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XV Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia (XV SNHCT)
GT História da Saúde e das Doenças
Marcas de um corpo: Síndrome Pluricarencial da Infância através da fotografia
Marks of a body: food lacking Childhood Syndrome through photography
Modalidade da apresentação: Comunicação Oral
Ana Cláudia de Araújo Santos1
Resumo: A fotografia, desde o seu surgimento no século XIX, foi utilizada por diversas áreas do
conhecimento, e com diversos vieses para sua abordagem. Originalmente os discursos sociais eram
construídos a partir de uma trama fotográfica, como sendo portadora de uma verdade absoluta e
incontestável, contudo, nos dias atuais, sabe-se que as fotografias são objetos de pesquisa socialmente
determinados, como qualquer outro suporte informacional. Neste contexto, destaca-se a fotografia
científico-técnica - registros de fenômenos através dos sais de prata elaborados para observação,
construção e divulgação do conhecimento científico - entre elas, a fotografia médica. A utilização da
fotografia na área médica remonta a época de criação da própria imagem fotográfica, de tal forma, que
não demorou muito para que os profissionais que tratavam do corpo a utilizassem como um
instrumento de registro para fundamentar seus estudos, pesquisas e atendimentos. Este uso se fez
presente, inicialmente, nas áreas da Psiquiatria e Dermatologia, como meio de compreender os
fenômenos da mente e as transformações da pele, um interesse que reflete a relação que os indivíduos
desenvolveram com o corpo ao longo dos anos e que passou por várias transformações, as quais
podem ser evidenciadas a partir da dualidade doença e saúde. Um direito que foi reconhecido pelo
Estado, no século XIX, e que de fato foi compreendido no século XX, como o direito à assistência
médica. É sob este viés que a presente proposta se fundamenta, cujo escopo é apresentar a doença
Síndrome Pluricarencial, também denominada Kwashiorkor - enfermidade que afeta as crianças entre
1 a 4 anos de vida, e se não tratada pode levar o indivíduo ao óbito, devido à deficiência de vitaminas -
a partir de duas fotografias que integram a coleção do médico, professor e pesquisador pernambucano
Ruy Marques. A abordagem aqui apresentada contribui para a construção de um conhecimento
histórico acerca da saúde e da doença potencializando e intensificando os estudos que vem sendo
realizados nesta área, ademais, tal ênfase colabora para o tratamento da fotografia científico-técnica
como fonte de pesquisa e como canal para a comunicação científica.
1 Mestre em Ciência da Informação, Museóloga do Departamento de Antropologia e Museologia da
Universidade Federal de Pernambuco. Contato: [email protected].
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Palavras-Chave: Fotografia médica, Doença, Síndrome Pluricarencial, Ruy Marques.
1- Introdução
A fotografia, desde o seu surgimento no século XIX, foi utilizada por diversas áreas
do conhecimento, e com diversos vieses para sua abordagem. Originalmente os discursos
sociais eram construídos a partir de uma trama fotográfica, como sendo portadora de uma
verdade absoluta e incontestável, contudo, nos dias atuais, sabe-se que as fotografias são
objetos de pesquisa socialmente determinados, como qualquer outro suporte informacional.
Neste contexto, destaca-se a fotografia científico-técnica2 – registros de fenômenos através
dos sais de prata elaborados para observação, construção e divulgação do conhecimento
científico - entre elas, a fotografia médica.
A utilização da fotografia na área médica remonta a época de criação da própria
imagem fotográfica, de tal forma, que não demorou muito para que os profissionais que
tratavam do corpo a utilizassem como um instrumento de registro para fundamentar seus
estudos, pesquisas e atendimentos. Este uso se fez presente, inicialmente, nas áreas da
Psiquiatria e Dermatologia, como meio de compreender os fenômenos da mente e as
transformações da pele, um interesse que reflete a relação que os indivíduos desenvolveram
com o corpo ao longo dos anos e que passou por várias transformações, as quais podem ser
evidenciadas a partir da dualidade doença e saúde. Um direito que foi reconhecido pelo
Estado, no século XIX, e que de fato foi compreendido no século XX, como o direito à
assistência médica.
