MÃES E GUERRILHEIRAS NA DITADURA MILITAR DO … · 2018-01-17 · Essa dualidade traçada não...
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
MÃES E GUERRILHEIRAS NA DITADURA MILITAR DO BRASIL: UM
ESTUDO SOBRE AS REPRESENTAÇÕES DA MULHER EM UMA OBRA
DE CUNHO TESTEMUNHAL
Jaqueline Aparecida Nogueira1
Resumo: O objetivo desse trabalho é investigar as representações da mulher na obra testemunhal Infância Roubada,
Crianças Atingidas pela Ditadura Militar no Brasil (2014). A materialização das histórias de vida das crianças exibe
também a trajetória militante de seus pais. Assim, a luta da mulher na ditadura militar do Brasil foi evidenciada por
meio de marcas presentes nos elementos extratextuais e textuais da obra. Com base nos estudos discursivos, no que
tange o campo da Teoria das Representações Sociais (TRS), identificamos e refletimos a respeito de tais marcas. A
análise concretizada demonstrou que a temática do livro privilegiou a mulher como referência principal. Todavia, o
feminino foi representado por meio de polos diversos: a guerrilheira foi representada nos textos introdutórios, os quais
abordam questões de gênero, como a valorização do papel da mulher enquanto militante, a divisão sexista do trabalho e
a violência sexual cometida contra as mulheres no contexto da ditadura e a mãe foi representada nos elementos
extratextuais e em testemunhos diversos, onde a mulher foi enaltecida como exemplo a ser seguido e como uma base
familiar.
Palavras-chave: Ditadura militar. Mulher. Representação social.
Introdução
A concretização de uma pesquisa de mestrado na Universidade Federal de São João del Rei
no ano de 2016 nos instigou a refletir sobre a representação da mulher em arquivos testemunhais
sobre o período autoritário do Brasil, pois observamos que a temática do livro analisado na ocasião
privilegiou a mulher como referência principal. Infância Roubada, Crianças Atingidas pela
Ditadura Militar no Brasil (2014) foi lançado pela Comissão da Verdade Rubens Paiva do Estado
de São Paulo com base em quarenta e quatro testemunhos de filhos de militantes e arquivos
diversos, como fotografias cedidas pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo, cartas trocadas no
período e cópias de documentos oficiais.
A tentativa dos filhos de militantes de trazer ao cenário socio-histórico atual as lembranças
daquela época revelou inúmeras situações familiares dolorosas ao público leitor. “Os depoimentos
foram marcados por lembranças da prisão, do exílio, do desamparo, de questionamentos em relação
às suas identidades, de medo, insegurança, isolamento, solidão e vazio que, em muitos casos, são
traumas não superados”. (SÃO PAULO, 2014, p.11). Junto a essas memórias, foram delineadas
diversas representações femininas, as quais enfatizamos a partir da ideia de maternidade e de luta.
1 Mestre em Letras pela Universidade Federal de São João del Rei, São João del Rei - MG, Brasil.
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Essa dualidade traçada não possui a pretensão de determinar a participação feminina na
subversão contra a ditadura, a qual merece uma gama de estudos aprofundados. Todavia,
observamos que os textos introdutórios requereram maior valorização da participação das mulheres
na luta, representando-as como guerrilheiras. Por outro lado, ao contar sobre o passado, as crianças
da ditadura evidenciaram o papel das mulheres como bases familiares em relação ao cuidado e
educação dos filhos, reflexos do contexto patriarcal da época. Para além, as representações da
mulher como mãe e como guerrilheira se relacionam e são ressignificadas no decorrer da obra.
Selecionamos como material de análise a Introdução, escrita por Amelinha Teles. Esse
elemento pré-textual foi dividido em temas diretamente relacionados à questão de gênero, como
podemos constatar: 1. Mulheres e crianças inimigas do estado; 2. Denúncias de mulheres grávidas
publicadas pelo projeto “Brasil, nunca mais”; 3. Maternidade, infância, clandestinidade e terror
de Estado; 4. Mudanças profundas na vida das mulheres sob a égide do autoritarismo; 5. Mas
afinal, o que é gênero? e 6. A construção da verdade sob a perspectiva de gênero. Selecionamos
também o testemunho Los niños nacen para ser felices (SÃO PAULO, 2014, p. 139-151). Tal
testemunho versa sobre a vida e militância de uma figura emblemática no livro, Tercina Dias de
Oliveira, conhecida como “Tia”, a qual resgatou e cuidou de filhos de militantes no período.
