Luz Adriana Sánchez Segura - core.ac.uk · A minha orientadora, a professora Luana Ferreira de...
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Luz Adriana Snchez Segura
MEMORIAL DE AIRES, SOBREVIVNCIAS EM TRADUO
Tese apresentada como requisito
parcial para a obteno do ttulo de
Doutor, pelo Programa de Ps-
Graduao em Estudos da Traduo da
Universidade Federal de Santa
Catarina.
Orientadora: Profa. Dra. Luana
Ferreira de Freitas
Coorientador: Prof. Dr. Walter Carlos
Costa
Florianpolis
2015
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Ficha de identificao da obra elaborada pelo autor, atravs do Programa de Gerao Automtica da Biblioteca Universitria da UFSC.
SNCHEZ SEGURA, LUZ ADRIANA
Memorial de Aires, sobrevivncias em traduo / LUZ
ADRIANA SNCHEZ SEGURA ; orientadora, LUANA FERREIRA DE
FREITAS ; coorientador, WALTER CARLOS COSTA. -
Florianpolis, SC, 2015.
508 p.
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa
Catarina, Centro de Comunicao e Expresso. Programa de Ps-
Graduao em Estudos da Traduo.
Inclui referncias
1. Estudos da Traduo. 2. MEMORIAL DE AIRES. 3.
TRADUO . 4. CRTICA LITERRIA. I. FERREIRA DE FREITAS,
LUANA . II. COSTA, WALTER CARLOS. III. Universidade
Federal de Santa Catarina. Programa de Ps-Graduao em
Estudos da Traduo. IV. Ttulo.
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Luz Adriana Snchez Segura
MEMORIAL DE AIRES: SOBREVIVNCIAS EM TRADUO
EstaTese foi julgada adequada para obteno do Ttulo de
Doutor,e aprovada em sua forma final pelo Programa de Ps-
graduao em Estudos da Traduo
Florianpolis, 21 de maio de 2015.
Profa. Dra. Andria Guerini
Coordenadora do Curso
Banca Examinadora: ________________________
Prof. Dr. Luana Ferreira de Freitas
Orientadora
Universidade Federal de Cear
________________________
Prof. Dr. Graciela Ravetti
Universidade Federal de Minas Gerais
________________________
Prof. Dr. Hlio de Seixas Guimares
Universidade de So Paulo
________________________
Prof. Dr. Marie-Hlne Catherine Torres
Universidade Federal de Santa Catarina
________________________
Prof. Dr. Andria Guerini
Universidade Federal de Santa Catarina
________________________
Prof. Dr. Berthold Zilly
Universidade Federal de Santa Catarina
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A Byron
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AGRADECIMENTOS
Ao longo do processo de escrita desta tese contei com o apoio,
em diferentes modalidades, de muitas pessoas e entidades, aproveito
este breve espao para expressar-lhes meu agradecimento:
A Byron Vlez, meu companheiro sempre presente, pelo amor, a
fora e a interlocuo.
A minha famlia, minha me Luz Marina, meu pai Juan e minha
irm Carolina, por seu imenso amor.
A minha orientadora, a professora Luana Ferreira de Freitas, e
meu coorientador, o professor Walter Costa, por seu apoio constante.
Aos professores Marie-Hlne Catherine Torres, Alckmar Luiz
dos Santos e Berthold Zilly, integrantes da Banca de Qualificao da
primeira verso deste trabalho, por suas contribuies.
Aos professores Graciela Ravetti, Tereza Virgnia Ribeiro e
Marcos Rogrio Cordeiro, por suas orientaes e sua clida acolhida no
estgio PROCAD na Universidade Federal de Minas Gerais.
Ao professor Hlio Seixas Guimares, orientador do doutorado
sanduche nacional cursado na Universidade de So Paulo, pela
interlocuo e por suas valiosas sugestes.
A minha querida amiga Rosrio Lzaro Igoa pelo carinho e a
interlocuo constante.
A todos os amigos, minha famlia no Brasil.
CAPES, pela bolsa que me concedeu desde o segundo semestre
do curso.
Ao CNPq, pela bolsa de doutorado sanduche.
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Entonces empezamos a comprender que cada cosa
por ver, por ms quieta, por ms neutra que sea
sua apariencia, se vuelve ineluctable cuando la
sostiene una prdida aunque sea por medio de
una simple pero apremiante asociacin de ideas o
de un juego de lenguaje y, desde all, nos mira,
nos concierne, nos asedia.
(Georges Didi-Huberman, 1992)
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RESUMO
Memorial de Aires (1908), ltimo romance de Machado de Assis, passou inadvertido por dcadas como obra traduzvel em vrias lnguas.
Durante anos foi lido como sintoma da reconciliao de seu autor com a
vida, sendo identificados em seu protagonista os traos mais
caractersticos de sua maturidade. Posteriormente, foi objeto de uma
leitura concentrada na relao entre fico e histria, caracterizada pela
identificao e corroborao de fatos acontecidos no Brasil, na transio
do Segundo Imprio Repblica. Sob essas duas vertentes de leitura, o
romance foi valorizado em suas possibilidades de representao de uma
determinada realidade, isto , como testemunho, sendo assim
desconsiderada sua potncia como texto ficcional.
No universo hispanofalante, o romance permaneceu ausente at 2001,
ano em que saram luz trs tradues, realizadas no Mxico, na
Espanha e na Argentina, respectivamente. Elas, ainda que elaboradas
sob diferentes iniciativas e polticas de traduo, revelam-se, de
maneiras diversas, herdeiras da leitura de corroborao que caracterizou
a interpretao do romance.
Esta tese, cujo objetivo fundamental a apresentao de uma nova
traduo do romance em formato bilngue, prope uma reflexo acerca
da sobrevivncia de Memorial de Aires, por meio da anlise de sua
fortuna crtica e das trs tradues para o espanhol publicadas em 2001.
Inclui, alm dessa reflexo, que constitui um estgio fundamental para a
anlise das circunstncias particulares da traduo aqui apresentada,
uma abordagem do romance que se concentra nas caractersticas da
escrita do protagonista-narrador e nas implicaes da escolha do dirio
como tipo textual, como indcios de Memorial de Aires ser a realizao
mais sofisticada do artifcio ficcional ensaiado antes por Machado de
Assis em Memrias Pstumas de Brs Cubas (1880) e Dom Casmurro
(1899).
Palavras-chave: Memorial de Aires; crtica literria; traduo; sobrevivncia.
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ABSTRACT
Memorial Aires (1908) last novel by Machado de Assis, went unnoticed for decades as a translatable work into any languages. For years, it was
read as a symptom of reconciliation of its author with life, identifying in
its main character the most characteristic features of Machados
maturity. Later on, it was the subject of a reading focusing on the
relationship between fiction and history, aiming at identifying and
corroborating in the text with the events that took place in Brazil in the
transition from the Second Empire to the Republic. Under these two
trends in its reading, the novel was appreciated in its possibilities of
representation of a given reality, that is, as a witness, so disregarded its
power as fictional text.
In Spanish-speaking universe, the novel remained inexistent until 2001,
when three translations appeared in Mexico, Spain and Argentina,
respectively. Developed under different initiatives and translation
politics, these three translations seem to inherit, although in various
ways, the corroborating reading that has characterized the interpretation
of the novel.
This thesis, whose main purpose is the presentation of a new translation
of the novel in a bilingual format, proposes a reflection on the Memorial de Airess survival, through the analysis of its literary criticism and of
the three translations into Spanish published in 2001. This reflection is a
fundamental stage for the analysis of the particular circumstances of the
translation proposed. Furthermore, this thesis offers an approach of the
novel that focuses on the writing features of the protagonist-narrator and
the implications of the choice of the diary as textual type. As a result,
Memorial de Aires proves to be the most sophisticated realization of a
fictional device developed by Machado de Assis, a mechanism already
experimented in Memrias Pstumas de Brs Cubas (1880) and Dom
Casmurro (1899)
Keywords: Memorial de Aires; literary criticism; translation; survival.
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SUMRIO
APRESENTAO................................................................... 17
CAPTULO I
A leitura crtica de Memorial de Aires no sculo XX............
23
Os contemporneos.................................................................... 24
Repercusses dos contemporneos na dcada de 30.................. 26
Machado de Assis, escritor brasileiro?....................................... 34
Antonio Candido........................................................................ 48
John Gledson, a interpretao correta... ................................... 53
Traos dominantes da leitura de Memorial de Aires no sculo XX..............................................................................................
66
CAPTULO II
Resonncias crticas nas tradues de Memorial de Aires
para o espanhol.........................................................................
71
I. Memorial de Aires, sobrevivncia........................................ 74 Machado de Assis l fora: da apropriao ao encontro.............. 75
Novos aires....... 85
2001: a odisseia de Memorial de Aires... 89 II. As tradues.......... 91 A traduo mexicana................................................................. 92
A traduo espanhola................................................................ 99
A traduo argentina................................................................... 123
III. Acontecimentos.................................................................. 140 A metfora suspensa................................................................... 145
CAPTULO III
Memorial de Aires, mal-estares................................................
147
I. Memorial de Aires... sobrevivncias no sculo XXI............. 147 II. O mal-estar em Memorial de Aires: da escrita do morto
do diplomata...
155
Memrias pstumas de Brs Cubas, a escrita do morto 158
Dom Casmurro, a escrita isenta.. 173 Memorial de Aires, a escrita do diplomata. 189
A lei da equivalncia das janelas 208
Do morto ao diplomata... 209
CAPTULO IV
Esta Traduo...........................................................................
Esta traduo..............................................................................
213
213
EPLOGO................................................................................. 493
REFERNCIAS....................................................................... 497
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APRESENTAO
Memorial de Aires, ltimo romance publicado por Machado de Assis, alguns meses antes de sua morte, em 1908, foi traduzido por
primeira vez para o espanhol em 2001, ano em que saram luz, de
maneira quase simultnea, trs tradues do romance nessa lngua,
realizadas no Mxico, na Espanha e na Argentina. A grande distncia
temporal que houve entre a publicao do livro e sua traduo para o
espanhol, assim como a coincidncia da apario de trs edies em
2001, resultam aspectos de interesse para pensar seu processo de difuso
internacional, em contraste com o de outros dos romances do autor,
particularmente de Memrias Pstumas de Brs Cubas (1880), Dom
Casmurro (1899) e Esa e Jac (1904), traduzidos para essa lngua j
nos primeiros anos do sculo XX: em 1902, 1910 e 1905,
respectivamente.
