente
com ela, meu. Vê lá se cuidas bem dela porque não
tens outra mãe, meu, e o tempo passa…
- Sim, sim. E tu, que tens feito? Ainda
trabalhas com a tua mãe?
- Não. A minha mãe teve um ataque e deixou
de trabalhar. Trespassou o café e agora vive da
renda. Eu já me oriento, felizmente, e ainda dá para
a ajudar de vez em quando.
- Ai sim? Orientas-te? E nesse teu trabalho
não há vaga para mais um? Não sou esquisito,
meu, faço qualquer coisa. Preciso é de ganhar
dinheiro e tu conheces-me suficientemente bem
para saberes que não sou gajo para torcer o nariz a
nenhum serviço.
- Isso é verdade. Ainda me lembro de
ajudares a minha mãe a descarregar o camião da
cerveja, aquelas grades todas e bilhas de fino. Eu
nunca fui tipo para descarregar aquele camião da
maneira que tu o fazias. Até a minha mãe
comentava que se precisasse um dia de um
carrejão a tempo inteiro era difícil encontrar um
melhor que tu. Ainda tens a genica de antigamente?
Dava-me jeito um tipo com tu.
- O quê? Para carrejão?
- Não, meu. Para fazer umas entregas, para
me proteger as costas, que dizes? Pago bem…
- É uma questão de falarmos com mais
calma, mas aqui não me parece ser o sítio mais
apropriado.
- De qualquer maneira vamos celebrar. Esta
rodada pago eu – e virando-se para o empregado –
São dois whiskies, duplos, só com gelo.
Marco sabia que dali nunca poderia vir coisa
boa. Durante a sua ausência a vida do Fernandinho
tinha mudado muito, assim como ele próprio. Já
ninguém o conhecia pelo seu nome de baptismo e
ele fazia notar a todos que queria ser sempre
tratado por Horrível. Isso mesmo acabou por
segredar a Marco no meio da barulheira. Toda a
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gente que entrava na discoteca, homens e
mulheres, faziam questão de o vir cumprimentar à
mesa, qual beija-mão, e Marco observava a
inesperada metamorfose ocorrida naquele puto, de
lagarta a borboleta, de menino rejeitado e gozado
por todos, a centro das atenções, alvo dos mais
exagerados salamaleques. Não estava difícil de ver
que o Fernandinho era agora um homem de peso
nos meios nocturnos. Talvez fosse uma boa aposta
trabalhar para ele, afinal. Uma louraça veio-se
sentar junto a Marco, que parecia um cachorrinho
abandonado, presa fácil. Ele conversou
simpaticamente com ela mas foi-lhe dando a
entender que dali não levava nada, mensagem
subliminar que ela captou, pondo-se a andar. O
Horrível levantou-se da cadeira, com ar de quem
trabalhou imenso todo o dia e perguntou-lhe –
Vens? Vamos embora daqui, quero-te mostrar a
minha casa e tenho lá umas cenas que tenho a
certeza de que vais gostar. Ele seguiu-o, meio
desconfiado, mas sem receios.
A casa do Horrível ficava no último andar do
maior prédio da cidade, todo envidraçado, com
terraço a toda a volta, “devia ser baratinho”, pensou
Marco. Entraram numa sala enorme, toda estilo
moderno, onde já estavam várias pessoas: o Lopes,
um toxicodependente da terra, conhecido por ser
um aldrabão violento, de quem ninguém gostava e
que só agia por interesse, o Luís, um grandalhão na
casa dos quarenta, com um cadastro do tamanho
de uma lista telefónica, o Touro e a mulher, casal
conhecido de Marco que nos finais dos anos
setenta toda a gente contratava para servirem de
mulas no carregamento de haxixe de Marrocos para
Portugal e que se tinham tornado famosos por entre
os dois conseguirem “enfiar” e trazer quase dois
quilos de produto, o Doutor, um tipo novo de Vila do
Conde que era filho de um famoso advogado e que
consumia cocaína como se ela lhe quisesse fugir e
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35
um amigo dele, que, pensou Marco, deveriam estar
a contribuir para o sustento de toda aquela gente.
O Horrível fez as apresentações introduzindo o
novo visitante com um – “Pessoal, este é o Marco, é
de cá e somos amigos desde miúdos. A partir de
agora, na minha ausência, é com ele que devem
tratar de tudo. Será o meu braço direito, portanto
agradeço-vos que de hoje em diante lhe prestem o
respeito que me devem a mim e que o ponham a
par de todos os pormenores das nossas
operações.” O Horrível dava à sua actividade
criminosa um aspecto de operação secreta, levada
a cabo por agentes especiais altamente treinados e
organizados. Desde miúdo que era assim, cheio de
imaginação nas suas brincadeiras de polícias e
ladrões. Pelos vistos tinha passado da brincadeira à
realidade e Marco encontrava-se irremediavelmente
no papel de Capo daquela máfia em embrião – a
mãe havia de ficar muito orgulhosa de mim –
pensou com cinismo. Logo arranjaria uma qualquer
mentira para lhe dizer, agora deveria estar atento
para perceber até que ponto iam os planos
diabólicos do Fernandinho. Não demorou muito a
inteirar-se dos assuntos e a perceber que o seu
novo patrão era efectivamente um traficante de
grande escala, que tinha no bolso grandes pessoas
e grandes negociatas. Já não era o menino que ele
conhecera, não hesitando em eliminar quem se lhe
atravessasse no caminho, claro está, nunca pelas
próprias mãos. Marco começou a levar mais a sério
o seu novo emprego, encarando a situação com
calma mas sem fazer um desenho mental muito
rigoroso de onde se estava a meter. Nunca tinha
estado com gente tão fria e interesseira, bem
diferentes de ele próprio. Em toda a sua vida
passou por imensas situações de confusões,
balbúrdias, violência, mas nunca se considerou má
pessoa. Tinha-se na conta de um bom malandro e
agora via-se quase à cabeça de uma rede
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organizada de tráfico de droga, e bem organizada,
segundo lhe parecia.
O Horrível movimentava dezenas de quilos
de drogas duras todos os meses, era grossista e
retalhista, sendo ainda o fornecedor de alguns
consumidores mais endinheirados que, por serem
de boas famílias e terem bons conhecimentos junto
dos meios judiciais, lhe eram de grande utilidade,
tanto para limpar como para evitar que houvesse
sujeira. Era sempre bom ter informações acerca de
quando é que havia rusgas, do andamento de
processos em curso, de quem era quem dentro dos
serviços policiais, enfim, havia uma dezena de
meninos ricos filhos de juízes, de comissários, de
vereadores e mais gente que interessa que
frequentavam regularmente a sua casa e que eram
consumidores inveterados de cocaína e heroína.
Tudo aquilo fazia Marco ficar espantado com a
capacidade de organização e com a maldade
daquele lingrinhas, agora transformado em Don
Horrível. O Don lidava com tudo aquilo com o à-
vontade dos filmes, muito senhor das situações. Na
realidade deveria estar a ganhar milhares
diariamente, e parecia que nada mais lhe
importava. Era mesmo capaz de se fazer amigo
daquele monstro que, quando crianças, lhe enchia
aquele pescoço de cachaços e as orelhas de
humilhações. Era, aliás, esta a sua grande política,
aliar-se e contratar para os seus serviços todo
aquele que pudesse constituir ameaça. Inteligente
este Fernandinho, pensou o Marco.
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5 - De forma alguma, e já que insiste vou
direito ao assunto. Sentou-se no sofá como se fosse lá passar a
tarde enterrado, ao que a senhora perguntou se
desejava beber alguma coisa, um verde fresquinho
talvez. Mesmo estando de serviço o agente aceitou,
sabia que naquela casa sempre foram bons
hospitaleiros. Molhada a palavra, prosseguiu:
A campainha da porta tocou e ela foi abrir.
Era o Costa, um agente da PSP local, conhecido da
família desde o tempo em que o seu marido ainda
era vivo. - Pois é, sabe? Nos últimos tempos tenho
andado atento ao que se passa na Póvoa e isto já
não é nada do que era. Esta rapaziada nova cada
vez nos dá mais dores de cabeça. Metem-se na
droga e depois não há nada que os pare. Fazem
assaltos a casas, roubam carros, pessoas, alguns
até roubam na própria casa, eu sei lá, fazem trinta
por uma linha para arranjar o dinheiro para o vício.
É uma tristeza…
- Bom dia senhor Costa, há novidade?
- Bom dia dona Armandina, posso entrar para
conversarmos um bocadinho?
- É claro, é claro – disse a mãe de Marco
enquanto fazia o gesto indicativo de quem tem a
casa ao dispôr – mas há algum problema? É com o
meu rapaz? Passa-se alguma coisa de grave?
- Não, não. De forma alguma. Só passei por
aqui para me certificar de que ele estava de volta e
para saber o que ele pretende fazer por cá. - E o que é que o meu filho tem a ver com
isso tudo? Vá, deixe-se lá de rodeios e diga de uma
vez ao que veio. - Mas porquê Costa, não me esconda nada,
por favor.
39 40
- Bom, dona Armandina, é o seguinte: a
senhora sabe que eu já era amigo vosso no tempo
do seu falecido marido, que Deus o tenha, mas não
posso deixar de me preocupar com o seu rapaz.
Não é, com certeza, novidade para si que ele
sempre se deu com drogados e que ele próprio ou é
ou já foi um deles, sem maldade, mas sempre
metido nas suas pequenas confusões.
A mãe de Marco fitava-o muda e séria. Ele
sentiu uma desaprovação no ar mas continuou com
o seu discurso.
- A senhora lembra-se do Fernandinho, filho
da Amélia do tasco do Paranho (ela fez que sim
com a cabeça, inquisidora). Claro, claro. Era muito
bom mocinho mas desde a morte do pai modificou-
se muito. Agora, segundo corre à boca cheia lá
embaixo na esquadra, é ele o maioral do tráfico de
droga na nossa cidade e arredores, mas ninguém o
consegue apanhar. Tem uma série de bandidos a
trabalhar para ele e quando nós nos pomos a
investigar vem logo uma ordem superior para irmos
com calma. Para não exercer qualquer violência ou
pressão sobre o indivíduo sem termos provas
concretas, enfim, a senhora percebe o que eu quero
dizer.
- Não, não percebo.
- O que eu quero explicar é que esse menino
é hoje o cabecilha de uma quadrilha com grande
poder no submundo, que não se ensaia nada para
matar um gajo se for preciso.
- E o que é que o meu rapaz tem a ver com
isso?
- Bom, chegou-me aos ouvidos que o seu
rapaz agora anda sempre com ele. Que é assim
uma espécie de braço direito dele. Protege-lhe as
costas e trata-lhe de uma série de assuntos, sabe
como é, cobranças, cargas, sei lá, de tudo o que é
preciso ser feito por um homem de confiança e com
músculos.
41 42
- E o senhor acredita nessas histórias todas?
Ou veio aqui só para me deixar também na dúvida?
- Pronto, dona Armandina, sendo assim vou
à minha vida e fico muito mais descansado. Sabe
que estas coisas o melhor é cortá-las logo pela raiz,
antes que tomem um rumo que não possamos
controlar. De qualquer forma, muito obrigado pela
tacinha e pela sua atenção. Espero que não me
tenha levado a mal a visitinha, mas fique atenta
dona Armandina, que o outro não é flor que se
cheire. Tenha uma muito boa tarde.
- Não, de forma alguma. Nós somos amigos
de longa data e longe de mim estar a levantar falsos
testemunhos, mas era bom que a senhora tivesse
uma conversinha com o seu rapaz. Aconselhe-o a
deixar essa gente. Isso é malta que não presta para
nada e dali não se pode esperar coisa boa. Foi só
por isso que cá passei. Conheço o seu rapaz, ele
sempre foi um bocado rufião mas nunca foi mau
rapaz. Temo que estas companhias o possam
transformar numa pessoa que ele nunca foi,
compreende-me? Só estou a tentar ajudar.
Fechou a porta com brusquidão, como se o
polícia fosse o culpado de o filho se meter em
sarilhos.
