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Marcas do Pós-modernismo em Ricardo Piglia e Silviano Santiago
Letycia Fossatti Testa
Wellington Ricardo Fioruci
(Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR)
Resumo: Este artigo objetiva analisar, sob um caráter comparativista, como a historiografia e
seus discursos são revisitados e reinterpretados criticamente nas obras Em liberdade (1981),
do brasileiro Silviano Santiago, e em Respiração Artificial, do argentino Ricardo Piglia (1980),
a partir das características do período literário conhecido como o Pós-modernismo. Ambas as
narrativas retratam períodos importantes vivenciados no Brasil e na Argentina e os autores
utilizaram várias estratégias discursivas tidas como pós-modernas para tratar destes fatos
históricos e construir suas ficções. Diante disso, buscar-se-á relacionar as duas narrativas, os
contextos sócio-históricos nelas retratados, que refletem a história de ditaduras, repressões e
violências vivenciados na América Latina e os recursos estilísticos empregados pelos autores,
principalmente a metaficção historiográfica, sob a perspectiva de Linda Hutcheon (1991). Estas
características revelam o caráter crítico, paradoxal e reflexivo evidenciado pelo pós-
modernismo, assim como refletem criticamente a história do contexto latino-americano a partir
de uma revisitação do passado por meio da literatura de Santiago e Piglia.
Palavras-chave: Historiografia; Pós-modernismo; América Latina; Metaficção
Historiográfica.
Abstract: This article aims to analyze, in a comparativist way, how the historiography and its
discourses are revisited and critically reinterpreted in the books Em liberdade (1981), by the
brazilian writer Silviano Santiago, and in Respiração Artificial, by the argentine writer Ricardo
Piglia (1980), from the characteristics of the literary period known as Postmodernism. Both
narratives portray important periods lived in Brazil and Argentina. This authors used several
discursive strategies considered as postmodern to deal with these historical facts and to
construct their fictions. In this way, this study will try to relate both narratives, in the socio-
historical contexts that reflect the history of military dictatorships, the repressions and the
violence that were experienced in the Latin America and the stylistic resources employed by
the authors, especially the historiographic metafiction, from the perspective of Linda Hutcheon
(1991). These characteristics reveal the critical, paradoxical and reflective character evidenced
by the postmodernism, also reflect in the critical way the history of the Latin American
contexto, revisiting the past through Santiago and Piglia literature.
Keywords: Historiography; Postmodernism; Latin America; Historiographic Metafiction.
Introdução
Este artigo objetiva analisar e relacionar duas obras contemporâneas: Respiração
artificial, do argentino Ricardo Piglia e Em liberdade, do brasileiro Silviano Santiago, visando
identificar como ambas remontam ao passado para criticá-lo, assim como, implicitamente,
criticam o tempo presente vivenciado pelos autores, que era a Ditadura Militar brasileira e a
argentina. As narrativas, apesar de pertencerem a contextos distintos, permitirão várias
reflexões, sobretudo pelas características pós-modernas que possuem, como a metaficção
historiográfica.
Para tanto, buscar-se-á realizar uma análise comparada das duas obras, verificando
como a historiografia e seus discursos são reinterpretados e discutidos, através de estratégias
discursivas que conferem um status crítico às narrativas, como a metaficção historiográfica,
sob a perspectiva de Linda Hutcheon (1991). Ademais, estes temas fundamentados no pós-
modernismo contribuirão para uma reanálise dos contextos de produção e recepção das obras,
que refletem os objetivos do período literário que pertencem, aberto a inúmeras interpretações
e/ou reinterpretações.
A América Latina refletida e reinterpretada no pós-modernismo de Piglia e Santiago
A história dos países latino-americanos é caracterizada por muitos processos violentos
e opressivos, como as ditaduras, que deixaram profundas cicatrizes sobre seus povos, sua
cultura, política, economia e, genericamente, sobre seu passado, registrado pela historiografia,
sociologia, economia, em documentos oficiais e até na literatura. No entanto, o advento do
período literário conhecido como Pós-modernismo, do qual os autores analisados neste artigo,
Silviano Santiago e Ricardo Piglia, fazem parte, está propiciando novas formas de (re)pensar
estes acontecimentos, ao criar ficções que abordam, de forma crítica e reflexiva, a própria
realidade e/ou história vivenciada, observada e/ou estudada pelos autores.
Portanto, o pós-moderno realiza dois movimentos simultâneos. Ele reinsere
os contextos históricos como sendo significantes, e até determinantes, mas,
ao fazê-lo, problematiza toda a noção de conhecimento histórico. Esse é mais
um dos paradoxos que caracterizam todos os atuais discursos pós-modernos.