O presente trabalho, inscrito no campo dos Estudos da Traduo,
tem como objetivo a reflexo quanto sobrevivncia de Memorial de
Aires, por meio da anlise de sua fortuna crtica e das trs tradues para
o espanhol publicadas em 2001, na perspectiva da elaborao de uma
quarta traduo. Esse estudo prvio ao exerccio tradutrio, que pode
parecer excessivo ou mesmo desnecessrio, tornou-se um imperativo
para o desenvolvimento deste trabalho uma vez que foram observadas as
singularidades do processo de recepo crtica e de difuso internacional
do romance.
Uma aproximao inicial fortuna crtica de Memorial de Aires
deixou em evidncia a marcada diferena que houve entre sua recepo
e a de outros romances do autor, fundamentalmente dos publicados a
partir de 1880, que integram a segunda fase machadiana, ou fase
realista, segundo a classificao proposta por Jos Verssimo. A
pesquisa bibliogrfica mostrou que o nmero de abordagens do romance
resenhas, artigos de revistas, captulos de livros e livros completos
era reduzido se comparado com o de estudos dedicados a obras como
Memrias Pstumas de Brs Cubas, Quincas Borba ou Dom Casmurro,
por exemplo. Mas no se tratava apenas de uma diferena quantitativa.
A leitura do romance proposta por Lcia Miguel Pereira em
Machado de Assis (estudo crtico e biogrfico) (1936) livro em que
analisada toda a produo literria do autor luz de sua biografia,
seguindo seu processo criativo desde a juventude at a morte foi o
primeiro sinal de que Memorial de Aires tinha sido lido de um modo
diferente aos romances precedentes, como se fosse uma exceo dentro
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do grupo de obras que consagraram o autor. Nesse estudo de carter
predominantemente biogrfico, as observaes sobre o romance esto
sempre acompanhadas de comentrios sobre as experincias vividas por
Machado de Assis nos ltimos anos de sua vida, marcadas pela solido
que sofreu depois da morte da mulher e pelo agravamento da epilepsia
de que padecia. A leitura de outros textos crticos mostrou que a identificao de
correspondncias entre a vida do autor e seu ltimo romance, justificada
no livro de Lcia Miguel Pereira pelo carter biogrfico de sua pesquisa,
constitua uma constante na leitura do romance. Exemplos disso so os
textos introdutrios das edies do romance publicadas pela Cultrix, em
1961, e pelo Instituto Nacional do Livro, em 1975, preparados por
Massaud Moiss e Jos Brito Broca (representante da Comisso
Machado de Assis), respectivamente.
Uma interpretao mais recente do romance, a leitura proposta
por John Gledson, foi outro momento revelador no que tange ao tipo de
recepo de que o Memorial foi objeto. Em Machado de Assis: fico e
histria (1986) livro dedicado a algumas obras que foram
relativamente esquecidas pela crtica, de importncia fundamental para a
anlise do processo de formao literria do autor: Casa Velha (1885),
Quincas Borba (1891), Bons dias! (1888-1889), Esa e Jac (1904) e Memorial de Aires (1908) , Gledson faz uma leitura do romance que
procura distanci-lo da tendncia biogrfica comum a outras abordagens
e que se concentra na reconstruo da viso machadiana da histria
brasileira presente nesse e nos outros textos que analisa. Essa leitura,
que representou uma atualizao do panorama interpretativo do
romance, encontrou na relao estabelecida entre a fico e a histria o
meio de reconhecer seu valor no conjunto da produo machadiana.
As duas tendncias de leitura, identificadas na reviso inicial da
fortuna crtica, mostraram a necessidade de associar determinados
contedos ao romance, fossem biogrficos ou histricos, como forma de
determinar seu valor. Mostraram, em outras palavras, que a importncia
do livro era associada, com frequncia, possibilidade de corroborao
de contedos externos e no ao modo com que eles se articulavam no
jogo proposto pela fico: na escrita ntima de um diplomata que chega
aos leitores de maneira fragmentada, por meio de um editor que no
outro que o prprio Machado de Assis.
Buscando aprofundar no papel da crtica na consolidao do
cnone e, portanto, na sua funo na projeo da literatura em contextos
estrangeiros, surgiu um questionamento quanto aos possveis efeitos da
necessidade de corroborao, identificada em vrias abordagens do
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romance, nas leituras produzidas fora do Brasil, especialmente nas trs
tradues para o espanhol, publicadas em 2001. Tal questionamento
tornou-se uma hiptese que, em linhas gerais, considerava a repercusso
dessas tendncias de leitura na recepo do romance dentro e fora do
pas; isto , a relao que poderia existir entre o reconhecimento de
Memorial de Aires como um livro excepcional dentro da produo machadiana cujo valor consistia na possibilidade de identificao de
determinados contedos, biogrficos ou histricos , o nmero reduzido
de abordagens que constituem sua fortuna crtica, em comparao a
outros romances, e a escassa promoo internacional que teve e da qual
uma evidncia a distncia temporal que h entre a publicao do
romance e sua apario no universo hispanofalante, que compreende um
perodo de mais de noventa anos.
O estudo da fortuna crtica, como estgio anterior anlise das
trs tradues do romance para o espanhol e a apresentao de uma
nova verso, tornou-se o meio de reconstruir, tentativamente, a histria
de leitura do romance, de perceber sua sobrevivncia por meio das
abordagens a ele dedicadas e, at mesmo, mediante sua ausncia em
reflexes sobre a obra machadiana. O primeiro captulo desta tese,
intitulado A leitura crtica de Memorial de Aires no sculo XX,
ocupa-se, portanto, dessa tentativa de reconstruo do panorama crtico
do romance, concentrando-se em abordagens elaboradas ao longo do
sculo XX e em momentos especficos de sua recepo: partindo da
leitura imediata dos contemporneos e passando pelas consideraes de
Lcia Miguel Pereira na dcada de 1930; as reflexes de Mrio de
Andrade publicadas em Dirio de Notcias, em ocasio do aniversrio
de nascimento de Machado de Assis em 1939; as consideraes de
Antonio Candido a propsito da obra machadiana, recolhidas na palestra
intitulada Esquema de Machado de Assis (1968); e, a interpretao de
John Gledson na dcada de 1980, includa em Machado de Assis: fico
e histria (1986).
A partir da reviso da fortuna crtica, procura-se identificar as
circunstncias que projetaram o romance do Brasil para o pblico
hispanofalante, especificamente as que motivaram a elaborao das trs
tradues at hoje publicadas. Para tanto, o segundo captulo, intitulado
Ressonncias crticas nas tradues de Memorial de Aires para o
espanhol, dedica-se considerao de alguns aspectos associados
difuso da obra machadiana na dcada de 1990 e anlise das trs
tradues, partindo do perfil de seus tradutores e das particularidades
dos projetos editoriais aos quais se associam, e aprofundando em
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algumas das escolhas de cada um deles, na perspectiva de identificar
possveis ressonncias das leituras crticas antes analisadas. As
tradues para a lngua espanhola de Memorial de Aires so de Antelma Cisneros, Danilo Albero e Jos Dias Sousa, publicadas no Mxico, na
Espanha e na Argentina, respectivamente, ao longo de 2001. A
aproximao aqui ensaiada das tradues sustenta-se na reflexo sobre
as categorias Traduzibilidade, vida e sobrevivncia, estudadas por
Walter Benjamin em A tarefa do tradutor (1923).
O estudo das tradues constitui um passo fundamental para
situar a nova verso do romance em espanhol que esta tese apresenta,
posto que permite a observao e anlise de algumas das circunstncias
singulares de seu processo de elaborao, como o fato de ser realizada
no mbito acadmico, especificamente no campo dos Estudos da
Traduo e da Literatura Brasileira. Observadas nas trs tradues para
o espanhol algumas ressonncias das tendncias da leitura crtica de
Memorial de Aires identificadas no primeiro captulo, isto , da valorao do romance como um texto excepcional na produo
machadiana, cujo valor consistiria na corroborao de determinados
contedos, fez-se necessrio, como um passo precedente traduo,
tentar aqui uma leitura do romance, uma abordagem de seus modos de
enunciao, partindo da hiptese de que o artifcio ficcional da escrita
em primeira pessoa, ensaiado em Memrias Pstumas de Brs Cubas e
Dom Casmurro, na escrita escancarada das memrias do morto e na
escrita dissimulada do advogado, atinge em Memorial de Aires o grau mais alto de sofisticao por meio da escolha do dirio como tipo
textual e do carter diplomtico de seu protagonista. A essa leitura est
dedicado o terceiro captulo desta tese, intitulado Memorial de Aires, mal-estares, que pretende mostrar a ntima relao que h entre os
protagonistas-narradores desses romances Brs Cubas, Bento Santiago
e o Conselheiro Aires , assim como problematizar o jogo que a fico
cria com a realidade, para alm da representao. Essa leitura pretende,
fundamentalmente, uma aproximao singularidade da escrita do
protagonista com o objetivo de tentar sua recriao no exerccio
tradutrio.
O quarto captulo compreende a traduo do romance, o
momento em que confluem as consideraes no que toca
sobrevivncia do livro em suas leituras crticas e tradues, e a
aproximao a seus modos de enunciao aqui proposta. Esta traduo,
elaborada a partir de um conceito diferente do livro em relao s
tradues precedentes, guarda em suas opes as particularidades de
uma experincia situada com o texto e, portanto, suas limitaes.
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apenas o testemunho de um contato com o romance e,
consequentemente, mais um indcio de sua sobrevivncia.
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CAPTULO I
A LEITURA CRTICA DE MEMORIAL DE AIRES NO SCULO
XX
"A literatura se instaura em uma deciso de
no verdade: ela se d explicitamente como
artifcio, mas engajando-se a produzir efeitos
de verdade que so reconhecveis como tais."
