MAQUIAVEL: A GUERRA E A POLÍTICA...Palavras-chave: Maquiavel. Guerra. Política. O Príncipe. Uso...
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MAQUIAVEL: A GUERRA E A POLÍTICA
Guilherme Celestino Souza Santos1
RESUMO
Maquiavel é um autor privilegiado para se pensar o vínculo entre a guerra e o exercício
do poder político, suas análises apresentam uma perspectiva completamente original no
tratamento da coisa pública e da política. A originalidade do autor está em trazer para o
primeiro plano um entendimento dos afazeres políticos, dissociando o tema de todo e
qualquer ideal transcendente, diferente do que fazia a tradição antiga e medieval na
abordagem dessas questões. O pensamento político maquiaveliano é aquele em que se
leva em conta, em primeiro lugar, a dimensão do uso da força para a manutenção e
ampliação do poder: a qualidade do regime político depende menos dos ideais dos
fundadores das constituições, que dos recursos militares e estratégicos que lhe dão
sustentação. Maquiavel dá destaque à questão da tomada de poder pelas armas, tema
inescapável a todo governante seja ele “novo” ou “antigo”. O uso da força se torna um
tema central em suas obras, tais como "O Príncipe" na qual se distingue o principado
"novo", como aquele que se obtém devido à conquista, do "antigo" como aquele que se
deve a herança e/ou direito dinástico. Porém toda sua análise se concentra sobre o
"principado novo", deixando claro que o poder está compreendido nos modos como ele
se amplia ou se conserva. E a ênfase é dada à conquista militar, como que dizendo que a
conservação em última análise depende da ampliação territorial do poder. Para
Maquiavel a guerra é o eixo principal da política, todas as suas instituições e derivações
por mais pacíficas que se apresentem, de fato existem segundo seus desdobramentos ou
antecipações.
Palavras-chave: Maquiavel. Guerra. Política. O Príncipe. Uso da Força.
ABSTRACT
Machiavelli is a privileged author to think the link between war and the exercise of
political power, his analyzes present a completely original perspective on the treatment
of public affairs and politics. The originality of the author is to bring to the forefront an
understanding of political affairs, dissociating the theme from transcendent ideals,
different from ancient and medieval tradition in addressing these issues. Machiavellian
political thought takes into account in the first place the dimension of the use of force
for the maintenance and expansion of power: the quality of the political regime depends
less on the ideals of the founders of the constitutional law than on the military and
1 Mestre em Filosofia pela UFRJ, Especialista em Docência pelo Colégio Pedro II, Doutorando em
Economia Política Internacional pelo PEPI da UFRJ, email: [email protected].
2
strategies that support it. Machiavelli emphasizes the question of the seizure of power
by arms, an inescapable theme for every ruler whether he is "new" or "old". The use of
force becomes a central theme in his works, such as "The Prince" in which the "new"
principality, like the one obtained by conquest, is distinguished from the "old" like that
which is due to inheritance. But all his analysis focuses on the "new principality,"
making it clear that power is understood in the ways in which it is expanded or
preserved. And the emphasis is given to the military conquest, as saying that
conservation ultimately depends on the territorial extension of power. For Machiavelli
war is the main axis of politics, all its institutions and derivations, no matter how
peaceful they may appear, actually exist according to their unfoldings or anticipations.
Keywords: Machiavelli. War. Politics. The Prince. Use of Force.
Introdução
Como compreendê-lo? Ele escreve contra os bons sentimentos em política, mas também
é contra a violência. Ele tanto desconcerta os que creem no Direito como na Razão de
Estado, pois tem a audácia de falar de virtude no mesmo momento em que fere
duramente a moral ordinária. É porque ele descreve esse núcleo da vida coletiva no
qual a moral pura pode ser cruel e a política pura exige algo como uma moral. Não se
aceitaria um cínico que nega os valores ou um ingênuo que sacrifica a ação. Não se
ama esse pensador difícil e sem ídolo.