E a conclusão que se tira é a de que não pode haver um conceito único,
essencializado e transcendente de “historicidade autêntica” [...].
(HUTCHEON, 1991, p. 122).
Nesse sentido, uma das característica desta estética é remontar ao passado para critica-
lo, para desconstruir e/ou revelar determinadas visões obscuras ou parciais que se tinham a
respeito de determinado acontecimento histórico. Para fazer isso, os autores pós-modernos
utilizam várias táticas discursivas em seus textos, como a metaficção historiográfica, a ser
analisada neste estudo, por ser uma característica evidente tanto Em liberdade, quanto em
Respiração Artificial. Linda Hutcheon, em Poética do Pós-modernismo: história, teoria, ficção
(1991), aborda esta poética, referindo-se principalmente, a metaficção historiográfica:
A metaficção historiográfica refuta os métodos naturais, ou de senso comum,
para distinguir entre o fato histórico e a ficção. Ela recusa a visão de que
apenas a história tem uma pretensão à verdade, por meio do questionamento
da base dessa pretensão na historiografia e por meio da afirmação de que tanto
a história como a ficção são discursos, construtos humanos, sistemas de
significação, é a partir dessa identidade que as duas obtêm sua principal
pretensão à verdade. (HUTCHEON, 1991, p. 127).
A obra Em liberdade, denominada pelo próprio autor, Silviano Santiago (1936-), como
uma “ficção”, foi publicada em 1981 e é uma espécie de diário do romancista brasileiro
Graciliano Ramos (1892-1953), famoso na história do romance regionalista da década de 30.
Neste diário de Ramos, Santiago remonta e recria, por meio da literatura e suas manifestações
linguísticas, o período após a saída da prisão do escritor alagoano, que foi preso pelo governo
de Getúlio Vargas em 1936, permanecendo na cadeia por quase um ano, sendo que nunca foi
comprovado nada com relação aos motivos da prisão do artista. Entretanto, indiretamente,
muitos acreditam que ele foi encarcerado por ser tido como comunista, indo contra a ideologia
pregada pelo governo autoritário de então.
O diário retrata a angústia vivenciada pelo escritor após sua soltura, que, ao contrário
do que se espera, não foi um período com sentimentos de liberdade, pois, mesmo livre, viviam
uma crise existencial consigo mesmo e com o restante da sociedade, sentia-se oprimido frente
a tudo e todos. Vivia no Rio de Janeiro, longe de sua terra natal e dos filhos, de favor na casa
de José Lins do Rego - um dos vários personagens escritores da narrativa -, sem condições
financeiras, sem sucesso e reconhecimento literário e/ou profissional.
Além disso, era obrigado a enfrentar diariamente a exigência insensível de várias
pessoas que desejavam uma obra sobre seu cárcere, denunciando o governo e sua truculência
e se afirmando como vítima, perante os acontecimentos fatídicos de sua vida. Entretanto,
Ramos critica e ironiza esse posicionamento das pessoas perante ele: “Aqui fora existem outras
e diferentes armadilhas [...]. Querem que eu aqui – em liberdade – volte para trás, volte para
detrás das grades; não querem deixar-me construir a minha vida em liberdade, sem as peias da
repressão militar e policial. Eis a armadilha.” (SANTIAGO, 2013, p. 65). Deste modo, o
romance de Santiago é a contrapartida ficcional, e não menos histórica, das Memórias do
cárcere (1953), testemunho controverso de seu tempo.
Não bastasse a complexidade dessas questões e do retrato que faz do governo de Getúlio
Vargas, Ramos, em seu diário – ficção criada por Santiago – remonta outro período histórico
brasileiro, o século XVIII, marcado pela Inconfidência Mineira, por meio do relato de um
sonho que teve sobre a morte de Cláudio Manuel da Costa, poeta do seu tempo e envolvido
com as causas da Inconfidência. No sonho é “revelado” que o inconfidente não se suicidou,
como prescrito nos documentos da história oficial do país, mas foi assassinado pelo governo
português. A partir deste sonho ou devaneio, o escritor-personagem decide escrever um conto
para revelar e/ou “denunciar” esse acontecimento. Portanto, Santiago remete diretamente a
duas épocas distintas, a Era Vargas e a Inconfidência Mineira, marcadas por autoridades
ditatoriais, violentas e opressivas no poder e sobre o país, o que acaba por refletir,
indiretamente, a própria época de produção e publicação da obra: a Ditadura Militar brasileira
(1964-1985).