É sob este viés que a presente proposta se fundamenta, cujo escopo é apresentar a
doença Síndrome Pluricarencial, também denominada Kwashiorkor - enfermidade que afeta
as crianças entre 1 a 4 anos de vida, e se não tratada pode levar o indivíduo ao óbito, devido à
deficiência de vitaminas - a partir de duas fotografias que integram a coleção do médico,
professor e pesquisador pernambucano Ruy Marques. A abordagem aqui apresentada
contribui para a construção de um conhecimento histórico acerca da saúde e da doença
potencializando e intensificando os estudos que vem sendo realizados nesta área, ademais, tal
2 Imagens que são produzidas a partir de aparelhos definição que se põe /às imagens tradicionais como aquelas
que são produzidas pelas pinturas e desenhos pictóricos (FLUSSER, 2008, comentado por ORBEM, 2013).
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ênfase colabora para o tratamento da fotografia científico-técnica como fonte de pesquisa e
como canal para comunicação científica.
2- A fotografia e a representação do corpo na medicina
A representação do corpo sempre se fez presente na história da humanidade. Fato que
ocorreu nas diversas áreas do conhecimento – História, Medicina, Artes, Antropologia, entre
outras – utilizando várias técnicas e suportes, entre eles, pintura, escultura, gravura,
fotografia, por exemplo.
Ao longo dos anos o corpo foi registrado em diversas situações, que o colocam como
um ‘documento’, suporte portador de um conjunto de informação, que se constituem em
registros, através das ‘marcas de um corpo’, estas podem ser por exemplos, as doenças. E para
a sua compreensão, o objeto corpo, foi escrutinado pelos médicos tanto externamente quanto
internamente e isso também foi feito através da utilização de imagens.
O registro do corpo através da fotografia ocorre desde o surgimento desta, no século
XIX, através dos mais variados retratos, em diversas situações sociais, até para documentar
corpos doentes e póstumos. A primeira experiência médica, com a utilização da fotografia
ocorreu no ano de 1840, em Paris, por Donné, com o registro de um corpo morto e que depois
se constituiu no primeiro atlas médico, com registro do corpo através de fotografias (CLODE,
2009).
A partir do ano 1845 que se começa a ver fotografias de doença e de pacientes, como a
utilização, mais sistemática, na Dermatologia e Psiquiatria (CLODE, 2009) áreas que havia
marcas nos corpos, capazes de serem registradas pela fotografia. Esta prática passou a ser
intensificada e utilizada pela comunidade médica, como forma de registrar as enfermidades
que tratavam, além de se constituir em uma ferramenta para auxiliar na determinação dos
diagnósticos. Como destaca Clode (2009):
a partir de 1870 Charcot conduz uma investigação para estudar a histeria.
Dois dos seus alunos Reginald e Bouneville, a partir de 1875, começaram a
tirar fotografias dos doentes de Charcot, com o objectivo de confirmar e
fixar em imagens a sintomatologia descrita por este nas suas famosas lições.
O estudo daí resultante “Iconographie Photographique de La Salpêtrieré” é
considerado uma das mais belas realizações da Fotografia Médica.
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A fotografia médica acompanhou o desenvolvimento das técnicas empregadas na
confecção dos registros fotográficos, e todos os processos que foram utilizados e substituídos
com o intuito de facilitar o registro através da luz. Este avanço também ocorreu em relação
ao registro do corpo internamente, e seu marco divisor foi a invenção do Raio-X, como afirma
Breton (2011, p. 250): uma fonte de energia suscetível de transpor o limiar da pele para
esclarecer o conteúdo cego do corpo. Surgiu a possibilidade de conhecer o interior do corpo
sem que o indivíduo estivesse morto pela primeira vez, a entrada no labirinto dos tecidos
humanos não exige mais a condição necessária da morte do homem (BRETON, 2011, p.