No ínterim autoritário vivenciado pelo Brasil, a sociedade se baseava predominantemente
em uma ideologia patriarcal. Assim, a subversão contra a ditadura culminava em outro tipo de
resistência: o desafio perante os papeis tradicionais impostos às mulheres daquela época. Não
obstante as dificuldades impostas pela forte repressão exercida pelo regime, bem como as pressões
sociais, as mulheres não deixaram de participar da luta por meio de movimentos estudantis,
partidos, sindicados e também nas guerrilhas. A questão da maternidade para as mulheres
subversivas foi um elemento desencadeador de questionamentos e se relacionou, inclusive, com as
práticas de tortura. Neste mote, orientamos as nossas discussões à participação da mulher na luta e
as relações dessa participação com a maternidade.
A obra e seus contextos
Nesta seção, exploramos o contexto de aparição da obra analisada, bem como o contexto ao
qual os testemunhos nela reverberados fazem referência. De acordo com Nogueira (2016), o livro
Infância Roubada, Crianças Atingidas pela Ditadura Militar no Brasil (2014) pode ser considerado
como uma miscelânea de vozes independentes, porém reunidas em prol de um objetivo social
comum: testemunhar contra a ditadura militar no Brasil e em favor dos militantes, caracterizando
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um tipo de autoria colaborativa. O livro foi lançado em 2014, ano de intensas discussões sobre a
ditadura na academia e na mídia, o qual marcou o cinquentenário de seu fim. Esse ato comunicativo
foi materializado em um país democrático com práticas mais livres com relação à liberdade de
expressão se comparado ao período ditatorial que faz referência, quando os atos institucionais
dificultaram as possibilidades de manifestação contra as imposições do regime. Logo, o contexto
referenciado pelos testemunhos se caracteriza pela política repressiva orquestrada pela ditadura.
De acordo com o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (2014), o período da
ditadura militar no Brasil integra um quadro de graves violações contra os direitos humanos, pois os
opositores do regime foram perseguidos de diversas maneiras. Cidadãos tiveram os seus mandados
eletivos e cargos públicos cassados, perderam o direito da livre manifestação e expressão de suas
ideias e posicionamentos, receberam punições relacionadas ao exercício de suas atividades
profissionais, a exemplo de transferências, afastamentos e demissões. Ademais, diversas instituições
de ensino do país foram excluídas no período. (BRASIL, 2014).
No tocante à prática da tortura como forma de punição ou em interrogatórios, o Relatório
Final da Comissão da Verdade (2014) ilustra centenas de relatos de sobreviventes, familiares ou de
testemunhas. Especificamente contra a mulher, foram denunciados casos de estupro, de insultos à
dignidade humana, de aplicação de choques em grávidas, que em muitos dos casos resultaram em
abortos, além de ameaças e até mesmo de concretização de atos violentos contra os filhos de
opositoras do regime. Tais relatos comprovam que as mulheres estiveram presentes ativamente na
luta e que foram subjugadas com base em ideologias machistas, visto que integrantes do regime
atacaram diretamente a identidade feminina, a partir da ideia da inferioridade feminina. Assim,
diversas práticas de violência nas torturas foram associadas ao poder e à virilidade masculina.
Alguns dos relatos, aos quais referenciamos, abordam as humilhações e as violências
sexuais sofridas pelas mulheres, casos nos quais os ataques dos algozes foram direcionados à
natureza reprodutiva da mulher e ao papel destinado a elas pela sociedade patriarcal. Maria
Aparecida Costa relatou para o Relatório Final da Comissão da Verdade (2014) que foi apelidada
de “vaca”, além de receber críticas relacionadas à importância da participação das mulheres na luta
contra a ditadura. Outra testemunhante, Rose Nogueira, a qual tivera um filho pouco antes de ser
presa e torturada, contou que também foi comparada a uma vaca e que sofreu abuso sexual. “Eles
diziam: 'Onde já se viu! Acabou de parir e tem esse corpo! É porque é uma vaca terrorista' […]”.