De forma correlata, a obra argentina, Respiração artificial, de Ricardo Piglia (1941-
2017), caracterizada como um romance epistolar, foi publicada no contexto ditatorial do país,
em 1980, e retrata, mais especificamente, o ano de 1976, com épocas e personagens históricos.
O livro é dividido em duas partes, sendo que a primeira aborda o contato, por meio de cartas,
entre Emilio Renzi, provável alter ego de Ricardo Piglia, e seu tio, Marcelo Maggi, tido como
desaparecido pela família desde que, supostamente, roubou e fugiu com a herança de sua
esposa. Este contato inicia depois que Renzi publica um livro dedicado ao tio e este escreve
uma carta ao sobrinho para “Fazer as primeiras retificações, aulas práticas (dizia a carta).”
(PIGLIA, 2010, p. 13, grifo do autor).
Maggi era um historiador, vivia em uma cidade interiorana na Argentina e dedicava-se
a estudar a vida de Enrique Ossorio, bisavô de sua esposa, um intelectual do século XIX que,
na época, optou pela traição à causa política de Juan Manuel de Rosas, pelo exílio e pela busca
ao ouro, que deixou aos seus descendentes. É através das cartas de Maggi que Renzi conhece
a história desta figura, que representará e proporcionará uma nova visão ou reinterpretação, de
certa forma, à história da Argentina, questão chave do romance de Piglia.
Na segunda parte, Renzi vai ao encontro de Maggi, mas este desaparece em uma
misteriosa viagem. Todavia, encontra o polonês Tardewski e outros intelectuais, amigos de
Maggi e, enquanto esperam o improvável retorno do historiador, os personagens discorrem
sobre diversos temas importantes, como a literatura nacional e universal, filosofia, história,
arte, vida e dialogam sobre várias figuras históricas, como Borges, Joyce, Kafka, Hitler, entre
outros. Ao final da obra, Renzi descobre o motivo que o levou àquela visita e àquelas pessoas:
foi o escolhido para prosseguir com a construção da história de Enrique Ossorio. Por
conseguinte, da mesma forma que Em liberdade, esta obra problematiza alguns momentos e
aspectos históricos vivenciados pela Argentina, assim como, sem menção aparente, critica a
situação vivenciada pelo país na fase de produção e publicação do livro.
Nesse sentido, observa-se que as obras acima descritas, mesmo pertencentes a contextos
de representação, produção e recepção distintos, permitem um estudo comparado expressivo.
Isso é possível graças ao caráter comparativista deste trabalho, tendo em vista que:
O estudo comparado de literatura deixa de resumir-se em paralelismos
binários movidos somente por “um ar de parecença” entre os elementos, mas
compara com a finalidade de interpretar questões mais gerais das quais as
obras ou procedimentos literários são manifestações concretas. Daí a
necessidade de articular investigação comparativista com o social, o político,
o cultural, em suma, com a História num sentido abrangente. (CARVALHAL,
2006, p. 86).
Ademais, a América Latina, com sua heterogeneidade e, ao mesmo tempo, com suas
semelhanças que a particulariza perante outras culturas, é um contexto propício para o estudo
comparado, como o que se propõe neste estudo, com relação a história de dois países latino-
americanos, que representam, de certa modo, a história de vários outros espaços, povos, tempos
e culturas vivenciados pelo continente. Nas duas obras há um diálogo constante com o passado
e com a própria tradição, passado este que, seja através de personagens ou tempos históricos,
é revisitado e reinterpretado à luz do presente. Tanto em Piglia quanto em Santiago verifica-se
que o passado, a história e a tradição são percorridos e reinterpretados sob uma nova ótica,
mais atenta e crítica, para compreender novos processos históricos vivenciados no tempo
presente, ou seja, o passado modifica a interpretação que se tem do presente e o contrário
também se faz, e esse jogo entre passado, presente e futuro e entre história e ficção contribuirão
para a compreensão da formação identitária do Brasil e Argentina, assim como, da continente
latino-americano.
O crítico Altamir Botoso corrobora com essa visão ao afirmar que:
No pós-modernismo enfatiza-se o fato de que a história, realidade, gênero,
cultura, ciência são construídos por meio do discurso e a ficção nada mais faz
do que retomar esses discursos e reescrevê-los. A reescritura é um conceito
essencial para a pós-modernidade, que permite borrar as fronteiras entre
discurso histórico e ficcional, presente e passado, uma vez que propõe a
retomada, a reavaliação do passado à luz do presente. (BOTOSO, 2004, p.