Trancou-se no quarto a rezar, chorando
defronte da fotografia desfocada, como se lhe
pedisse conselhos. Nessa noite não comeu nada ao
jantar e esperou por ele até ao final da emissão da
televisão. Acabou por adormecer no sofá. Acordou
enregelada, foi à casa de banho, tendo-se
demorado defronte do espelho. A cara tinha uma
marca vermelha, certamente deixada pela almofada
- E já ajudou que chegue – disse ela,
levantando-se e dando a entender que a conversa
estava no fim – e eu fico-lhe muito agradecida.
Prometo-lhe que na primeira oportunidade vou ter
uma conversa com o meu Marco e não tem que se
preocupar. Como o senhor mesmo disse, ele é
muito bom rapaz e ainda vai dando ouvidos à mãe.
43 44
do sofá, onde estivera encostada horas a fio. “Ai
Deus me ajude, e aquele malandro que não
aparece!” – e foi para a cama descansar as poucas
horas da noite que ainda lhe restavam.
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6
Estava um nevoeiro cerrado nessa manhã de
Outubro. Seriam cerca de seis horas, muito pouco
trânsito ainda incomodava a cidade que dormia.
Sentado dentro do carro, Marco estava ainda a
digerir o álcool e a droga que consumira na
véspera, há bem pouco tempo, diga-se de verdade.
Um cavalito a puxar a carrocinha cheia de legumes,
conduzido por um velhote que lhe parecia familiar,
marcava o compasso com aquele som tão igual ao
da sua infância. Aqueles cascos, como castanholas,
marcavam o ritmo poveiro sobre o asfalto das ruas.
Nostalgicamente pôs-se a olhar para aquela
marginal, o passeio alegre, como era conhecida. O
que antigamente eram quintais destinados ao
arrumo e preparação das redes e aparelhos de
pesca, era agora uma bateria de edifícios com
andares a mais, uma marginal repleta de
apartamentos que passavam a maioria do ano
fechados, pois eram casas de praia onde bastava
atravessar a rua para se estar com os pés na areia.
Marco imaginava o quanto tanta gente havia ganho
com aquelas construções; pensou para consigo
mesmo que certamente não teriam sido os antigos
proprietários das casas e quintais quem mais teria
enriquecido. Era sempre assim, em todos os sítios,
porque diabo haveria a sua Póvoa de ser diferente?
O Simca Rallye que conduzia não lhe
pertencia. Nem tinha bem a certeza de quem era:
estava parado há imenso tempo junto à casa do seu
patrãozinho, deixado como garante do pagamento
de alguma coisa de que já ninguém se lembrava.
Assim, era o carro de quem quisesse pegar nele e
correr o risco, pois não tinha seguro nem qualquer
tipo de documentação, de ser apanhado pela polícia
e ter que pagar uma multa ou um suborno. Marco
47 48
não resistira à tentação de dar umas voltinhas
naquele bólide, que lhe fazia recordar os circuitos
de Vila do Conde, na sua adolescência; nessa
altura aqueles carros eram umas verdadeiras
bombas, principalmente quando conduzidos por
quem sabia, naquele caso particular lembrava-se
bem do piloto Edgar Fortes, no seu Simca Rallye.
Lembrava-se também dos troféus Datsun 1200, que
grandes corridas, os carros todos iguais e ganhava
quem tivesse mais unhas…bons tempos!
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Mas voltando à realidade, era um pouco
arriscado deslocar-se naquele carro, com pinturas
como se fosse alinhar na pole position, desta feita
conduzido por ele, Marco, a dar muito nas vistas
com uma relíquia dos anos sessenta a fazer fumo
pela cidade. Para além de que, claro está, não
seriam precisos muitos dias para que a mãezinha já
estivesse com as orelhas cansadas de tanto aturar
queixinhas das vizinhas, da família, do polícia (de
novo), da padeira, enfim, de toda a gente do sítio.
Pobre mãe, sempre em cuidados…parecia-lhe de
repente que o regresso a casa, à terra, ao mar, era
também um regresso aos tempos em que podia
deixar a vida correr sem preocupações, pois tinha
sempre aquela casa da mãe, com a mãe, com as
fotos do pai, com o gato e o canário, o quintal das
couves; para um caldo verde chegava bem o
quintalzito! Era um verdadeiro porto de abrigo,
aquela casa. Podia, e era, também ser visto como o
último bunker em caso de aflições de qualquer tipo.
A segurança de estar na sua terra, com a sua
caminha em casa da mãe pronta a recebê-lo
sempre e a qualquer hora, permitia-lhe uma
existência de rara despreocupação. Os assuntos
relacionados com o Horrível e os seus negócios não
lhe conseguiam tirar o sono. Fazia serviços de
correio, de segurança e guarda-costas, de motorista
a vários níveis. Várias vezes tinha feito fretes de ir
buscar a mãe do chefe a casa, levá-la ao
cabeleireiro, acompanhá-la nas compras. Era um
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espectáculo digno de se ver, aquela senhora com
pouco mais de metro e meio, pesando seguramente
menos que um saco de batatas de cinquenta quilos,
sempre vestida de escuro como mandam as antigas
regras às senhoras viúvas, acompanhada por um
homenzarrão, com quase dois metros e uma
centena de quilos, todo corado e louro como se
fosse um dinamarquês, sempre de calças de ganga
e de camisas de cor berrante. Ele segurava os
sacos e esperava à porta de cada loja onde a
senhora entrasse. Por vezes, nessas esperas era
abordado por um consumidor ou um pequeno
traficante e fazia o seu negócio ali mesmo, nas
barbas da velhota, a quem por vezes, sempre que
ela inopinadamente surgisse a meio da transacção,
eram apresentados os intervenientes da negociata,
nunca apresentando a senhora como se fosse mãe
do chefe, mas sim como se de uma tia se tratasse.
O Horrível entendia, e se calhar teria as suas
razões, que era melhor que ninguém soubesse
quem a senhora era, poderiam um dia usá-la para o
chantagear ou algo parecido. Para todos, o
Fernandinho não era mais que um traficantezeco,
mas a realidade era que ele não tinha um só
fornecedor; para cada tipo de droga ele tinha
sempre meia dúzia de fornecedores e como tinha
dinheiro, cada vez mais, comprava sempre mais do
que aquilo que necessitava de modo que aparecia
sempre como o salvador nas situações de falta de
produto no mercado, tirando daí, como é óbvio,
lucros astronómicos e também algum respeito na
praça. Como nunca se abria com ninguém e só o
Marco o acompanhava em todas as situações, a
dimensão do seu negócio passava realmente
despercebida dos olhares e ouvidos de toda a
gente. Isso era terrível, pois a dimensão do crime
era enorme, assustadora. Marco tinha um pouco
essa noção, mas como estava a jogar em casa isso
não o preocupava.
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Sempre que passava em casa a mãe tentava
dar-lhe conselhos, embora soubesse que os
mesmos caíam em saco roto. O filho estava perto
dela, dormia frequentemente em casa e podia
observá-lo com frequência e tratar de o manter bem
alimentado. No fundo, ele era tratado como se
ainda fosse uma criança, o que na realidade não
andava muito longe da verdade.
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7
55
Os meses e os anos iam passando e a vida
pouco ou nada se alterava para Marco. Tinha
adquirido junto de Fernandinho e de seus capangas
um estatuto que lhe permitia não ter problemas de
ordem financeira. Sempre que lhe apetecia
comprava um carro ou uma mota nova, dava
presentes à mãe, coisas que ela nunca sonhara ter
e que recebia sempre com um sorriso nos lábios e
com um forte aperto no coração, pois sabia que
todas aquelas moedas tinham uma cara e uma
coroa. Sabia, ou imaginava com fortes certezas, o
que estaria na origem daquela corrente de dinheiro,
muito dinheiro, que ela jamais sonhara ser possível
existir. A facilidade com que o filho falava de
milhares de contos assustava-a. Tinha bem
presente uma visita que fizera com Marco à cadeia
de Custóias onde estava preso um miúdo, filho de
uma vizinha e amiga de longa data. Foram de carro,
com a mãe do miúdo, que teria então cerca de vinte
anos e que ali se encontrava por posse de drogas e
arma de fogo. O julgamento demorou quase um ano
a realizar-se e ele fora condenado a dois anos de
pena, podendo sair sob fiança, no valor de quase
quatro mil contos, que Marco pagou sem
pestanejar. Quatro mil contos! Naquela época era
mais do que o suficiente para adquirir um
apartamento com vista para o mar. E deveria tratar-
se de um pequeno esforço financeiro para o gang
do Fernandinho, pois o Marco nem precisara de o
consultar para desembolsar semelhante quantia. O
rapaz saíra em liberdade, sua mãe ficou
eternamente grata a Marco e ao seu grupo. Assim
se iam criando aliados entre a inocente população.
Era assim que as coisas funcionavam, uma espécie
de Cosa Nostra local, onde o chefe da mesma era
um menino que não fazia mal a uma mosca e em
56
quem se podia contar nos momentos de aflição. Por
outro lado, essas inocentes pessoas constituíam
uma forte ajuda, pois eram olhos e ouvidos atentos
espalhados pela cidade, sempre prontos a dar uma
informação apanhada no ar ou a fornecer um abrigo
temporário a alguém que precisasse de
desaparecer por uns tempos.
Fazia agora cerca de quatro anos que Marco
voltara de Espanha e a sua vida resumia-se a ser o
homem de mão do chefe de uma das maiores
quadrilhas de tráfico local de drogas que o Norte de
Portugal jamais conhecera. O número de
consumidores de heroína era enorme; o consumo
de haxixe era coisa perfeitamente normal entre a
rapaziada do liceu e a cocaína começava a ser uma
droga quase tão popular como as primeiras. Tinha
aparecido uma nova maneira de a consumir.
Enquanto que até ali os consumidores de cocaína a
usavam via intravenosa ou cheirada, agora
começava a ser usual o seu consumo em base, ou
seja, aquilo a que na América se chamava o crack.
O crack, que consistia numa mistura de
cocaína com bicarbonato ou amoníaco, permitia
que o seu consumo fosse extremamente facilitado,
podendo ser feito em qualquer local, sem ter que
estar a fazer operações complicadas. Era a droga
do século vinte e um que se aproximava e estava a
começar a impor-se sobre todas as outras. Era
extremamente viciante e levava ao consumo
crescente e à adição em muito pouco tempo.
O próprio Marco começou também a usar
cocaína, transportando sempre consigo um
cachimbo próprio para o efeito. No entanto nunca
se chegou a viciar nessa droga, já que o seu vício
era a heroína, injectada, vício que o acompanhava
desde os tempos em que ainda não tinha sequer
partido para Espanha. Valia-lhe a sua fortíssima
compleição física para se aguentar minimamente
com bom aspecto; normalmente, a rapaziada ligada
57 58
ao consumo de heroína eram uns enfezados,
cheios de olheiras e de pele cerosa, brancos e
macilentos. Marco não. Continuava a exibir o seu
porte atlético, o seu cabelo forte e louro e a cara
sempre corada, do sol e do álcool.
Embora trabalhasse para o Horrível, tinha
montado o seu negociozinho por conta própria, com
o conhecimento do chefe, é claro. Não convinha
fazer nada sem o conhecimento do chefe, pois
arriscava-se a cair em desgraça, o que não era
nada aconselhável para a sua saúde, mesmo sendo
quem era. O Fernandinho, nunca poderia esquecê-
lo, era também o Horrível, e não tinha qualquer tipo
de consciência ou de remorsos. Era um gajo frio, e
mau. Muito mau, mesmo. Se lhe desse na cabeça,
mandaria acabar com o Marco com a mesma
facilidade com que espezinhava um cigarro
acabado de fumar. Era um misto de frieza,
desprendimento e total desrespeito pela vida
humana. Por isso, Marco não lhe fazia ninhos atrás
das orelhas.
Um dia, muito simplesmente, chegou junto do
patrão e disse-lhe.