251). Assim, há uma mutação no olhar, evidenciando a relação presente no “olhar na
medicina”, cujo intuito é o de identificar as “mazelas” do corpo doente como afirma Breton
(2011, p. 246) a visibilidade coloca em evidência o vestígio sensível do mal, e as
malformações do mal, a concretude carnal da doença, o autor continua: a história da
medicina será, por um lado, a história das mutações desse olhar (BRETON, 2011, p. 315).
Retomando a representação do corpo fotograficamente, na medicina, sobreleva-se que
desde as suas origens ou quase, isto é, no decurso da segunda metade do século XIX, que a
fotografia esteve sempre associada às grandes explorações e até viagens marítimas
(BAURET, 2011, p. 24), mecanismo utilizado como forma de conhecer o até então
desconhecido, sobretudo, em relação à exploração de outros países. De igual modo, se
constituía em uma possibilidade de se construir um conhecimento utilizando-se de uma
linguagem visual - neste caso, da imagem fotográfica- fundamentando-se na riqueza de
detalhes, que este suporte documental pode oferecer ao pesquisador, de tal forma, que
aglutina uma série de informações, que caso, fossem descritas necessitariam de muitas
palavras. Como afirma Barent, (2011, p. 25) acompanhando as notas dos escritores, a
fotografia permitiu frequentemente mostrar numa imagem, exacta e minuciosa, uma
infinidade de pormenores que, por vezes precisariam de várias páginas de descrição. A ideia
aqui apresentada não comunga de uma hierarquização entre uma linguagem escrita e uma
visual, no sentido de uma em detrimento de outra, mas sim, da possibilidade presente nas
imagens da ciência para a construção de um dado conhecimento.
Sendo assim, as fotos [...] constituem uma gramática e, mais importante ainda, uma
ética do ver. Por fim, o resultado mais extraordinário da atividade fotográfica é nos dar a
sensação de que podemos reter o mundo inteiro em nossa cabeça [...] (SONTAG, 2004, p.
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13). Associado a isso, a imagem fotográfica evidencia o seu caráter de prova, fotos fornecem
um testemunho. Algo de que ouvimos falar mas de que duvidamos parece comprovado
quando nos mostram uma foto. (SONTAG, 2004, p. 16). E aqui retoma-se um das
características mais frequentes e atribuída as fotografias, a sua condição de prova, a imagem
enquanto espelho do real, fato difundido a partir de 1871, quando do seu uso pela polícia
como ferramenta de controle e vigilância (SONTANG, 2004).
Neste aspecto, uma foto equivale a uma prova incontestável de que determinada coisa
aconteceu. A foto pode distorcer; mas sempre existe o pressuposto de que algo existe, ou
existiu, e era semelhante ao que está na imagem (SONTAG, 2004, p. 16). Esta condição de
prova da fotografia se dá a partir de sua segunda realidade, entendida por Kossoy (1999, p.
37) como:
Toda a fotografia que vemos, seja o artefato fotográfico original
internamente, obtido na época em que foi produzido, seja a imagem dele
reproduzida sobre outro suporte ou meio [...] será sempre uma segunda
realidade. O assunto representado configura o conteúdo explícito da imagem
fotográfica: a face aparente e externa de uma micro-historia do passado
cristalizada expressivamente.
Em contraponto, ao que se pode realmente depreender do que está fotograficamente
demonstrado, em uma imagem, encontra-se a primeira realidade. Para Kossoy (1999, p. 36)
toda e qualquer imagem fotográfica contém em si, oculta e internamente, uma história: é a
sua realidade interior, abrangente e complexa, invisível fotograficamente e inacessível
fisicamente, ou seja, é a face oculta da imagem fotográfica que pode ser desvelada a partir de
um levantamento em outras fontes, as fontes secundárias, possibilitando, assim, compreender
o tempo e contexto em que a imagem foi produzida. Neste aspecto, informações sobre o
produtor e período em que foram as fotografias foram produzidas são de suma importância
para a compreensão da informação extrínseca, contida no documento fotográfico.
