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ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo – Maio/2013
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LUDICIDADE COMO ESTADOS DO CORPO: A ARTE DO PALHAÇO IMBRICADA NA DANÇA
DENISE TORRACA SOARES (UFBA)
RESUMO O autor Cipriano Luckesi (1998, 2005) apresenta enunciados a partir dos quais são discutidas proposições conceituais para abordagem da ludicidade em dança: ludicidade como estado de plenitude e ludicidade como estado de consciência. Esses dois enunciados são problematizados e reelaborados no diálogo com os estudos do neurocientista Antônio Damásio (2000, 2011) referentes a questões da consciência e estados do corpo. Considera-se que não é possível delimitar um único e estável estado de corpo correspondente a cada um dos estados indicados como componentes da ludicidade. O estado de palhaço emerge como referência no tecer de compreensões entre ludicidade, seus estados componentes e a dança. PALAVRAS-CHAVE: Ludicidade, Estados do Corpo, Estado de Palhaço, Dança.
PLAYFULNESS AS A BODY STATES: THE CLOWN ART EMBEDDED IN DANCE
ABSTRACT Cipriano Luckesi´s statements (1998, 2005) sets out propositions about an conceptual approach to playfulness in dance: "playfulness as plenitude" and "playfulness as a state of consciousness." These two statements are reworked in dialogue on neuroscientist Antonio Damasio´s studies (2000, 2011), concerning issues about consciousness and body state. It is considered that it is not possible to define a single and stable body state corresponding to each of the states listed as components of playfulness. The clown state emerges as a reference in weaving understandings between playfulness, their component states and the dance. kEYWORDS: Playfullness, Body States, Clown States, Dance.
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No campo da educação, Cipriano Luckesi (1998, 2005) desenvolveu
junto ao Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e Ludicidade - GEPEL,
um entendimento de ludicidade que tem sido referência na construção de
inúmeras práticas pedagógicas no país. Em distinção a outras abordagens,
aponta que a ludicidade abrange especificamente uma dimensão da
experiência humana que é dimensão interior individual, correspondente à
dimensão do “Eu” (LUCKESI, 2005, p. 4), que está relacionada ao campo da
introspecção, da percepção estética, da criação artística. O autor parte do
pressuposto de que a atividade lúdica é de natureza distinta à ludicidade: a
primeira caracteriza um acontecimento externo, enquanto a segunda é de
natureza da “percepção interna da pessoa” (LUCKESI, 2005: 6). O que em
outras palavras quer dizer que a experiência vivenciada por uma pessoa
somente a ela pertence. As sensações que proporciona são internas, no
sentido de que ocorrem no corpo.
Embora os argumentos de Luckesi (2005) estejam embasados
inicialmente por uma perspectiva de experiência fragmentada, ao
possivelmente separar interno e externo, o modo de organização do
pensamento no decorrer da escrita do autor, permite compreender que quando
usa o termo interno, o faz como forma de se referir ao que ocorre no corpo, a
algo que não é a atividade da qual se participa e não é necessariamente visível
ao outro. E esta abordagem é fundamental para o desenvolvimento de novos
argumentos pautados em compreensões de corpo que subsidiam processos
criativos em dança contemporânea. O fato de não ser visível ao outro, outra
pessoa que observa, envolve aspectos próprios dos acontecimentos do corpo e
de seus modos de organização enquanto ser vivo. Frente a essas questões, a
discussão situa-se no contexto da pesquisa acadêmica em dança, abordando
conceitos de corpo advindos de produções recentes da Neurociência e das
Ciências Cognitivas. Parte-se do pressuposto de que o corpo opera de modo
integrado em todos os seus aspectos e que não é possível compreender a
pessoa isolando-a do ambiente, ou fragmentando a experiência em partes ou
dimensões. Deste modo, será explicitada cuidadosamente a compreensão
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sobre ludicidade que se (re) elabora a partir das proposições de Luckesi
(2005).