- Sabes Fernando, se não te importares, vou
começar a vender haxixe por minha conta. É um
negócio que para ti pouco significa, que mexe com
muitas quantidades e pouco dinheiro e, se não te
importares, posso fazê-lo sem que isso altere todas
as minhas obrigações para contigo e com a
organização. Afinal tu preferes trabalhar com as
drogas duras e é daí que te vem a massa, que
dizes?
- Por mim tudo bem, Marco, mas tens a
certeza que não te vais meter em alhadas sem
necessidade? Só vais arranjar chatices…
- Não, meu, não vou arranjar chatices
nenhumas. Posso guardar as merdas em casa da
minha mãe, vendo só pequenas quantidades a
pessoal da terra e as grandes transacções serão
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feitas longe de aqui, para que não haja hipótese de
ninguém ligar as pontas deste sarilho, que dizes?
- Fica sossegado. Estou a pensar em arranjar
uma carrinha de sete lugares e vou contratar malta
para ir lá buscar uma remessa. Vou contactar o
Touro e a mulher dele e peço-lhe que me arranjem
o resto das mulas; de volta aos velhos tempos…
- Por mim tudo bem, mas diz-me, vais
precisar de dinheiro para começar? Ou de algum
tipo de ajuda?
- Dinheiro não preciso. A única coisa que vou
precisar é que dês uma palavrinha aos teus amigos
de lá de baixo, para que não tenha problemas a
trazer a ganza de Marrocos para cá. Sabes que
sem conhecimentos, são os próprios vendedores de
lá que nos acusam às autoridades, sendo normal
ficar logo preso em Marrocos. Não me apetecia
nada ficar uma temporada naquelas prisões dos
gajos, já ouvi dizer que são do piorio.
- Eh, eh… – o Fernandinho ria-se, pois
recordava-se bem a que tempos Marco se referia,
embora nessa altura só fosse um espectador do
que se passava, sem ter papel activo nas loucuras
que Marco e os amigos levavam a cabo nos anos
setenta – estou a ver que vais pôr o pessoal na
carrinha e atestá-los até não caber mais nada.
Marco, esse sim, recordava bem os loucos
anos setenta. Em Marrocos iria adquirir haxixe ao
preço da chuva e de boa qualidade. Depois, era só
embalá-lo muito bem e, depois de as mulas fazerem
uma meia horinha de ginástica, atestá-las, era esse
o verdadeiro termo que gostava de utilizar. Quando
chegassem ao lado de cá, iriam todos à casa de
banho, seriam pagos e cada um ia à sua vida.
- Podes ficar descansado, nesse campo.
Agora vê lá que os teus negócios não vão
prejudicar os nossos. Sabes como é, se a polícia
arranja uma ponta por onde te pegar, depois
começam a desfiar o novelo e ainda acaba por
sobrar para mim. Não quero merdas, ok?
61 62
Gostava de lidar com o haxixe, pois ficava de
certo modo afastado das lides criminosas da teia da
droga. Os consumidores de haxixe eram, na sua
maioria, gente normal, gente que trabalhava, gente
com filhos, com posição social; enfim, não eram
pessoas que vivessem para a droga, como os
consumidores de drogas duras. Isso permitir-lhe-ia
ter contactos com gente com quem se podia ser
visto em qualquer lugar, sem problemas e sem
levantar suspeitas.
E assim foi. Com o passar dos tempos foi-se
desligando lentamente do trabalho com o
Fernandinho, que cada vez lhe agradava menos. O
tráfico de drogas duras estava muito intimamente
ligado com todo o tipo de criminalidade que se
possa imaginar: chantagens, assassinatos,
assaltos, moeda falsa, tráfico de armas e de
influências…era areia de mais para a sua
camioneta e, fazendo-se valer da sua antiga
amizade com o chefe foi-lhe dizendo que se queria
afastar um pouco, o que, surpreendentemente, o
chefe aceitou, sem lhe deixar de dizer que tivesse
cuidado com o que iria falar sobre a sua
organização.
- Porra, Fernando, posso ter muitos defeitos,
mas nunca fui ingrato e muito menos bufo, pá.
Podes ficar descansado que da minha boca nunca
há-de sair nada que te possa prejudicar. E mais,
meu, sempre que precisares podes contar comigo
para o que for preciso. Só quero é afastar-me desse
mundo pois já não sou nenhum miúdo e tenho
andado a sentir-me meio fraco, já me chega de
confusões. O teu negócio está com umas
dimensões que já não há lugar para um tipo como
eu, percebes? Eu sou um tipo simples, pão-pão,
queijo-queijo, e faz-me confusão toda a rede de
conhecimentos que tu tens. Já não se sabe bem
quem são os amigos, os conhecidos, os maus e os
bons, entendes-me?
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- Claro que te entendo, mas sabes que eu,
mesmo que quisesse, não poderia agora parar.
Neste negócio, parar é morrer, literalmente…
- Pois, eu sei. E antes que seja assim para
mim, peço-te que me libertes desta rede e que não
me leves a mal.
- Claro, Marco, amigos como dantes – e
estendeu-lhe a mão flácida, que ele apertou com
força, até o outro se encolher e soltar um gemido.
“Amigos como dantes” – ficou-lhe a ecoar na
cabeça. Nunca tinham sido verdadeiros amigos,
essa é que era a verdade. Antigamente o Marco era
um miúdo que se destacava pelo seu porte e pela
sua brutalidade, e o Fernandinho não ousava
sequer levantar-lhe a voz, sempre debaixo das
saias da sua mamã. Depois, era o Horrível, que ele
encarava como o patrão, sem serem íntimos, sem
partilharem nada de pessoal. Na realidade
constatava agora que não tinha a mínima ideia de
quais eram os gostos daquele ser. Nunca lhe
conhecera uma rapariga especial, só tinha mulheres
a troco de dinheiro ou de droga, nunca o vira
entusiasmado com nada que não fossem os seus
sujos negócios. No fundo desprezava-o, nunca
tendo anteriormente realizado esse facto, mas era a
mais pura verdade. Nutria por ele e pelo que ele
significava um desprezo completo. Para o Marco, o
mundo das drogas era um meio de diversão, de
conhecer gente livre e diferente, de cabeça arejada,
sem maldade e sem grandes obrigações. Para o
Fernandinho era tudo diferente: a droga era uma
forma de ganhar dinheiro, sem se preocupar com o
mal que ela fazia a tanta gente e sempre pronto a
fazer desaparecer do mapa qualquer pessoa que
lhe fizesse sombra ou que ameaçasse as suas
margens de lucro.
Sem fazer ondas e sem entrar em confronto
com ele, tinha conseguido magistralmente retirar-se
daquela rede de banditismo que o Fernandinho
65 66
liderava. Tinha sido uma atitude muito inteligente e
Marco sabia-o.
Agora morava a tempo inteiro com a mãe e
tinha uma vida muito calma, dava-se com pessoas
normais e estava afastado do mundo do crime.
Dormia mesmo bem. Não tinha carro, porque não
precisava, transportando-se sempre de bicicleta
numa existência que considerava quase perfeita.
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8
Na sequência de uma gripe que lhe custara a
debelar, a mãe insistiu para que fosse ao médico.
Marco detestava médicos, pois nunca havia
felizmente necessitado da sua ajuda para nada.
Sempre tivera uma saúde de ferro e o simples facto
de sentir que precisava de ir ao médico assustava-
o. Mas não havia hipótese de não ir ao médico, a
mãe não lhe dava qualquer chance. Assim, numa
manhã de Outubro e de nevoeiro, foram os dois à
consulta que ela marcara. A partir desse dia tudo se
iria alterar na vida de Marco, agora a prazo…
69 70
9
O médico era um senhor dos seus sessenta
anos, que o ajudara a vir ao mundo, o doutor
Moreira. Tinha um sorriso apaziguador, e para
Marco isso viria a ser importante, pois deparava-se-
lhe uma guerra sem tréguas, uma guerra perdida.
Não lhe souberam diagnosticar de imediato qual era
o seu mal, os sintomas sobrepunham-se uns aos
outros. Quando inquirido pelo médico, Marco
revelava-se um potencial paciente de quase todos
os males; o seu historial de vida denotava quase
todo o tipo de comportamentos inerentes à
contracção e proliferação de milhentas doenças
diferentes. Foi um período da sua vida
extremamente marcante, não só para ele como, e
se calhar principalmente, para a sua mãe. Marco
parecia contrair todos os males, desde uma simples
constipação, que rapidamente passava a gripe e
depois a pneumonia, até a uma simples queda de
tensão ou um mal-estar digestivo que cada vez com
mais frequência o fazia deitar fora o almoço.
Sempre a correr de casa para o hospital, do hospital
da Póvoa para o do Porto, do instituto português de
oncologia para o laboratório de análises clínicas,
um constante corre-corre na busca da origem
daquele surto de doenças que o assaltou
subitamente.
Foi numa tarde ensolarada que, pela primeira
vez, na televisão e relacionado com a morte de
António Variações, ouviu falar de uma nova doença
que estava a atemorizar o planeta, a Sida. Era uma
doença estranha, ainda não devidamente descrita,
mas que estava a assolar a humanidade de uma
forma exponencial. Dizia-se que era mortal e que
era transmissível, através das relações sexuais e do
contacto sanguíneo, podendo ser adquirida numa
71 72
transfusão, numa partilha de seringas ou numa
relação sexual. Marco sentiu um balde de água fria
ser despejado na sua cabeça. Rapidamente, a sua
vida atravessou-se-lhe em frente dos seus olhos e
reviu todos os seus comportamentos relacionados
com drogas e com a vida despreocupada e
libertária que tinha levado nos últimos anos. Estava
realmente assustado, e as notícias que cada vez
mais chegavam aos seus ouvidos não eram de
forma alguma encorajadoras. A morte do Variações
tinha funcionado como a espoleta de todo um
problema que além fronteiras já era visto com
muitíssima mais atenção. As informações sobre o
assunto não eram unânimes, havia várias notícias
que distorciam as outras e a doença começou a ser
conotada com as práticas homossexuais, o que não
contribuía para que a maioria dos doentes se
assumisse como tal. Como normalmente sucede, a
desinformação ganhou contornos mais fortes do
que aquilo que seria desejável e a sociedade tendia
a ostracizar todas as pessoas que fossem
seropositivas.
73 74
10
75
Aquela doença viera alterar radicalmente o
comportamento de Marco. Tornou-se um indivíduo
totalmente oposto ao que era até então: passava
muitas horas seguidas sentado em frente do
televisor sem falar com ninguém, não tinha apetite
para comer ou beber fosse o que fosse, dependia
totalmente da mãe para quase tudo, excepto para ir
à casa de banho, coisa que fazia sempre sozinho,
ainda que, por vezes, com grandes dificuldades.
Muitas vezes, após uma crise qualquer relacionada
com o sistema digestivo, encontrava-se muito
desidratado e sem forças e esses momentos eram
difíceis de ultrapassar, pois precisava de ajuda para
se mover, tendo chegado por vezes a não se
conseguir voltar na cama. Tinha altos e baixos
inexplicáveis e completamente inesperados. Tanto
podia estar todo bem disposto ao ir para a cama à
noite e acordar de manhã incapaz de se mover,
como poderia suceder o inverso. Era uma doença
muito complicada e sobre a qual muito pouco ainda
se sabia. Estavam a começar a surgir no mercado
alguns medicamentos que pareciam atenuar os
efeitos provocados pela terrível doença mas a sua
colocação em uso ainda era feita numa base um
pouco experimental e acarretava custos
insuportáveis, só mesmo possíveis quando
comparticipados na íntegra pelo Estado. Marco era
agora um homem com cerca de cinquenta quilos de
peso, mais dez ou menos dez, conforme a evolução
do seu estado, sempre sujeito às mais variadas
alterações, sempre sem aviso prévio. Ele
interrogava-se muito sobre como havia contraído
aquele mal e sobre a quantidade de pessoas que
conhecia e que tinham, tal como ele, partilhado os
seus ambientes e os seus comportamentos de
risco. Foi na sequência dessa linha de
76
pensamentos que, durante uma fase em que a
doença lho permitiu, decidiu meter-se num comboio
e ir a Espanha, a Madrid, tentar procurar a sua
antiga casa e os companheiros com quem a havia
partilhado.