(Maurice Merleau-Ponty)
Maquiavel é um autor absolutamente original para se pensar a luta política. Sua
filosofia parte de um novo caminho, inaugurando a modernidade em seu campo próprio,
a práxis política. Partindo não de noções abstratas e fundamentações ontológicas ou
teológicas, mas da própria ação política analisada em situações concretas, objetiva em
grande medida aconselhar, auxiliar a tomada de decisão em momentos críticos. Chega-
se a definir conceitos com alguma pretensão universal, tais definições operam no
interior determinado da práxis, e toda tentativa de transpor esse nível, para de outra
práxis, por exemplo, sofre todos os tipos de infortúnio próprio a toda ação interpretativa
e esforço de tradução.
Nada menos tentador para o pensamento contemporâneo. Maquiavel continua
em disputa, sua interpretação continua. Liberais e marxistas, fenomenólogos e
estruturalistas, pedagogos e psicanalistas não interessa qual divisão se queira entrever
no campo do saber contemporâneo, situam-se no interior da indecisão: lá onde as armas
servem aos campos rivais, no mesmo solo onde adversários intelectuais de vida e morte
se espetam, encontramos o mesmo sorriso maquiavélico da Monalisa renascentista.
Afinal, para que lado serve o pensamento político de Maquiavel?
3
Deixando de lado, por ora, a política da filosofia, voltando à filosofia política,
pode-se encontrar em Maquiavel uma nova abordagem ao pensamento político se
comparado ao que era elaborado na Idade Média e na Antiguidade Clássica. Todos os
principais pontos desse ultrapassamento da tematização anterior podem ser encontrados
por uma leitura atenta de O Príncipe, ainda mais se comparada às temáticas
convencionadas e tradições discursivas as quais a própria obra remete e faz referência.
Esta obra O Príncipe é datada de 1513, e foi escrita em um momento preciso
na vida do autor: aquele em que escrevia para o atual governante de modo lisonjeiro,
respeitoso, dando-lhe dicas, orientações provenientes de um antigo funcionário público
que entende dos afazeres políticos do Estado.
Maquiavel fora de 1498 e 1512 secretário no conselho da República de
Florença. Perde o cargo com o golpe de Estado dado pela família Médici em 1512, e
com afastamento das funções públicas se torna então um escritor político. Certamente
nunca desapareceram as aspirações de um dia retornar a um cargo importante em cidade
natal Florença, não importando se servindo à dinastia autocrática dos Médici ou ao
governo popular republicano. Maquiavel será o primeiro autor político a retirar a ênfase
da tipologia constitucional no critério de avaliação dos governos2.
Maquiavel escreve na obra que se consolidou com o nome de "O Príncipe",
uma carta ao príncipe Lourenço de Médici, dando conselhos bem precisos de como deve
fazer para constituir e manter um bom governo, discorrendo sobre o uso da força, e as
maneiras de se portar diante do público, por fim, exortando a luta por uma Itália
unificada, o que demandaria certamente um líder bem competente e impetuoso - do tipo
que é dotado de Virtú.
Não existem registros de como essa carta foi encarada pelo seu destinatário,
fora que o próprio Maquiavel só foi de fato contratado pelos Médici em 1520 para
escrever uma história de Florença. De todo modo esse texto acabou sendo publicado
como livro após sua vida, o que gerou muita polêmica e escândalo. Seus conselhos
realistas e diretos foram interpretados muitas vezes como ignomínia e imoralismo, de
modo que Shakespeare chega a identifica-lo com a figura do próprio demônio (Old
Nick) em alguns de seus escritos, e "maquiavelismo" se tornou sinônimo de velhacaria,
rapacidade. Mas seria uma fama justa?
A modernidade de Maquiavel
A ascensão do “homem novo” – os condottieri que sabem como bem fundar
um Estado e dar às coisas a sua “grandeza”(...). A ação desse homem novo, que funda
uma nova organização, um corpo político, deve seguir certas normas que são
igualmente “novas”: uma nova moralidade, mas não uma razão de Estado. Não é o
Estado, uma instituição, que raciocina, mas os homens. É a necessidade, e não a razão,
que “constrange” os estados a “numerosas coisas a que a razão não nos impele”
2 Como faz, por exemplo, Aristóteles. Cf. Política.
4
(Discorsi, I, 6). Mas a razão não é a necessidade, e a necessidade não é razoável. Se a
necessidade está do seu lado, ela pode impor-lhe a razão ou a não-razão. Que a
necessidade talvez pudesse ser ela própria razoável, racional, é uma idéia alheia a
Maquiavel.