“O que mais caracteriza a ludicidade é a experiência de plenitude que
ela possibilita a quem a vivencia em seus atos” (LUCKESI, 2005: 2).
Entretanto, há no senso comum o entendimento de que uma característica
básica da atividade lúdica é ser divertida, porém como enfatiza o autor, o
aspecto fundamental da ludicidade é o estado de plenitude em que se vivencia
uma atividade, que poderá ser divertida ou não. Desse ponto de vista, o
divertimento não é mais um pressuposto na definição do que é ou não lúdico, o
que ocasiona transformação também em torno da concepção do que é uma
atividade lúdica. Se a característica fundamental da ludicidade é o estado de
plenitude e o foco de compreensão é o estado interno do organismo, nem toda
atividade socialmente identificada como lúdica será de fato lúdica, ou seja, não
necessariamente propiciará ludicidade a quem a pratica. Evidencia-se então,
que embora consideradas pelo autor de natureza distinta, a ludicidade está
implicada como uma qualidade que reafirma a atividade como lúdica ou não.
Nos enunciados de Cipriano Luckesi (2005) há uma diferenciação sutil e
importante de ser afirmada em relação aos termos atividade e experiência
lúdica. Quando utilizado o termo experiência se ampliam as perspectivas
daquilo que pode proporcionar estado interno de ludicidade, enquanto o termo
atividade se restringe ao que é propriamente reconhecido social e
culturalmente como tal. Desta forma, se reconhece a possibilidade de outras
experiências de vida que não se caracterizam como uma atividade tornarem-se
lúdicas por outra via, a via das sensações e do estado que provocam em quem
as vivencia. Em convergência, Antônio Damásio (2011) afirma que “a
experiência pertence a cada organismo e a nenhum outro” (DAMÁSIO, 2011:
198). A relação que cada um estabelece com um objeto ou atividade com o
qual entra em contato depende das referências que a pessoa tem, ou não,
sobre ele. Para Luckesi (2005) as histórias de vida de cada pessoa constituem
experiências internas, de âmbito privado e, portanto, de mesma natureza da
ludicidade. Por esta via justifica que uma mesma experiência produz sentidos e
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reações diferentes em cada pessoa, fortalecendo o argumento de que uma
mesma atividade não é igualmente lúdica para todos que a vivenciam.
Entende-se pelo termo “vivido” aquilo que ocorre com/no corpopessoa
(RENGEL, 2007), e não por meio do corpo como se este fosse apenas local de
acontecimentos, mas o protagonista destes acontecimentos. Como o ser
humano tende a se envolver com maior intensidade nas experiências que lhe
proporcionam bem-estar e assim, sensações de prazer, esta última é
considerada um aspecto facilitador do estado de ludicidade. Distinguem-se
desta forma, processos corporais específicos como sendo determinantes da
experiência vivida com plenitude: as sensações de prazer e plenitude.
Antônio Damásio (2000) apresenta a compreensão de estado interno
como um resultante de processos químicos e biológicos que ocorrem no
organismo, com o propósito de se manter estável em relação às variações do
meio externo (DAMÁSIO, 2000: 54). Este é um mecanismo básico dos seres
vivos necessário à sobrevivência, e existente em diferentes níveis de
complexidade. Dois aspectos são importantes de serem observados em
relação a essa proposição: primeiro, a mais simples descrição do que
considera estado interno de um organismo, já é apresentada em relação ao
meio externo, emergindo uma questão de fundamental relevância para dar
continuidade à reflexão: alterações do estado interno do organismo são
relacionadas às alterações no meio externo, ou seja, interno e externo estão
implicados de relações; segundo, os diferentes níveis de complexidade do
mecanismo de regulação interna nos seres vivos, vistos em Antônio Damásio
(2011), relacionam-se com outra questão recorrente nos enunciados de
Luckesi (2005): a ludicidade como um estado de consciência. Embora
pontuados de modo distinto, os dois aspectos são tão inseparáveis quanto o
estado interno de um organismo do meio externo com o qual se relaciona.
