Luiz Martinho STRINGUETTI FILHO A TRÁGICA MÍMICA DE OTELO...
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Travessias Interativas, vol. 14, 2017/2 www.travessiasinterativas.com.br
Luiz Martinho STRINGUETTI FILHO
A TRGICA MMICA DE OTELO
THE TRAGIC MIMICRY OF OTHELLO
Luiz Martinho STRINGUETTI FILHO 1
Resumo: O presente artigo apresenta uma anlise do drama Otelo, o mouro de Veneza, de William
Shakespeare, tendo como referncia noes da crtica ps-colonial. A anlise empreendida busca
traar em Otelo, atravs do conceito de mmica elaborado por Homi K. Bhabha, uma ilustrao,
de peculiar violncia, dessa repetio/identificao diferenciada da subjetividade colonizada
diante de seu modelo civilizacional.
Palavras-Chave: Literatura. William Shakespeare. Estudos Culturais. Crtica Ps-Colonial.
Abstract: This article presents an analysis of William Shakespeare's drama Othello, the Moor of Venice. This study is structured according to the assumptions of postcolonial criticism. The analysis aims to trace in Othello, through the concept of mimicry elaborated by Homi K. Bhabha,
an illustration, of peculiar violence, of this differentiated repetition/identification of the colonized
subjectivity before his civilizational "model".
Keywords: Literature. Shakespeare. Cultural Studies. Postcolonial Criticism.
Otelo, o mouro de Veneza, tragdia escrita por William Shakespeare,
aproximadamente em 1603, , ao lado de A Tempestade,2 um dos dramas shakespearianos
mais abordados pelos estudos ps-coloniais. Embora sua trama se atenha ao trgico cime
do general Otelo e o ardil que o desperta, elaborado de modo majestoso pelo
maquiavelicamente cativante alferes Iago, outras temticas podem ser depreendidas na
leitura da obra, como questionamentos pertinentes ao incio das relaes coloniais na
Inglaterra elisabetana3 e, principalmente, como veremos, a questo da constituio da
identidade do sujeito colonizado.
Deste modo, buscaremos desenvolver nosso argumento em duas etapas.
Primeiramente, faremos, por meio de um rpido esboo de contextualizao da crtica
1 Doutorando em Teoria e Histria Literria - Departamento de Teoria e Histria Literria, Instituto de
Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas SP, Brasil, email:
[email protected]; pesquisador-bolsista CNPq.
2 Cito, a ttulo informativo, como referncia para a problematizao de algumas destas abordagens, o
artigo de Fernando Rodrigues (UFRJ), A tempestade e a questo colonial, publicado na Revista Viso
Cadernos de Esttica Aplicada n 5, de 2008.
3 Ainda que o enredo da obra se contextualize nas guerras da Serenssima Repblica de Veneza contra os
turcos, a questo do domnio colonial e a reflexo sobre as novas condies identitrias se relacionam
diretamente com questes sociais pertinentes ao colonialismo do emergente Imprio Britnico.
http://travessiasinterativas.com.br/mailto:[email protected]
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ps-colonial, uma exposio do conceito proposto pelo terico indiano Homi K. Bhabha,
o qual denomina de mmica do sujeito colonizado. Buscaremos evidenciar a violncia
identificada por Bhabha na ambivalncia de tal mmica atravs da tentativa de
sistematizar o processo pelo qual a identidade perifrica tende a se automutilar em nome
de uma identificao com o sujeito colonizador, o que implica a supresso de parte de
seus caracteres mais marcantes.
Num segundo momento partiremos para uma exposio conclusiva da
argumentao, atravs de uma sucinta e rpida leitura de Otelo com vista a ilustrar esta
violncia autoinfligida que se coaduna ao gesto mmico do sujeito colonizado. Para tal,
nos focaremos em duas passagens decisivas e de alta dramaticidade da pea de
Shakespeare. A primeira passagem, a saber, a quarta cena do ato terceiro, quando Otelo,
instigado por Iago, conta a Desdmona a histria sobre a origem do leno que dela fora
roubado e que servir de prova para o suposto adultrio. A segunda passagem, onde
podemos vislumbrar de forma explcita a violncia embutida nesta mmica, qual Otelo
sujeito pelos preceitos da poltica na qual est enredado, se encontra na cena final da
tragdia. Trata-se do gesto, de extrema violncia lrica, pelo qual Otelo tira a prpria vida.