(Hannah Arendt)
A obra de Maquiavel desperta os mais diferentes juízos, suas análises abrem
mão de idealizar a função do governo e tenta apenas descrever a "verdade efetiva" das
coisas, o que obriga a assumir que os homens desempenham as funções políticas tendo
em vista a conservação e a expansão do poder e não exatamente coisas metafísicas
como "justiça", "virtude" e “liberdade”. Isso gera um mal estar nos leitores até hoje, e
certamente isso faz com sua mensagem seja denegada, diante dos pruridos moralistas
dos mais variados matizes.
Maquiavel subverte a tradição. Basta ver como Santo Tomás de Aquino, um
membro exemplar da tradição, concebe as funções da política, e então se consegue
equacionar o abalo sísmico de sua obra. O Mestre da Escolástica em seu tratado De
Regno (Do Reino) compara o governante a um piloto de navio3. Cabe ao piloto cumprir
duas funções: preservar o navio e conduzir sua rota a um porto seguro. Assim como o
governante de um Estado que deve preservar seu reino, evitando que a vida pública se
extinga. E, além disso, deve conduzir o reino ao seu fim que é ético. Cabe ao bom
governante fazer dos governados, homens virtuosos, sendo a virtude o porto real a qual
devem todos alcançar.
Maquiavel mantém a primeira função de governo – a da preservação da ordem
pública, e nada diz da outra. Seu silêncio sobre o fim ético do governo alimenta o
incessante mal-estar em seus leitores e intérpretes. A tradição humanista e cristã vinha
desde a antiguidade produzindo manuais de aconselhamento de príncipes, todos focados
na finalidade do governo – a virtude, a conquista do soberano bem – ainda que
discordando do conteúdo semântico (virtude guerreira, ou piedosa e caritativa, ou
contemplativa etc.). Tais manuais foram chamados de "espelhos do príncipe" e de certo
modo o texto de Maquiavel se insere nessa tradição, porém subvertendo algumas de
suas bases.
O texto maquiaveliano abala a maneira tradicional de pensar ao distinguir bom
e mau governo pelo critério moral em sentido estrito. Por exemplo, quando enumera
modos de fundar um principado incluindo formas consideradas criminosas e que se
poderia derivar propriamente da virtude do príncipe em sentido tradicional (humanista
ou cristão). E, sobretudo por modificar substancialmente a maneira como se irá entender
qual seja a "virtude" do príncipe.
Na antiguidade e idade média, o governo político é pensado desde uma
harmonização entre o homem e seu meio natural e social, o governando sendo por isso o
3 Estamos seguindo aqui de perto a argumentação de LIMONGI, Maria Isabel. “Ética e Política em
Maquiavel”.
5
mais exigido do ponto de vista ético. "Governar a si para poder governar aos outros"4
eis um imperativo da formação política que encontramos nas variadas escolas
filosóficas desde a era clássica até o humanismo renascentista. O Bom governante é
aquele que realiza o máximo das virtudes, e consegue estimular ao máximo as virtudes
do seu governado. Um exemplo disso é a famosa narrativa de Alexandre, o Grande, que
ao atravessar o deserto, rejeita o regalo de seus comandados que unificaram as últimas
gotas de suas botijas e lhe oferecem para apaziguar a travessia. Mas no final, o grande
líder rejeita o privilégio, e derrama na areia a água, mostrando a todos que ele era como
eles e que era capaz de superar a mesma sede com temperança e equilíbrio.5 Imagens
como essa serão sempre evocadas quando se quer que ética privada seja o modelo de
regulação do governante e da sociedade.
Maquiavel já observa essa questão de modo original, o bom governante é
aquele que consegue conservar e ampliar a ordem pública e seu Estado, independente de
sua conduta na vida privada, e muitas vezes contrariando as expectativas éticas dessa. É
melhor um governante que não seja santo e proteja o Estado de suas ameaças internas e
externas, do que um que o seja, ou próximo disso, mas sucumba na primeira
confrontação que necessariamente ocorrerá. O máximo exemplo do segundo tipo,
Maquiavel observou no frade Savaranola que ao governar Florença em nome dos mais
puros e santos ideais, irá ser queimado vivo por um papa que realmente nada tinha de
santo.