77 78
11
- Nem penses nisso, filho. Era o que mais
faltava, não estás em condições de te meter
sozinho daqui para Madrid, de comboio…não estás
livre de teres uma recaída qualquer e ficares para
lá, sabe Deus por onde, sem teres ninguém que te
apoie, filho. Pensa melhor nisso porque eu não
ficaria sossegada.
- Desculpa, mãe, mas é uma coisa que eu
preciso mesmo de fazer. Quero procurar a malta
toda e saber como é que eles estão. Se estão
saudáveis, se estão doentes, se estão a
acompanhar o desenrolar das coisas. É até possível
que estejam todos bem, pelo menos
aparentemente, e que, sem o saber, estejam a
infectar mais e mais pessoas. Sinto mesmo que é
minha obrigação encontrá-los a todos e informá-los
do terrível flagelo que pode tê-los atingido.
- Nesse aspecto acho que tens a tua razão,
filho, mas não vês que estás muito doente para te
meteres sozinho por aí fora?
- Não tenho opção, mãe. Tenho que ir, nem
que seja a última coisa que faço na vida….
- Que disparate – e bateu na madeira com os
nós dos dedos – ainda tens muita vida pela frente,
filho. Não podes é facilitar, nem desistir de lutar, e
esta ideia peregrina de ires a Madrid não me está a
cheirar nada bem, nada bem, mesmo. Reconsidera,
rapaz, não vás!
- Vou, mãe, está decidido.
A mãe ficou desfeita e, segurando no seu
terço, saiu do quarto do filho em direcção ao seu,
onde ficou a rezar defronte da fotografia do falecido
marido. Deus não poderia permitir que nada de
muito mau pudesse afectar o seu menino, como se
tal não tivesse ainda acontecido…
79 80
No dia seguinte Marco levantou-se bem
disposto, tomou um bom pequeno-almoço e toda a
bateria de medicamentos que agora se haviam
tornado habituais na sua existência. Disse à mãe
que ia dar uma volta pela marginal e saiu. Chegou a
casa antes do almoço, acompanhado do Pedro, um
amigo seu, e cliente de haxixe, que nos últimos
meses se havia aproximado bastante, ciente da
doença que o atacava e das dificuldades com que
se deparava. Acompanhava-os também a Ana,
rapariga com menos cerca de dez anos que eles e
que vivia com o Pedro há já alguns anos. Pedro era
engenheiro e ela era técnica de têxteis. Ambos
levavam uma vida muito normal, completamente
fora dos círculos ilegais que Marco frequentara até
então. Gostavam de fumar os seus charritos,
bastantes, mas não passavam disso. Pedro tinha
um passado ligado com drogas duras de todo o
tipo, mas desde que começara a trabalhar que se
havia deixado disso, até porque tinha uma série de
responsabilidades e gostava demasiado daquilo
que fazia. Chegados a casa, e porque ainda era
cedo para se almoçar, a mãe de Marco convidou
todos para o almoço. Era uma proposta irrecusável,
pois os dotes culinários da dona da casa tinham
uma fama que a precediam. Na casa dela comia-se
principalmente peixe, sempre muito fresco e
comprado a gente da maior confiança, vantagens
de se ser nascida e criada na Póvoa.
Quando Marco estava bem disposto era um
gosto vê-lo comer. Era uma das coisas da vida de
que tirava verdadeiro prazer. Marco e o casal
juntaram-se no quarto do primeiro onde estiveram a
ouvir música, a conversar e a fumar uns charutos.
Pedro perguntou a Marco se ainda consumia
heroína.
- Às vezes, cada vez mais raramente, e já
não ressaco. Sabes, desde que tenho tido os
ataques, ou como lhes queiras chamar, desta
merda, os médicos todos me disseram para eu
81 82
parar de consumir. A verdade é que a medicação
toda que ando a enfardar me está a fazer muito
mais mal que qualquer droga ilegal que eu possa
consumir. O consumo de erva e haxixe não me
afecta nada, mas as drogas duras mexem-me muito
com a figadeira e atiram-me ainda mais abaixo o
sistema imunitário. Por isso, deixei praticamente de
consumir, embora às vezes ainda faça umas
asneiritas…
- Tenho andado a matutar aonde é que eu
terei contraído esta porra. Será que foi numa
seringa, numa relação sexual, numa transfusão?
Não faço a mínima ideia, meu, fiz tanta merda…
- Também, o que é que lucras em saber?
- Não lucro nada, mas às vezes ponho-me a
pensar na malta com quem vivi, com quem curti,
nas festas a que fui, nas bandalheiras em que
participei, nas cenas de pancadaria em que me
envolvi, muitas vezes com sangue espalhado por
todo o lado. Há toda uma série de recordações, de
situações que me lembro, e qualquer uma delas
poderia estar na base de tudo…
- Não devias - disse Pedro – ou devias, sei
lá. Falando friamente, Marco, que eu não sei falar
de outra maneira, se realmente essa doença te vai
deitar abaixo mais cedo do que aquilo que seria
suposto, o melhor também é não abdicares de tudo,
afinal a vida é curta, pá! Eh, eh. Desculpa estar-me
a rir, mas mais vale rir que chorar e as coisas são
como são.
- Não penses nisso, que não leva a nada.
Esquece! Ponto.
- Não dá. Já estive a falar com a minha mãe
sobre isto e tomei a decisão de ir a Madrid, à casa
onde vivia, falar com o pessoal e pô-los a par da
situação. Alertá-los para a possibilidade de também
eles estarem infectados, sem o saberem. Já tinhas
- Por falar nisso, Pedro, sabes o que não me
sai da cabeça?
- O quê?
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pensado que qualquer um deles pode neste
momento estar a infectar outra pessoa e assim
sucessivamente? Tenho a obrigação moral de
avisar as pessoas e desse modo contribuir para a
desaceleração de todo o processo de contaminação
da sociedade com esta merda, não achas?
- Bem, postas as coisas assim…
- E é por isso que conto contigo para me
acompanhares a Madrid. Apoias-me, fazes-me
companhia, ajudas-me no que for preciso e, mais
importante que tudo o resto, deixas a minha
mãezinha descansada, pois eu sei que contigo
posso ir até ao fim do mundo que ela não se
chateia.
- Que dizes, Ana? Vamos?
- Claro que vamos – disse Ana, que com os
seus vinte e quatro anos estava sempre disposta a
viajar e a conhecer gente nova. Tenho é que tirar
uns dias no trabalho, pois não me apetece ir e vir a
correr. Nem quero ir de comboio, vamos de carro
para podermos curtir pelo caminho.
- Combinados.
85 86
12
Dona Armandina entrou no quarto trazendo
uma caneca de sumo na mão. Marco bebeu um
trago do mesmo e pousou o copo na mesinha de
cabeceira ainda com mais de metade do seu
conteúdo. A mãe disse para se prepararem pois o
almoço estaria pronto dentro de dez minutos. A
Ana, que estava com a boca seca de tantos charros
fumar, pediu a Marco para lhe dar um golo de sumo
do seu copo e, subitamente, entre os três, ficou
criado um impasse. Marco cortou o gelo e disse em
voz alta:
- Mãe! Traz, por favor, um copo para a Ana?
Ana não conseguiu deixar de se desculpar.
- Desculpa Marco, não é que eu tenha nojo
de beber do teu copo, e sei que a tua doença não
se pega assim, desculpa, não sei onde estava com
a cabeça…
Pedro interrompeu-a – Claro que não deves
beber do copo dele, mas não é por ti, é por ele.
Tens que perceber que o organismo do Marco está
desprovido de quase todos os seus mecanismos de
defesa. Ao beberes pelo copo dele podias
transmitir-lhe um qualquer problema de saúde que o
teu sistema imunitário mantém sob controlo, mas
que poderia deitar abaixo o Marco, pois ele está
com as defesas todas em baixo.
Marco concordou, e todos se riram
sinceramente, embora ficassem aqueles dez
minutos que faltavam para o almoço, a comentar a
situação que ali ocorrera. Mesmo entre eles os três,
que eram os maiores amigos, havia momentos de
difícil convívio, em que se criavam silêncios
assustadores, em que havia constrangimento. Se
assim era entre eles, o que esperar de uma
sociedade tão mal informada e cheia de
87 88
preconceitos e, sobretudo, com cada vez menos
laços de solidariedade humanitária. Todo o mundo
associado àquela doença tinha, ou poderia ter, um
passado repleto de muitos e variados
comportamentos não aceites pela sociedade. Era a
droga, a homossexualidade, as ligações
promíscuas e as vidas libertinas. Não era uma
doença fácil de suportar, mas, sobretudo, tratava-se
de uma doença muito difícil de assumir, pela
implicações que tinha ao nível social e da não-
aceitação.
- E está claro que não me vale de nada
discordar… – disse a senhora, vencida, mas ao
mesmo tempo satisfeita, pois não poderia arranjar
melhor companhia para a deslocação do filho e,
casmurro como ele era, iria fazer a viagem fosse
como fosse, e voltando-se para o casal, – e
obrigado, filhos, tomem bem conta do meu Marco.
Não vão…
- Chega, mãe, já somos todos crescidinhos.
Não precisas agora de encher a cabeça destes dois
com os teus conselhos de mãe galinha.
Sentados à mesa, deleitaram-se com o
almoço e, quando se preparavam para acabar a
sobremesa e o café, Marco disse para a mãe:
Todos se riram e a coisa ficou mesmo
decidida.
- É verdade, mãe, falei com o Pedro e com a
Ana e eles concordam em levar-me de carro a
Madrid. Juntamos o útil ao agradável e vamos os
três dar um grande passeio, tiro dai o sentido e não
se fala mais nisso.
89 90
13 Desde que se conheciam que um dos seus
passatempos favoritos era o de comer e beber em
restaurantes típicos e em casa de lavradores
amigos do Pedro. Fruto da sua profissão o Pedro
conhecia centenas de agricultores e fruto do seu
feitio e maneira de ser, tinha, com uma grande
maioria, um grau de à-vontade que lhe permitia,
sem ficar a dever nada por causa disso, fazer-se
convidado para visitar e comer em casa de muitos
deles. Os agricultores tinham sempre um grande
orgulho por o receber, e aos seus amigos, e
mostravam-se imensamente gratos pelos serviços
que Pedro lhes prestara ao longo dos anos. O
Marco nem fazia ideia que serviços seriam esses, a
verdade é que adorava ver o seu amigo Pedro
encarnar aquela personagem rural, usar aqueles
termos que os lavradores sabem, beber vinho e dar
conselhos à refeição sobre as podas, os
tratamentos a efectuar às culturas, a dizer do vinho,
se está bom se está mau, se deveria ter aplicado
Chegaram, o Pedro e a Ana, por volta das
seis da tarde. O Marco mandou-os entrar e a
rapariga foi dizendo que estava tudo combinado.
Iriam dentro de duas semanas. O dia 25 de Abril
calhava numa terça-feira, ela tiraria a segunda e
podiam arrancar na sexta de tarde para só voltar na
terça à noite. Segundo os cálculos do Pedro, em
seis horas estavam em Madrid, mas a proposta do
casal era passarem a primeira noite em Almeida,
perto da fronteira de Vilar Formoso. Tinha lá um
casal de lavradores seus amigos com quem já
falara e ficariam lá a dormir de sexta para sábado,
almoçavam no sábado com os amigos e
arrancavam depois para Madrid, de barriguinha
cheia de produtos da terra, coisa que os três
adoravam.