(Foucault, A vida dos homens infames)
A posio que um livro ocupa dentro da obra do seu autor ou em
um determinado mbito literrio a literatura brasileira, por exemplo
pode no ser sempre um aspecto problemtico para uma reflexo sobre
sua traduo. No entanto, no caso da traduo de Memorial de Aires
para o espanhol lngua para a qual foram feitas trs tradues desde
sua apario em 1908, todas publicadas em 2001, considerar fatores
como o nmero reduzido de abordagens crticas dedicadas
exclusivamente ao romance, o escasso volume de tradues para outras
lnguas em comparao a outros textos do escritor e as particularidades
de sua difuso dentro e fora do pas parece pertinente.
Ao longo deste captulo, tentarei caracterizar as tendncias mais
frequentes das abordagens crticas do romance elaboradas ao longo do
sculo XX, com o propsito de analisar, no captulo seguinte, suas
ressonncias nas trs tradues para o espanhol publicadas at hoje.
***
Caberia supor que Memorial de Aires, como ltimo livro de
Machado de Assis e como obra que fecharia o ciclo dos romances de
maturidade de que fazem parte Memrias Pstumas de Brs Cubas
(1880), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899) e Esa e Jac (1904) , seria amplamente frequentado pela crtica machadiana. No
entanto, tal suposio seria inexata. Comparada quantitativamente a
fortuna crtica sobre Memorial de Aires com a de outros romances da fase madura do autor a diferena surpreende, pois durante dcadas o
livro passou quase despercebido e apenas h alguns anos vem
constituindo um objeto de interesse entre os leitores machadianos.
Tal invisibilidade parece ter uma estreita relao com o modo em
que a situao vivida pelo autor no perodo de escrita do romance
fundamentalmente a morte recente de sua mulher, a doena e a velhice
se tornou um filtro para o pblico contemporneo do Memorial. Uma
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identificao entre vida e obra que no difcil de compreender entre
seus leitores mais prximos, amigos e colegas, mais do que apenas
leitores desconhecidos, sensibilizados por seu envelhecimento e sua
solido. Amigos como Joaquim Nabuco, que teve notcia do Memorial,
por meio de uma carta de Machado, de 7 de fevereiro de 1907 (cinco
meses antes de terminar o livro), nos seguintes termos: No sei se terei
tempo de dar forma e termo a um livro que medito e esboo; se puder,
ser certamente o ltimo (MACHADO, 2003, p. 285).
Os contemporneos
O romance foi lido a partir dessa perspectiva como testemunho da
situao do autor, como uma obra que abria espao no apenas para
personagens de ndole similar aos de romances anteriores, mas tambm,
e principalmente, para almas boas. Mrio de Alencar, no artigo
intitulado Memorial de Aires, publicado no Jornal do Comrcio em
24 de julho de 1908, identifica nas particularidades do narrador um
homem sexagenrio que escreve um dirio a partir de suas observaes
sem preconceito (MACHADO, 2003, p. 286) a explicao da
presena desse outro tipo de personagens:
Em Memorial de Aires ainda aparecem figuras ao
jeito ou da famlia daquelas que o romancista
criou e perpetuou nos seus outros livros. Cesria e
o marido, os pais de Fidlia e Noronha bastam
para que Aires no se espante de ainda estar no
mundo. Mas no romance aparece ainda o bom e o
timo, do carter e corao humanos, e a
novidade, a que me referi, da expresso moral
desse livro. No mudou nem diminuiu a
observao do romancista; mudou apenas o seu
ponto de vista, e ainda bem para a sua obra, que
assim se completa admiravelmente como quadro
humano, do qual no h dizer que houve propsito
de excluso nem deficincia de desenho. (p. 289)
Jos Verssimo, por sua parte, publica uma resenha do romance,
sob o pseudnimo Candido, no Correio da Manh, em 3 de agosto de
1908. Nela, o tambm amigo de Machado, faz uma valorao elogiosa
do texto que convida leitura, por meio da considerao da
simplicidade do estilo e do carter e os sentimentos dos personagens que
dividem a cena com Aires. Sua resenha comea com o reconhecimento
da simplicidade do enredo:
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o registro, na apparencia insignificante, das
magoas de alguns velhos, urdidas pelas
desilluses da vida, frechando cruel e friamente
sobre a requintada sensibilidade de almas to
simples e boas, que chegam a parecer arrancadas a
poca remotissima. (1908, p. 1)
Para passar, em seguida, a referir-se naturalidade do estilo:
Sem urdidura complicada, apresentando essa
simplicidade extrema que parece natural e
expontanea, sendo entretanto o resultado de um
esforo que s os mestres desenvolvem com
efficacia, o livro encantador e ao chegar
derradeira pgina, tem se derramada pelo espirito
uma tristeza nobre e serena, muito serena e
humana. (p. 1)
Posteriormente, concentra-se na reconstruo do enredo do
romance, no sem observar a relao de identidade que parece encontrar
entre o protagonista e seu criador diplomata aposentado, profundo
psychologo servido por 30 annos de diplomacia, atraz de cuja figura
parece que se esconde a personalidade do autor e dedicar uma
considerao especial ao casal Aguiar, atravs da seguinte descrio: O
casal Aguiar, almas de eleio profundamente amorosas, enleiadas e
fortalecidas pelo mutuo affecto inquebrantvel, formam o centro da
narrativa, tla de magoas fidalgas, [...] um completa o outro, numa
comunho absoluta de sentimentos e de pensamentos.. E, finalmente, o
crtico pe em questo a intencionalidade de certas construes
sintticas que poderiam ser consideradas errneas e que, no entanto,
analisa como operaes intencionais do autor.
Analisados apenas esses dois textos contemporneos publicao
do romance, podem ser percebidos pontos de consenso nas leituras,
especialmente no que se refere natureza aparentemente afvel dos
personagens e identificao entre o protagonista e seu criador. Dentre
esses pontos de contato, cabe dar destaque apreciao extremamente
positiva do casal Aguiar; isso porque o amor conjugal representado por
ele um dos elementos do romance que parecem contribuir de uma
maneira mais efetiva com a valorao positiva do protagonista-narrador
de suas observaes e sua escrita e com a hiptese de uma relao
autobiogrfica entre Machado e Aires.
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So vrias as leituras que coincidem em afirmar que no casal o
autor projetou sua prpria felicidade conjugal, ou melhor, a ausncia
dela trs a morte de sua mulher. Esse um dos aspectos em que pode ser
percebido o modo em que a proximidade dos leitores com o autor
permeou a interpretao, pois uma anlise detalhada da imagem que
Aires projeta do casal Aguiar mostrar um olhar muito crtico do
narrador, sobre o que aprofundaremos no terceiro captulo.
Cabe anotar que nas leituras contemporneas, alm de
interpretaes baseadas em aspectos biogrficos, h observaes sobre
aspectos especficos do romance, algumas referidas linguagem, s
caractersticas prprias do tipo textual recriado na fico, por exemplo,
e, outras, sobre sua afinidade com a realidade brasileira e seus traos de
universalidade. (Cfr. MACHADO, 2003, p. 285-301; GUIMARES,
2012, p. 406-438). Diga-se, em outras palavras, que o romance foi
valorizado por seus contemporneos no apenas por ser o ltimo livro
de Machado de Assis ou por ser aparentemente autobiogrfico, e que
no foi objeto de uma leitura como obra marginal, como o seria algumas
dcadas mais tarde.
Os traos iniciais da histria de leitura do Memorial, caracterizados como vimos por uma relao de empatia com o autor,
contriburam, de certo modo, para a perpetuao de uma interpretao
luz de aspectos biogrficos, que foi dominante durante dcadas e que
repercutiu posteriormente na marginalizao do romance dentro do
conjunto da obra machadiana. Isso devido a que prevalecendo a
corroborao de aspectos biogrficos no Memorial reconhecendo em
Aires um retrato de Machado e no casal Aguiar uma projeo de sua
felicidade conjugal operou-se uma neutralizao do tom do romance,
aparentemente afvel, mas dissimuladamente carregado do humor, o
cinismo e a ironia caractersticos dos narradores machadianos, que o
colocou progressivamente margem do projeto literrio do autor, mais
especificamente de seus romances de maturidade: Memrias Pstumas
de Brs Cubas (1880), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899) e Esa e Jac (1904).
Repercusses dos contemporneos na dcada de 1930
Para perceber o movimento da colocao de Memorial de Aires
margem desse conjunto de romances, cabe convocar a leitura proposta
por Lcia Miguel Pereira em uma das abordagens pioneiras da obra de
machadiana, inscrita em um segundo momento de recepo crtica
associado comemorao do centenrio de nascimento do autor. Para
comear, preciso levar em conta que o projeto de leitura da
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pesquisadora compreendeu a formao completa de Machado como
escritor, dos primeiros textos at o ltimo romance, vista sempre luz
de detalhes minuciosos de sua histria pessoal. Lcia Miguel Pereira
publicou, em 1936, Machado de Assis (estudo crtico e biogrfico), em
que ao longo de 295 pginas, acompanha a carreira do escritor,
dedicando aproximadamente quarenta delas ao perodo compreendido
entre a criao do protagonista do Memorial, o Conselheiro Aires, que
aparecera previamente em Esa e Jac e a escrita e a publicao do
romance, em trs captulos intitulados "O Conselheiro Aires", "Ao p do
leito derradeiro" e "Pensamentos de vida formulados". Tambm
publicou em 1950, Prosa de fico (1870 a 1920), dcimo segundo volume da Histria da Literatura Brasileira, dirigida por lvaro Lins.