(BRASIL, 2014, p. 404). Ana Maria Gomes, detida no ano de 1968, relatou que recebeu um sermão
de um delegado por estar engajada em atividades sindicais. O oficial baseou os seus dizeres no
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comportamento social esperado da mulher. “Ele [delegado] disse: 'vocês são moças, jovens, que
provavelmente pretendem casar, constituir uma família, e fica muito mal, moças como vocês
estarem frequentando sindicato […] '”. (BRASIL, 2014, p. 405).
Em concordância aos dizeres de Amelinha Telles na introdução do livro analisado,
consideramos que, de maneira geral, a sociedade brasileira passou por grandes mudanças com
relação a hábitos e costumes desde a década de 1960. Com o aumento populacional urbano, devido
ao êxodo rural, a procura por trabalho se tornou mais acirrada. Diante de tal realidade, muitas
mulheres passaram a ter novas atribuições e a concorrer por um lugar no mercado de trabalho.
Ademais, a comercialização das pílulas anticoncepcionais possibilitou às mulheres o exercício do
direito sobre a decisão da maternidade, bem como proporcionou a elas maior autonomia em relação
ao prazer sexual. Nas palavras de Amelinha Teles: “As mulheres, então, travaram um movimento
de ruptura do tabu da virgindade. Passaram a exercer uma maior liberdade sexual subvertendo a
ordem dada pelo acirramento da repressão política e moral”. (BRASIL, 2014, p.18).
Orientando as nossas reflexões ao cenário jurídico, ressaltamos que apesar de a igualdade
entre homens e mulheres ter sido instituída legalmente pela Constituição Brasileira de 1934, apenas
em 1988 a Carta Magna equiparou expressamente homens e mulheres em direitos e deveres.
Todavia, pensamentos tradicionais e preconceitos ainda perduram hodiernamente. Para Vieira
(2014), a sociedade brasileira vive sob um manto de igualdade jurídico-constitucional que se
sustenta apenas no nível formal, ou seja, ainda residem situações de desigualdade nos contextos
econômicos, políticos e sociais.
Considerados os contextos relacionados ao livro em voga, destacamos que o ato de trazer à
baila a participação feminina na ditadura pode ser uma maneira de desvelar uma herança ideológica
de subordinação das mulheres. Não obstante as significativas conquistas femininas nos planos
social, econômico, político e jurídico, a ideia da inferioridade da mulher ainda se mostra persistente
na sociedade brasileira e tem influenciado embates calorosos em segmentos diversos, como a mídia
e a academia.
A teoria das representações sociais
Inaugurada a partir do conceito de “representação coletiva” de Émile Durkheim, a noção de
Representação Social (doravante RS) foi posteriormente implementada a partir dos trabalhos de
outros pesquisadores. Embora o tema introduzido por Durkheim tenha caído em desuso por algum
tempo, os estudos das RS foram retomados a partir dos anos 1960, quando os trabalhos de
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Moscovici despertaram o interesse de um grupo de psicólogos sociais. (MOSCOVICI, 2001, p.45).
Mais tarde, embasados nos estudos de Moscovici, Doise (1992), Abric (1994) e Denise Jodelet
(2001) e complementaram as teorizações relativas às RS.
De acordo com Jodelet (2001), a noção de RS se situa na interface com o social e pode ser
empregada como objeto de estudo em diversas áreas das Ciências Humanas, como a Sociologia, a
Antropologia, a História e a área de Estudos da Linguagem, entre outras. A autora aponta que a
observação das representações sociais é natural em diversas ocasiões, pois elas circulam nos
discursos, são trazidas pelas palavras e cristalizadas em condutas e organizações materiais e
espaciais. Desse modo, as representações sociais guiam os nossos modos de nomear e interpretar os
diferentes aspectos da realidade, orientando e organizando condutas e comunicações sociais. Por
meio delas, indivíduos ou grupos podem forjar definições específicas a objetos representados.