3 O médico e pesquisador: considerações sobre Ruy Marques
Ruy João Marques nasceu em Pernambuco, na cidade do Recife em 1917 e faleceu em
1993, também na mesma cidade. Desenvolveu atividades de ensino, pesquisa e gestão
administrativa na Universidade do Recife, instituição onde estudou e se formou em Medicina.
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De acordo com Freyre (1993, p. 03) João Marques teve grande destaque nacional e
internacionalmente, em Pernambuco contribuiu com a realização de pesquisas e estudos
voltados para as doenças tropicais, como evidencia Carvalho (1996, p. 24):
Clínico de grande conhecimento da medicina como um todo, publicou
grande número de contribuições em áreas diferentes das que lhe eram
especialmente do agrado. No campo da medicina tropical, ao contrário de
outros tropicalistas que se limitaram a estudos repetitivos sobre uma mesma
doença, Ruy foi enciclopédico e profundo no estudo de todas as parasitoses
que afetam a nossa população, atingindo notoriedade nacional e
internacional em todas elas.
Ruy João Marques deixou um legado de livros, artigos e coleção fotográfica, sobre a
medicina pernambucana e suas patologias. Entre as suas publicações destacam-se as
contribuições relacionadas à Doença de Chagas – um trabalho sistemático produzido na
década de 1960, sobre a referida patologia, em diversos munícipios do estado de Pernambuco,
pesquisa que lhe possibilitou a aprovação para assunção da Cátedra de Doenças Tropicais, da
Faculdade de medicina do Recife, no curso de Medicina (RIBEIRO, SANTOS, 2016, p.). E
seus estudos sobre a esquistossomose, no ano de 1951, em tese defendida a cerca da presença
da doença também nos pulmões, a denominada esquistossomose pulmonar (PARAHYM,
1961, p. 112).
No concernente a coleção de fotografias que foi organizada por João Marques, ela se
encontra custodiada pelo Memorial Denins Bernardes, unidade de memória, da Universidade
Federal de Pernambuco. De acordo com Ribeiro e Santos3 (2016, p. 12) este acervo se
constitui em um rico material voltado para o desenvolvimento de pesquisas,
acompanhamento das patologias que acometiam seus pacientes, e foi, certamente, importante
fonte para ministrar aulas na Faculdade de Medicina, na Universidade do Recife. A
diversidade que apresenta, possibilita diversas abordagens e compreensão acerca de diversas
endemias que contaminaram e mataram vários indivíduos, entre elas, a Esquistossomose e a
doença de Chagas. As fotos que serão aqui apresentadas compõem o dossiê Síndrome
Pluricarencial formado por 07 fotografias, preto e branco, que estão inseridas em um acervo
3 RIBEIRO, Emanuela Sousa, SANTOS, Ana Cláudia de Araújo. Comunicação científica visual e semiformal:
registros em sais de prata da doença de Chagas em Pernambuco em meados do século XX”, artigo submetido, e
em processo de avaliação, ao XVII Encontro Nacional de Pesquisa em Pós Graduação em Ciência da Informação
– ENANCIB, ao GT 07 –Produção e Comunicação da Informação em Ciência, Tecnologia &Inovação.
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maior contabilizado em 1386 fotografias, classificadas em cerca de 30 patologias e que foram
organizadas em uma pasta sanfonada, identificada com a nomenclatura de cada patologia. A
escolha desse dossiê se deu pelo sentimento de “cuidado” que foi emanado, quando do
tratamento organizacional do acervo fotográfico e pela curiosidade em saber mais sobre a
enfermidade que acometeu aquelas pessoas.