111).
Desta forma, observa-se que o pós-modernismo e suas características, muitas delas
presentes nos livros de Piglia e Santiago, como a metaficção historiográfica, a reinterpretação
do passado, a relativização das verdades, a fragmentação e o anacronismo do tempo, do espaço
e do discurso, a presença de personagens escritores, entre outros, refletem e simbolizam vários
fatos sociais da história e da contemporaneidade latino-americana. A inserção diacrônica das
obras no espaço contemporâneo e sua filiação ao pós-modernismo remetam ao caráter de
abertura desses textos, para a possibilidade de inúmeras interpretações e do
multiperspectivismo da leitura, como “[...] uma espécie de esquema transcendental que nos
permite compreender novos aspectos do mundo.” (ECO, 1991, p. 158-159), mas exigem a
presença de um leitor ativo para desvendar os jogos discursivos propostos pelos dois autores
pós-modernos aqui em destaque.
O passado revisitado por meio da metaficção historiográfica
Indo além, complementando e dialogando com aquilo que o período literário anterior
pregava, o pós-modernismo, como uma vertente do contemporâneo, trabalha com as relações
duais, como as ideias de culto e popular; centro e periferia e passado e presente. Ademais,
discute, criticamente, o seu tempo, como um processo, em construção; a sociedade de consumo,
pós-guerras; as mazelas do contemporâneo; as relativizações de conceitos e verdades e contesta
o passado histórico, conhecido através de documentos/discursos passíveis de questionamento.
Tudo isso é feito pela linguagem, foco desta estética, pois “O vínculo entre texto e mundo é
remodelado no pós-modernismo não pelo desaparecimento do texto no interesse de um retorno
ao real, mas por uma intensificação da textualidade que a torna co-extensiva com o real.”
(CONNOR, 2012, p. 107).
O pós-modernismo encara o passado e a tradição como condições necessárias para a
compreensão do tempo presente e, por isso há a necessidade de remontar a história diacrônica.
Em Respiração artificial e Em liberdade os leitores logo percebem os recortes históricos feitos
pela ficção de seus escritores, tanto que as obras caracterizam-se como romances históricos,
entretanto, de modo distinto dos clássicos, estudados por Lukács na década de 30, em O
romance histórico.
Entre outros traços, o romance histórico reinventado para pós-modernos pode
misturar livremente os tempos, combinando ou entretecendo passado e
presente; exibir o autor dentro da própria narrativa; adotar figuras históricas
ilustres como personagens centrais, e não apenas secundárias; propor
situações contrafactuais; disseminar anacronismos; multiplicar finais
alternativos; traficar com apocalipses.” (ANDERSON, 2007, p. 217).
A metaficção historiográfica, foco deste estudo, dialoga e até se confunde, em alguns
casos, com as características do chamado novo romance histórico, e as obras de Piglia e
Santiago refletem isso, tendo em vista que nesta vertente:
[...] vertebran con mayor eficacia los grandes principios identitarios
americanos o se coagulan mejor las denuncias sobre las «versiones oficiales»
de la historiografia, ya que en la libertad que da la creaciôn se llenan vacios
y silencios o se pone en evidencia la falsedad de un discurso. (AÍNSA, 1994,
p. 27).
Em liberdade, Santiago remete ao tempo histórico de Graciliano Ramos e aos fatos que
realmente aconteceram vida do escritor, como se estivéssemos acompanhando o processo de
produção de um diário pelas mãos do próprio Graciliano. Em dado momento do diário, o
narrador-personagem remete ao tempo de Cláudio Manuel da Costa, relatando um sonho
perturbador que teve sobre o período da Inconfidência Mineira como se estivesse no lugar do
poeta. Mais que isso, escreve um conto, dentro do próprio diário, sobre o poeta árcade, o que
revela o caráter intertextual e metaficcional desta narrativa. Todavia, ao fazer isso, Santiago
evidencia um questionamento a própria veracidade dos discursos, tanto históricos quanto
ficcionais, considerando que “A interação do historiográfico com o metaficcional coloca
igualmente em evidência a rejeição das pretensões de representação “autêntica” e cópia
“inautêntica”, e o próprio sentido da originalidade artística é contestado com tanto vigor quanto
a transparência da referencialidade histórica.” (HUTCHEON, 1991, p. 146-147).