Sendo assim, serão elucidados de modo a compreender cada um
conjuntamente com suas implicações, denegando uma suposta ordem dos
fatores.
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Quando reconhecemos que o estado interno de um organismo é
resultante de processos do corpo - químicos e biológicos - estamos
reconhecendo um modo de operar no qual, diferentes funções são
conjuntamente acionadas para cumprir um mesmo objetivo. Damásio (2000)
afirma que o mecanismo básico de regulação do estado interno em relação ao
meio externo visa preservar as composições químicas do organismo como
modo de lhe assegurar a vida. No entanto, os modos de operar deste
mecanismo variam de acordo com os níveis de complexidade de cada ser vivo
estando presente desde os seres unicelulares. Quanto mais complexo o ser
vivo, mais complexo será o mecanismo de regulação dos processos que
garantem a vida, envolvendo diferentes estruturas e operações cognitivas. No
caso do ser humano, esta estabilidade do meio interno não somente
corresponde à regulação da vida como está associada a mecanismos neurais
relacionados à existência do cérebro. Entretanto, o importante é perceber que
há de fato aspectos que pertencem ao meio interno e outros que pertencem ao
meio externo ao organismo, porém compreende-se que os dois existem na
relação de um com o outro e não isoladamente. No modo como vem se
construindo o pensamento sobre os mecanismos de sobrevivência de um
organismo, seus níveis de complexidade e as relações que estabelece, o meio
externo é entendido como o ambiente com o qual um ser vivo se relaciona e
não apenas um lugar no qual se insere.
Se o estado interno caracteriza-se por variáveis de estados do corpo,
torna-se incoerente a tarefa de definir um estado corporal isoladamente, com
características estáveis e permanentes. Como se o estado de plenitude, por
exemplo, pudesse ser definido precisamente em suas propriedades e assim,
caracterizar um estado de consciência correspondente. Se o estado interno de
um organismo está sendo compreendido como um resultante das relações
entre ele e o ambiente, não se pode equivaler o objetivo biológico da
estabilidade do organismo em relação ao ambiente, com a estabilidade de um
estado de corpo. Como mencionado outrora, para manter-se estável em
relação ao ambiente, o organismo necessariamente produz alterações que, por
mais sutis que sejam, ocasionam uma alternância de estados.
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Ao se ter conhecimento dessas relações incessantes de troca entre
corpo e ambiente é possível argumentar que há uma compreensão não
fragmentada da experiência humana. É possível também estabelecer uma
relação com a proposta de Luckesi (2005) sobre o estado de plenitude em que
se vive uma experiência, associado às sensações de prazer. No sentido
proposto pelo autor, estar pleno denota o envolvimento integral da pessoa em
uma experiência, ou nas suas palavras é quando “Não há divisão. Estamos
inteiros, plenos” (LUCKESI, 2005: 2). O entendimento é então, o de viver
integralmente uma experiência, o que comumente ouvimos na linguagem
popular pela afirmação “de corpo inteiro”. Assim, a mudança de perspectiva
proposta neste estudo é o entendimento de que a forma de existência do ser
humano é o corpo integrado, é esse corpo inteiro que não pode ser separado.