I
Em artigo que versa sobre a identidade no enfoque do ps-colonialismo e a
literatura, o pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande, Jos Lus Fornos, traa
um pequeno esboo da corrente epistemolgica da crtica ps-colonial, apontando como
obra de seminal referncia o livro Orientalismo (1990), de Edward Said:
Nela, Said interroga o modo como a narrativa ocidental, mais
especificamente a europeia, representou e continua representando o
Oriente. Por meio de exemplos, o estudioso palestino destaca a
representao binria que dividiu o mundo em Ns, o europeu, o
ocidental, o civilizado, o colonizador, e o Outro, o no-europeu, o
oriental, o brbaro, o colonizado. Segundo a avaliao de Srgio
Costa, os estudos ps-coloniais no constituem propriamente uma
matriz terica nica. Trata-se, segundo o autor, de uma variedade de
contribuies com orientaes distintas, mas que apresentam como
caracterstica comum o esforo de esboar, pelo mtodo da
desconstruo dos essencialismos, uma referncia epistemolgica
crtica s concepes dominantes da modernidade. (FORNOS, 2013,
p. 116, grifo nosso).
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Tendo como pressuposto que leituras conservadoras ainda norteiam
predominantemente as interpretaes cannicas (dentre as quais, as leituras da obra
shakespeariana), a crtica ps-colonial, ao problematizar o processo histrico da
colonizao ocidental busca efetuar leituras desconstrutoras de variados textos de
contextualizao colonialista, ressaltando as representaes da subjetividade, com
destaque para os processos de construo da identidade do sujeito colonizado. Trata-se,
assim, de uma abordagem crtica que no se circunscreve aos estudos literrios, fazendo
uso de suportes interdisciplinares para tal problematizao. , portanto, dentro deste
paradigma crtico que a abordagem aqui proposta se enquadra.
*
Figurando entre os tericos mais influentes dos atuais Estudos Culturais, o
estudioso do ps-colonialismo, Homi K. Bhabha, trata em seu livro O local da cultura,
no captulo Da mmica e do homem: a ambivalncia do discurso colonial, sobre a
ambivalncia presente na representao da identidade do sujeito dentro do discurso
colonial, apontando, atravs de uma aproximao com esse conceito marxista-
psicanaltico (se que assim podemos denominar), para a complexa fuso entre atrao e
repulsa que se coaduna na relao entre colonizador e colonizado.
Bhabha argumenta que h uma relao de cumplicidade e resistncia da parte do
colonizado; que por sua vez, encontra uma resposta dbia, de explorao e proteo, por
parte do colonizador. O que o discurso colonial busca induzir o sujeito colonizado
submisso, de modo que este passe a desejar reproduzir os hbitos e valores do
dominador. Segundo o autor, isto se d atravs de uma mmica da colonizao, mas uma
mmica que caminha paralelamente zombaria. Entretanto, Bhabha aponta para o fato
de que a resposta do sujeito colonizado ao discurso colonizador, em sua performance
imitativa, se d, como dissemos, de modo ambivalente, atravs de uma representao que
tende a distorcer e obscurecer os motivos de seu modelo. Tentaremos ilustrar, sob essa
perspectiva, o mecanismo ambguo e violento pelo qual a identidade de Otelo
performatizada atravs de identificaes contraditrias.