Esses passados revisitados possuem similaridades, são tempos de governos poderosos,
tidos como ditatoriais, que castigavam a duras penas aqueles que discordavam de seus planos
políticos e objetivos ideológicos, pois “Numa sociedade como a brasileira, qualquer
movimento mais audacioso da oposição tem de ser, irremediavelmente, secreto. Sobrepaira,
acima do segredo oposicionista, a verdade única e inquestionável, ditatorial, de um monarca,
de um presidente.” (SANTIAGO, 2013, p. 226-227). Isso é exemplificado pelos opressões
sofridas pelos próprios personagens - Ramos foi preso injustamente pelo governo de Vargas e
Costa, por ser um dos inconfidentes mineiros, foi preso e torturado pelo governo português, e,
como muitos acreditam e como o próprio Ramos - e/ou Santiago - denunciam, mesmo que sem
“documentos oficiais” que atestem isso, foi assassinado. Portanto, como o próprio Santiago
explica, como teórico e ensaísta, em Nas malhas da letra, desprende-se que “As ações do
homem não são diferentes em si de uma geração para outra, muda-se o modo de encará-las, de
olhá-las. O que está em jogo não é o surgimento de um novo tipo de ação, inteiramente original,
mas a maneira diferente de encarar.” (SANTIAGO, 2002, p. 54).
Além de desmistificar duas épocas importantes da historiografia brasileira, Santiago,
acaba, de ser forma, remetendo, implicitamente, à realidade extradiegética da obra, ao seu
tempo presente, que é o período da ditadura militar brasileira (1964-1985), marcada pela
ausência de democracia, pelo autoritarismo, pela censura, violência, repressão, entre outros
elementos negativos e corrosivos do seu tempo. No trecho abaixo, o narrador é Ramos, porém,
uma leitura atenta permite que se atribua partes da fala ao própria autor, como que referindo-
se ao que era vivido no período da ditadura, de forma similar ao que acontecia em governos
anteriores:
Eu mesmo fui vítima dessas forças ocultas. Fiquei quase um ano inteiro
preso; tenho os diversos membros de minha família dispersos pelos quatro
cantos; fui enviado como um saco de batatas para os lugares mais terríveis, e
no final descobrem que não existe ordem alguma de prisão contra a minha
pessoa, processo algum contra as minhas atividades. Existe apenas um
homem solitário na cadeia. Querem exemplo melhor da arbitrariedade e do
poder das forças ocultas? (SANTIAGO, 2013, p. 90, grifos nossos).
Santiago utiliza o recurso conhecido como pastiche, que consiste em inserir várias
vozes e/ou estilos no texto, sendo que um não se sobrepõe ao outro, ao dar voz a Ramos, com
todas as suas características pessoais e seu estilo de escrita e, do mesmo modo, ao poeta da
inconfidência, que fala no sonho de Ramos sobre a repressão que sofreu: “A Morte retira o
capuz. [...] Joga a capa para o lado: vejo que se veste como alta figura da administração
portuguesa. Com um pontapé atira a cadeira para o outro canto da cela. Com as duas mãos
fortes procura o meu pescoço (tinha já perdido as forças), asfixiando-me.” (SANTIAGO, 2013,
p. 217). Esse tipo de violência era praticado por todos os períodos históricos retratados,
portanto, a identificação dos personagens, proposta inteligentemente por Santiago, frente às
experiências que viveram, é inevitável, como o personagem alagoano atesta em seu diário: “[...]
na verdade o personagem era eu próprio, sendo (ou interpretando) Cláudio.” (SANTIAGO,
2013, p. 215). E não seria o próprio Santiago, sendo (ou interpretando) Ramos e Cláudio, para
criticar e denunciar, implicitamente, o momento que vivia?
Corroborando com essas afirmações, Santiago, enquanto ensaísta, apresenta o “narrador
pós-moderno” em oposição ao narrador clássico, definido por pensadores como Benjamin e
Leskov, e assim entende que o primeiro, o qual identifica-se nas narrativas de Piglia e Santiago:
“[...] olha o outro para leva-lo a falar (entrevista), já que ali não está para falar das ações de sua
experiência. Mas nenhuma escrita é inocente. [...] ao dar fala ao outro, acaba também por dar
fala a si, só que de maneira indireta. (SANTIAGO, 2002, p. 50). Dessarte, ao mesmo tempo
que Santiago fala da experiência alheia, termina por remeter, implicitamente, a sua própria
experiência, daí o diálogo estabelecido entre diferentes tempos, espaços e personagens que o
pós-modernismo permite.