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este ou aquele tratamento durante a trasfega…o
Marco pasmava-se sempre, pois conhecia Pedro há
muitos anos como um menino de cidade e
admirava-o ver aquele conhecimento profundo
sobre as coisas da terra, muito para além de tudo o
que aprendera na universidade, isso era certo. Se
se desse o caso de se embebedarem, Pedro seria
sempre o último a fazê-lo e era provavelmente o
que mais bebia. Via-se que não faltava aos
treinos…
Estava então combinado: dia 21 de Abril,
sexta-feira, ano da graça de 1995, partiriam os três
rumo a Madrid, com passagem e dormida em
Almeida, à ida. Não tinha nada que enganar, e a
Ana só precisava de queimar um dia de férias. Era
um bom plano.
93 94
14
Pedro e Ana bateram à porta e aguardaram.
Estava uma manhã de Primavera como deve ser:
as árvores dos jardins, parecidas com
pessegueirinhos, estavam todas a encher-se de
flores, os passarinhos chilreavam por toda a cidade,
o céu estava de um azul forte e límpido, o sol
estava quentinho e não corria uma aragem. Para
ajudar ao ambiente, estava pouco trânsito
automóvel e uma peixeira empurrava a sua carrela
com peixe fresco e apregoava-o com uma voz clara
e melódica. Depois de esperar um bom bocado,
tornaram a bater, mas ninguém atendia.
Preparavam-se para desistir e ir embora quando
viram a mãe de Marco dirigir-se a eles, carregada
de sacos. Pedro pegou nos sacos ao mesmo tempo
que a beijava em ambas as faces. Não pôde deixar
de reparar que a senhora deveria ter estado a
chorar, pois tinha a face quente e os olhos rosados,
debaixo das lentes escuras dos óculos. Chegados à
porta da casa, e sem terem conversado na rua, a
senhora convidou-os a entrar. Dirigiram-se à
cozinha onde os três começaram automaticamente
a tirar todas as compras dos seus sacos.
- Então e o Marco? Onde é que ele está?
- Oh, filho, está no S.João. Foi para lá ontem
à noite. Depois do jantar foi-se sentar no quarto
dele, defronte da televisão pois queria ver um
programa qualquer que ia dar. Eu estava a acabar
de arrumar a louça e ele chamou-me, com uma voz
muito rouquinha. Eu fui ter com ele e ele disse-me
que lhe estava a custar muito respirar. Via-se bem o
pescoço dele todo inchado, parecia que estava a
inchar mais naquele preciso momento. Fiquei
assustada, chamei uma ambulância e o médico do
INEM que vinha com ela disse que era melhor ele ir
directo para o S.João, pois é lá que ele tem sido
95 96
sempre acompanhado e medicado. Fui com a
ambulância, chegámos ao S.João deviam ser p’raí
umas onze e meia da noite. Ele foi lá para dentro e
eu fiquei à espera. Deviam ser duas da manhã
quando me chamaram. Disseram-me que não era
nada de grave, uma infecçãozita sem importância
no esófago que deu para inchar e lhe estava a
obstruir a respiração. Deram-lhe medicação, ele
estava perfeitamente estável mas os médicos
queriam que ele lá passasse a noite. Telefonei ao
Vasco, o do táxi, e ele foi-me buscar ao Porto. Logo
à tarde vou lá outra vez a ver se o posso trazer
comigo.
- Por volta das três da tarde.
- Então vamos fazer assim: eu passo por cá
por volta das cinco e vou consigo ao Porto. Se o
Marco puder vir, vem connosco. Se não puder vir,
aproveito para lhe fazer uma visita e falar com o
médico, pois quero que ele saiba que para a
semana vamos a Madrid, e, se ele tiver algumas
recomendações especiais a dar-me pode fazê-lo
em primeira-mão.
- Que bom, filhos, é uma chatice e uma
despesa enorme ir de táxi. E para o homem
também não é grande negócio, pois perde muito
tempo à minha espera durante a visita e, como ele
sabe da nossa situação faz-me sempre um preço
muito especial, que eu estou convencida que está
abaixo do que ele precisa para não ter prejuízo.
Mas ele sempre foi muito amigo do Marco! Às vezes
até manda uma lembrança para ele ou
cumprimentos da esposa. Sabes como é, quando o
Marco era miudinho já o senhor Vasco trabalhava
- E a que horas é que vai?
- Não sei, filho, fiquei de ligar para lá, para a
unidade de infecto-contagiosas, para falar com o
doutor Lacerda que é o chefe de serviços, para
saber a que horas é que posso lá ir, se é para trazer
o Marco ou se tem que lá ficar mais tempo, não sei.
- A que horas ficou de ligar?
97 98
com um carro de praça, e antigamente havia muito
menos carros, nas horas de aflição ter um taxista
por vizinho dava muito jeito e toda a gente contava
com ele. Já fui com um grupo de amigas e com ele
a Fátima. Ele faz um preço muito especial e por
vezes a mulher dele também aproveita para ir ao
Santuário. Estas coisas unem muito as pessoas, e é
nestas horas difíceis que se vê quem são os
amigos.
Às cinco em ponto a Ana e o Pedro estavam
a bater à porta da casa. Dona Armandina veio abrir
a porta e disse:
- Chegais mesmo a tempo de um cházinho!
Acabei agora de tirar do forno uns bolinhos simples,
mas quentinhos, com chá, são uma maravilha. Só
temos que estar no Porto às sete e meia, temos
tempo de tomar um lanchezinho nas calmas, até
porque não sabemos a que horas vimos jantar.
Vocês jantam comigo, ou ceiam, seja a que horas
for, já sabem que logo à noite comem aqui comigo
e, se Deus quiser, com o Marco também
- Dona Armandina – avançou Ana – porque é
que o pescoço inchou daquela maneira?
- Foi uma reacção do organismo. Segundo o
médico me tentou explicar, o pessoal do hospital
ficou muito contente com isso, porque, explicaram
eles, o facto de ter havido um inchaço, quer dizer
que o corpo do meu filho ainda consegue reagir
contra uma infecção. O pior é que o Marco já há
uns tempos que anda muito mal do esófago e do
estômago. Este inchaço ainda lhe deve ter
provocado ainda mais mal-estar, pelo menos é o
que dizem os médicos, porque o meu filho não é de
se queixar, ele só quer, mesmo, é que o mandem
para casa.
- Vamos esperar que ele venha connosco
hoje.
99 100
- É Ana, mas eu vou querer falar com o
médico para lhe dizer que vamos a Madrid no fim-
de-semana do 25 de Abril.
- Acho muito bem, Pedro – disse dona
Armandina – pode ser que o médico tire essa ideia
peregrina da cabeça daquele casmurro.
- Pode tirar o cavalinho da chuva que eu
tenho a certeza que o Marco não vai desistir da ida
a Madrid. Para ele, não ir, está fora de questão.
Agora, se vamos, acho que convém tomar todas as
precauções, até porque eu quero fazer uma viagem
tranquila, umas férias e não uma jornada cheia de
percalços. É o que eu sempre disse à Ana, vamos a
Madrid de passeio. Se os amigos do Marco forem
umas bestas, meia volta e continuamos a curtir a
viagem.
101 102
15
Chegaram à unidade de infecto-contagiosas
e o próprio doutor Lacerda veio recebê-los. Na sua
voz calma, transmitindo o máximo de confiança e
conforto, foi explicando aquilo que já todos
supunham, e disse que a viagem a Madrid não era
nada que Marco não pudesse fazer, mas que
deveria ter os mesmos cuidados que tem em casa.
Evitar expor-se a variações de temperatura, não
abusar na alimentação, principalmente bebidas
alcoólicas em excesso e coisas que lhe possam
afectar o fígado, não esquecer a medicação toda a
horas certas, descansar e não abusar de esforços
físicos.
Durante a sua deslocação pelo labiríntico
hospital o doutor Lacerda foi dizendo que
antigamente, há menos de cinco anos, só cerca de
três por cento das camas da unidade de infecto-
contagiosas estavam ocupadas por doentes com
HIV. Em menos de cinco anos esse número passou
para mais de setenta por cento. Era assustador
observar a velocidade com que esta doença
alastrava no nosso país, quando grande parte dos
países europeus já começava a denotar um
decréscimo nos valores da evolução da Sida nos
seus relatórios.
- Sabe, Pedro, aqui há uns meses apareceu-
me um indivíduo, na casa dos cinquenta anos,
camionista de profissão. Tinha tido contacto com
uma prostituta de estrada, sem tomar o cuidado de
utilizar um preservativo e começou a magicar nessa
situação. Foi conduzido ao meu gabinete e
estivemos a conversar sobre o assunto. Eu dei-lhe
um grande sermão, que ele deveria usar sempre o
preservativo pois poder-se-ia infectar a ele e,
posteriormente, à mulher que tinha em casa, e o
homem, assustadíssimo, acedeu a fazer todos os
103 104
testes necessários ao despiste da doença.
Felizmente não tinha nada, mas andou ali uma
semana, até virem os resultados das análises, em
que, segundo me disse, nem conseguia dormir
sossegado. Quando veio saber os resultados, ficou
eufórico, todo contente por nada de grave lhe ter
sido transmitido nessa imponderada relação. Eu
fiquei a pensar que ele tinha levado uma grande
lição, que o sucedido teria tido nele mais efeitos que
qualquer campanha de prevenção da sida. Qual
não é o meu espanto quando, passado um mês ou
dois, o mesmo tipo me aparece no serviço
exactamente com a mesma história. Não é de um
gajo dar em doido? As pessoas são de uma
inconsciência assustadora. Não foi preciso passar
muito tempo e já estava a fazer a mesma asneira
outra vez. Tornei-lhe a fazer todas as análises,
felizmente a sua sorte repetiu-se mas eu fiquei
completamente parvo com aquele gajo. Apeteceu-
me bater-lhe, sei lá, telefonar à mulher para ela o
pôr à míngua, entende? É evidente que não o fiz,
até porque me é vedado esse tipo de
comportamentos, somos obrigados ao sigilo
profissional, mas é uma sensação de impotência
danada. Quando me ponho a pensar em gente
dessa, chego à conclusão de que esta doença
ainda vai fazer muitos mais estragos.
Pedro e Ana entreolharam-se, incapazes de
pronunciar qualquer comentário. Realmente devia
ser desanimador, para um médico, ver-se
confrontado com tanta estupidez…
Quando chegaram ao quarto onde Marco
estava, deitado na cama mas perfeitamente
acordado, cumprimentaram todos os outros
doentes. Marco já os conhecia a quase todos,
encontravam-se frequentemente, pois todos
entravam e saíam dali muitas vezes, assim como
ele.
- O tubo digestivo do Marco tem uma
infecçãozita provocada por um fungo, uma micose
105 106
normal, uma candidíase simples, mas que lhe
causa um terrível mal-estar, um ardor insuportável
que, por vezes, pode até induzir ao vómito. Como
os líquidos do estômago são muito ácidos, não
convém nada que ele vomite agora, pois isso ainda
iria irritar as mucosas do esófago e aí é que as
dores poderiam tornar-se insuportáveis. O Marco
podia sair já convosco mas, se não se importam de
esperar mais três quartos de hora, eu vou-lhe dar
de jantar pela veia. Assim ele escusa de estar a
ingerir alimentos e a piorar o estado em que está.
Deste modo o esófago repousa toda a noite, pode
beber água, de preferência tépida, e amanhã de
manhã já poderá voltar á sua vida normal, sem
esquecer toda a medicação que lhe prescrevi e que
está tudo explicadinho neste papel – e estendeu
uma folha de papel com uma longa lista de
remédios, horas, doses, etc.
- Já viste Pedro, agora é que eu sou uma
drogaria ambulante. Nem nos velhos tempos dos
assaltos às farmácias eu andava tão carregado de
pastilhas para onde quer que fosse!
Todos se riram, incluindo o médico, para com
quem Marco mantinha uma relação bastante aberta.