Para Charaudeau (2012), as representações organizam o real por meio de imagens mentais
transpostas em discursos. Deste modo, os processos de representação constroem os saberes de
crença e de conhecimento e apontam a relação que os indivíduos mantêm com o real. Assim, ao
partilhar definições, um grupo constrói para si uma visão consensual da realidade e pode se exibir
através de rituais, estilizações de vida e signos simbólicos. “Em resumo, as representações apontam
para um desejo social, produzem normas e revelam sistemas de valores”. (CHARAUDEAU, 2013,
p.47). Além de desejos sociais, o autor evidencia que as representações também funcionam como
mecanismos de classificação e de julgamento.
Em concordância a Jodelet (2001), Charaudeau (2012) postula que as palavras apontam para
as representações, tornando-se portadoras de determinados valores. Jodelet (2001) exemplifica essa
questão através de uma reflexão sobre a representação da AIDS:
Forjam-se palavras portadoras de representação: aidético soa como “judaico”, “aidetório”
como “sanatório” ou “crematório”, com grande poder de evocação tal que induzem a
enquadrar os doentes em uma categoria à parte e a adotar ou justificar condutas de
discriminação (JODELET, 2001, p. 20-21).
Seguindo um percurso similar ao da autora supramencionada, Charaudeau (2012) pondera
que o uso dos termos não é inocente, pois palavras usadas em situações recorrentes por locutores do
mesmo tipo podem adquirir determinados valores. Um locutor pode optar, por exemplo, entre usar a
palavra “globalização” ou “internacionalização” para tratar do mesmo assunto. Todavia, essa
escolha pode revelar o posicionamento privilegiado por esse locutor, visto que o primeiro termo
proposto remete a um pensamento liberal de direita e o segundo a um pensamento social de
esquerda. Por fim, Charaudeau (2012) salienta que um enunciado, aparentemente neutro, possuir a
capacidade de mobilizar universos de crenças diversos.
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Percurso teórico metodológico
No presente trabalho, empregamos a Teoria das Representações Sociais (doravante TRS) a
partir de um viés discursivo perante o nosso objetivo de investigar as representações sociais da
mulher em um livro de cunho testemunhal. Assim, balizamo-nos em trabalhos do linguista Patrick
Charaudeau a esse respeito. Para concretizar as análises propostas, selecionamos a Introdução e o
testemunho Los niños nacen para ser felices (p. 139-151). Desses materiais, retiramos quatro
excertos referentes à referenciação da mulher e de sua participação na ditadura e refletimos sobre
eles à luz da noção de RS.
Após as discussões teóricas concretizadas, consideramos que o estudo das representações
sociais passa pelo estudo da palavra e de seu universo de significação. Deste modo, reportamos
palavras portadoras de valor de representações a seus universos semânticos, a fim de identificar as
suas raízes sociais e as posições que aderem ou refutam. Por este percurso teórico metodológico,
refletimos sobre as formas de referenciar a mulher e a sua participação na luta contra ditadura.
Análise
Para refletir sobre a representação da mulher na ditadura como uma guerrilheira, convém
nos atentarmos ao significado dessa expressão. De acordo com o Dicionário de Língua Brasileira
Evanildo Bechara (2012), um guerrilheiro seria aquele que luta em guerrilha e a guerrilha, por sua
vez, seria a luta armada contra o poder instituído de um país. Todavia, consideramos guerrilheiras,
neste contexto, não necessariamente as mulheres que “pegaram em armas”, mas todas aquelas que
subverteram os seus lugares sociais e assumiram uma posição política de enfrentamento direto
contra o autoritarismo.
Os assuntos abordados nos textos introdutórios por Maria Amélia de Almeida Teles,
conhecida como Amelinha Teles, travaram discussões acerca da participação feminina na política
do país e na luta contra a ditadura. Essas discussões se apoiaram no princípio da igualdade entre os
sexos, balizado pelo conceito de gênero. A autora situou a obra em prol da construção da verdade e
da justiça no país e discutiu as relações de trabalho entre homens e mulheres no contexto familiar a
partir de perspectivas históricas, como o fato de os trabalhos domésticos terem sido atribuídos às
mulheres.