Machado de Assis (estudo crtico e biogrfico) uma leitura que,
embora mais prxima da biografia do que da anlise literria, evidencia
uma tendncia de aproximao das obras do autor essencialmente do
romance de que se ocupa esta tese com traos ainda presentes em
leituras contemporneas. Herdeira da interpretao do romance que Jos
Verssimo incluiu na Historia da literatura brasileira (1915)1, privilegia
uma abordagem do romance que comprova similitudes entre o autor e
sua personagem, que no considera a apario prvia do Conselheiro
Aires em Esa e Jac, nem analisa as caractersticas do seu estilo ou as implicaes da fico memorialstica, por exemplo. Trata-se de uma
1 A referncia feita por Jos Verssimo sobre o Memorial se resume nos
seguintes termos: J velho, com sessenta e oito anos, e no foi jamais robusto,
escreveu ainda um livro admirvel, o Memorial de Aires, inspirado na saudade
da esposa e companheira muito amada, j chorada no sublime soneto que
antepusera Relquias de casa velha, o primeiro que deu luz depois da morte
dela. Memorial de Aires talvez o nico livro comovido, de uma comoo que
se no procura esconder ou disfarar e de emoo cordial e no somente
esttica, que escreveu Machado de Assis. Com a peregrina arte de transposio
que possua e que s revelaria plenamente a histria de seus livros, mas que
podemos avaliar pelo pouco que dela sabemos, idealizou Machado de Assis,
num suave romance contado por terceiro, um velho diplomata espirituoso e
desenganado, o Conselheiro Aires, o seu palcio e feliz viver domstico. No
que o indicasse ou sequer o insinuasse. Descobriram-no os que lhe conheceram
a vida, e eram bem poucos, pois nunca se derramou e odiava os derramados,
na emoo nova que discretamente, sobriamente, recatadamente, como que
receosa de profanar na publicidade cousas ntimas e sagradas, aparecia nesse
delicioso livro, um dos mais tocantes da nossa literatura. (VERSSIMO, s/d, p.
189 -190)
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28
leitura afirmativa e resolvida, isto , uma leitura de comprovao,
baseada numa verdade e no num problema crtico.
O assunto que predomina nas consideraes sobre a fase da
criao do Conselheiro Aires e da publicao do Memorial de Aires a
velhice do autor: a doena, a morte de sua esposa e sua prpria morte,
poder-se-ia dizer, a queda do grande mestre: o fim, a fase da perda, do
"apaziguamento" e da "reconciliao com a vida". A abordagem dessa
etapa concentra-se na relao de Machado com o Conselheiro Aires e
em suas implicaes dentro e fora da fico. Apesar de os limites entre o
ficcional e o no-ficcional, nessa leitura, parecerem indeterminados,
tentaremos descrever a influncia que, segundo a crtica, Aires opera
tanto na vida quanto na obra do autor.
Para comear cabe observar que, segundo a crtica, dita fase se
caracteriza, tanto no mbito pessoal como no literrio, como um perodo
de conformismo e declnio. Nessa altura da vida, Machado j tinha
alcanado uma posio social estvel e privilegiada e, apesar da doena,
levava uma vida tranquila ao lado de sua mulher2; como escritor
tambm era reconhecido, especialmente aps a publicao de Memrias
Pstumas de Brs Cubas e Dom Casmurro. Seria nesse momento de estabilidade que Machado inventaria o Conselheiro Aires e que
pareceria ser possudo pelo carter do "diplomata aposentado, homem
polido e medido, que se punha margem da existncia e apreciava,
entre interessado e entediado, o espetculo da vida humana" (PEREIRA,
1955, p. 243). Diferente de personagens problemticos como Brs
Cubas ou Bentinho3, o Conselheiro representava um refgio para o
velho Machado, pois "no era muito mulato nem doente [e] podia sorrir
de tudo, livre dos dramas interiores" e atravs dele o escritor "saa de si,
sem sair inteiramente, confundindo-se com o ssia, escondendo a todos
os olhares os seus padecimentos, literato na Garnier, burocrata no
ministrio, homem de sociedade na Academia" (p. 270).
A suposta encarnao do Conselheiro em Machado tem, segundo
Pereira, implicaes negativas sobre a escrita. Observe-se a propsito a
seguinte colocao:
2 "O comeo da velhice se anunciava tranqilo; entre Carolina, a Garnier e a
Academia, entrava serenamente nessa fase da vida que lhe foi uma antecmara
da glria. Sem a doena, seria um homem completamente feliz." (PEREIRA,
1955, p. 248). 3 "Para que continuar a debater-se? Era melhor fechar os olhos, embalar-se na
cantinela montona de Aires, mais confortvel do que a lucidez do Brs Cubas."
(p. 248)
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29
Aires aumentou o enfastiamento de Machado de
Assis, porque o arrancou "voluptuosidade do
nada", ao prazer satnico de sondar as fontes da
vida e ach-las vazias, divina tortura do
mistrio.
Aquietou-o, infundiu-lhe a prpria "alma de
sexagenrio desenganado e guloso", f-lo
resignar-se ao agnosticismo risonho, cortou-lhe as
asas imaginao.
[...] E assim aconteceu. O fermento da inquietao
neutralizou-se, seno no seu esprito, ao menos
nos seus escritos, pela ao calmante do velho
Aires. A curiosidade continua, forrada de
simpatia, pela vida humana; mas no o leva a
esquadrinhar-lhe o sentido; era curiosidade pura,
vontade de se distrair. (p. 247)
Assim, acompanhado, possudo ou encarnado por Aires como
Machado escreve Memorial de Aires: "livro de velho [em] que no h a
'contrao cadavrica' do Brs Cubas, h, ao contrrio, a serenidade de
quem se despede da vida com pena." (p. 277). A pena produzida pela
perda da esposa um dos aspectos que tm maior destaque nessa
abordagem, pois refora a interpretao biogrfica do romance. O fato
de ter sido escrito em 1907, aps a morte de Carolina, somado
afirmao do prprio autor de criar Dona Carmo a partir dela4,
corroborou a tese da transposio da vida na fico e, em consequncia,
a apreciao do romance como "poema do amor conjugal" (p. 277). Na
obra, diz Pereira, Carolina desdobra-se em Dona Carmo e Machado em
Aires e em Aguiar: No somente no carinho com que evoca, sob as
feies de D. Carmo, a figura de Carolina, que
Machado torna patente o encanto que achara na
existncia; no somente na velhice sadia e
serena do Conselheiro Aires que aparece o prazer
de existir, de ter ainda algum tempo o gozo de ver,
de observar, de sentir a vida em si e nos outros.
H mais e melhor.
4 Pereira refere a existncia de uma carta em que Machado confessara a estreita
relao entre D. Carmo e Carolina: Oficialmente, o autor amava D. Carmo, que
confessou em carta a Mrio de Alencar ser modelada por Carolina (p. 272).
No h informaes detalhadas sobre tal documento.
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30
[...] O Memorial nos d a melhor prova de que o
Aires foi mesmo uma projeo de Machado. No
s fcil reconhec-lo no livro, onde se repartiu
ente o narrador e Aguiar, o marido de D. Carmo,
pondo neste o eu domstico, e naquele o eu
interior... (p. 272)
Interessante notar como essa abordagem baseada na afirmao da
estreita ligao da obra com a vida pessoal do autor, no supe a
considerao do Memorial como um romance, isto , como uma obra de
fico. Assim, enxergado atravs das imagens idealizadas de Machado
(da sua doena e velhice e do seu casamento), o romance neutraliza-se, a
sua potncia criativa some, perdendo-se, por exemplo, qualquer
possibilidade de perceber na aparente harmonia das relaes dos
personagens especialmente no casal Aguiar o to celebrado esprito
crtico do escritor. Em resumo, para Pereira, o valor do Memorial
restringe-se ao de um testemunho dos dias derradeiros do autor, sendo,
desse modo, o fecho perfeito de sua obra: "Sem essas pginas de
saudades, de uma pureza cristalina, no estaria completa a obra de
Machado de Assis." (p. 271)
Alguns anos mais tarde, e com outras pretenses, no livro Prosa
de fico, Pereira inclui Machado no segundo captulo intitulado Pesquisas psicolgicas, junto com Raul Pompia. O texto concentra-
se nas obras da segunda fase5, especialmente nas implicaes que trouxe
para a literatura brasileira a apario de Memrias pstumas de Brs Cubas em 1880, ano em que tambm foi publicado O Mulato de Alusio
Azevedo. A abordagem comea justamente com a aluso recepo
dessas duas obras, concretamente sobre como foi despercebido o
esprito de inovao e de rebeldia (1957, p. 54) de Memrias
Pstumas, diante da novidade que pareceu representar a tendncia naturalista de O Mulato. A propsito a crtica afirma:
No momento, impressionou muito mais a
novidade do Mulato sob muitos aspectos ainda
to preso s deformaes romnticas do que a
5 Uso aqui as categorias "primeira e segunda fase" propostas por Jos
Verssimo, para classificar os romances de Machado de Assis. O crtico inclui
na "primeira fase" os romances de juventude do autor, dentre os que destaca A
mo e a luva (1874), Helena (1876) e Iai Garcia (1878). Ora, sob a
denominao "segunda fase", inclui as obras escritas a partir de Memrias
Pstumas de Brs Cubas (1881).
-
31
do Brs Cubas, muito mais completa e audaciosa.
que aquele no s trazia um rtulo em moda,
como, parecendo revolucionrio e de fato o sendo
pelo tema, continuava a velha linha nacional de
romances que encontravam na descrio de
costumes o seu centro de gravidade; foi por isso
mais facilmente entendido e admirado. Pelos
livros de Zola e Ea de Queirs, estavam o meio
intelectual e o pblico que lia preparados para
receber afinal uma obra naturalista brasileira, que
na verdade se fazia esperar, ao passo que nada os
habituara de antemo nova maneira de Machado
de Assis, j que nenhum crtico vislumbrara as
sondagens psicolgicas escondidas sob os casos
sentimentais que at ento de preferncia contara.
Toda a gente se deslumbrou ou se escandalizou
com O Mulato, sem perceber que o esprito de
inovao e rebeldia estava mais nas Memrias
Pstumas de Brs Cubas. Aqui, ousadamente,
varriam-se de um golpe o sentimentalismo, o
moralismo superficial, a fictcia unidade da pessoa
humana, as frases piegas, o receio de chocar
preconceitos, a concepo do predomnio do amor
sobre todas as paixes; afirmava-se a
possibilidade de construir um grande livro sem
recorrer natureza, desdenhava-se a cor local,
colocava-se um autor pela primeira vez dentro das
personagens; surgiam afinal homens e mulheres e
no brasileiros, ou gachos, ou nortistas, e last
but not least patenteava-se a influncia inglesa
em lugar da francesa, introduzia-se entre ns o
humorismo. (p. 53-54)
Nesse pargrafo introdutrio, a autora anuncia os principais
aspectos que analisar no captulo, entre os quais se destacam o
posicionamento de Machado diante do que deveria ser uma literatura
nacional6, as particularidades das personagens e os enredos dos
romances e contos, a introduo do humor na literatura brasileira, assim
como alguns gestos da recepo crtica. A relao estabelecida entre
6 Cabe lembrar a propsito as consideraes de Machado de Assis sobre a
literatura brasileira, registradas em seu clebre Notcia da atual literatura
brasileira. Instinto de Nacionalidade, publicado na revista Novo Mundo, em
1873.