Dizer que em um dado momento está integralmente ou plenamente presente,
significa acreditar que é possível estar de alguma forma com o corpo dividido
em outra circunstância. Esta noção de corpo dividido norteia nossas ações
cotidianas, artísticas, pedagógicas, entre outras. Todavia, quando a experiência
é vivida de modo aparentemente fragmentado, a integração estará sim
ocorrendo porque ela é o modo de operar do corpo. Por exemplo, quando uma
pessoa se distancia por um instante do momento presente, seja qual for a
experiência que está vivendo, a tendência é interpretarmos que há uma
fragmentação da experiência em consequência da compreensão de que a
mente é algo que atua sobre o corpo e não integrado a ele. Então diríamos na
linguagem coloquial, que a mente nos levou a outro lugar. Entretanto, se
analisado da perspectiva de corpo apresentada neste artigo, o exemplo não
denota uma fragmentação da experiência e do corpo. Mas ao contrário, implica
que esta pessoa redirecionou rapidamente sua atenção e com ela processos
da consciência, dando foco a outra sensação naquele instante, outro
pensamento que a desvia em certo grau da experiência que está ocorrendo no
momento presente. Para Damásio (2011) isto é possível por que “A
consciência tem flutuações. Não funciona abaixo de certo limiar, e funciona do
modo mais eficiente ao longo de uma escala nivelada” (DAMÁSIO, 2011: 210).
Esta escala é por ele denominada de “escala de intensidade da consciência” e
se evidencia com mais clareza na análise que faz entre os momentos em que
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sentimos sonolência e momentos em que estamos muito despertos. O que
denomina de intensidade se caracteriza como um dos critérios de classificação
da consciência. Porém, para compreendermos a classificação que contribuirá
na compreensão de seus fluxos, é necessário antes estudar os tipos, ou níveis,
de consciência dos quais está se falando.
A partir de uma perspectiva, que leva em consideração uma
argumentação evolucionista, os diferentes níveis de complexidade dos
processos da consciência podem ser observados a partir de estruturas
funcionais dos seres vivos, como a existência de atividade mental e de um
sistema nervoso. Percebe-se que as atividades e operações relacionadas à
existência da mente são referenciadas de modo a constituir um mesmo
sistema, o corpo. De acordo com essa perspectiva, a complexidade dos
processos está diretamente relacionada à estrutura e será variável
fundamentalmente de um organismo para o outro, ou de uma espécie para a
outra, e não num mesmo organismo que se tornará mais complexo ao longo de
sua vida. Em condições normais, são outros fatores que se modificam no
decorrer do tempo e não a estrutura do organismo em seu nível de
complexidade. Luckesi (2005) se aproxima da compreensão de mente/corpo
juntos quando esclarece que “consciência não é algo abstrato e intocável, mas
é aquilo que somos, é o próprio Ser” (LUCKESI, 2005: 5). Com este
entendimento, evoca no contexto da neurociência uma questão central nas
pesquisas desenvolvidas por Damásio (2011): a compreensão do Self.
Self
Para o neurocientista, consciência “é um estado mental no qual existe o
conhecimento da própria existência e da existência do mundo circundante”
(DAMÁSIO, 2011: 197). Do ponto de vista de suas definições sobre a
consciência, não se trata da percepção de si mesmo e sim do conhecimento de
si. Argumenta que o ato de conhecer está implicado nos processos da
consciência existentes em organismos complexos, enquanto a percepção
existe desde organismos mais simples em sua estrutura e não envolve a
necessariamente consciência. E o self corresponde ao processo que permite
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ao organismo o conhecimento de si, o conhecimento que situa sua existência.
É a noção que um ser vivo tem de si mesmo enquanto realiza uma tarefa, que
por sua vez, irá gerar um conhecimento que pertence a um conhecedor, que é
o próprio organismo. Dessa forma, lhe são atribuídos dois sentidos: o self como
um eu material estruturado pelo conhecimento de si, e o self conhecedor como
o proprietário do conhecimento gerado na experiência. Todo conhecimento
pertence a alguém, e o self é esse processo que faz com que o ser vivo se
reconheça como proprietário do conhecimento.
Dada a presença do estado de vigília e da mente, ambos necessários para que estejamos conscientes podemos dizer que a característica distintiva da nossa consciência é, liricamente falando, a própria noção de si. Mas para que o poético seja acurado, temos de dizer ‘a própria noção sentida de si’ (Damásio, 2011: 202).