O pessoal do hospital tinha um carinho especial por
Marco, pois apercebiam-se que aquele homem
fragilizado já fora um duro, mas conseguiam
adivinhar que nunca aquele corpo albergara um
indivíduo mau. Era algo de muito humano que
Marco transparecia, e ninguém deixava de sentir
essa confiança, quase uma sensação de segurança
que ele transmitia. Sempre fora assim e a doença
que o transfigurara não tinha conseguido esconder
esse traço. O facto de ter sido um homenzarrão
permitia que o seu corpo aguentasse mais do que
seria normal e, por isso, era dos doentes daquela
secção que a frequentava há mais tempo. Marco já
conhecera muitos outros doentes que não tinham
resistido ao vírus e que deixaram de aparecer por
ali. Ninguém nunca perguntava pelos ausentes, era
107 108
uma espécie de tabu, pois todos sabiam a resposta,
não era possível que dissessem que se tinha
tratado e que já não precisava de mais cuidados.
Passou rapidamente, aquela meia-hora de
soro! Pedro disse que ia buscar o carro para a
entrada principal do hospital e que esperava por
eles todos lá. A verdade é que lhe fazia confusão
estar muito tempo dentro daquele edifício, cheio de
luzes e ares artificiais, forçados, condicionados e
esterilizados. Odiava aqueles ambientes, não era à
toa que a agricultura tinha sido a sua opção de vida.
Quando o grupo chegou à saída do hospital,
Pedro estava fora do carro falando com um polícia
de trânsito que deveria estar a perguntar-lhe porque
não havia de o multar pois estava parado num local
destinado a ambulâncias há quase uma hora. Pedro
explicava-lhe que o seu carro era, temporariamente,
equivalente a uma ambulância pois destinava-se ao
transporte de um doente. O polícia parecia já ter
desistido da ideia de o multar mas parecia estar a
gostar da conversa de Pedro. Ele tinha aquilo a que
se chama uma grande lábia e por vezes, como ele
próprio costumava dizer, davam-lhe uns ataques de
verborreia e não conseguia parar de falar. Os
polícias muito vulgarmente costumavam perdoar-lhe
qualquer infracção, só para não terem de o ouvir.
- Ah, que bom, Pedro, ainda bem que está
aqui. Demorámos muito?
- Não – disse Pedro, olhando para o polícia,
como se lhe estivesse a pedir opinião – estava
mesmo agora a dizer ao senhor guarda que
deveriam estar aí a chegar. Bom, entrem para o
carro que estamos aqui a atrapalhar, pode vir uma
ambulância de urgência e estamos a empatar. Além
disso já é tarde e estou a começar a ficar com fome.
Já no carro a conversa foi totalmente
dominada pelo assunto hospital. Já quase a chegar
à Póvoa, Marco desviou o assunto para a ida a
Madrid. A mãe ainda pensou que ele iria mudar de
ideias mas rapidamente percebeu que ele queria
109 110
era começar já a fazer planos e a viver a viagem.
Há muito tempo que não o via tão entusiasmado
com nada e já começava a dar graças a Deus por
ter surgido aquela ideia da viagem, que a princípio
tanto a contrariara.
111 112
16
Pediram uma dose de cozido à portuguesa
para os três. O restaurante ficava desviado da
estrada principal cerca de dez quilómetros mas
Pedro afiançara de que valia a pena fazer o desvio
porque a qualidade e o preço da comida o
justificavam. E não tinha mentido. A Marco parecia-
lhe que estava a comer em casa num dia de festa.
Um cozido era, na ideia dos três, uma comida
extremamente saborosa e que não fazia mal a nada
nem a ninguém. É claro que Marco fez um esforço
para não comer aquelas carnes mais gordurosas e
Ana foi-lhe empurrando para o prato mais umas
colheradas de couves e cenouras. Antes da
sobremesa, Pedro pegou no telemóvel e ligou para
o seu amigo em Almeida, dizendo que dentro de
uma hora, mais ou menos, estariam em sua casa.
Na realidade estavam a pouco mais de um quarto
de hora de viagem, mas Pedro queria aproveitar
bem o fim do jantar. Já não contava ir por estradas
principais, o que queria dizer que poderia
acompanhar a sua sobremesa com uma velhinha,
nome que ele atribuía às aguardentes vínicas
velhíssimas que costumava sempre descobrir a
preço antigo nas ementas destes restaurantes
perdidos no interior.
Acabado o jantar, pediram a conta e saíram,
após o que fizeram um desvio que os conduziu a
um ponto alto de onde se podia observar o ocaso
no meio das montanhas. Cheio de nostalgia, Marco
disse que este poderia ser o seu último pôr-do-sol.
- Não sejas estúpido – ralhou Ana – o teu
último pôr-do-sol há-de ser daqui por muito tempo e
não pode ser no meio dos montes. Tem que ser no
mar, no mar é que é bonito!
Riram-se todos e arrancaram.
113 114
Circulavam muito devagar, sem pressa
nenhuma, observando as luzinhas de pequenas
terriolas pelos montes espalhadas. Paisagem muito
diferente do seu litoral poveiro, pensava Marco, que
nunca se fartava de elogiar as paisagens de
Portugal, como sendo as mais bonitas e variadas do
mundo. Não conhecia muito mundo, mas achava
que dificilmente poderia ser melhor que o seu país.
O pouco que conhecia não o superava e portanto o
resto deveria ser igual.
Chegados a casa do senhor Oliveira e da
dona Francisca, o casal amigo que os aguardava,
foram feitas as apresentações e dirigiram-se a uma
sala muito acolhedora, contígua a uma cozinha à
moda antiga, com um enorme forno de lenha que
ainda crepitava. À noite, na serra, o frio faz-se sentir
rapidamente, mesmo em plena Primavera. Em dias
de céu limpo, como esse, o frio nocturno era
sempre mais acentuado. Mas era um frio seco, bem
diferente do da Póvoa, e muito melhor de suportar.
O Oliveira pediu à esposa que fosse mostrar os
quartos a Ana e os três homens sentaram-se de
volta do lume que de imediato foi reaceso. Logo foi
oferecida uma bebida que os convidados
declinaram, dizendo que tinham acabado de jantar
e de tomar um digestivo. O dono da casa ralhou-
lhes imediatamente, porque deveriam ter comido
com ele, era só avisar, que não fazia sentido, etc.,
etc.
Marco estava realmente cansado e, sem
entrar em pormenores, Pedro disse que o amigo
precisava de descansar e que também já iam sendo
horas de ir dormir, até porque no dia a seguir, bem
cedo, pretendia ir dar uma volta pela zona, até
porque queria avaliar junto com Oliveira, todos os
progressos que efectuara na sua exploração
agrícola. Não pretendia ter que estar a explicar
àquele homem o problema real de Marco, não
porque houvesse nisso qualquer segredo especial,
mas porque a sua sensibilidade lhe dizia que aquele
115 116
não era um assunto que interessasse trazer à baila.
Marco foi efectivamente deitar-se, acompanhado
pelas duas senhoras e, depois, todos se foram
também recolher. Pedro ainda foi ao quarto do
amigo, levando-lhe um jarro com água e um copo,
lembrando-o para tomar a sua medicação, o que
Marco já fizera. De qualquer modo agradeceu de
bom grado a caneca com água e o copo. Era
frequente acordar a meio da noite com a garganta
seca e a pedir líquidos. Desejaram-se boas noites e
Pedro voltou para o quarto onde Ana o aguardava.
- Estou gelada, anda-te deitar.
- Já vou, já vou, estava só aqui a pensar o
que o Oliveira terá pensado do Marco. Ele está um
bocado em baixo, não achaste?
- É normal, Pedro. Já fizemos perto de
trezentos quilómetros. Para ele isto é muito mais
cansativo do que para nós. Muito bem está ele e é
como diz o doutor Lacerda. Ele precisa de não se
esforçar demasiado e deve descansar sempre que
puder. Amanhã vai ser outra estirada até Madrid.
- Não te aflijas por antecedência. Vamos nas
calmas, chegaremos lá na maior. Vá, toca a apagar
as luzes e vamos também nós aproveitar esta noite
de repouso.
117 118
17 Estavam os três a abarrotar de comida,
Marco menos pois tinha feito um esforço para não
abusar de nada, esforço titânico, diga-se de
passagem, pois não era mesmo nada fácil resistir
às iguarias da Francisca, cozinheira de se lhe tirar o
chapéu. Marco vasculhava o porta-luvas à procura
de uma cassete que lhe apetecia ouvir. Lá
encontrou o que queria e pôs a tocar. Ana
dormitava estendida no banco de trás, onde vinha
sozinha. Começou a tocar o Pearl da Janis Joplin e
começaram todos a cantar. Até Ana despertou, o
que era para admirar pois adorava dormir a sesta e
tinha bebido mais do que o normal ao almoço.
Marco sacou dum mapa do porta-luvas, onde tinha
a península ibérica toda de um lado e pormenores
de Madrid, Barcelona e Lisboa na parte de trás.
Marco começou a explicar a Pedro por onde
deveriam entrar quando estivessem às portas de
Madrid. Depois de lá chegarem não foi muito fácil
darem com a localização exacta da rua que Marco
Por vontade do Oliveira o carro viria repleto
de cebolas, batatas, garrafões e todo o tipo de
enchidos, mas o Pedro explicou-lhe que não dava
jeito nenhum ir para Espanha com tudo aquilo,
ainda ficavam retidos na fronteira, acusados de
tráfico de enchidos, e então só levaram meia dúzia
de salpicões e um naco de presunto, só! Claro que
aquilo para eles era mais do que o que poderiam
desejar mas para o senhor Oliveira era o mínimo
que poderia permitir que eles levassem. Eram uma
gente que, além de hospitaleira, gostavam de
oferecer os seus próprios produtos, pois sabiam
que nas cidades era difícil encontrar géneros
alimentares sãos e produzidos à moda antiga, “sem
químicas”, nas suas próprias palavras.
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procurava. Deram muitas voltas e pediram muitas
informações, com a Ana a fazer de tradutora, já que
sempre que o Pedro ou o Marco se lembravam de
falar espanhol, todos se partiam a rir, pois tanto um
como outro não falavam espanhol, mas sim aquela
linguagem de alguns palhaços vestidos de arlequim,
os chamados palhaços ricos. Assim, era Ana que
estava encarregue de todas as conversações,
senão corriam o risco de os interpelados pensarem
que se tratava de alguma partida ou de gozo puro e
desviavam-se sem lhes darem as preciosas e
necessárias informações.
Por fim lá deram com a casa. Tocaram à
campainha e foram atendidos por uma rapariga dos
seus trinta anos, com um bebé ao colo, que os
informou de que já morava naquela casa há mais
de cinco anos e que nunca conhecera os anteriores
inquilinos. Aconselhou-os a perguntarem ao senhor
Pepe, que era o dono de uma pequena tasca que
distava cerca de vinte metros da porta do edifício.
Assim fizeram e entraram na referida tasca, que era
mesmo uma tasca, ou bodega, como dizia na
tabuleta da porta.
Ana dirigiu-se ao balcão e perguntou à
empregada por detrás dele se o senhor Pepe
estava. A rapariga disse-lhe que ele tinha saído e
perguntou para o que era. Ana disse-lhe que
precisava de umas informações sobre um grupo de
pessoas que tinham morado ali perto, naquele
edifício logo ali, etc., etc.
A rapariga olhou melhor para Marco e
reconheceu-o, pois era filha do dono do
estabelecimento e lembrava-se vagamente da sua
cara, embora estivesse muito diferente, mais magro
e envelhecido, disse, desculpando-se. Foi atender
outros clientes que chegaram entretanto, deixando
a impressão de que o que teria para lhes dizer
carecesse de vagar, não era um recado que se
desse à pressa. Os três tiveram essa mesma
sensação e escolheram uma mesa de volta da qual
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se sentaram. Ana pediu-lhe dois cafés e uma água
natural e ficaram a aguardar.
Quando a rapariga trouxe o pedido, sentou-
se também na mesa e disse-lhes, num tom de voz
mais baixo que o natural, que as pessoas daquela
casa tinham desaparecido há vários anos. Que
todos adoeceram com sida e que, um a um, todos
haviam falecido. Havia um, um basco, que havia
falecido depois de ter sido detido, acusado de
tráfico de droga. Uma rapariga, a Maria, parecia
dedicar-se à prostituição e costumava atacar ali
pela zona, mas depois do basco ser preso, também
ela deixou de circular, andava já com um aspecto
muito doentio a última vez que a vira por ali. Havia
ainda um outro, um francês, que até costumava ser
ali cliente, mas esse foi logo o primeiro a ter
desaparecido. Já há mais de cinco anos que todos
os que lá moravam tinham partido desta para
melhor. Marco estava paralisado, sem palavras.