II
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Embora venhamos a nos ater a dois momentos especficos do drama, vale antes
retraar sucintamente a trama em questo para que nos apercebamos do ponto nevrlgico
que constitui a colocao poltica do mouro Otelo.4
Otelo um general em Veneza. Honrado e valoroso guerreiro, respeitado pelo
potentado veneziano, apesar de sua origem e sua cor negra5, devido sua coragem e ao
seu imenso talento como estrategista. Tem, acima de tudo, a confiana do rico senador
Brabncio, cuja casa frequentava para entreter o nobre com as exticas histrias de suas
campanhas. Em sua tropa, possui dois homens por quem possui imenso apreo, Cassio e
Iago. No incio da pea, ficamos sabendo que Cssio acabara de ser promovido por Otelo
para ser seu tenente, de modo que seu alferes Iago, que aspirava ao cargo, tendo inclusive
pedido para alguns dos nobres venezianos a intercesso em sua causa, ento tomado por
imensa inveja, a qual lhe desperta o desejo de vingana que ser responsvel por toda a
trama da pea.
Iago, sabendo ento que Otelo se encontrava s escondidas com Desdmona, a
bela e desejada filha do senador Brabncio, inicia seu plano com a ajuda de Rodrigo,
nobre pretendente da belssima Desdmona. Juntos, na noite em que o general se casava
com sua dama, tambm s escondidas do senador, se dirigem casa do mesmo para
acord-lo com a notcia. No entanto, apesar do dio que tomara o senador devido traio
de sua filha (traio, segundo a moral vigente, tanto a seu pai, quanto sua prpria
natureza), fazendo-o acusar o mouro de usar feitios para tomar o corao de Desdmona
e intervindo junto ao doge da cidade para que o mouro fosse condenado morte, uma
notcia imprevista faz do general uma necessidade urgente para a poltica veneziana, de
4 Vale lembrar que, apesar do termo mouro fazer referncia a mauritanos, mauros ou sarracenos,
considerados os povos oriundos do Norte da frica, praticantes do Islo, aos tempos da escrita do drama
de Shakespeare o termo era empregado, de maneira generalizante, para fazer referncia a negros,
indiferente de etnias.
5 Neste ponto, vlido notarmos que a estima manifestada por Otelo em si extraordinria. Em sua
dissertao de mestrado, Otelo, o mouro de Veneza, de Shakespeare: Crtica e traduo literria (2007),
onde empreende uma nova traduo da tragdia, o pesquisador Eneias Farias Tavares esboa um
subcaptulo inteiro sobre as opinies preconceituosas dos ingleses da poca para com os mouros. Atravs
de exemplos retirados de cartas da prpria Rainha Elizabeth, o estudioso aponta para o consenso, de
ento, de que a crescente populao moura, decorrente dos intercmbios coloniais, configurava-se como
preocupao para a aristocracia tradicional, que ento via sua cultura sob uma espcie de ameaa
constante.
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modo que o potentado da cidade ir ento, por prejuzo de Brabncio, que vir a falecer
de desgosto pouco tempo depois, permitir o casamento entre os dois jovens amantes.
Na noite do casamento, Otelo obrigado a partir para uma guerra em Chipre,
diante de que Desdmona pede permisso para acompanh-lo. Em Chipre, a vingana de
Iago se inicia: o alferes embebeda Cssio, colocando-o num duelo que ir trazer por
consequncia a destituio de seu cargo de tenente. Em seguida, Iago recomenda a Cssio
que pea esposa do general que interceda em sua causa, enquanto ardilosamente planta
um cime terrvel em Otelo, que o levar, num gesto de loucura, a estrangular sua amada.
III
Voltando ao incio da trama, interessante notar que Iago e Rodrigo vo despertar
Brabncio logo aps a cerimnia de npcias de Otelo. Deste modo, a ao narrativa, ao
se passar durante a noite, reflete simbolicamente a alterao do curso natural das coisas.
Exposta a trama da pea, vejamos atravs de alguns exemplos que a condio de
alteridade e ameaa, que Otelo representa para a moral veneziana, exposta j desde o
incio nas palavras de Iago, quando este busca incitar o dio de Brabncio: Agora
mesmo, neste momento, neste momento mesmo, um velho bode negro est cobrindo
vossa ovelha branca. De p! De p! Despertai ao som de um sino os cidados que esto
roncando, ou, caso contrrio, o diabo vai fazer de vs um av (SHAKESPEARE, 1981,
p. 334 grifo meu).6
Ao longo de toda pea veremos a referncia a atributos de animalidade e
licenciosidade serem utilizados para descrever a alteridade da cor negra, o que nos leva
mais uma vez ao texto de Bhabha: A pele negra se divide sob o olhar racista, deslocada
em signos de bestialidade, de genitlia, do grotesco, que revelam o mito fbico do corpo
branco inteiro, no-diferenciado (BHABHA, 1998, p. 138); Porque vimos prestar-vos
6 Even now, now, very now, an old black ram
Is topping your white ewe. Arise, arise;
Awake the snorting citizens with the bell,
Or else the devil will make a grandsire of you:
Arise, I say (SHAKESPEARE, 2005, p.9).