Afirma então, que esse conhecimento de si é o que diferencia nossa
consciência enquanto ser humano de outros seres vivos dotados de processos
da consciência em nível mais elementar. E este mesmo fator permite-nos
também (re)afirmar que não há experiência fragmentada, pois sem o
conhecimento de si não é possível identificar o cruzamento de informações
referentes á situação presente com outras informações adquiridas
anteriormente. Considerar uma experiência como fragmentada, já é uma
elaboração reflexiva a partir do conhecimento de si na realização de uma
tarefa.
A partir desta referência, a presença dos processos do self é um dos
fatores determinantes dos tipos de consciência apontados pelo autor. A
consciência em sua forma mais simples denomina-se consciência central e
fornece ao organismo sentido do self do aqui e agora. É estável ao longo da
vida, não é exclusivamente humana e não depende da memória convencional
ou operacional, do raciocínio ou da linguagem. É o grau elementar da
consciência existente em inúmeras espécies, onde o self mais simples é
orientador do comportamento adaptativo, ou seja, está diretamente relacionado
à regulação da vida.
A consciência em seu tipo mais complexo denomina-se consciência
ampliada ou autobiográfica e fornece ao organismo o sentido complexo do self.
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É o sentido do self “capaz de saber que seu organismo existe e guiar a vida em
função desse conhecimento” (DAMÁSIO, 2011: 228). No entanto, tem vários
níveis de organização e considera-se que evoluiu e continua evoluindo ao
longo da existência, atingindo seus níveis mais elevados somente nos
humanos. Permite-nos reconhecer “uma identidade e uma pessoa, você ou eu
— e situa essa pessoa em um ponto do tempo histórico individual, ricamente
ciente do passado vivido e do futuro antevisto, e profundamente conhecedora
do mundo além desse ponto” (DAMÁSIO, 2000: 40). Portanto, quando falamos
na consciência como uma característica humana, estamos falando na
consciência ampliada ou autobiográfica em seu ápice, pois a consciência
central existe também em outros seres. As duas estão correlacionadas, porém
a consciência central é alicerce para a ampliada. Se ocorrer lesões nas áreas
cerebrais correspondentes à consciência central, por exemplo, a ampliada será
de alguma forma prejudicada, mas o contrário não ocorre (DAMÁSIO, 2000:
41).
Quanto aos critérios, existem dois que o autor elege para classificar a
consciência. A intensidade é um deles, e pode ocorrer em variações de níveis
em que os representantes de seus extremos são o sono e a vigília. Tendo em
vista que o período da vigília se caracteriza de intensa atividade mental (com a
compreensão de que mental é corpo), o período de sonolência será o seu
oposto quando não considerados aspectos particulares da atividade mental
durante o sono, como o fenômeno dos sonhos, que não serão abordados neste
estudo. No entanto, a relação entre intensidade e a flutuação dos níveis de
consciência não é proporcionalmente crescente, podendo em um período de
alta intensidade, voltar-se a consciência central. O outro critério para classificar
a consciência é a abrangência que quando mínima estará em atuação com
maior ênfase a consciência central e quando de grande abrangência, haverá a
articulação do sentimento do aqui agora com outros conteúdos vinculados a
experiências do passado e a um futuro antevisto diante das possibilidades que
o presente evoca. Mas isto só é possível porque há o conhecimento de si, que
embora não protagonista neste processo que rememora acontecimentos
passados, todos os conteúdos se mantém ligados a esta referência, ao centro.