-
32
vida e obra menos pontual, menos colada a detalhes, do que a
apresentada no livro anterior; nesse texto o que se destaca so as
habilidades de observao do autor como condio que favorece a
criao de seus personagens, e que o situa como um autor realista:
Por isso que a Machado de Assis se pode
chamar de realista. Sem preocupao de escola
literria, desde que se libertou do romantismo, ele
observou, como ningum entre ns, as criaturas
em toda a sua realidade, dando a cada aspecto o
justo valor, isto , apreciando a todos com um
critrio relativo. (p. 76)
Embora a anlise se concentre, fundamentalmente, em Memrias pstumas de Brs Cubas, so muitas as referncias que Pereira faz a
personagens de outros romances tanto da primeira como da segunda
fase e de vrios contos do autor. Dos romances da primeira fase
ressalta o que poderamos chamar de germe dos trabalhos posteriores,
sobretudo a propsito da mencionada capacidade de observao que lhe
teria permitido analisar a sociedade nas suas distintas camadas ao longo
da sua escalada social7. Percebe-se que dentro das consideraes dos
romances da segunda fase, a apario de Memorial de Aires marginal e
restringida correspondncia entre o seu tema e a velhice do autor:
Da em diante, at a velhice, at a morte, no
transigir mais, s dir o que sente. Se seu ltimo
livro, o Memorial de Aires, patenteia
apaziguamento, que de fato traduz uma
reconciliao do artista com sua velha e cara
inimiga, a vida. Nesse romance, evocao da sua
perfeita felicidade conjugal, iluminado pela
saudade da companheira perdida poucos anos
antes, adivinha-se que, nas vsperas de deix-la,
Machado de Assis descobrira um novo caminho
para a compreenso da existncia: a ternura, j
no escondida no humorismo, j no eivada de
ironia, mas expandindo-se livremente, envolvendo
7 A propsito dos romances da primeira fase, Pereira afirma: Com efeito, A
mo e a luva, Helena, Iai Garcia e Casa Velha so, embora muito
disfaradamente, livros autobiogrficos. Com mil cautelas e rodeios, discutiu
neles Machado de Assis uma questo que na mocidade muito o preocupou: a
luta entre a sociedade e o indivduo que se quer elevar. (1957, p. 65)
-
33
e suavizando todas as coisas. O contacto de umas
poucas criaturas generosas tambm paga a pena
de viver: de divertido, o espetculo passa a ser
comovente; a voz humana j no se perde na
vastido de um universo indiferente, mas ao
contrrio, ecoa no aconchego de uma sala bem
abrigada, fechada s dvidas como s intempries.
Talvez nesse ambiente duloroso se hajam
dissolvido as melhores caractersticas
machadianas, e o livro saiu inferior aos que mais
de perto o precederam. (p. 72).
A imagem que Pereira projeta do romance nessas poucas linhas
pode ser questionada por meio do que ela mesma escreveu ao se referir
recepo imediata de Memrias pstumas. Talvez, como no caso desse
romance em 1891, no fosse esperado que depois de personagens to
complexos como Brs Cubas e Dom Casmurro, aparecesse em cena um
velho diplomata aposentado que usava o seu tempo de lazer para
escrever um dirio. E, talvez por isso mesmo, na leitura da crtica no
fossem problematizados a ironia e o sarcasmo que se agitam sob a
aparncia conformista do Conselheiro Aires aparncia dissimulada
que bem poderia ser compreendida como o artifcio da mxima sutileza
da segunda fase do escritor.
Note-se tambm, como se evidencia nessa leitura a repercusso
da interpretao de Verssimo, especialmente na escolha das palavras
com que se descreve a dor da viuvez como motor da escrita do romance,
pois enquanto na Histria da literatura brasileira se aponta que foi "inspirado na saudade da esposa, Pereira afirma que foi iluminado
pela saudade da companheira perdida poucos anos antes. Alm disso,
cabe observar que o Memorial, considerado um romance inferior aos que mais de perto o precederam, no mereceu mais comentrios ao
longo do captulo e que nas ocasies em que a autora se refere a Aires o
faz sempre como personagem de Esa e Jac. Pode-se dizer, para concluir a abordagem de Pereira, que a
presena de Memorial de Aires em Machado de Assis (estudo crtico e biogrfico) estava garantida sob a inteno de acompanhar todo o
processo criativo do autor, enquanto no caso de um dos volumes da
Histria da Literatura sua presena no era obrigatria, pois um projeto dessa ndole se associa formao de um cnone, com o destaque das
obras decisivas para uma determinada tradio. Assim, excludo da
reflexo sobre a prosa de fico de 1870 a 1920, o romance foi
marginalizado e assentado em uma posio de desvantagem, como obra
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34
inferior dentro da produo de Machado, como obra de velhice e de
reconciliao.
Machado de Assis, escritor brasileiro?...
Em 1939, Mrio de Andrade publicou no Dirio de Notcias,
entre 11 e 25 de junho, trs textos sobre Machado de Assis reunidos
posteriormente em Aspectos da literatura brasileira (1943) e Vida
literria (1993) em que questiona a posio do autor no mbito da
literatura brasileira. E, alguns meses mais tarde, no dia 24 de dezembro,
publicou outra nota sobre os estudos crticos machadianos,
especialmente os publicados a propsito do centenrio de nascimento do
autor, naquele ano. preciso levar em conta que, embora as
consideraes sobre Memorial de Aires sejam marginais nesses textos,
relevante fazer uma leitura detalhada deles, pois contribuem para a
identificao de algumas tendncias interpretativas frequentes da obra
de Machado, especialmente as associadas formao de uma literatura
brasileira, herdeiras de certo modo das observaes de Sylvio Romero8.
O primeiro desses textos, Machado de Assis [I], composto de
oito fragmentos, comea com um questionamento para o leitor: "Eu
pergunto, leitor, para que respondas ao segredo da tua conscincia, se
amas Machado de Assis? E esta inquietao me melancoliza." (1993, p.
53). Ainda que parea estranha e at fora do lugar, a pergunta sobre o
sentimento despertado pelo autor o eixo desse primeiro comentrio e
se associa diretamente ao que, sob o olhar do crtico, deveria ter sido
e/ou feito Machado como escritor brasileiro, e principalmente como
escritor mulato. Num dos primeiros pargrafos aponta-se o que seria o
motivo dessa impossibilidade de amar o autor:
8 Refiro-me especificamente s observaes feitas pelo crtico sobre o
descompasso que haveria entre a produo de Machado de Assis e suas
condies de origem (sua situao socioeconmica e sua natureza mestia),
concentradas, fundamentalmente, no humour (Cfr. ROMERO, 1897). Uma
desarmonia produzida pela macaqueao que Machado fizera de autores
como Sterne, que se revelaria na dificuldade de articular sua obra a um projeto
nacional, isto, por no manifestar, atravs do estilo, dos assuntos, dos modelos,
um estado de conscincia sobre as necessidades da literatura brasileira em
formao. Em palavras de Romero: Para tudo dizer sem mais rodeios:
Machado de Assis bom quando faz a narrativa sbria, elegante, lyrica dos
factos que inventou ou copiou da realidade; quasi mo quando se mette a
philosopho pessimista e a sujeito caprichosamente engraado. (p. 347)
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35
Porque certos artistas, pela vida e pelas obras que
deixaram, perpassam os dons humanos mais
generosos em que o nosso indivduo se reconforta,
se perdoa, se fortalece. A prpria infelicidade, a
prpria desgraa amarradas existncia de um
artista, no podem, ao meu sentir, serem motivos
de amor. Todos os seres somos fundamentalmente
infelizes, e preciso no esquecer que
psicologicamente, em oitenta por cento dos
artistas verdadeiros, o prprio fato de serem eles
artistas, uma definio de infelicidade. Amor
que nasa de piedade, nem amor e nem exalta,
deprime. E sobra ainda lembrar que certas
desgraas, no o so exatamente. Nascem do
nosso orgulho; nascem de uma certa espcie de
pudor muito confundvel com ambies falsas e
com o respeito humano. Estou me referindo, por
exemplo, a preconceitos de raa ou de classe. (p.
53) [grifo meu]
Nesse trecho, Mrio de Andrade se concentra na imagem de
Machado como mulato branqueado e na identificao de sua maior
falha: sua infelicidade voluntria ligada doena e, sobretudo, raa.
Isto sem fazer nenhum tipo de aluso s particularidades de sua obra.
Nos quatro fragmentos seguintes, o assunto muda, dando espao
a comentrios sobre a genialidade artstica do autor, as inmeras
possibilidades interpretativas de sua obra e os estudos de Peregrino
Jnior a propsito das marcas da epilepsia no ritmo da prosa
machadiana e da obsesso do autor pelos olhos e os braos femininos. J
no sexto excerto, o crtico dedica umas linhas ao amor na obra
machadiana, insistindo na fora dominadora do feminino, sem
aprofundar muito nos argumentos de sua exposio. E, de forma
imediata, d, no seguinte trecho, um salto direto para a vida pessoal do
autor, aludindo ao seu casamento, para afirmar a legitimao do amor
burgus tanto com sua vida como com sua obra:
J como lio de vida, o que mais sobra da
biografia de Machado de Assis o golpe total que
ele d na disponibilidade amorosa dos nossos
romnticos. Casou, viveu com uma s mulher.
Maranon diria dele que foi a expresso do varo
perfeito, sem nenhuma inquietao sexual, o que
no parece ser a verdade verdadeira. O sr. Almir
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36
de Andrade chega a dizer de Machado de Assis
que "no teve amores". Que no tenha tido
paixes possvel, mas Carolina sempre uma
exceo de amor, e das mais belas na biografia
dos nossos artistas. Mais uma grande vitria de
Machado de Assis, e aquilo em que ele se tornou
perfeitamente expressivo da sociedade burguesa
do Segundo Reinado e imagem reflexa do nosso
acomodado Imperador. A escravaria, por culpa do
branco e dos seus interesses, ficou entre ns como
expresso do amor legtimo. No s relativamente
casa grande, mas dentro da prpria senzala.