São Tomás pensava que os homens tendiam por natureza ao acordo e a uma
vida harmoniosa. Maquiavel baseando-se na experiência dos exemplos históricos chega
a uma conclusão diferente disso. E por isso conclui que não é a tarefa dos governantes
cuidar da virtude dos governados. As opiniões e condutas pessoais do líder não tem
nada de melhor (ou pior) do que as dos demais. Para São Tomás, e para a tradição de
maneira geral, a virtude pública tem de ser o prolongamento das virtudes privadas, para
Maquiavel, essas são duas coisas que representam planos muitos distintos. Para o
Florentino cabe ao governante enquanto homem público a capacidade de "articular
forças sociais"6, enquanto ao homem privado, o exercício das excelências éticas
propriamente ditas. Todavia cabe ao governante "parecer" ter as virtudes privadas, uma
vez que será observado e avaliado pelos indivíduos privados e seus valores.
Maquiavel modifica estruturalmente a compreensão que se tinha sobre o que
significa ser ético, e desmantelando a relação entre ética e política que existia antes dele.
Seguindo a lição de Hannah Arendt, podemos pensá-lo como instaurando o campo
próprio da reflexão moderna sobre a política. Ou melhor,
A atitude em face da política: os antigos poderiam tornar-se imortais
somente ao juntar algo ao mundo, que continua após a morte. Os cristãos, pelo
contrário, estão seguros da imortalidade façam o que fizerem, e só devem então
escolher a “boa vida” para estarem certos da vida além. Os antigos: a vida como
4 Cf. FOCAULT, M. Govenemennt de soi et autres. 5 Idem. 6 Limongi, já citado.
6
tal, sendo mortal, nada é senão uma oportunidade para tornar-se imortal. Para os
cristãos: a vida como tal é imortal, e, portanto ela é tudo. A vida e o mundo.
Vivemos no mundo: a vida continua após ter-se extinto o mundo; ou o mundo
continua após ter-se extinta a vida. Maquiavel não pergunta jamais: para que
serve a política? Isto é muito surpreendente. Ninguém salvo ele põe inteiramente
de lado essa questão. A política não tem fim mais elevado do que ela própria. O
cristianismo: a política deve ser organizada de tal modo que o homem e sua alma
possam estar certos da salvação eterna. Este é o critério último. Platão e
Aristóteles pensavam que a política devesse ser organizada de tal modo que a
filosofia – o cuidado com as coisas eternas – fosse possível. (2018, p.302)
A dinâmica da força
Toda a inovação Maquiaveliana pode ser recolhida nesta obra relativamente
curta que é O Príncipe. O plano geral da obra pode ser divido em duas partes, a primeira
do capítulo I ao XIV tratando do papel da força na política, e a segunda dos capítulos IV
ao XVI tratando do papel da imagem do príncipe na práxis do poder político. Neste
final busca-se o fundamento da glória duradoura máxima de um governante a fundação
do Estado, e o sonho de uma Itália unificada.
O uso da força se torna um tema central na primeira parte do Príncipe que
começa discutindo os tipos de principado não pela tipologia constitucional, mas quanto
a sua "novidade". O principado "novo" é aquele que se obtém devido à conquista, o
"antigo" aquele que se deve a herança e/ou direito dinástico. Toda sua análise se
concentra sobre o "principado novo", deixando claro que o poder está compreendido
nos modos como ele se amplia ou se conserva. A ênfase é dada à conquista militar,
como que dizendo que a conservação em última análise depende da ampliação territorial
do poder.
Deste modo, a força aparece como elemento constitutivo do poder, seu
domínio e manejo como que fundamental para o governo principesco. A análise
maquiaveliana abre mão de pensar a política a partir de um modelo ideal de sociedade, e
passa a observar a "verdade efetiva". Em vez de um todo harmonizou ou uma tendência
para tanto, vemos na base da sociedade uma divisão irreconciliável.