3.1 Marcas de um corpo: Síndrome Pluricarencial
Um dos primeiros trabalhos mundiais que versavam sobre a Síndrome Pluricarencial
foi publicado no ano de 1908, pelo pesquisador José Correa, que descreveu uma enfermidade
chamada de culebrilla – devido ao aspecto da pele, com formações que remetiam a serpentes.
Contudo, a enfermidade carencial só foi associada à deficiência de vitaminas, no ano de 1934,
pelo pesquisador Carillo. No ano de 1935, em Cuba foi descrita a doença denominada de
síndrome pelagroide beribérico, cuja sintomatologia apresentava alterações cutâneas e lesões
neurológicas (AUTER; BEHAR, 1955, p. 11).
Com uma crescente quantidade de publicações sobre a referida enfermidade, no ano de
1944, destaca-se o trabalho de Neri Flores, como sendo o mais completo em relação aos
estudos clínicos, etiológicos e terapêuticos. Neste mesmo sentido, destacam-se, no Brasil, os
trabalhos de Magalhaes Carvalho (1945; 1946; 1947), Zubilaga e Barrera (1945) e Oropeza
(1946), que abordavam aspectos clínicos, etiopatogênicos da síndrome (AUTER; BEHAR,
1955, p. 12), ou seja, os estudos voltaram-se para a compreensão dos sintomas e
desenvolvimento da patologia.
A síndrome pluricarencial recebe outros nomes, como evidencia Parahym (1961, p.
24) o síndrome de deficiência proteica infantil recebe o também o nome de “Kwashiorkor”,
palavra de origem africana (língua ashanti), que, significando “menino vermelho”, é alusiva
à modificação da côr dos cabelos. Ainda de acordo com o mesmo autor essa alteração da
pigmentação da cor dos cabelos, que se tornam avermelhados, é comum entre as crianças de
África e da Índia, quando vítimas de kwashiorkor (PARAHYM, 1961, p. 24).
A síndrome pluricarencial é ocasionada por uma carência de vitaminas necessárias ao
desenvolvimento da criança. Neste aspecto Parahym (1961, p. 369) comenta da maior
importância social é a carência crônica de proteínas, de elevada incidência entre as crianças
das nossas classes pobres. O autor sinaliza que normalmente acomete as crianças quando da
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interrupção da amamentação, tal deficiência nutritiva de grave sintomatologia clínica, com
severas repercussões sobre o desenvolvimento infantil e prognóstico sombrio, acomete
maiormente o grupo etário de 1-2 anos, instalando-se, de regra, após o desmame
(PARAHYM, 1961, p. 369).
No tocante a esse aspecto, ressalva-se que, enquanto amamenta o primeiro filho, a mãe
lhe fornece às custas do seu próprio organismo às gramas de proteínas animal necessárias à
construção do seu organismo, contudo, quando a amamentação é interrompida, com a chegada
de um segundo filho, por exemplo, essas proteínas deixam de ser fornecidas e passam a ser
compradas. Mas o custo é muito alto, nesse sentido, a proteína animal é substituída pela
vegetal, mandioca e fubá, por exemplo, culminando em uma carência de proteína animal que
pode ocasionar a desnutrição (PARAHYM, 1968, p. 02).
Em relação à desnutrição Parahym (1972, p. 65) destaca:
a desnutrição em quase todas as suas formas e graus permanece ostensiva na
Zona da Mata. Distrofia pluricarencial infantil (kwashiokor, marasmo)
hemeralopia, ceratomalacia e consequente cegueira por avitaminose A
arriboflavinose (boqueira carencial), despigmentação capilar, constituem os
estigmas mais evidenciados da fome crônica, dos desequilíbrios nutritivos,
das carências condicionadas.
Associado a esses sintomas também é evidente a perda de peso, xerodermia, dermatose
crônica, com rachaduras cutâneas (PARAHYM, 1972, p. 369).
Assim, buscando correlacionar os sintomas que foram anteriormente descritos,
apresentam-se as duas fotografias que demonstram crianças que foram acometidas pela
Síndrome Pluricarencial, objetivando explicitar um conteúdo e conhecimento visualmente
construídos.