No que tange ao romance argentino ora sob análise, Respiração artificial, a
metalinguagem e a metaficção historiográfica também estão presentes, pois Emilio Renzi
escreve um romance sobre seu tio, Marcelo Maggi, e para tanto se vale em grande medida da
troca de correspondências com seu parente, já que se encontram em lugares distintos da
Argentina. O tio, por sua vez, está estudando e também escrevendo sobre uma terceira pessoa,
Enrique Ossorio, secretário do presidente Juan Manuel Rosas, cuja persona política é
fundamental para a história argentina do século XIX. Enrique era avô do sogro de Maggi,
Luciano Ossorio, ex-senador da República. O processo de construção textual do historiador se
fundamenta em um sem número de papéis, cartas e documentos que o próprio Enrique Ossorio
deixou, uma vez que ele também queria escrever uma obra sobre si, como uma espécie de
testemunho de sua época, já que fora considerado um traidor político.
Há que se ressaltar o duplo papel da leitura no romance de Piglia: Renzi conhece a
história de Enrique Ossorio pelas cartas de Maggi, sendo que este conheceu a história de
Ossorio pelos documentos que este deixou, ou seja, há uma interposição e fragmentação de
personagens, tempos e acontecimentos, históricos e ficcionais, que torna a leitura da obra
labiríntica, um emaranhado de tempos, espaços e vozes, estratagema textual recorrente na
estética pós-moderna e na metaficção historiográfica, pois esta “[...] estabelece a ordem
totalizante, só para contestá-la, com sua provisoriedade, sua intertextualidade e, muitas vezes,
sua fragmentação radicais. (HUTCHEON, 1991, p. 155).
Sendo assim, Piglia utiliza a ficção para tratar do próprio fazer literário e a linguagem
para falar dela mesma, através de vários artifícios e jogos discursivos, como o pastiche, a
intertextualidade, o mise en abyme, a ironia, entre outros, como o faz também o autor brasileiro.
Respiração Artificial remonta diretamente ao tempo histórico de Enrique Ossorio, e o conflito
com o governo autoritário de Juan Manuel de Rosas, bem como insere a leitura no período do
Peronismo vivido por Maggi, ao passo que, indiretamente, abre uma outra passagem histórica,
situada no presente da escritura da obra, referente à Ditadura Militar argentina. Os personagens,
deste modo, ecoam diferentes tempos da história argentina e os canalizam de forma crítica
pelos vestígios da memória reconstruída fragmentariamente por seus textos. Essa miríade de
vasos comunicantes encontra ressonância no fragmento abaixo:
Finalmente gostaria de lhe dizer que nessas novas circunstâncias do país estou
um pouco desorientado com relação ao meu futuro imediato. [...] Estive
pensando que por enquanto o melhor será confiar o arquivo [...] a alguém de
minha inteira confiança. [...] Para mim trata-se antes de mais nada de
garantir que esses documentos se conservem, porque não só servirão [...]
para esclarecer o passado de nossa desventurada República como também
para entender algumas coisas que estão acontecendo nos tempos que
correm, não longe daqui. (PIGLIA, 2010, p. 60-61, grifos meus).
Da mesma forma que entende-se que Santiago se apropriou dos acontecimentos da vida
de Ramos e, consequentemente, de Cláudio Manuel da Costa, para representar ele mesmo,
verifica-se que, para ressaltar o momento que vivia, Piglia se identifica com o personagem
Emilio Renzi, que é um provável alter ego seu, sendo que seu nome completo é Ricardo Emilio
Piglia Renzi. Além disso, o personagem Maggi, de tanto estudar a respeito de Ossorio, se
identifica e até se confunde com ele: “[...] dedicado como está a remexer no mistério da vida
de outros homens (de outro homem: Enrique Ossorio), você terminou se parecendo com o
objeto investigado.” (PIGLIA, 2010, p. 23) ou ainda quando Maggi menciona: “Sofro dessa
desventura clássica: ter querido me apropriar daqueles documentos para decifrar neles a certeza
de uma vida e descobrir que são os documentos que se apoderaram de mim e me impuseram
seus ritmos e sua cronologia e sua verdade particular.” (PIGLIA, 2010, p. 23). Esse trecho
revela também como o texto, a escritura, fala por si só, ou seja, Maggi, mesmo sendo um
historiador, que de forma ideal só relataria fatos reais, tem consciência da impossibilidade de
fazer isso em alguns momentos, pois a história que conhecemos, retratada pela historiografia
ou pela ficção, é um produto, fruto da memória individual ou coletiva, de documentos passíveis
de questionamento.