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A consciência de grande abrangência é a que se denomina ampliada ou
autobiográfica “pois ela se manifesta mais acentuadamente quando uma parte
substancial da nossa vida está acontecendo, e tanto o passado vivenciado
como o futuro esperado dominam a ação” (DAMÁSIO, 2011: 211). O autor está
se referindo com clareza a experiência humana que inevitavelmente traz no
presente, traços do passado e expectativas de acontecimentos futuros. De tal
modo, a consciência autobiográfica nos dá uma identidade porque está ligada a
singularidade do ser, à experiência própria de cada um. Nos organismos
complexos como o ser humano o mecanismo básico de regulação da vida
engendra uma coordenação tão grande de operações que da mesma forma
ampliam-se as variações que o organismo produz. Em consequência, durante
uma experiência há alterações de níveis de consciência que se dão no fluxo
entre o self central e o self autobiográfico.
Estados ...
Desta forma, o que Luckesi (2005) denomina de estado de ludicidade
será analisado utlizando como parâmetro os critérios de classificação da
consciência - intensidade e abrangência - propostos por Damásio (2011).
Seguindo esta linha de pensamento, a experiência de ludicidade ocorre quando
há um estado de alta intensidade da consciência, que requer muita atenção e
concentração na situação presente, e abrangência mínima, que proporcionará,
com ênfase, à pessoa “a própria noção sentida de si” (DAMÁSIO, 2011: 202).
Participar de um jogo, por exemplo, pressupõe combinação semelhante e
assim, no senso comum utiliza-se a expressão estar entregue ou estar pleno
para denotar esta disposição e prontidão no momento presente. O estado de
plenitude é o estado ao qual Luckesi (2005) se refere quando diz que “as
próprias atividades lúdicas, por si mesmas, nos conduzem para esse estado de
consciência” (Luckesi, 2005: 2). Estes critérios de intensidade e abrangência
são de tal modo, indicativos da flutuação da consciência ao longo de uma
experiência. Quando a abrangência for máxima a pessoa terá a sensação de
não estar inteiramente presente, devido à associação com muitas outras
informações às quais o presente a remeteu por algum motivo. Importante
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ressaltar que abrangência mínima e máxima não são oposições estáveis, mas
são extremos entre os quais existem incontáveis gradações. A experiência
dificilmente será fragmentada no sentido da separação em partes, como se os
processos do corpo ocorressem isoladamente por ordem de importância ou
hierarquia, tornando-se mais coerente afirmá-la de grande ou pouca
abrangência.
Estado de Palhaço
Cria-se, sobretudo, um campo favorável ao argumento de que o estado
de plenitude descrito até então, muito se aproxima de algumas descrições
encontradas sobre o denominado estado de palhaço. Entre os princípios que
Ricardo Puccetti (2006) descreve como fundamentais a prática da palhaçaria
está o estado de presença. A presença do modo como compreendida na arte
do palhaço, implica sentir e viver a cena, em oposição à interpretação que
estrutura o trabalho do ator. Estes elementos se referem ao universo subjetivo
que segundo Burnier (2009), compõem aspectos da dimensão interior do
treinamento do ator, no qual um dos principais pilares da técnica é a não
representação. Assim sendo, o estado presença do palhaço é como levar ao
extremo as consequências de viver cada ação no tempo em que ela acontece,
buscando “liberar seus impulsos físicos e manter-se num estado de prontidão e
concentração que o conecta interna e externamente, dilatando sua presença
física” (PUCCETTI, 2006: 23). Portanto, a ação do palhaço ganha um papel
central na pesquisa ao reconhecê-la como uma experiência vinculada ao
estado de plenitude, e assim, utilizada como referência na elucidação dos
aspectos teóricos apresentados. Ao dedicar-se a compreensão do estado de
palhaço, Matos (2009) descreve que “entre outras qualidades, o envolvimento,
a prontidão e a presença: o estar no momento, no aqui e agora” (MATOS,
2009: 40) operam como princípios para acessar o estado.