Na primeira foto, veem-se duas crianças sobre um caixote com uma aparência
adoecida fisicamente. Apresenta inchaço no rosto sendo mais evidente na criança do lado
direito, com a presença de uma inflação cutânea no canto direito de sua boca. A imagem
emana ausência de saudabilidade das crianças que também é ratificado pelo inchaço, presente
nas, além de marcas de pequenas pétequias e ou ressecamento, assim como nas mãos da
criança do lado direito. O contexto construído remete a desnutrição e ou falta de alimentação
das crianças.
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Na foto seguinte, fica mais evidente, por causa da exposição mais detalhada, que a
criança do lado esquerdo também apresenta sinais de inflamação no queixo e bochechas,
contudo, isso é mais evidente na criança do lado direito. Ambas as crianças nos remetem a
certe envelhecimento, não com a presença de rugas, por exemplo, mas com a expressão de
cansaço. A imagem demonstra uma dor que está latente, marcada pelo olhar e expressão da
criança do lado direito, no momento da tirada da foto - ela parecia sentir dor. Em relação ao
ambiente onde a imagem foi construída, espaço remete muito ao Nordeste Brasileiro, pelos
tijolos da construção, ao fundo, uma terra seca, que parece ser o sertão. A imagem também
revela certa pobreza ou condição de humildade sinalizada pela cerca em madeira seca,
também ao fundo.
Os sentimentos presentes nessas imagens são os de dor, fragilidade, abandono e o mais
forte: necessidade de acolhimento e cuidado evidenciado por um olhar maternal e posição das
mãos da criança do lado esquerdo.
Foto SP 02 – Sertânia junho 62. Sidrome Pluricarencial – notar o edema, as
lesões cutâneas, e a estomatite angular. Facies típica de criança carenciada.
Anotações de Ruy João Marques.
Edema nos membros
inferiores.
Ressecamento
cutâneo
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Os sintomas descritos por Ruy Marques – contidos no verso de cada fotografia -
também se fazem presentes no trabalho desenvolvido por Parahym (1961, p. 369) ao afirmar
que: na sintomatologia da distrofia pluricarencial hidropigênica inclui-se o edema, que pode
ser geral (anasarca) ou apenas dos membros inferiores (edema de declive), ou dos membros
inferiores e superiores. Neste sentido, percebe-se que as mãos das crianças apresentam
edemas, ou seja, inchações, além disso, há também a estomatite angular, inflação e fissura na
região dos lábios, também denominada de boqueira bilateral (PARAHYM, 1961, p. 369).
Destaca-se que, ainda ocorrem outras manifestações da síndrome pluricarencial, não
muito recorrentes, entre as crianças que são acometidas pela distrofria pluricarencial
hidropigênica não foi constatada com frequência a hepatomegalia – aumento do fígado,
embora os autores Waterlow e Vergara (1955) não tenham identificado relação entre a
esteatose hepática – presença de gordura no fígado e a síndrome pluricarencial, (PARAHYM,
1961, p. 370; PARISE, 2012, p. 52) salienta-se que Ageu Magalhães (1934) descreveu fígado
gorduroso em 100% de 59 crianças falecidas de “gastro-enterite” ou “toxicose alimentar”,
no Recife (PARAHYM, 1961, p. 370).
Foto SP 05 – Sertânia junho 62. Sidrome Pluricarencial – notar o edema, as lesões cutâneas, e a
estomatite angular. Todas as crianças apresentavam sinais carenciais. Uma delas morreu há
poucos dias (diarreia, edema, pelagra, etc). Anotações de Ruy João Marques.
Estomatite angular.
Edema nos membros
superiores.
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A descrição dos sintomas apresentada, anteriormente, é identificada a partir de uma
sintomatologia que é completamente visível aos olhos e outras não, sendo ratificadas a partir
de uma visualização interna do corpo, com a utilização de equipamentos técnicos. Assim, é a
utilização das imagens na medicina: a compreensão do visível, a luz do invisível, aos olhos,
registrado pelas marcas de um corpo.