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um servio e pensais que somos rufies, deixareis que vossa filha seja coberta por um
cavalo da Barbria? Estais querendo ter netos que relincharo em vosso rosto! Acabareis
tendo corcis como primos e ginetes como parentes (SHAKESPEARE, 1981, p. 335
grifo nosso);7 tambm nas palavras de Rodrigo, que bem refletem o olhar ao qual o mouro
estava condenado diante a moral e poltica veneziana:
Mas dizei-me, por favor, se com vosso beneplcito e com vosso mais
prudente consentimento (como comeo a acreditar) que vossa bela
filha, nesta hora imprpria, em noite to escura, sem melhor nem pior
escolta do que a de um patife de aluguel, um gondoleiro, haja ido
entregar-se aos abraos de um mouro lascivo... [...] Vossa filha, se no
a autorizastes, continuo dizendo, tornou-se culpada de grave falta,
sacrificando seu dever, sua beleza, seu engenho e sua fortuna a um
estrangeiro vagabundo e nmade, sem ptria e sem lar.
(SHAKESPEARE, 1981, p. 335 grifo nosso).8
7 [] Because we come to
do you service and you think we are ruffians, youll
have your daughter covered with a Barbary horse;
youll have your nephews neigh to you; youll have
coursers for cousins and gennets for germans (SHAKESPEARE, 2005, p.11).
8 [] But, I beseech you,
Ift be your pleasure and most wise consent,
As partly I find it is, that your fair daughter,
At this odd-even and dull watch o the night,
Transported, with no worse nor better guard
But with a knave of common hire, a gondolier,
To the gross clasps of a lascivious Moor
[]
Your daughter, if you have not given her leave,
I say again, hath made a gross revolt;
Tying her duty, beauty, wit and fortunes
In an extravagant and wheeling stranger
Of here and every where. [] (SHAKESPEARE, 2005, pp. 11, 13).
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Introduzida a condio marginal de nossa personagem, veremos ento, que mesmo
Brabncio, que muito apreo tinha pelo mouro, recebendo-o constantemente em sua casa,
no ser capaz de aceitar a escolha da filha. Buscando ento a condenao do mouro por
ter enfeitiado o corao de Desdmona:
tu, ladro odioso! Onde escondeste minha filha? Infernal como s,
sem dvida a encantaste com efeito, apelo para toda criatura de senso:
se no estivesse ela encadeada em correntes de magia, ser que uma
donzela to terna, to bela, to feliz, to contrria ao casamento que
rejeitava os apaixonados mais suntuosos e mais bem frisados do pas,
teria, algum dia, com risco de ser objeto do desprezo geral, fugido da
tutela paterna para ir refugiar-se no seio denegrido de um ser como tu,
feito para inspirar medo e no deleite? Que o mundo seja minha
testemunha, se no de toda a evidncia que agiste sobre ela com
feitios odiosos, que abusaste de sua delicada juventude por meio
de drogas ou de minerais que debilitam a sensibilidade.
(SHAKESPEARE, 1981, p. 340 grifo nosso).9
9 O thou foul thief, where hast thou
stowd my daughter?
Damnd as thou art, thou hast enchanted her;
For Ill refer me to all things of sense,
If she in chains of magic were not bound,
Whether a maid so tender, fair and happy,
So opposite to marriage that she shunned
The wealthy curled darlings of our nation,
Would ever have, to incur a general mock,
Run from her guardage to the sooty bosom
Of such a thing as thou, to fear, not to delight.