Como vemos no capítulo IX, a vida social é constituída por um conflito
fundamental entre grupos sociais - entre os “grandes” e o “povo”. Sendo os "grandes"
definidos pelo "desejo de governar e oprimir o povo" e o povo pelo "desejo de não ser
governado e oprimido pelos grandes", "em todas as cidades se encontram essas duas
tendências diversas". A arte de governar consiste em levar a bom termo esse conflito
fundamental. Algo que não significa a supressão do conflito, mas sim a sua mediação, e
a gestão dessa mediação. Cabe ao Príncipe institucionalizar o conflito, regrá-lo de tal
modo que seja possível o convívio e a mútua cooperação entre as partes conflitantes.
7
O Exemplo de instituição mediadora de conflito está na República romana
descritos nos capítulos iniciais dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. A
força de Roma estava na explicitação desse conflito fundamental, em não mascará-lo
sob a aparência de um falso acordo. Para isso, os romanos criaram a figura do tribuno,
que contrapunha a do senado, como que dando vazão ao conflito fundamental entre a
plebe e a nobreza romana.
A vida social é um campo de forças e só pode prosperar se essas forças de
algum modo se equipararem. Cabe ao governante buscar, ou até mesmo forçar essa
equiparação. Porém a força insatisfeita poderá sempre se revoltar e buscar apoio de
forças estrangeiras, o que ocorria muito frequentemente na Itália da época de
Maquiavel. Um enorme desafio, portanto é manter o desejo de ambas as partes em
algum grau de satisfação, a estabilidade contra golpes, invasões ou insurgências
depende diretamente disso. Como diz Limongi:
Trata-se de resolver os conflitos internos para conquistar uma posição
forte diante das forças políticas externas. Só assim um Estado pode perdurar. (...)
É nesse sentido que Maquiavel aconselha o governante em O Príncipe: ele deve
fazer aquilo que as instituições da Roma antiga faziam e, retirando a sua força
política e suas capacidades de governo em parte do apoio do povo, isto é,
preservar a vida comum e fortalecer-se contra as forças estrangeiras. (2006, p.62-
3)
A interpretação maquiaveliana é bastante original por supor o conflito na base
da política, e não buscar uma harmonia natural ou divina, como fazia os antigos e
medievais, tampouco perseguir um consenso originário ou acordo entre os indivíduos,
como fará toda reflexão iluminista e liberal que vigora até hoje. O papel da política é
antes de tudo o de mediar conflitos sociais.
Conservar um reino já é um trabalho e tanto, tendo em vista a
instabilidade da vida social! Não é o bom timoneiro aquele que consegue evitar
que um navio afunde num mar revolto? Não é preciso cobrar dele que, além
disso, conduza o navio a um porto paradisíaco (Idem. p. 64).
Cabe ao governante maquiaveliano não mais aplicar uma regra de justiça que
só ele conhece de antemão, mas de inventar, instituir uma regra de justiça que pareça
satisfatória àqueles a quem governa. Maquiavel não recorre a modelos de como deve ser
a práxis do político, mas sim a "efetiva verdade", o que implica um recuo às séries
históricas e às recorrências. Ele define um programa de formação da inteligência
estratégica pelo recurso a observação histórica, referindo como os homens bem
sucedidos agiram em situações análogas, quais eram as suas práticas.
O recurso às decisões e posicionamentos históricos não é condição suficiente
para o sucesso atual, pois as circunstâncias nunca são exatamente iguais. Por isso o
governante deve estar também atento a cada detalhe da situação concreta em que sua
8
ação se inscreve. O conhecimento histórico ajuda na compreensão da situação e não
para que se retire dele regras imutáveis e preceitos universais para a ação. O bom
político é aquele que sabe aproveitar dos dados da situação, aproveitando a ocasião para
agir.
Nisso consiste a relação entre virtú e fortuna. A virtude do governante depende
de saber impor seu ritmo de ação diante das marés oportunas ou de desgraças imposta
pela fortuna. Sua capacidade de ação depende de sua inteligência estratégica que
antecipa as ameaças externas (forças estrangeiras, rupturas de tratados, dissabores
diplomáticos, etc) e internas (conspirações, revoltas, crises econômicas, etc). A
inteligência que preside a ação virtuosa do governante é aquela que se confronta com o
imponderável dos acasos e o inexorável do destino como que se enamorando da fortuna
para a glória e não sendo arrastado por ela para o infortúnio7.