Recorrendo à Neurociência, pode-se dizer que o “sentimento do que
acontece” é diferente do “sentimento de que meu corpo existe e está presente”
(DAMÁSIO, 2011: 230), que por sua vez tem raízes mais profundas. O
sentimento de estar presente é um sentimento primordial, relacionado ao
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conhecimento de si, e independente dos objetos de interação. É o sentimento
fundamental ao processo do self material e, portanto, a base para que outros
sentimentos relacionados à interação com o mundo aconteçam. Do ponto de
vista evolutivo, primeiro há o sentimento de minha existência para então ter o
sentimento de algo relacionado a ela. Todavia, os dois estão implicados do ato
de conhecer, que gera conteúdos formadores de imagens e são orientados
pela função do self. As imagens relativas ao conteúdo do conhecimento não
são como fotografias, ou como um quadro que depois de feito não se altera
mais, são fluxos de informação que sofrem modificações a todo instante
(DAMÁSIO, 2011: 197). Os sentidos, por exemplo, produzem imagens
sensoriais sobre tudo que entramos em contato como um som, uma superfície,
uma cena assistida, e assim integram junto com as imagens referentes ao
nosso estado corporal, os conteúdos da consciência.
No fluxo da consciência ampliada, há uma corrente principal e uma
corrente secundária. O que define qual delas estará à frente na orientação da
ação é a atenção direcionada intencionalmente, ou pela emergência de um
padrão coerente na corrente secundária, que assim, ganhará o foco de atenção
e passará à corrente principal. Deste modo, quando temos a impressão de que
nos dispersamos da atividade que está sendo realizada é porque neste
momento alguma sensação ou lembrança referente à outra circunstância foi
acionada pela experiência presente. Se o pensamento é também corpo, é
também uma operação cognitiva tanto quanto mover os braços, o pensamento
que se acredita nos distanciar do presente só pode ter sido gerado pelo
mesmo. Pela ação do corpo no tempo presente. Antônio Damásio (2011)
afirma que a consciência é um fluxo de informações no qual ora uma
informação está à frente e imediatamente, outra informação se torna o foco e
passará a estar na frente. Perceber este acontecimento é perceber o fluxo da
consciência, sua flutuação de uma a outra informação. E selecionar a
informação a qual será dedicado o foco de atenção é selecionar um conjunto
de qualidades, imagens, sensações que serão desenvolvidas no processo
criativo em curso.
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No treinamento do estado de presença, por exemplo, as informações
que se intercruzam não deixarão de existir ao longo do tempo de treino. Mas
desenvolve-se a habilidade do direcionamento do foco de atenção no fluxo da
consciência, a fim de conquistar uma capacidade de seleção mais eficiente na
construção do corpo palhaço, dotado de toda essa presença. Na prática, ouve-
se “não deixe o pensamento interferir sobre o movimento” enquanto o que se
quer indicar ao principiante durante a pesquisa corporal é que evite elaborar
reflexões neste momento sobre os pensamentos que lhe ocorrem.
Pensamentos compõem o fluxo da consciência e, portanto, são inevitáveis.
Porém, refletir sobre eles é uma operação que demanda maior atenção e
consequentemente, redireciona o foco da ação. Só percebemos e tomamos
conhecimento do pensamento que ocorre em meio a uma ação, porque
existem os processos da consciência. E então uma pessoa não deixa de estar
consciente da ação criativa para pensar sobre outra coisa, como operações
separadas, mas o foco da consciência na ação é deslocado para outro ponto.
As experiências vividas possibilitam o argumento de que parte do
treinamento do palhaço se concentra na dinamização de estados de ludicidade,
utilizando-se de jogos e brincadeiras, da ativação do imaginário como uma das
formas de conexão com o prazer de ser. São atividades que exigem
concentração e prontidão no momento presente, evocam sensações de prazer,
além de provocar certo grau de exaustão que, além de proporcionar maior
disponibilidade corporal, facilita o conhecimento do estado de presença. Ainda
segundo Puccetti (1998) o estado de presença é construído na busca pela
plenitude e parece se aproximar ao estado de ludicidade enunciado por Luckesi
(2005), pois busca conjuntamente a redescoberta do prazer de ser e fazer em
todas as ações. A utilização de jogos contribui também para rememorar a
capacidade da criança de ser e se transformar em qualquer coisa.