Judge me the world, if tis not gross in sense
That thou hast practiced on her with foul charms,
Abused her delicate youth with drugs or minerals
That weaken motion [...] (SHAKESPEARE, 2005, p. 19).
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As mesmas acusaes sero repetidas perante o doge de Veneza, que, entretanto,
devido urgncia da guerra de Chipre, necessita ainda dos servios do general, motivo
pelo qual abenoa, a despeito das acusaes de Brabncio, o matrimnio e consente que
Desdmona acompanhe Otelo em sua campanha. Afinal de contas, isto faz de Otelo uma
das verses autorizadas da alteridade (BHABHA, 1998, p. 133-134).
Vale ainda transcrever algumas palavras de Brabncio, que ao lado de outros
exemplos que tiraremos das falas de Iago, se encarregam de lembrar Otelo, durante toda
a trama, a incoerncia da escolha de Desdmona, ilustrando aquilo que Bhabha descreve
como os objetos inapropriados que revelam o lugar de interdio do sujeito colonizado.
Diz ele: Mostraria um juzo mutilado e muito imperfeito, quem declarasse que a
perfeio possa errar a tal ponto contra todas as regras da natureza. (SHAKESPEARE,
1981, p. 344).10
Faamos notar ainda, que as acusaes de feitiaria feitas por Brabncio sero
tomadas como parte da mmica de Otelo, num prximo momento da trama, quando este
ento se armar daquilo que foi acusado para causar temor em sua esposa. Antes, porm,
recolhamos dois exemplos das falas de Iago, que j em Chipre, ao envenenar a mente de
Otelo, despertando nele um cime terrvel para com Desdmona e Cssio, tambm
revelar a fora do acordo de alteridade que busca lembrar Otelo de seu devido lugar.
O primeiro exemplo a fala que tenta lembrar Otelo que, tendo Desdmona j
enganado seu pai, poderia vir tambm a engan-lo: Muito bem: tirai, ento, vossa
concluso. Aquela que, to jovem, pode representar papel semelhante e manter os olhos
do pai to tapados e to fechados como um carvalho que ele chegou a acreditar que
houvesse magia... (SHAKESPEARE, 1981, p. 386).11 Neste exemplo, me parece
razovel voltarmo-nos novamente para as palavras de Bhabha, tentando estabelecer uma
10 It is a judgment maimd and most imperfect
That will confess perfection so could err
Against all rules of nature. [...] (SHAKESPEARE, 2005, p.27).
11 Why, go to then;
She that, so young, could give out such a seeming,
To seal her fathers eyes up close as oak
He thought twas witchcraft [...] (SHAKESPEARE, 2005, p. 105).
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relao com a questo da autoridade, sempre implicada na performance da mmica. Diz
ele:
a visibilidade da mmica sempre produzida no lugar da interdio.
uma forma de discurso colonial que proferido inter dicta: um discurso
na encruzilhada entre o que conhecido e permitido e o que, embora
conhecido, deve ser mantido oculto, um discurso proferido nas
entrelinhas e, como tal, tanto contra as regras quanto dentro delas. A
questo da representao da diferena , portanto, sempre tambm um
problema de autoridade. (BHABHA, 1998, p. 135).
J vimos qual o local de interdio de Otelo, faixa ultrapassada com o matrimnio com
Desdmona, j que uma tal unio implicaria a mistura tnica, a contaminao de uma
assim suposta pureza racial.
No segundo exemplo temos Iago mostrando que Desdmona, ao se casar com ele,
teria agido realmente contra a natureza. O que nos surpreende, entretanto, que Otelo
toma como certas as palavras do alferes, o que nos mostra que tem seu lugar social da
alteridade to entranhado, a ponto de ter internalizado a violncia discursiva para consigo
mesmo.