Esse confronto entre fortuna e virtù, ou, entre as circunstâncias e a
capacidade humana de modificar o curso da existência, constitui a chave de
acesso ao pensamento de Maquiavel. O autor reflete sobre a imensa influência
que a fortuna exerce nos negócios humanos e conclui que a deusa, temida por
seu enorme poder, deveria ser persuadida a aliar-se aos homens e contemplá-los
com os bens de que dispõe e que todos os homens desejam, os mais elevados dos
quais são a honra e a glória. A fortuna reaparece sensível e apreciadora do mérito
humano — virtù —, que demonstra a capacidade humana de intervir diante dos
limites impostos pelas circunstâncias, para alcançar a satisfação de seu interesse.
(SARTI, 2010, p.3)
Maquiavel conclui que a fortuna é mulher, por essa razão aprecia as
qualidades varonis, especialmente a coragem viril. Como mulher, diz, a fortuna é
sempre amiga dos jovens, pois são menos circunspectos, mais impetuosos e com
mais audácia a dominam. (Idem, nota iv, p.14)
A imagem do príncipe
Algo de substancial, que faz parte da fortuna ou infortúnio do príncipe é sua
reputação conferida pelos seus governados e pelo outros atores políticos em seu
contexto de ação. Sem uma boa imagem pública não é possível governar. Ocorre que
nem tudo que é necessário ser feito pode ser conciliado com as melhores expectativas
que se pode ter de alguém.
Embora a regra de ação do governante não será idêntica a do indivíduo em sua
vida privada, em geral será julgado segundo sua métrica, e muitas vezes terá de
deliberadamente que frustrá-la. Como diz do capítulo XV, o Príncipe precisa "aprender
a não ser bom".
7 Ver Arendt, no texto já citado, sobre o papel da glória na virtú política.
9
Livio Xavier na edição da coleção Os Pensadores, traduz essa passagem como
"aprender a ser mau", o que não significa a mesma coisa e oferece uma divergência não
apenas quanto à tradução dos termos, mas, sobretudo uma divergência na interpretação
de um trecho decisivo do autor. "Ser mau" significa ferir os preceitos éticos assumidos,
"não ser bom" não implica necessariamente "ser mau", indica a necessidade de por
vezes de se pautar a conduta por vezes por princípios outros que os éticos comumente
aceitos.
Na interpretação que lê que o príncipe precisa aprender a "ser mau"
encontramos a compreensão que a política tem uma função e uma finalidade que lhe é
própria e encontra dificuldades concretas que nada tem que ver com a ética. Ela tem
campo de ação com regras próprias na qual vale mesmo a astúcia e a rapacidade. Na
interpretação sugerida por Limongi, e seguida aqui, "não ser bom" significa nem sempre
ser possível ao Príncipe corresponder as expectavas que colocam sobre seus ombros (ser
um exemplo de santidade e pureza, conduzir todos à salvação messianicamente, etc.).
Nem sempre é bom parecer bom, ou em tudo agir como bom. No cuidado com jovens e
crianças faz parte de uma boa educação frustrar expectativas de presentes e não mimá-
las demasiadamente. Os governados esperam dos seus governantes uma série de
benesses e atitudes, que, tendo em vista as opiniões ou demandas de outros grupos
sociais, terão de ser frustradas.
O Príncipe precisa aprender a não ser bom para não se arruinar, e para se
preservar no poder. Isso não significa uma regra de ação voltada para o benefício
pessoal do Príncipe, mas uma regra de governo propriamente dita. Trata-se de uma
"regra de ação" que visa à manutenção da capacidade de governo no sentido original e
moderno que Maquiavel confere a essa noção.
À guisa de conclusão: contribuições para uma abordagem crítica do
sistema internacional
Muito comum é identificar Maquiavel como um precursor das modernas
Ciências políticas, tendo definido o campo do chamado realismo político, o mesmo que
será consagrado por Hobbes em sua teoria contratual da soberania, na qual a arbitragem
jurídica e política não se dão sem coerção e monopólio da violência. Dois tipos de
objeção são possíveis de se levantar, o que certo modo isso encaminha a discussão sobre
como a teoria maquievaliana pode contribuir efetivamente para o pensamento crítico
contemporâneo no que tange uma reflexão sobre o sistema interestatal capitalista.