Ao exaltar a participação da mulher em atividades políticas e na luta contra o regime
ditatorial, Amelinha Teles caracterizou o Brasil como um país machista: “No Brasil ainda prevalece
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uma mentalidade de que política é coisa de homem”. (SÃO PAULO, 2014, p. 14). Nessa discussão
sexista, a figura da então Presidente da República Dilma Rousseff foi acionada na contextualização
do cenário político do país:
O Brasil tem partidos políticos sexistas que não oferecem condições mínimas para a
participação das mulheres, embora tenhamos uma mulher de esquerda, militante na luta de
resistência à ditadura, na Presidência da República, Dilma Rousseff (SÃO PAULO, 2014,
p. 14).
Em seguida, a autora argumentou que a repressão da ditadura reforçou o moralismo e o
preconceito machista para desvalorizar a participação feminina na luta. A autora caracterizou a
democracia do Brasil como frágil e não consolidada e defendeu que a participação das mulheres na
luta deve ser trazida a público para que se alcance a verdade, pois em sua perspectiva, o silêncio em
torno da questão é permanente.
A autora ressaltou também a necessidade de reconhecer que a prática do estupro foi utilizada
como forma de tortura pela repressão. Neste sentido, criticou tanto a falta de ações políticas no
Brasil que ofereçam oportunidades para narrar publicamente crimes deste cunho, quanto a ausência
de políticas para repará-los. Por meio de sua argumentação, observamos que a autora considera que
as mulheres e as crianças ainda não tiveram as suas vivências inscritas na história política do país.
Selecionamos os seguintes enunciados, os quais fazem representam a mulher e sua luta
contra a ditadura na Introdução:
E1 - As mulheres militantes, ao decidirem pela maternidade, eram advertidas de forma
sistemática sobre o que poderia lhes advir caso caíssem nas garras da repressão. Havia
reações negativas em relação à escolha pela maternidade. As organizações, de um modo
geral, não adotavam nos seus planos de ação o enfrentamento dos problemas do cotidiano,
considerados menores e que deveriam ser postergados para quando houvesse o triunfo da
revolução. (SÃO PAULO, 2014, p.17, negrito nosso).
E2- Hoje com 39 anos, nascida em 1974, na região da guerrilha do Araguaia, filha de um
guerrilheiro do Araguaia, desaparecido, Antonio Teodoro de Castro (1945–1974), que era
conhecido na área da guerrilha como Raul. Sobre sua mãe, não há nenhuma informação,
mas encontra-se desaparecida desde aquela época. (SÃO PAULO, 2014, p.14, negrito
nosso).
E3 - Algumas organizações excluíam as grávidas ou mães de crianças pequenas das
tarefas políticas e/ou militares, no sentido de impedir que acontecesse o pior: a mãe ter sua
criança torturada e/ou sequestrada, usada como refém pelos agentes da repressão, assim
como as crianças assistirem suas mães ou seus pais sendo torturadas (os). (SÃO PAULO,
2014, p.17, negrito nosso).
Observamos que a mulher foi referenciada como “mulher militante” em E1. Essa forma de
referenciação conota características outras à mulher, revela-a diferente das demais, mais forte e
independente. Por outro lado, a maternidade foi representada como uma fraqueza, um perigo. Para o
contexto da época, a possibilidade de escolha da mulher pelo engajamento político revelava maior
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liberdade sexual, porém, o enunciado revela a existência de pressões pela negação de sua natureza
reprodutiva, mesmo por parte das organizações subversivas. Neste emaranhado de significações,
aventamos a possibilidade de que a expressão “mulheres militantes” seria uma forma de incluir a
mulher em um universo masculino.
No enunciado E2, a mulher é referenciada como mãe. Essa nominação termina por suscitar o
apagamento das atividades exercidas pela mulher na guerrilha, pois a mulher é representada
somente como mãe. Apesar de o enunciado tratar especificamente da filiação de um sujeito,
salientamos que apenas Antonio Teodoro de Castro foi referenciado pelo seu nome próprio e teve a
atividade de guerrilheiro citada. Constatamos assim, uma dualidade que marca uma escolha entre
ser mãe e participar da guerrilha.