Sim, eis a coisa. Assim (permiti esta ousadia), tendo recusado tantos
partidos que apareciam e que possuam todas as afinidades de
ptria, de raa e de estirpe, para os quais vemos que tendem todas
as coisas da natureza, hum!, isto denota um gosto bem corrupto, uma
grosseira desarmonia de inclinaes, de pensamentos contra a
natureza... Mas perdoai-me. No estou diretamente referindo-me a ela,
embora possa temer que sua alma, voltando a inclinaes mais
normais, chegue a comparar-vos com pessoas de seu pas e acabe,
talvez, por sentir-se arrependida. (SHAKESPEARE, 1981, p. 387
grifo nosso).12
12 Ay, theres the point: asto be bold with you
Not to affect many proposd matches
Of her own clime, complexion, and degree,
Whereto we see in all things nature tends
Foh! one may smell in such a will most rank,
Foul disproportion, thoughts unnatural.
But pardon me; I do not in position
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Aqui, voltamo-nos para um dos momentos nos quais a mmica trgica de Otelo se
far mais evidente. Trata-se justamente da cena em que, instigado pelo ardil de Iago, Otelo
ir questionar Desdmona sobre o leno que lhe dera e que fora roubado pela sua aia,
esposa de Iago. No intuito de atemorizar sua companheira, para dela alcanar a confisso
de adultrio, Otelo reveste a histria do objeto, vinculando-o histria de sua prpria
famlia (e origem), de fabulosos caracteres de mistrio e magia os mesmos atributos
pelos quais fora acusado, no incio da tragdia, pelo pai de Desdmona:
Lamentvel! Esse leno foi dado minha me por uma egpcia... Era
uma feiticeira que quase podia ler os pensamentos das pessoas. Ela lhe
disse que, enquanto minha me conservasse o leno, teria o dom de
agradar e submeter inteiramente meu pai a seu amor; mas, se ela o
perdesse ou desse de presente, os olhos de meu pai se afastariam dela
com desgosto e sua alma se lanaria a caa de novos amores. Ao morrer,
entregou-se o leno e recomendou-me que, quando o destino me unisse
a uma esposa, eu o desse a ela. Foi o que fiz. Assim, tende cuidado; que
ele seja para vs to ternamente apreciado quanto vossos preciosos
olhos. Perd-lo ou d-lo seria desgraa que nada teria de semelhante!
(SHAKESPEARE, 1981, p. 397).13
Distinctly speak of her; though I may fear
Her will, recoiling to her better judgment,
May fall to match you with her country forms
And happily repent" (SHAKESPEARE, 2005, p. 107).
13 That is a fault.
That handkerchief
Did an Egyptian to my mother give;
She was a charmer, and could almost read
The thoughts of people: she told her, while she kept it,
Twould make her amiable and subdue my father
Entirely to her love, but if she lost it
Or made gift of it, my fathers eye
Should hold her loathed and his spirits should hunt
After new fancies. She, dying, gave it me;
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Isto, ainda que, na segunda cena do quinto ato, Otelo vir a desmentir tal
excntrica origem do artefato, mudando sua histria:
uma pena! Mas, no obstante, Iago sabe que cometeu ela mil vezes
com Cssio o ato vergonhoso. O prprio Cssio confessou; e ela
recompensou seus trabalhos amorosos com aquele testemunho e
recordao de amor que primeiro lhe dei. Eu o vi nas mos dele. Era
um leno, recordao antiga que meu pai dera a minha me.
(SHAKESPEARE, 1981, p. 437 grifo nosso).14
Chegamos ento, ao momento mais trgico na mmica de Otelo, onde encerrarei
esta minha proposta de percurso. Em seu discurso final, abatido pela culpa e pelo
ressentimento de ter-se deixado levar pela artimanha de Iago, Otelo clama ainda a seus
pares, que no se esqueam de sua identificao para com eles. Num gesto que retrata seu
derradeiro discurso, Otelo lembra, aos que esto a lhe prender, o modo pelo qual, num
campo de batalha, ele degolara um turco (um co circunciso) que vira bater num
veneziano. Aqui Otelo toma como outro, aquele que assim como ele, teve a sua
identidade condenada marginalidade mmica do interesse poltico.
And bid me, when my fate would have me wive,
To give it her. I did so: and take heed ont;
Make it a darling like your precious eye;
To loset or givet away were such perdition
As nothing else could match (SHAKESPEARE, 2005, pp. 123, 125).