Machado de Assis nem por sombra quer evocar
tais imagens do sangue que tambm tinha. Ele
simboliza o conceito do amor burgus, do amor
familiar, e o sagra magnificamente. E desautoriza
por completo a inquietao sexual, e mesmo a
inquietao moral do artista, pela vida
honestssima que viveu. (pp. 56-57)
Desta vez a aluso raa mais evidente, e enftico o tom com
que Andrade julga a omisso de Machado de "nem por sombra evocar
tais imagens do sangue que tambm tinha". Cada vez fica mais claro que
o desconforto do crtico surge da "inadequao" entre o que o autor
pelo fato de ser mulato teria que considerar em suas obras e teria
tambm que projetar na sua forma de vida. A biografia ganha
novamente uma posio de destaque na leitura da obra de Machado,
pois o seu casamento o que se traz tona para falar de uma suposta
legalizao do "amor burgus" legalizao, alis, relacionada de forma
direta com a escravido. Observe-se o modo em que o peso da vida
pessoal consegue anular ou neutralizar qualquer posicionamento crtico
do autor diante da instituio do matrimnio ao longo da sua obra at
mesmo nos romances da chamada primeira fase em que as protagonistas
ascendem na escala social a partir do casamento com homens ricos.
Aqui no s cabe questionar as afirmaes do crtico a respeito da vida
pessoal do autor, cabe perguntar, por exemplo, qual seria o tipo de
relaes afetivas que seriam consoantes com a sua natureza mulata, e,
principalmente, reconsiderar se possvel afirmar que, em romances
como Memrias Pstumas de Brs Cubas, Dom Casmurro e Memorial de Aires, Machado projeta uma imagem idealizada e positiva do
casamento que justifique a perpetuao da escravido, considerando as
particularidades dos trs protagonistas-narradores, assim como os
artifcios ficcionais propostos pelos romances.
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37
No seguinte trecho, Andrade refuta a designao de Machado
como romancista do Rio de Janeiro.
Para meticuloso, meticuloso e meio. opinio passada em julgado que Machado de Assis o
romancista da Cidade do Rio de Janeiro. S-lo-,
de alguma forma, desde que nos entendamos. Me
parece indiscutvel que Machado de Assis, nos
seus livros, no sentiu o Rio de Janeiro, no nos
deu o sentimento da cidade, o seu carter, a sua
psicologia, o seu drama irreconcilivel e pessoal.
Ser que a cidade e o seu carioca no tinham
ainda se caracterizado suficientemente ento?
impossvel. (1993, p. 57)
O juzo de valor do crtico sobre o autor introduz novamente a
problemtica. O valor do adjetivo "meticuloso" com que caracteriza
Machado, apesar de fazer referncia minuciosidade, parece conter
certa negatividade associada possivelmente ao significado da raiz
latina meticulsus ('medroso, tmido, meticuloso') e assim aludir mais
a um defeito do que a uma excessiva dedicao.
A questo central desse trecho o significado daquilo que
Andrade denomina "sentimento" da cidade, aquilo que Machado "no
'sentiu'". Para nos aproximarmos desse "sentimento", cabe retomar o
ensaio "O Aleijadinho", includo em Aspectos das artes plsticas no Brasil. Nesse texto h uma preocupao constante com a construo de
uma identidade nacional, e, em consequncia, com o compromisso que
os artistas brasileiros teriam que assumir nesse projeto.
Analisando as opes artsticas do Aleijadinho, o artista barroco
Antnio Francisco de Lisboa (1730(?)-1814), Andrade percebe certa
"alienao" com respeito sua mulatice e, em consequncia, ao seu
papel na construo da cultura brasileira, que estaria diretamente
relacionada com um aspecto generalizado e determinante na poca: o
sentimento de desclassificao racial do mulato.
Considerando a produo artstica no Brasil do sculo XVIII,
Andrade afirma o posicionamento do mulato como representante racial
do pas: "Mas a prova mais importante de que havia um surto coletivo
de racialidade brasileira, est na imposio do mulato" (1984, p. 13), e
descreve, posteriormente, as particularidades de sua situao na
sociedade:
-
38
Os mulatos no eram nem milhores nem piores
que brancos portugueses ou negros africanos. O
que eles estavam era numa situao particular,
desclassificados por no terem raa mais. Nem
eram negros sob o bacalhau escravocrata, nem
brancos mandes e donos. Livres, dotados duma
liberdade muito vazia, que no tinha nenhuma
espcie de educao, nem meios para se ocupar
permanentemente. No eram escravos mais, no
chegavam a ser proletariado, nem nada. [...]
Porque carece lembrar principalmente essa
verdade tnica: os mulatos eram ento uns
desraados. Raas aqui tinha os portugueses e os
negros. (p. 15-16)
Ora, na perspectiva da considerao da brasilidade, Andrade
observa esse carter de "sem-raa" do mulato em relao a certo "mal-
estar", caracterizado, justamente, pela "inconscincia nacional" (p. 18):
No fundo, j aquela molstia to dos brasileiros e
que Nabuco simbolizou: uma timidez acaipirada,
envergonhada da terra sem tradies porque
ignoravam a ptria e a terra. Em verdade, na
conscincia daquela gente inda no tinha se
geografado o mapa do imenso Brasil. (p. 21).
A partir dessas colocaes, Mrio de Andrade pe em questo o
carter nacional que fora atribudo obra do Aleijadinho, sublinhando o
fato de ele ser presa dessa "inconscincia nacional" prpria do seu
tempo. Assim, apesar de observar detalhadamente alguns aspectos da
obra do artista e destacar o seu valor, conclui definindo-o como "o maior
boato-falso da nacionalidade"9. Note-se que, por trs dessa
9 "O Brasil deu nele o seu maior engenho artstico, eu creio. Uma grande
manifestao humana. A funo histrica dele vasta e curiosa. No meio
daquele enxame de valores plsticos e musicais do tempo, de muito superior a
todos como genialidade, ele coroava uma vida de trs sculos coloniais. Era de
todos, o nico que se poder dizer nacional, pela originalidade das suas
solues. Era j um produto da terra, e do homem vivendo nela, e era um
inconsciente de outras existncias melhores de alm-mar: um aclimado, na
extenso psicolgica do termo. Mas engenho j nacional, era o maior boato-
falso da nacionalidade, ao mesmo tempo que caracterizava toda a falsificao da
nossa entidade civilizada, feita no de desenvolvimento interno, natural, que vai
-
39
caracterizao, se revela um conceito do artista ao que, semelhante ao
caso de Machado, se associa certa obrigatoriedade do dever-ser,
intimamente ligado s questes de raa e nacionalidade. Portanto, cabe
afirmar que aquilo que o Aleijadinho, assim como outros mulatos de sua
poca, no conseguira fazer conscientemente no sculo XVIII, se
relaciona diretamente com aquilo que Machado "no 'sentiu', e que
provocou a pergunta retrica do crtico: "Ser que a cidade e o seu
carioca no tinham se caracterizado suficientemente ento?" (1993, p.
57).
De volta ao texto sobre Machado, vemos que Andrade, depois de
afirmar a possibilidade do "carioca" no estar suficientemente
caracterizado e de referir sua apario em Sargento de Milcias,
retoma o adjetivo com que qualificara Machado no comeo do
fragmento para se referir ao extremo cuidado que o autor demonstrou ao
construir os itinerrios de suas personagens pelas ruas do Rio:
Machado de Assis, temperamento francamente
gozador e ainda menos amoroso da vida objetiva,
tinha a meticulosidade freirtica dos
memorialistas; e no ser toa que a dois de seus
principais personagens fez memorialistas10
. s
vezes chega a ser pueril a pacincia topogrfica
com que descreve as caminhadas dos seus
personagens. Porque tomou pela rua Fulana,
seguindo por esta at a esquina da rua Tal, que
desceu at chegar no largo do Sicrano, etc. Esta
necessidade absoluta de nomear ruas e bairros,
casas de modas ou de pasto, datar com exatido os
acontecimentos da fico, misturando-os com
figuras reais e fatos histricos do tempo, se
agarrando verdade para poder andar na
imaginao, me faz supor nele o memorialista. (p.
57)
Essa qualidade meticulosa com que Machado cria a imagem da
cidade, referida com termos elogiosos no , no entanto, suficiente para
passar para os leitores o "sentido" da cidade: "Machado ancorou fundo
do centro para a periferia e se torna excntrica por expanso, mas de
importaes acomodatcias e irregulares, artificial, vinda do exterior."
(ANDRADE, 1984, p. 41) 10
Cabe aqui destacar que um dos personagens aqui evocados o protagonista e
narrador do romance que nos ocupa: o Conselheiro Aires.
-
40
as suas obras no Rio de Janeiro histrico que viveu, mas no se
preocupou de nos dar o sentido da cidade." (p. 57). possvel perceber
que o que se pe em questo no o minucioso das descries da
paisagem urbana, mas o que se poderia denominar "paisagem social" do
Rio. Isto , que Machado poderia ter criado uma imagem detalhada do
Rio mais coerente com a sua prpria natureza, desde que o ponto de
vista no fosse o de personagens provindos das altas camadas da
sociedade brasileira do Segundo Reinado, mas de personagens que
representassem a identidade do homem brasileiro, homens mestios que
dessem conta da irreconciliabilidade da sua classe.
Depois de questionar a caracterizao de Machado como
romancista do Rio, Andrade fecha o texto, abordando de novo a figura
do autor desta vez considerando suas intenes: "Mas haver alguma
utilidade em procurar no genial inventor de Brs Cubas, o que ele no
teve a menor inteno de nos dar!" (p. 58) ressaltando a genialidade da
sua tcnica narrativa.