Em E3, observamos que, diferentemente de E1, a mulher escolheu ter filhos e por esse
motivo não foi referenciada como militante, mas sim como grávida ou como mãe de criança
pequena. Nesse caso, observamos novamente a dualidade entre o papel da mulher como militante e
mãe, a qual era preferencialmente excluída das atividades políticas. Todavia, ressaltamos que os
filhos foram considerados estritamente responsabilidade das mães, pois não há menção sobre o
impedimento na participação de pais de crianças pequenas nas atividades políticas.
O contexto do ambiente familiar da década de 1970, período em que os fatos narrados
ocorreram, mantinha predominantemente uma divisão sexista de trabalho devido às ideias
predominantes na sociedade da época. Por esse motivo, o papel de cuidar das crianças era associado
naturalmente à mulher. Na perspectiva de Scavone (2001, p.138), a crítica feminista considerava a
maternidade como um elemento-chave para explicar a dominação dos homens sobre as mulheres
em razão do “[…] lugar das mulheres na reprodução biológica – gestação, parto, amamentação e
consequentes cuidados com as crianças [...]”, o que explicaria a ausência das mulheres nos espaços
públicos.
Salientamos que as relações da mulher com a maternidade nos enunciados E1, E2 e E3
remontam a um caminho de negação da capacidade reprodutiva da mulher. De acordo com Scavone
(2001), os estudos em torno do feminismo e da maternidade apontam uma tendência histórica
inicial de recusa à capacidade reprodutiva da mulher, as quais estariam em busca de uma identidade
mais ampla. Assim, é possível observar as pressões existentes para que as mulheres abdicassem da
maternidade ou do enfrentamento direto contra a ditadura para cuidar dos filhos.
Para refletir sobre a representação da mulher e sua luta contra a ditadura nos testemunhos,
selecionamos o enunciado seguinte:
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E 4 - Após dias e horas de interrogatório por meio de tortura psicológica, minha avó
Tercina Dias de Oliveira, “A Tia da VPR”, se alterou com seu interrogador e bateu um
grande cinzeiro de vidro na mesa. Este lhe deu três palmatórias com uma régua em uma das
mãos, em seguida ela lhe estendeu a outra mão à palmatória e, após gritar “Você não tem
mãe, não?”, fechou firmemente seus lábios e o encarou de maneira corajosa. Encerrou-se o
interrogatório e não foi mais torturada. (SÃO PAULO, 2014, p. 140, negrito nosso).
O enunciado E4 integra parte de uma nota de rodapé a respeito da história de Tercina Dias
de Oliveira, militante que revela outra forma de luta da mulher contra a ditadura. Conhecida como
“Tia”, ela conseguiu tirar proveito da mentalidade patriarcal da época em prol da luta. Em virtude
de sua aparência e formas de agir, muitas vezes foi ignorada pelos agentes, os quais até mesmo se
recusavam torturá-la.
Assim, minha avó só aceitou ser banida se pudesse levar consigo as quatro crianças, as três
que tinham sido presas com ela e eu. Minha avó sempre contou que um sargento ou capitão,
que a interrogou e não teve coragem de torturá-la fisi-camente3, ajudou-a e insistiu muito
para que conseguisse me levar. (SÃO PAULO, 2014, p.140).
Assim como ela, outras mulheres atuaram promovendo uma imagem confiável aos
aparelhos. Tercina teve quatro filhos de pais diferentes e apesar de manter os netos a tiracolo, a ex-
militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) é reconhecida como uma das figuras
lendárias dos movimentos de esquerda do país. (SÃO PAULO, 2014).
Figura 1 – Tercina Dias de Oliveira e seus netos
Fonte: São Paulo, 2014, p. 147.