Assim, após a exposição dos sintomas e causas da síndrome pluricarencial, retoma-se
a ideia da escrutinação do corpo pela medicina, a partir dos aparelhos técnicos, tanto para a
exibição apurada do conteúdo que se constata internamente quanto o externamente. Neste
sentido, em relação às fotografias, o registro que se encontra visualmente expressivo é o que
direciona o espectador para a apreensão da ideia ali representada. É [...] a expressão precisa
do rosto da figura fotografada, capaz de amparar suas próprias idéias (SONTAG, 2004,
p.16). Esta concepção encontra-se presente nas imagens aqui apresentadas, a expressão
captada nas fotografias das “Meninas de Sertânia”, revela uma expressão de dor, tristeza e até
mesmo indiferença. As fotografias médicas, em sua grande maioria, revelam dores que são
visíveis aos olhos do observador, também associada a um grande constrangimento e
estranhamento por estar exposto diante de alguém desconhecido, para Sontag (2004, p. 17)
existe uma agressão implícita em qualquer emprego da câmera, ainda de acordo com a
mesma autora:
[...] tirar uma foto é ter um interesse pelas coisas como elas são, pela
permanência do status quo (pelo menos enquanto for necessário para tirar
uma “boa” foto) é estar em cumplicidade com o que quer que torne um tema
interessante e digno de se fotografar – até mesmo, quando for esse o foco de
interesse, com a dor e a desgraça de outra pessoa (SONTAG, 2004, p. 23).
A ideia supracitada se encontra presente, claramente, no registro das duas crianças.
Houve um interesse do fotógrafo em registrar as “marcas” presentes naqueles corpos, e ainda
as pondo em evidência, com uma pose direcionada para o click. As duas imagens que
registram a “Síndrome Pluricarencial” são representações da dor de duas crianças, e que
depois se tornou em uma desgraça, com a morte de uma delas. Esta situação também se faz
presente nas diversas fotos das guerras ou nas incessantes ações de violências registradas nas
fotografias forenses.
4- Considerações finais
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A fotografia médica possibilitou um registro visual minucioso e de certa forma
permanente contribuindo com a formação de um acervo rico para a realização de
investigação, pesquisa, ensino, publicações, realizações de diagnósticos, assim, se
constituindo em meio para a comunicação e divulgação científicas.
Isso também foi intensificado, pela grande mudança acerca da compreensão do corpo, a
partir da possibilidade de visualização do seu interior. Isso foi permitido a partir da inserção
de equipamentos eletrônicos - do seu uso para a visualização do corpo/doença: tomografia;
radiografia, ultrassonografia – que se constituem em métodos imagéticos que possibilitam
interpretar o organismo humano.
Não obstante, não poderia deixar de destacar a importância da preservação desses
registros imagéticos, que possibilita a compreensão e observação de imagens da ciência, em
períodos em que a mesma era uma dos grandes recursos para a realização de diagnósticos.
Nesta perspectiva, destaca-se que a preservação de coleções fotográficas tem merecido cada
vez mais atenção e se configura como uma área de atuação relativamente nova dentro de
museus, arquivos e instituições públicas e particulares. (CARVALHO, LIMA, FILIPPI,
2002). Notadamente, ao longo dos anos, a fotografia vem sendo utilizada para o
desenvolvimento de pesquisas em várias áreas do conhecimento e para que isso seja possível
é necessário o desenvolvimento de ações que possibilitem o acesso ao seu conteúdo intrínseco
e extrínseco, fato que se dá a partir de uma organização sistêmica, com utilização de
instrumentos de recolha de informações, específicos para esta tipologia documental, onde há
uma relação imbricada entre a preservação física dos documentos [imagéticos] e
consequentemente a preservação da informação [imagética].
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