Fora completamente apanhado de surpresa. Nunca
imaginara que já nem um deles restasse, era
realmente assustador. Ana, apercebendo-se do ar
pesado que se estava a abater sobre aquela
mesinha, levantou-se, pediu à rapariga que lhe
tirasse a conta e, com um ar desafiador voltou-se
de novo para a mesa e disse:
- Como é? Vão ficar aí os dois com esse ar
de paspalhos a olhar para ontem ou vamos dar um
giro?
- É – balbuciou Marco – é melhor irmos dar
uma volta.
- Marco, já alguma foste ao Escorial, Vale
dos Caídos? Dizem que é espectacular, mas nunca
tive oportunidade de visitar. E se fossemos lá?
- Por acaso, embora tenha vivido aqui tanto
tempo, nunca me deu para ir visitar aquilo. Acho
que fica aqui a cerca de cinquenta quilómetros.
Podemos lá ir. Mas hoje não. Temos que ir tratar de
arranjar um sítio para dormir, pois não tarda nada é
noite e convém procurar um sítio baratinho.
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- Eu estava a pensar que podíamos arranjar
um sítio para ficar nos arredores da cidade, que é
que vocês acham?
Os dois homens entreolharam-se e
encolheram os ombros.
- Então está decidido – disse Ana, que tinha
sido silenciosa e unanimemente nomeada a
responsável pela tomada de decisões. Os dois
homens estavam com os cérebros parados pelo
desenrolar dos acontecimentos e pelas notícias
avassaladoras. Nem Pedro nem Ana se atreviam a
perguntar nada a Marco, temendo que qualquer
coisa que dissessem pudesse cair mal. Não podiam
fazer ideia daquilo que Marco estaria a sentir. Só
Pedro, tendo um rasgo de génio, se atreveu a cortar
o silêncio:
- E se telefonasses à tua mãe a dizer-lhe que
chegamos bem a Madrid?
- Boa ideia, mas vamos encostar o carro um
bocadito a caminho do Escorial. Aquilo é no cimo de
uma serrazita e apetece-me respirar um bocado de
ar puro.
Quase a chegar ao monumento, Marco
parou o carro na berma da estrada, numa curva que
tinha um miradouro donde se podia avistar Madrid,
ao longe.
- É uma cidade enorme…- pasmava-se Ana.
- E nunca dorme – completava Pedro.
Marco mantinha-se calado, os seus olhos
abertos sobre a paisagem, mas nada via. Um
turbilhão de pensamentos baralhados impedia-o de
ver, de falar, de sentir, até. E ainda bem, as notícias
eram demasiado duras e violentas para serem
digeridas de repente. No fundo ele acabara de
receber a notícia da morte de pessoas que, em
maior ou menor grau, haviam sido seus amigos, no
mínimo companheiros de muitas experiências.
Deveria ser uma sensação muito estranha,
sobretudo porque Marco tinha a nítida noção de
pertencer a um grupo de gente falecida; nunca se
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vira em semelhante papel e pela primeira vez na
sua vida sentiu medo, medo de morrer, um medo de
morte da morte. Acabaram por não se instalar em
nenhum hotel, nem pararam no Escorial para ver
nada. O carro foi andando em direcção à noite, em
direcção à fronteira. Marco passou para o banco de
trás e dormiu horas a fio. Quando acordou,
perguntou, estremunhado, onde estavam.
- Estamos a caminho de Trancoso.
- O quê? Já saímos de Espanha?
- Há muito tempo, eu e o Pedro decidimos
continuar viagem, afinal em Portugal é tudo muito
mais barato e já não temos nada a fazer em
Espanha. Decidimos vir pelo interior, para apreciar
as paisagens. Estávamos a pensar ir almoçar perto
de Lamego, o Pedro conhece bem aquilo, dos
tempos da tropa e diz que se come lá muito bem.
- E é verdade. Além disso apetecia-me
comprar uma bola de presunto em Lamego, para
comer na viagem. Que dizem a almoçar em
Lamego e depois rumar ao Alto-Douro, pela
marginal do rio até lá acima ao pé da barragem da
Bemposta?
- Por mim, tudo bem – disse Marco – mas
não quero passar outra noite no carro, fico todo
partido.
- Podemos ir por aí acima e ficar a dormir em
Miranda do Douro. Conheço lá um sítio porreiro
para ficar. Dá para comer uma posta mirandesa e
dormir no mesmo sítio, que é o melhor. Eu quando
como uma posta tenho que a regar como deve ser,
e depois disso não me vou meter a conduzir.
Ficávamos lá, acho que se chama hospedaria
“Lareira”, mas já não tenho a certeza. De qualquer
maneira, sei onde fica, aquilo é uma vila pequena,
não há que enganar. Amanhã de manhã levantamo-
nos e podemos ir ver a barragem e depois vamos
pelo Montesinho até Bragança. Que dizem, agrada-
vos o roteiro?
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- Por mim, está óptimo – disse Marco – não
conheço esta zona e até estou a gostar.
E assim foi. Comeram a posta, passaram o
Montesinho, foram a Bragança onde também
pernoitaram, depois passaram em Vila Real, foram
a Chaves, passaram a fronteira para Verin, tendo
atestado o depósito do carro assim que entraram
em Espanha e dirigiram-se ao litoral sempre por
Espanha, tendo entrado em Portugal perto de
Monção, onde passaram a sua última noite. Tinha
sido uma grande volta, mas era necessária, para
desanuviar as suas cabeças do choque que haviam
levado em Madrid.
Entretanto já era dia de trabalho e Ana já
estava em falta, pelo que teve de telefonar para o
seu emprego dizendo que lhe surgira um imprevisto
que a obrigara a faltar ao trabalho. Felizmente o seu
patrão era uma pessoa com quem se podia falar e
que lhe disse para não se preocupar. Convém aqui
dizer que não era costume da Ana baldar-se ao
trabalho, e, por isso, o patrão se mostrava
compreensivo, tinha a certeza que ela teria bons
motivos para não se ter apresentado ao trabalho e
não a encheu de perguntas incómodas. Disse-lhe
somente para que tentasse arranjar uma
justificação médica para não haver chatices para
ninguém, o que ela acabou por fazer.
Era então quarta-feira quando chegaram à
Póvoa, ainda a tempo de almoçar, estando dona
Armandina a contar com eles. Depois dos abraços e
beijinhos foram de imediato almoçar e, embora a
senhora tenha tentado, não conseguiram falar sobre
o sucedido em Madrid. Foi preciso a Ana dizer que
não tinha sido muito animador mas que depois o
Marco falaria com ela. Agora queriam era comer e
falar de frivolidades. E assim foi.
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18
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Marco estava sentado numa cadeira da
esplanada defronte do mar e do cais da Póvoa.
Costumava ir de bicicleta passear junto ao seu mar,
apanhando aquele ar fresco e o cheiro a maresia,
que só na Póvoa se conhece, e não trocava isso
por nada. Ao contrário do que lhe apeteceria,
antigamente costumava sempre tomar um café
curto ou, se fosse imediatamente antes do almoço
um martini com cerveja, estava a tomar uma cevada
e a comer um bolinho de arroz, o mais inocente que
estava no mostruário dos bolos. Eram cuidados
alimentares aos quais estava já completamente
habituado, nem sequer lhe passava pela cabeça
cometer pecados alimentares, pois o seu esófago
não lhe dava tréguas e o melhor era manter aquele
regime prescrito pelos seus médicos e tentar
prolongar ao máximo aquele período de bem-estar,
cada vez mais raro. Agora, se tivesse um período
de duas semanas sem ter necessidade de se
deslocar ao hospital já era uma grande vitória e,
desde que tivera a sua última crise, antes da ida a
Espanha, já se tinham passado quase vinte dias.
Era realmente uma grande conquista e isso só era
possível levando à risca os conselhos de toda a
equipa médica que com ele se preocupava e,
principalmente, seguindo a dieta que a sua mãe
escrupulosamente preparava, sempre com o
cuidado de lhe colocar na mesa o peixinho mais
fresco, a fruta mais variada e tudo de fácil digestão.
Também a bateria de medicamentos lhe era
colocada defronte, sempre a horas certas, pela sua
incansável mãe. Por outro lado, e nunca se
esquecia disso, podia também contar com um
restrito grupo de amigos que, cientes dos seus
problemas de saúde, tudo faziam para o ajudar.
132
Nessa manhã, estava um dia maravilhoso,
daí ter-se dado ao luxo de sair de bicicleta. Como
era evidente, se estivesse um dia de chuva Marco
ficaria confinado ao seu quarto; era uma das
principais recomendações dos médicos, evitar
resfriados, pois no seu estado poder-se-iam
facilmente transformar em pneumonias ou
broncopneumonias que o poderiam matar. Embora
a sua vida se estivesse a tornar cada vez mais
desagradável, estava também, e em simultâneo, a
tornar-se mais valiosa, a morte era uma sombra da
qual fugia com cada vez maior receio, já que cada
vez a avistava com maior proximidade e nitidez, e
não encontrava nela nada de agradável, a não ser o
facto de constituir o final dos seus tormentos. Por
outro lado, o amor que nutria por sua mãe, e o
reconhecimento pelo conjunto de esforços que ela
fazia por ele, impediam-no de considerar a hipótese
de se deixar morrer, nem a mãe nem os seus
amigos mereciam essa desistência, essa fraqueza.
Estava absorvido por todas estas reflexões,
quando viu chegar junto de si a Ana. Viera também
de bicicleta, aproveitando a manhã de sábado. As
manhãs de sábado, para os poveiros, são muito
mais agradáveis que as de domingo, pois ao
sábado as famílias das terras em redor dedicam-se
a ir às compras, sendo o domingo o dia escolhido
para a invasão da marginal da Póvoa, ficando os da
terra privados do seu sossego.
- Bom dia Marco, bem disposto?
- Sempre, ou melhor, sempre que posso.
Hoje estou particularmente bem, até me está a
apetecer beber uma cerveja com martini.
- Mas não bebas, Marco, sabes bem que
essa porcaria te faz um mal danado. Segue o
conselho do médico e evita. Se te apetecer muito,
muito, então mais vale beberes um vinhinho do
Porto, que sempre é uma bebida natural, com muito
menos químicos que esses vermutes que nós nem
sabemos exactamente como são feitos.
133 134
- Porra, já pareces o teu homem a falar. Acho
que se toda a gente fosse como ele, não havia
vinho que chegasse no mundo e as fábricas de
cerveja, de vermutes e de licores iam todas à
falência. Para ele, bebidas são vinho, aguardentes
vínicas velhas, Porto e água, sem gás, claro. Ainda
estou para perceber se ele faz isso por uma
questão de gosto ou se é para ajudar os
agricultores e, consequentemente, garantir que
nunca lhe falte trabalho.
- Não, ele gosta mesmo. Acreditas que estou
com ele há mais de dez anos e nunca o vi beber
uma Pepsi? Uma vez bebeu um golo de uma coca-
cola que eu estava a beber e o seu comentário foi
que agora já percebia porque é que aquilo era bom
para desentupir canos. Claro está que, e isto foi
num local público junto com os meus sobrinhos,
caiu-lhe em cima toda a malta nova que estava no
local, começando logo todos a dizer que o vinho era
o produto mais falsificado do mercado, o que se
calhar até não é mentira. Mas deixa-me dizer-te
uma coisa. Agora, quando vinha a passar e te vi
aqui sentado, parei a bicicleta ali ao fundo e
comecei a andar na tua direcção e sabes o que me
pareceu ver ao olhar para ti? O Tom Hanks,
naquele filme novo com o Denzel Washington, o
“Philadelphia”, já viste?