Em "'ltima Jornada' - II", segundo texto publicado no Dirio de
Notcias, Andrade d destaque ao poema aludido no ttulo ("ltima
Jornada"), do livro Americanas. Trata-se de um poema publicado pela primeira vez em 1875, e sobre o qual, embora pouco reconhecido pela
crtica literria, Mrio de Andrade comenta: "No creio exagerar, na
admirao enorme que tenho por esses versos, uma das mais belas
criaes do mestre e da nossa poesia." (p. 59)11
. Comparadas com o
juzo de valor que predomina no texto anterior, estas palavras
surpreendem; delas pode inferir-se que a admirao do crtico est
ligada intimamente com a integrao do poema na "nossa poesia", isto ,
na poesia brasileira. Mas, o que justifica esse reconhecimento? A chave
para essa pergunta parece estar relacionada seguinte alegao:
As Americanas, como concepo lrica, so no
geral muito fracas. Pertencem quela fase de
cuidadosa mediocridade, em que o gnio de
Machado de Assis ainda no encontrara a sua
expresso original. Alis esse perodo inicial,
tanto da prosa como da poesia machadiana, se
11
Lembre-se que Sylvio Romero tinha uma opinio adversa sobre Amricanas:
E agora veja o estimavel critico uma cousa curiosa: de todos os livros do autor
fluminense o peior, o mais pallido, o mais insignificativo, o menos brasileiro,
justamente, exactamente aquelle em que escolheu de preferencia assumptos
nacionaesas suas Americanas! Livro incolor a mais no ser. (ROMERO,
1987, p. 19)
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41
caracteriza menos pela procura da personalidade
que do instrumento e do material. (p. 59)
Andrade insiste em afirmar que na fase da escrita do poema
Machado ainda no era um artista maduro, e que a produo dessa etapa
se caracterizava pela busca de temas e do domnio da tcnica; no caso
do poema, pelo trabalho com a linguagem e a metrificao. A propsito
coloca:
O primeiro que ressalta, na dico do poema, a
firme desenvoltura com que o poeta funde a
tradio de uma linguagem castia, mesmo
levemente arcaizante, com a metrificao
romntica. Aos acentos de quarta e oitava, to
preferidos pelos romnticos, se intercala mais
discreta a acentuao herica na sexta slaba,
dando ao poema um movimento de grande riqueza
rtmica. Nem o tambor excessivamente "herico"
do verso clssico, nem aquela sensaboria melosa
que resulta da seqncia de muitos versos com
acentuao de quarta e oitava. (p. 60)
Note-se que o verbo que utiliza o crtico "fundir", verbo
fortemente carregado de sentido se pensado no mbito da mestiagem e,
sobretudo, to afim s pesquisas sobre a identidade cultural brasileira
desenvolvidas pelos modernistas a partir da segunda dcada do sculo
XX. Assim mesmo, no s no uso da linguagem castia e da
metrificao que Andrade percebe a dita "fuso", pois ele identifica no
episdio de Paolo e Francesca, da Divina Comdia, o objeto de
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42
inspirao do autor, um objeto que ressoa no assunto12
, nas imagens13
e
na estrutura14
do texto.
Chama a ateno que o crtico no ressalte explicitamente a
natureza ndia dos amantes como um aspecto relevante na considerao
do poema como constituinte da "nossa poesia" e que chegue inclusive a
afirmar: De forma que esta histria no tem a menor
preocupao de se basear na lgica da vida ou da
moral pr-estabelecida. A origem do caso no
deriva de nenhum confronto de interesses de
viver, claramente definidos, e nitidamente
deduzidos uns dos outros, mas de um sentimento-
pensamento, de um transe lrico que consegue se
abstrair e que cria livremente, fora de qualquer
concatenao logicamente vital. (p. 63)
Se considerada na srie dos textos publicados no Dirio de Notcias, essa segunda matria parece estranha, quase um parntese no
meio da reflexo que se estende ao longo dos textos que abrem e fecham
a trilogia, concentrados na imagem do autor como escritor brasileiro do
Segundo Reinado. Contudo, se analisada luz de outros textos
possvel perceber a continuidade da reflexo sobre o papel do escritor,
fundamentalmente sobre um determinado compromisso/sacrifcio do
artista na construo de uma determinada tradio. Em uma carta de
1924, escrita a Carlos Drummond de Andrade, Mrio afirma:
12
No que se refere ao assunto, o poema expe, tal como o episdio de Paolo e
Francesca, o desenlace trgico de dois amantes, desta vez, dois ndios. Esse
desenlace inclui o assassinato da mulher pelo marido, as lamentaes dele e o
seu suicdio. 13
A imagem dos amantes mortos , como no episdio de Paolo e Francesca, a
imagem principal do poema: "E tanto mais que a imagem principal do poema
a mesma nas duas poesias: os dois corpos de casais amantes e desgraados
voando pelos ares. Alm disso, o fato de Machado de Assis, em vez de se
prender a qualquer concepo mais logicamente amerndia, fazer dos seus
mortos recentes seres sempre dotados de corpo e esprito e adotar a diviso
crist de cu e inferno, obedece exatamente concepo dantesca" (1993, p. 62) 14
A propsito Andrade afirma: "Machado de Assis emprega exatamente o
mesmo corte estrfico de Dante. a nica vez que o emprega, alm da traduo
dantesca que nos deu. Ora o terceto muito pouco usado na potica portuguesa,
tanto tradicional como do tempo. [...] A escolha da forma potica do terceto,
que a qualquer um evoca irresistivelmente Dante, me parece consequncia
natural de uma inspirao dantesca. (p. 62)
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Ns temos que dar ao Brasil o que ele no tem e
que por isso at agora no viveu, ns temos que
dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifcio
grandioso, sublime. E nos d felicidade. Eu me
sacrifiquei inteiramente e quando eu penso em
mim nas horas de conscincia, eu mal posso
respirar, quase gemo na pletora da minha
felicidade. Toda a minha obra transitria e
caduca, eu sei. E eu quero que ela seja transitria.
Com a inteligncia no pequena que Deus me deu
e com os meus estudos, tenho certeza de que eu
poderia fazer uma obra mais ou menos duradoura.
Mas que me importa a eternidade entre os homens
da Terra e a celebridade? Mando-as merda. Eu
no amo o Brasil espiritualmente mais que a
Frana ou a Conchinchina. Mas no Brasil que
me acontece viver e agora s no Brasil eu penso e
por ele tudo sacrifiquei. A lngua que escrevo, as
iluses que prezo, os modernismos que fao so
pro Brasil. E isso nem sei se tem mrito porque
me d felicidade, que a minha razo de ser da
vida. Foi preciso coragem, confesso, porque as
vaidades so muitas. Mas a gente tem a
propriedade de substituir uma vaidade por outra.
Foi o que fiz. A minha vaidade hoje de ser
transitrio. Estraalho a minha obra. Escrevo
lngua imbecil, penso ingnuo, s pra chamar a
ateno dos mais fortes do que eu pra este
monstro mole e indeciso ainda que o Brasil.
(1982, p. 5-6)
Essa concepo do escritor como um ser sacrificado se associa
com a ideia do dever-ser do artista mulato, implcita tanto na primeira
das matrias como no texto sobre o Aleijadinho, e, de certo modo, em
"'ltima Jornada' -II". Nesse ltimo texto, o tratamento desse assunto
muito diferente em relao primeira das matrias, provavelmente pelo
fato de que nele Andrade se concentra na anlise de um dos poemas da
fase inicial do escritor, fase em que "o gnio de Machado de Assis ainda
no encontrara a sua expresso original" (1993, p. 59). Observe-se, a
propsito, que a reflexo sobre o dever-ser do artista, parece voltada
aparente indiferena que o escritor, nessa etapa inicial, demonstrou
diante da construo de uma imagem de si prprio ou do desejo de criar
uma obra "mais ou menos duradoura" (1982, p. 6).
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44
Em contraste, o terceiro texto intitulado "Machado de Assis - III"
comea com a reiterao do desconforto que Machado produz no
crtico: "Ele foi um homem que me desagrada e que no desejaria para o
meu convvio" (1993, p. 63), seguida do reconhecimento das qualidades
da sua obra: "Mas produziu uma obra do mais alto valor artstico, prazer
esttico de magnfica intensidade que me apaixona e que cultuo sem
cessar" (p. 65). Nesse texto, predomina uma imagem de Machado como
um autor que procurou ocultar-se na sua obra, recalcando nela suas
origens mulatas e sua doena. Andrade caracteriza essa busca de
Machado nos termos de uma luta, uma revolta contra si mesmo, da qual
resulta vencedor: Eu sei que o Mestre se imaginou um desgraado.
O seu pessimismo, o seu humorismo, a sua obra
toda; o cuidado com que, na vida, procurou
ocultar os seus possveis defeitos, as suas origens,
os elementos da sua formao intelectual e a sua
doena. Por uma espcie de pudor ofendido, ele se
revoltou; e a lio essencial da sua vida e da sua
obra literrias so o resultado dessa revolta. Mas
Machado de Assis foi um vitorioso. Tudo o que
ele quis vencer, embora na vida cerceando as suas
vitrias a um limite que o nosso desapego dos
racismos poderia alagar, tudo o que ele quis
vencer, venceu. Conseguiu uma vitria intelectual
rarssima, alcanando que o considerassem em
vida o representante mximo da nossa inteligncia
e o sentassem no posto ento indiscutivelmente
mais elevado da forma intelectual do pas, a
presidncia da Academia.
Assim vitorioso na vida, ele ainda o foi mais
prodigiosamente no combate que, na obra, travou
consigo mesmo. Venceu as prprias origens,
venceu na lngua, venceu as tendncias gerais da
nacionalidade, venceu o mestio. (p. 65)
Percebe-se nesta e na primeira matria um movimento de
contraponto quase sempre que assinaladas as virtudes da obra, que d
sempre lugar articulao entre vida e obra entre [des]amor e
genialidade, dever-ser do escritor mulato do Segundo Reinado e querer-
ser, por exemplo. Desta vez, aps essas linhas elogiosas sobre a
ascenso do autor nos mbitos intelectual e literrio, Andrade emite
fortes juzos em relao ao compromisso que Machado teve com a sua
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realidade mais prxima, nos termos de uma traio. Leia-se a seguinte
declarao: certo que para tantas vitrias ele traiu bastante a
sua e a nossa realidade. Foi o anti-mulato, no
conceito que ento se fazia de mulatismo. Foi
intelectualmente o anti-proletrio, no sentido em
que principalmente hoje concebemos o intelectual.
Uma ausncia de si mesmo, um meticuloso
ocultamento de tudo quanto ele podia ocultar
conscientemente. E na vitria contra isso tudo,
Machado de Assis se fez o mais perfeito exemplo
de arianizao e de civilizao da nossa gente.