Relacionando isso com Em liberdade, no trecho abaixo novamente fica claro a
identificação do personagem Ramos com o poeta da Inconfidência, sendo identificado o
discurso da alteridade, recorrente no pós-modernismo, em que o primeiro se coloca no lugar
do segundo. Outrossim, observa-se no início um discurso metaficcional sobre o fazer literário
e, em seguida, uma referência a própria história e seus discursos, que não permitem uma visão
plena e fidedigna sobre o passado e entende-se que a intenção do autor pós-moderno seria
representar como os regimes autoritários no Brasil e, genericamente, na América Latina,
permanecem, mesmo que com novas denominações e em períodos históricos distintos.
Tem que haver uma identificação minha com Cláudio, espécie de empatia,
que me possibilite escrever a sua vida como se fosse a minha, escrever a
minha vida como se fosse a sua. É um projeto perigoso, pois as pessoas dão
grande valor aos limites dos indivíduos. [...]
A verdade histórica [...] congela as partes fragmentadas na sua
particularidade, impossibilitando que se tenha uma compreensão global dos
acontecimentos. É esta a compreensão que busco, espero que a encontre.
Apresentar, numa cápsula da máquina do tempo, a permanência dos regimes
autoritários no Brasil. (SANTIAGO, 2013, p. 226, grifo do autor).
Na obra de Piglia há também uma referência similar, em uma carta de Enrique Ossorio
de 1850, em que ele se refere ao governo do seu período, de Juan Manuel de Rosas, mas acaba
remetendo ao futuro da Argentina, “prevendo” que o país não encontrará a liberdade tão cedo,
ou seja, há um diálogo entre períodos históricos - passado, presente e futuro - possível em
virtude da recorrência destes elementos trágicos sobre o país:
Vocês acham que a libertação da República está tão próxima, acham que a
queda de Rosas está tão ao alcance da mão, que se iludem com uma liberdade
que, não obstante, não chegará. [...] Antevejo: dissensões, divergências, novas
lutas. Interminavelmente. Assassinatos, massacres, guerras fratricidas.
(PIGLIA, 2010, p. 58).
Como observado, as obras de Piglia e Santiago são metaficções históricas, pois
dialogam com o passado e seus discursos, e, ao mesmo tempo, com o próprio fazer literário,
isso porque “Autoconscientemente, a metaficção historiográfica nos lembra que, embora os
acontecimentos tenham mesmo ocorrido no passado real empírico, nós denominamos e
constituímos esses acontecimentos como fatos históricos, por meio da seleção e do
posicionamento narrativo.” (HUTCHEON, 1991, p. 131). Por conseguinte, estes escritores
usam como pano de fundo os acontecimentos históricos, mas mantém o foco na linguagem e
em seus artifícios, tanto que o discurso e o fazer literário são assuntos debatidos em vários
momentos nos dois livros. No fragmento abaixo, Maggi discute sobre o gênero que mais foi
utilizado para a composição de Respiração artificial:
A correspondência, no fundo, é um gênero anacrônico, uma espécie de
herança tardia do século XVIII: os homens que viviam naquele tempo anda
confiavam na pura verdade das palavras escritas. E nós? Os tempos mudaram,
as palavras se perdem com facilidade cada vez maior, podemos vê-las flutuar
na água da história, afundar, aparecer outra vez, mescladas aos escolhos que
passam nas águas. Uma hora dessas achamos um jeito de nos encontrar.
(PIGLIA, 2010, p. 28).
Nesta passagem é possível várias interpretações, como um questionamento e uma ironia
com relação ao gênero utilizado para a construção da obra e para as próprias cartas trocadas
entre os personagens e as deixadas por Ossorio, em que discute-se sobre a sua veracidade,
principalmente em momentos ditatoriais, tendo em vista que a verdade, a história e seus
discursos são construtos e, por isso, devem ser questionados. Assim, “A resposta pós-moderna
ao moderno consiste em reconhecer que o passado, já́ que não pode ser destruído porque sua
destruição leva ao silêncio, deve ser revisitado: com ironia, de maneira não inocente. (ECO,
1985, p. 26).
Em outro excerto, a metalinguagem também é evidente, assim como a presença do
discurso indireto e indireto livre, marcante em toda a obra, que complica a leitura e a
identificação das vozes narrativas: “Não lhe escrevo, portanto, escrevia-me Maggi, para tentar
resgatar alguma coisa no meio dessa desolação; escrevo porque os anos sedimentaram minhas
lembranças como uma borra e o passado para mim se transformou num velho entrevado.”