- Não, minha, a última coisa que me apetece
é ver filmes de gajos com Sida. Já tenho esse filme
todos os dias e já é dose…
- Acredito. Mas ao ver-te tive essa imagem, o
teu boné de pala, as tuas calças de ganga, o Kispo,
reportou-me mesmo para essa cena, e ao
interiorizar isso vi-te com outros olhos. A gente
pensa sempre que o teu caso vai ter um desfecho
diferente do das outras pessoas com a mesma
doença. Alimentamos sempre uma esperança de
que esta tua história vai ter um final feliz…
- Mas não vai, minha linda. O final vai ser um
final. Será mais feliz se a história se puder alongar,
135 136
será mais triste se for de imediato. É só essa a
diferença que poderá haver, não te iludas. Mesmo
que fosse descoberta a cura para esta merda, já
não seria para mim, mas eu já nem me iludo. Tenho
observado com alguma atenção os rios de dinheiro
que é preciso para manter viva e com um mínimo
de qualidade de vida uma pessoa como eu e isso,
multiplicado pelos milhões de casos que devem
existir, representa muito dinheiro. E alguém está a
mamar…e esse alguém são os laboratórios, os
centros de saúde particulares, etc., gente muito
poderosa que, com certeza, irá fazer render o peixe,
como se diz aqui na nossa terra. Portanto, filha, não
te iludas, nem alimentes em ti, ou em mim, falsas
esperanças. As coisas são assim mesmo e a única
coisa que eu desejo é que Deus me leve depois da
minha mãe, sempre era menos um desgosto que
ela tinha que suportar. Ao longo da minha vida
nunca lhe dei grandes alegrias: nunca fui um bom
aluno na escola, nunca fui aquele filho atencioso
que ela gostaria, nunca lhe dei uma nora ou netos,
abandonei-a muitos anos sem aparente
necessidade, percebes? Acho que ela não merecia
perder um filho, é isso, e gostava muito de o evitar.
É por ela que eu luto, sinceramente. Claro que eu
sei que os meus amigos também contam, alguns,
como tu e o Pedro, mas para vocês a vida continua,
mesmo que eu desapareça. Para ela é diferente. Eu
vejo como ela, ao fim de tantos anos, continua a
chorar defronte da fotografia do meu pai, a falar
com ele e a pedir-lhe conselhos sempre que na vida
surge qualquer complicação. Às vezes imagino-a,
daqui por uns anos, ainda mais triste e mais só, a
chorar defronte da minha fotografia também, e isso
irrita-me. É uma coisa que eu não tenho a certeza
de conseguir evitar e que cada vez me parece mais
provável.
- Pois é, Marco, mas ao ter a visão de ti e de
me lembrar do tal filme, acho que foi um choque.
Nunca tinha percebido a gravidade da situação.
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Acho mesmo que estava a ver tudo isto como um
filme diferente dos outros e que o final iria ser um
final feliz. Acho que levei um choque.
- Bolas, Marco, que grande lição me estás a
dar! Hei-de lembrar-me desta conversa para
sempre, acho até que a deveria escrever para
passar às gerações vindouras – e riu-se com aquela
sua felicidade contagiante.
- Mas ainda bem que falaste, porque eu já
não tenho problemas desses e posso-te ajudar a
enfrentar melhor a situação. Por exemplo, há
imensa gente que é saudável e que não tem uma
única pessoa amiga com quem tomar um copo
numa esplanada. Outros, têm a vida tão subjugada
ao dinheiro que nem sequer reparam que está um
dia de sol maravilhoso, sempre a correr dum lado
para o outro e preocupados em comprar mais e
mais coisas às quais não dão qualquer valor, a não
ser aquele que marcava a etiqueta aquando da sua
aquisição. Nesse sentido, e noutros que não é difícil
de imaginar, consigo ter uma perspectiva de vida
muito mais feliz e risonha, mesmo sabendo que
amanhã posso não estar cá, hoje estou e estou a
fruir. Isso é que é bonito!
Marco dera-lhe efectivamente uma grande
lição. Uma lição importante para todos os que não
dão valor às pequenas coisas. Uma lição para todos
os que assumem o facto de ter saúde como
garantido. Tudo pode mudar de um dia para o outro
e, por isso, devemos mesmo aproveitar as coisas
simples da vida, pois são as mais valiosas.
- Queres vir almoçar lá a casa? É só ligar à
minha mãe. O Pedro está à tua espera?
- Não, ele hoje foi visitar uma quinta qualquer
para os lados do Pinhão e só deve chegar à noite.
Ainda por cima não levou o carro dele porque ia
haver uma prova de vinhos e tu sabes como ele é,
não perdoa. Não é daqueles que bochecha e deita
fora, ele gosta mesmo de beber. Por isso, pediu a
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um colega se o levava e dividem a gasolina, e
assim pode comer e beber à vontade, sem se
preocupar com o carro.
- Pensas que me ganhas? Eu estou doente
mas ainda não estou morto. Dou-te uma ratada que
não tens hipóteses.
- Faz ele bem. Então está dito, vens comer lá
a casa. Vou só ligar à minha mãe para ela estar a
contar com mais um. Não é que tu comas muito,
mas sabes como ela é, se não lhe digo nada,
depois enche-me a cabeça porque “podia ter feito
isto e aquilo” e “a Ana que me desculpe, sabe como
é a casa dos pobres”, essas tretas que ela tem
sempre que dizer como se tu fosses de cerimónia.
E afinal não me custa nada ligar-lhe, e eu sei que
ela faz muito gosto que almoces connosco. Se um
dia eu morrer, ou quando eu morrer, se for antes
dela, gostava que tu e o Pedro continuassem a
passar lá por casa. Sois os meus melhores amigos
e ela gosta muito de vocês, seria para ela um duplo
choque se vocês deixassem de lá passar.
E ambos montaram nas bicicletas e partiram
a grande velocidade, Marco à frente, pois Ana não
quis que fosse ao contrário.
- Deixa-te de conversas idiotas e vamos mas
é dar uma esgalhada nas bicicletas.
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19
Os dias passavam a uma velocidade que a
Marco parecia exagerada, irreal. O tempo fugia-lhe
por entre os dedos, como a areia da sua querida
praia da Póvoa. Sentia vontade de visitar uma série
de pessoas que já não via há muito tempo e das
quais nada sabia. Nem sequer estava a pensar em
nenhuma pessoa em particular, era assim um
pensamento solto, muito inconsequente. Apetecia-
lhe fazer tudo e nada. No fundo, o que realmente
lhe apetecia era não ter aquela terrível sensação de
estar a viver a prazo. Cada dia que passava era
uma dádiva. Os doentes que encontrava na unidade
do hospital de S.João que frequentava, eram cada
vez mais desconhecidos e numerosos. Aqueles que
se recordava de lá encontrar aquando das suas
primeiras idas àquele serviço, nunca mais os vira e
ele sabia bem o que isso queria significar. Era
também assustador verificar que os recentes
frequentadores eram cada vez mais novos, ou seria
ele que estava cada vez mais velho e já nem
reparava nessa evolução? De qualquer das formas,
parecia-lhe cada vez mais improvável concretizar o
seu desejo de morrer depois da mãe, e isso
magoava-o, sentia-se impotente para controlar essa
situação, era uma daquelas coisas que, nem
mesmo com todas as orações e promessas que a
mãe fazia ao seu Deus, poderia ser evitada. Era em
momentos como esse que lamentava não partilhar
com a mãe dessa fé fervorosa. Sempre seria algo
mais a que se agarrar, mas infelizmente a fé não se
controla. Ou se tem ou não se tem, e não há volta a
dar-lhe.
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20
Havia já cerca de três semanas que Marco
estava no Porto, no hospital. A mãe tinha
aproveitado a visita de Pedro para desabafar um
pouco. Pedro tinha ido visitá-lo a Porto, na véspera,
e tinha vindo de lá imensamente desanimado. Era o
fim, e custava-lhe falar com a Dona Armandina
sobre isso, mas também havia pouco mais sobre o
que falar. O doutor Lacerda dissera-lhe que já não
havia mais nada a fazer. O Marco deixara de
comer, só se alimentava por via intravenosa, e tudo
lhe provocava sofrimento e mal-estar, até mesmo
respirar ou beber água. Interrogado por Pedro sobre
o que poderia ser feito, o médico dissera que nada
havia a fazer. Ambos chegaram à conclusão de que
se era efectivamente o fim, então o melhor seria
Marco ir para casa e morrer em paz na sua
caminha. Assim decidiram, mas acharam por bem
nada disso dizer à mãe.
Assim, Pedro disse à senhora que nessa
tarde, de acordo com o médico, iria buscar Marco
ao hospital e trazê-lo para casa. A senhora achou
que era mais um dos normais regressos a casa,
possivelmente porque o filho se encontrava
melhorzinho, e assim ficou decidido.
Chegaram os dois do Porto por volta das
nove da noite, Marco já tinha jantado e estava na
hora de se ir deitar e descansar. Ana também
aparecera lá em casa e fazia companhia à senhora
desde a hora em que Pedro se ausentara. A
senhora, que era tudo menos burra, tendo deixado
o filho já deitado na cama, apertou o braço de
Pedro com muita força enquanto se dirigiam para a
saída da casa e perguntou-lhe:
- É o fim, não é, Pedro? Ele está tão
fraquinho…
Pedro não lhe mentiu:
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– É, dona Armandina, pode pôr o coração ao
largo, mas é efectivamente o fim. E é melhor que
seja assim pois, segundo disse o doutor Lacerda, a
sua qualidade de vida está já muito má e cada dia
que ele possa viver mais será para ele um grande
sofrimento. Vamo-nos preparando para o pior e seja
o que Deus quiser. Manter o Marco vivo seria para
ele uma verdadeira tortura, pois tem muitas dores e
nós nem imaginamos a metade porque ele é rijo e
esconde-nos a maior parte do seu sofrimento. Já
falei com a Ana e, se a senhora quiser, ela passa cá
a noite consigo, para a senhora poder descansar à
vontade, se o Marco precisar de alguma coisa a
Ana atende-o. A senhora também precisa de dormir
uma noite sossegada.
- Não vale a pena, obrigado, meus queridos,
mas eu prefiro ficar sozinha; já estou habituada.
- Como queira, então. Um beijo…
E saíram da casa em direcção ao carro.
Pedro disse a Ana que Marco já não deveria
acordar, e assim foi. Morreu em paz, a dormir, sem
dores e sem angústias, na sua caminha como
sempre desejara.
147 148
21
Ana e Pedro apareceram em casa de Marco
muito mais cedo do que era habitual, antes da hora
normal de ele acordar. Quando veio à porta, a mãe,
de olhos vermelhos e inchados de ter passado toda
a noite a chorar, mandou-os entrar e abraçou-se
demoradamente a ele. Pedro ficou meio
constrangido, pois não era nada dado a pieguices,
detestava esses momentos. Disse:
- Já não acordou, dona Armandina, teve uma
morte santa. Foi melhor assim, foi como ele
desejava, em casa da mãe. O seu único desgosto
foi morrer antes de si, não lhe queria causar mais
esse sofrimento, mas não há nada a fazer. Dê-me
os documentos necessários e deixe-se estar em
casa com a Ana que eu vou tratar de todas as
papeladas e de falar com a funerária. Não se
preocupe com mais nada. Quer que fale a alguém?
Precisa de alguma coisa especial?
- Não filho, não preciso de nada. Só
precisava era do meu filho de volta.
Impotente perante a situação, Pedro deixou
as mulheres e saiu para a rua, a fim de tratar de
todos os assuntos e de se proceder ao enterro com
a maior celeridade possível.
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22
A igreja teria umas cem pessoas. Muitas
beatas, amigas da mãe e alguma rapaziada nova,
amigos recentes de Marco. Da malta da velha
guarda só estariam meia dúzia de pessoas. O padre
fez um sermão completamente descabido para a
situação e Pedro e outro colega do seu tempo
ajudaram a carregar o caixão até ao cemitério. Ana
foi directamente para casa, pois odiava o som da
terra a bater na madeira do caixão.
FINIS LAOS DEO
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