14 Tis pitiful; but yet Iago knows
That she with Cassio hath the act of shame
A thousand times committed; Cassio confessd it:
And she did gratify his amorous works
With that recognizance and pledge of love
Which I first gave her; I saw it in his hand:
It was a handkerchief, an antique token
My father gave my mother (SHAKESPEARE, 2005, p. 201).
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Ao extirpar a prpria vida, Otelo revela as ltimas consequncias da ambivalncia
mmica que conforma a identidade do sujeito colonizado se aqui no tratamos da
questo colonial, a condio de alteridade perante os interesses polticos mercantis dos
brancos de Veneza no deixam os mouros em posio to distinta das subjetividades s
quais Bhabha se refere. Pois, embora necessrio aos objetivos da metrpole que o tomara
como lder e estrategista, ao longo da tragdia encontramos ndices frequentes do discurso
que se encarrega de lembrar Otelo que ele no um deles. Nas acusaes do pai de
Desdmona, nas insinuaes de Iago sobre a animalidade da donzela em escolher como
esposo algum que no como ela, nos prprios delrios de inferioridade que levam o
general a questionar a autenticidade do amor de sua esposa e, muito claramente, nos dois
episdios tratados com mais ateno.
Otelo incapaz de enxergar suas prprias virtudes, to evidentes e preciosas para
Desdmona, a ponto de faz-la enfrentar, em nome de sua paixo, a hierarquia
secularizada de Veneza. O encargo poltico do general assim se revela em toda a
ambiguidade. Apesar de lhe dar alguns direitos em troca de sua vassalagem, o mouro no
pode esquecer-se de seu verdadeiro lugar na manuteno da ordem natural das coisas
quase o mesmo, mas no exatamente (BHABHA, 1998, p. 131). Para Otelo, seu valor
advm antes do espao ao qual conseguiu integrar-se dentro da poltica veneziana, do que
de seus atos enquanto significativos aos seus prprios desejos. A mmica de Otelo to
intensa, que mesmo quando resolve matar-se, o far ento encenando seu papel de
guerreiro veneziano: tal sociedade deve se lembrar dele enquanto aquele que agia em
nome dela, e no, devido a sua prpria origem, como o outro, condenado pela natureza a
uma animalidade inferior, como a do animal de duas costas, os bodes excitados, os
macacos ardentes, os lbricos lobos, segundo insinuaes de Iago, ou o prprio turco,
mpio co circunciso ao qual apunhalara por ter insultado o estado. Este sim, um outro,
lembra-lhes Otelo, nos ilustrando o processo exposto por Bhabha pelo qual o olhar de
vigilncia retorna como o olhar deslocador do disciplinado, em que o observador se torna
o observado e a representao parcial rearticula toda a noo de identidade e a aliena da
essncia. (BHABHA, 1998, p. 134), afinal, como afirma em outro momento, o eu na
posio de domnio , naquele mesmo momento, o lugar de sua ausncia, sua re-
apresentao. (BHABHA, 1998, p. 80).
Eis o desfecho trgico da confuso psquica advinda da mmica imposta ao nosso
mouro, com toda a sua violenta ambiguidade em relevo. No se trata assim, de um
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Travessias Interativas, vol. 14, 2017/2 www.travessiasinterativas.com.br
Luiz Martinho STRINGUETTI FILHO
suicdio, numa leitura singela do termo, posto que no simplesmente Otelo, aquele que
tira a prpria vida mas sim um outro, entranhado em si prprio, como um vigilante
de sua condio inferior, que ao lembrar-lhe dos limites ultrapassados por seus atos,
empunha a lmina que far cessar em seu peito o sopro da vida.
Sem a pretenso de formular juzos definitivos, a anlise empreendida em nosso
estudo sugere novas vias de enfoque sociocultural no drama abordado, como a relao
entre concepes de virtude e um suposto essencialismo tnico, alm de ilustrar processos
da constituio da identidade nisto que nos estudos culturais veio a se denominar como
discursos dos entre-lugares da subjetividade colonizada.
Referncias
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Ps-Graduao em Letras, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, Rio
Grande do Sul.
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