(PIGLIA, 2010, p. 21). Além disso, o próprio personagem questiona a veracidade dos fatos que
estuda e narra sobre Ossorio, pois são frutos do passado, que ficaram na memória do
personagem, posteriormente, foram registrados pelo discurso, em documentos e cartas e,
novamente, estão sendo repassados e estudados. Enfim, a história e seus discursos são
construtos complexos, que revelam visões parciais, fragmentárias e instáveis sobre o passado
e a memória, que a literatura pós-moderna busca representar em obras, como as aqui estudadas.
Na ficção de Santiago, essa constatação metalinguística também é registrada em vários
momentos, como nesta passagem, em que o narrador tem consciência que o discurso é limitado,
nunca totalizante frente aos fatos da experiência: “Fiquei lamentando as limitações da palavra,
fosse a falada, fosse a escrita.” (SANTIAGO, 2013, p.53). Portanto, Santiago e Piglia jogam
com o leitor ao utilizarem gêneros caracterizados pela narração de fatos “reais”, como o diário
e a carta, e desconstruírem isso, por exemplo ao tornar a narrativa anacrônica ou ao debilitar a
autoridade do autor perante a obra, pois esta é aberta e gera significados na relação que
estabelece com o leitor e suas vivências, com o contexto de produção e recepção da obra, entre
outros.
Portanto, “O passado é apenas um lugar de reflexão que o homem presente pode
escolher (ou não) para melhor direcionar a sua posição no hoje e no amanhã.” (SANTIAGO,
2013, p. 89). Nesse sentido, Em liberdade e Respiração artificial apontam para várias visões e
até novas interpretações sobre o passado, que é revisitado criticamente na contemporaneidade
e, em muitos casos, relacionado com este período, daí o diálogo que o pós-modernismo busca
estabelecer entre história e ficção, entretanto, gerando “[...] resultados desestabilizadores, para
não dizer desconcertantes.” (HUTCHEON, 1991, p. 136), pois a literatura pós-moderna é um
processo de abrir as fronteiras do discurso.
Considerações finais
A análise das obras Respiração artificial e Em liberdade permitiu inúmeras reflexões
sobre a estética pós-moderna e seus desdobramentos, como a metaficção historiográfica,
identificada em ambas as narrativas. O estudo deste recurso permitiu uma diálogo entre
diferentes espaços, tempos, personagens, histórias, contextos e autores, o que é possível
também graças ao caráter comparativista deste artigo. Ademais, possibilitou que se
compreendesse e, ao mesmo tempo, problematizasse, o passado marcado por governos
autoritários do Brasil e da Argentina, que podem ser comparados a história de formação do
próprio continente que fazem parte – a América Latina e seus países - que em grande parte,
possuem trajetórias similares.
Dessa forma, as narrativas de Piglia e Santiago revisitam criticamente o passado de seus
países, por isso são caracterizadas como novo romance histórico. Todavia, fazem isso sem
deixar de lado as construções linguísticas recorrentes do pós-modernismo, que contribuem para
uma compreensão mais ampla das obras e para revelar seu caráter crítico e paradoxal. Aliás, a
recorrência nestes textos da fragmentação dos discursos, da polifonia, da metalinguagem e da
metaficção, da intertextualidade, do pastiche, do anacronismo, entre outros recursos, exigem
um leitor ativo, que interaja nos labirintos textuais, que questione a autenticidade dos fatos
narrados, dos documentos oficiais, das verdades tidas como absolutas, principalmente àquelas
oriundas de períodos que eram a favor do silenciamento dos povos e da censura frente a
qualquer ideia contrária a ideologia política de então. Por conseguinte, a literatura pós-moderna
busca formar ou contribuir para uma sociedade de pessoas e leitores pensantes, atuantes e
críticos frente ao passado e ao próprio presente.
Enfim, o pós-modernismo é um campo aberto, problematizador, nunca estanque,
reflexo do período contemporâneo, que é algo difícil de delimitar pelo seu caráter de
provisoriedade e instabilidade, por isso, “[...] volta a confrontar a natureza problemática do
passado como objeto de conhecimento para nós no presente” (HUTCHEON, 1991, p. 126),
sendo que essa confrontação é feita por meio da literatura. Nas duas obras analisadas,
marcadamente autoconscientes de seu caráter ficcional, a literatura contemporânea é mais uma
intérprete do passado da Argentina e do Brasil e se coloca ao lado dos demais discursos que se
entrecruzam, não raro conflituosamente, na busca por legitimar algum sentido para os ecos de
memória que assombram o homem em seu presente.
Referências:
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