Em primeiro lugar, o pensamento maquievaliano é antes de tudo filosófico e
não científico – autores que afirmaram algo diferente disso como Leo Strauss, e outros,
estão presos a um paradigma cientificista e positivista que tende a reduzir o político ao
formalizável, esquecendo que diante dos mais virtuosos cálculos e entendimentos da
política, há sempre algo irredutível ao cálculo e ao entendimento analítico – a fortuna.
Em segundo lugar, a concepção de "realismo" nos leva a pensar o autor em
uma chave necessariamente conservadora – esquecendo que o Príncipe era uma
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exortação ao levante cívico pela unificação da Itália, ou os Discursos, e A Arte da
Guerra, uma concertação estratégica convocando as milícias Republicanas em prol da
autonomia Florentina no cenário das disputas militares e geopolíticas entre as grandes
potências europeias do XVI.
Não devemos esperar contribuições "científicas", tampouco "realistas" na
filosofia política maquiaveliana. Pelo contrário, seu pensamento não se cristaliza na
determinação analítica de uma realidade objetiva, sua perspectiva urge processos de
transformação social e não de conformismo. O mal-estar provocado por esses
delineamentos se deve provavelmente ao fato dessas considerações não estar ancoradas
em um ideal pacífico e tranquilo como "igualdade" ou "liberdade", mas apenas na
verdade efetiva dos fatos. E, ainda, essa compreensão da verdade efetiva é menos
conciliatória que subversiva (ou pelo menos inquietadora) em relação ao estado atual
das coisas analisadas.
Ingrid Sarti (2010) opõe a figura do Príncipe Republicano, do Príncipe
Autoritário, este último podendo receber o epíteto de "maquiavélico" por ser a
encarnação do discurso do realismo e da razão de estado. Gramsci8 lembra que a
realidade efetiva das coisas para qual Maquiavel se volta não o faz um realista, no
sentido que se costuma atribuir a esse termo, confundindo-o com conservadorismo,
justamente por que há uma teoria da revolução implícita no Príncipe. O realismo seria
dizer que a teoria política cabe apensar reafirma o estado de coisas vigente.
Entretanto, talvez nessa fonte mesma de inesgotável inquietação e vitupério
estejam as bases e os fundamentos para uma análise que se queira relevante no âmbito
político. A temática da divisão civil, por exemplo, tão presente no Príncipe e nos
Discursos, pode ensinar a se enxergar a ordem política desde o campo da correlação de
forças. O papel da força, em sua "lógica"9 sobretudo, como constitutivo efetivo das
instituições e do Estado, pode apontar para como toda a temática da soberania nacional,
e da autonomia pode ser repensada desde outro ângulo que o da tradição iluminista e
contratualista. As funções da imagem na constituição do exercício efetivo do poder
recoloca em cena o tema da ideologia. Enfim toda uma série de temas e tópicos podem
ser pensados e repensados a partir de Maquiavel quando se quer refletir sobre as
relações de poder no contexto do sistema internacional.
8 Na realidade Gramsci enxerga em que há em Maquiavel um “realismo excessivo” “na política, o qual
leva a interessar-se não pelo dever ser, mas pelo ser (...). Dilema que obriga a distinguir entre o diplomata
e o político. (...) É certo que o político não deve mover-se só na “realidade efetiva”, mas também no
“dever ser” que orienta a ação sobre a mudança da sociedade. Mas haveria duas formas deste “dever ser”:
uma, a abstrata e difusa de Savonarola (o “profeta desarmado”), e outra, a realista de Maquiavel, nem
determinista nem voluntarista, mas definida como interpretação objetiva e como indicadora de linhas de
ação, embora não se tenha transformado em realidade imediata.” PORTANTIERO, Juan Carlos. Gramsci,
leitor de Maquiavel. Tradução de Josimar Teixeira, Julho 2009. 9 Cf. LEFORT, Claude. “A lógica da força”.
11
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