Na lngua. No estilo. E na sua concepo esttico-
filosfica, escolhendo o tipo literrio ingls, que
s vezes rastreou por demais, principalmente
opima de saxonismo, que Sterne. (p. 65-66)
Note-se que o branqueamento de Machado, que implica a traio
da realidade brasileira "a nossa realidade" e que se consegue atravs
do ocultamento intencional do autor na sua prpria obra, o motivo
mais evidente da incapacidade do crtico de amar o artista genial. O
problema nesse caso no o mesmo do Aleijadinho, no se trata de um
estado de alienao de Machado diante da sua essncia mulata, mas das
suas escolhas conscientes: das suas fontes de inspirao, do tipo de
personagens e situaes criadas nas suas obras. A seguir, Andrade
questiona a escolha da tradio literria inglsa sobre a francsa,
afirmando a afinidade que existiria entre o esprito francs e as
necessidades do pas: A Frana seria, como vem sendo mesmo, o
caminho natural para nos libertarmos da priso
lusa. [...] [devido a que] na base da originalidade
francesa, estavam exatamente o amor da
introspeco, o senso da pesquisa realista, o gosto
do extico, o nacionalismo acendrado e o trabalho
cheio de precaues que seriam para ns o
caminho certo da afirmao nacional. (p. 66)
Assim, reconhece a afinidade existente entre as intenes
egostas do autor e a literatura inglesa que lhe serviu de inspirao:
Mas a Machado de Assis errou o golpe (ou
acertou para si s...), preferindo a Inglaterra, que
lhe fornecia melhores elementos para se ocultar, a
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"pruderie", a beatice respeitosa das tradies e dos
poderes constitudos, o exerccio aristocrtico da
hipocrisia, o "humour" de camarote. (p. 66)
Nesse ponto se repete, mais uma vez, o movimento de
contraponto: da recriminao pela deciso caprichosa, o crtico passa
admirao do gnio, para logo depois afirmar:
Mas assim vitorioso, o Mestre no pode se tornar
o ser representativo do Homo brasileiro. [...]
Machado de Assis, vencedor de tudo, dado
mesmo que fosse individual e socialmente
desgraado, como o foram Beethoven ou Cames,
uma coisa no soube vencer. No soube vencer a
prpria infelicidade. No soube super-la, como
esses. Vingou-se dela, mas no a esqueceu nem
perdoou nunca. E por isso foi, como a obra conta,
o ser amargo, sarcstico, ou apenas
aristocraticamente humorista, ridor da vida e dos
homens. Mas tambm por isso lhe faltam
qualidades brasileiras, as qualidades que todos
somos geralmente, em nossas mais perceptveis
impulsividades. (p. 66-67)
Observe-se que esse contraponto sempre traz implcita a
articulao entre a vida de Machado e sua obra, articulao que embora
no se baseie na lgica do reflexo como o caso da abordagem de Lcia
Miguel Pereira, se levanta sobre uma noo determinista do dever-ser do
autor.
Na concluso, Andrade procura dar reconhecimento
"contribuio brasileira" implcita na obra de Machado, destacando
"uma boa coleo de almas brasileiras e uma lngua que, apesar de
castia, no positivamente mais o portugus de Portugal" (p. 67). A
referncia dita coleo de almas inclui uma pequena aluso ao
Conselheiro Aires em duas linhas: "Sim, se no reconheo a Machado
de Assis em mim, em compensao sou Brs Cubas, noutros momentos
sou Dom Casmurro, noutros o velho Aires." (p. 67). Essas palavras no
esclarecem nada a propsito da identificao de certa brasilidade nessas
personagens e resulta um pouco estranha no marco da crtica que to
energicamente levanta Andrade sobre uma suposta indiferena do autor
diante de assuntos que Machado como artista mulato teria que
considerar nas suas criaes.
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A referncia sobre a lngua um pouco mais extensa e se baseia
na caracterizao de Machado como "continuador dos velhos clssicos"
(p. 67). Mais uma vez mantendo a lgica do contraponto, aps o elogio
chega o julgamento: Mas, profundamente, o que ele melhor representa
a continuao dos velhos clssicos, continuao
tingida fortemente de Brasil, mas sem a
fecundidade com que lvares de Azevedo, Castro
Alves, Euclides e certos portugueses estavam...
estragando a lngua, enriquecendo-a no
vocabulrio, nos modismos expressionais, lhe
dilatando a sintaxe, os coloridos, as modulaes,
as cadncias, asselvajando-a de novo para lhe
abrir as possibilidades de um novo e mais
prolongado civilizar-se. (p. 67)
Os pargrafos finais, concentrados no reconhecimento de
Machado como "o nosso maior escritor"15
, remetem novamente
relao entre a vida do autor e as caractersticas da sua obra:
Mas as obras valem mais que os homens. As obras
contam muitas vezes mais que os homens. As
obras dominam muitas vezes os homens e os
vingam deles mesmos. extraordinria a vida
independente das obras-primas que, feitas por
estas ou aquelas pequenezas humanas, se tornam
grandes, simblicas, exemplares. (p. 68-69)
Mas, dessa vez, concedendo autonomia obra e, portanto,
livrando-a da imagem de seu autor. Um gesto final de libertao em que
pulsa a contradio das observaes feitas em torno do que teria que ter
feito Machado para poder ser to "nosso" quanto Andrade queria. O que
predomina ao longo da abordagem que se estende nesses trs textos
publicados no Dirio de Notcias especialmente no primeiro e no
terceiro a dificuldade de conciliar o agir "descomprometido" do
autor em relao ao processo de consolidao de uma literatura
15
" que Machado de Assis, se no foi nosso maior romancista, nem nosso
maior poeta, nem sequer maior contista, foi sempre, e ainda , o nosso maior
escritor. E por isso deixou, em qualquer dos gneros em que escreveu, obras-
primas perfeitssimas, de forma e de fundo, em que, academicamente, a
originalidade est muito menos na inveno que na perfeio." (p. 68)
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48
nacional, e, claro, com respeito sua prpria realidade, com a
fascinao extrema que lhe produzem as suas obras. Dificuldade da que
uma evidncia o constante ritmo de contraponto de sua exposio.
preciso reiterar que a presena desta srie de textos de Mrio de
Andrade obedece necessidade de analisar alguns gestos dominantes da
crtica machadiana e suas repercusses na difuso e na histria de leitura
das obras do autor. Sua relevncia radica em que pode ser considerado
um ponto de inflexo entre a crtica mais contempornea a Machado de
Assis e uma crtica posterior ainda vigente, isto , uma dobradia entre
os postulados de Sylvio Romero e as reflexes de Antonio Candido, por
exemplo. No caso especfico desses trs autores (Romero, Andrade e
Candido), pode perceber-se como apesar de o conceito de literatura
brasileira ter em suas reflexes diferentes matizes, os trs compartilham
a ideia de um processo de formao, de uma evoluo da literatura
nacional, que supe um estgio inicial caracterizado pela falta de
identidade e pela imitao, e outro de maturidade, caracterizado pela
conscincia do ser brasileiro. E como, tanto para Romero como para
Andrade, a articulao de Machado nesse processo, denota um
descompasso entre o que o autor fez e o que como escritor brasileiro e,
sobretudo, mulato deveria ser.
Antonio Candido
Em 1968, quase seis dcadas aps a publicao de Memorial de
Aires, Antonio Candido profere a palestra intitulada "Esquema de Machado de Assis", reunida dois anos mais tarde no volume Vrios
escritos (1970). um texto breve em que o crtico caracteriza a situao
da obra de Machado no panorama da literatura brasileira e da literatura
ocidental, se refere a algumas das tendncias predominantes da sua
fortuna crtica e revisa alguns dos elementos mais caractersticos do
estilo do que denomina "tom machadiano" (ASSIS, 2008, p. 118).
preciso esclarecer que no um texto dedicado a Memorial de Aires,
contudo includo nesta reflexo porque alm de contribuir na
atualizao do panorama crtico posterior dcada de sessenta, permite
rastrear as ressonncias de alguns traos recorrentes na leitura crtica da
obra machadiana.
O texto est estruturado em trs partes, uma introdutria, em que
so considerados alguns aspectos constantes nas leituras crticas e
questionado o contraste entre o grande reconhecimento alcanado pela
obra machadiana no mbito nacional e sua escassa difuso internacional;
uma segunda parte, concentrada na anlise das perspectivas de
interpretao das diferentes geraes de crticos; e, uma terceira; em que
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so abordados alguns problemas fundamentais da obra, discutidos por
tais geraes e alguns outros sugeridos pelo prprio Candido.
A natureza romntica da tendncia de "atribuir aos grandes
escritores uma quota pesada e ostensiva de sofrimento e drama" (p.
112), identificada em algumas das leituras de Memorial de Aires que j
consideramos, o aspecto que inaugura a reflexo e o lugar a partir do
qual o crtico assume uma postura, no s diante desse tipo de
aproximaes, mas, diante da obra literria e sua relao com o autor.
Afirma que se trata de uma tendncia natural, quase invencvel: "Por
isso, os crticos que estudaram Machado de Assis nunca deixaram de
inventariar e realar as causas eventuais de tormento, social e individual:
cor escura, origem humilde, carreira difcil, humilhaes, doena
nervosa." (p. 113). Com isso, alm de justificar de certo modo esse gesto
romntico, procura desmontar a imagem idealizada do escritor a partir
da verificao das caractersticas ressaltadas nessas abordagens,
explicando como "na verdade os seus sofrimentos no parecem ter
excedido aos de toda gente, nem a sua vida foi particularmente rdua"
(p. 113), e, ressaltando o carter privilegiado de sua situao no mbito
cultural brasileiro no s como escritor mas, tambm, como presidente
da Academia Brasileira de Letras, afirmando "o raro privilgio [que
teve] de ser reconhecido e glorificado como escritor, com um carinho e
um preito que foram crescendo at fazer dele um smbolo do que se
considera mais alto na inteligncia criadora." (p. 114).
A tentativa de desmontar a imagem idealizada de Machado
evidencia uma mudana nos objetivos crticos, passando da
subjetividade do autor e de sua relao com a obra, ao reconhecimento
da independncia do texto escrito, de sua autonomia1