Em E4 a mulher foi referenciada como “A Tia da VPR”. Essa forma de representação
singulariza a figura feminina e a associa a um quadro de referências tradicional. O termo remonta a
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um universo de significações relacionado à família tradicional, maternidade, bondade e
longevidade. Nesse sentido, uma “Tia” seria um indivíduo a ser respeitado independente da
situação, por ser mãe e idosa. O termo pode inclusive ser relacionado a uma máxima bastante
corriqueira na família tradicional o qual apregoa o respeito aos mais velhos. Apesar dessa
representação tradicional, observamos que Tercina subverteu o seu estereótipo de “velhinha
caridosa” de maneira indireta, pois apesar de se comportar aparentemente como tal, teve uma
participação significativa na luta.
Verificamos por meio do enunciado, que ao ser castigada por um guarda, Tercina se mostrou
no comando da situação, de uma maneira similar ao comportamento esperado de uma mãe de
família tradicional na tarefa de educar os seus filhos. Reconhecendo esse papel, o próprio guarda
aceitou o ritual proposto pela “senhora” e a respeitou. A partir dessa situação, constatamos que o
papel da mulher como mãe e como guerrilheira se fundiram, pois Tercina se colocou em uma
posição superior ao guarda: deseja lutar e possui a capacidade insubstituível de se reproduzir por ser
mulher e deve ser respeitada como uma mãe. Assim, foi representada como uma mãe tradicional
que participa da luta sem abdicar da maternidade.
A representação da mulher em E4 pode ser associada aos dizeres de Scavone (2001), pois
em sua perspectiva, as relações entre o feminismo e a maternidade se modificaram em dado
momento, a partir do reconhecimento de que a maternidade foi considerada como um poder
insubstituível e integrada como parte cultural da identidade feminina.
Resultados e discussões
Constatamos que o estudo das representações da mulher no arquivo testemunhal em
destaque nesse trabalho possibilitou um reconhecimento plural da participação da mulher na luta
contra a ditadura. Não obstante as dificuldades vigorantes na época, as mulheres atuaram de
maneira corajosa, algumas seguiram os rumos do enfrentamento direto, muitas se mantiveram
firmes perante o objetivo de proteger os filhos e outras tiveram a perspicácia de condensar a
identidade feminina da época à luta, sem renunciar à maternidade. Ressaltamos porém, que a
trajetória de Tercina Dias de Oliveira é apenas um dos tantos exemplos que poderíamos citar para
corroborar o papel de destaque da mulher no enfrentamento à ditadura e aos limites ideológicos
impostos pela sociedade patriarcal.
Referências
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Editora Nova Fronteira, 2011.
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JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão. In: JODELET, D. (Org). As
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Rio de Janeiro: Vozes, [2000] 2009.
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REIS, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. 1.
ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
SÃO PAULO. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Comissão da Verdade do Estado de
São Paulo. Infância Roubada, Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil. 1. ed. São Paulo:
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VIEIRA, Taís Elaine do Nascimento. Status jurídico da mulher brasileira no século XIX. Revista
Transdisciplinar Logos e Veritas, Cabo Frio, RJ, v. 01, nº 01, 2014. P. 42-46. Disponível em:
<http://revistalogoseveritas.inf.br/lev/wp-content/uploads/2014/01/09_Status-juridico-da-mulher-
brasileira-no-seculo-XIX.pdf>. Acesso em: 05 de mar. 2017.
Mothers and guerrillas in the military dictatorship of Brazil: a study on the representations of
women in a testimonial book
Abstract: This study aims at investigate the representations of the woman in the testimonial book
Infância Roubada, Crianças Atingidas pela Ditadura Militar no Brasil (2014). The materialization of
children's life stories also shows the militant trajectory of their parents. Thus, the struggle of women
in the military dictatorship of Brazil was evidenced by means evidences linguistics present in the
extratextual and textual elements of the book. Based on the discursive studies, related to the field of
Social Representations Theory (SRT), we identify and reflect on these evidences. The analysis
showed that the thematic of the book privileged the woman as the main reference. However, the
feminine was represented by several poles: the guerrilla was represented in the introductory texts,
which address gender issues, such as the valorization of the role of women as militants, the sexist
division of labor and sexual violence against women in the context of dictatorship and the mother
was represented in the extratextual elements and in various testimonies, where the woman was
exalted as an example to be followed and as a family base.
Keywords: Military dictatorship. Woman. Social representation.
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X