Dança Contemporânea
O estado de palhaço “é um estado de afetividade, de vulnerabilidade, é
levar ao extremo a conexão consigo mesmo, é o saber se ouvir” (PUCCETTI,
2006: 24). E por este motivo acredita-se que o ofício do palhaço pode ser
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aprendido por meio dos processos de experimentação corporal que
possibilitam a descoberta do estado. Esta perspectiva de atuação e
aprendizado da Arte do Palhaço, curiosamente traz algumas aproximações
com processos de criação em dança contemporânea. Em decorrência do
movimento de início da dança contemporânea na década de 60, as
modificações da dança vêm acompanhadas de transformações no pensamento
acerca de seu elemento primordial, o movimento. Inicia-se uma busca por
novas qualidades e formas de organização do movimento no corpo dançarino,
e torna-se cada vez mais latente o questionamento do que é movimento de
dança. De modo a contribuir com a discussão, Domenici (2008) afirma que
no pensamento contemporâneo essa noção deve incluir também micro-movimentos articulares ou a simples modificação dos estados tônicos do corpo: modificações sutis provocadas pela modulação da tensão muscular que modificam a qualidade do movimento” (DOMENICI, 2008: 1).
A professora e pesquisadora fortalece o argumento de que o trabalho de
corpo que enfoca a percepção de seus estados e suas modificações está entre
as características que constituem a dança contemporânea hoje. Neste
contexto, a valorização do corpo em cena se dá de modo distinto quando da
aplicação de técnicas codificadas historicamente como o ballet clássico e as
técnicas de dança moderna. Em consequência, o treinamento para o dançarino
contemporâneo é muitas vezes determinado e codificado pelo próprio processo
de criação em acordo com as necessidades emergentes das questões de
pesquisa.
A intensidade das experimentações corporais nos processos de
iniciação à arte do palhaço origina inquietudes ao perceber tamanha
proximidade com a pesquisa e criação em dança contemporânea. A
valorização do processo artístico, a forma de relação com o movimento e a
estimulação de estados do corpo como via de investigação de suas qualidades.
Até compreender que, nos dois casos, o corpo é de fato o lugar de pesquisa e
experimentação, porém regidos por lógicas completamente distintas. Porém, o
quê no percorrer desses caminhos os torna tão diferentes em seus resultados?
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Nas experiências de dança o estado de presença, ou estado de
ludicidade, podem ou não acontecer, mas raramente é uma condição para o
seu acontecimento. Mesmo quando o estado de presença está no cerne da
proposta, das questões colocadas para a cena ou para o processo de criação,
a dança sempre acontecerá, com ou sem estados específicos. Sem a intenção
de diminuir, no entanto, sua importância para a dança ou desconsiderar que as
qualidades da mesma serão modificadas. Mas este não é o caso do palhaço.
Ele só acontece no estado de ludicidade, disponível e vulnerável em seu ser,
que transborda em um corpo cômico, sem limites, até provocar o riso da
platéia. Sem o riso o palhaço não acontece. Esse estado é, portanto, uma
condição para o sucesso na tarefa de fazer rir.
Referências
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DAMÁSIO, Antônio. E o cérebro criou o Homem. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
DAMÁSIO, Antônio. O mistério da consciência – do corpo e das emoções ao conhecimento de si. Tradução Laura de Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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LUCKESI, Cipriano C. Ludicidade e atividades lúdicas – uma abordagem a partir da experiência interna. [artigo científico]. 2005. IN: www.luckesi.com.br/artigoseducacaoludicidade.htm. Acesso em 22 Jul. 2011.
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PUCCETTI, Ricardo. No caminho do palhaço. Anjos do Picadeiro Revista 5. Rio de Janeiro: Teatro de Anônimo, vol.5, 2006. p. 20-25.
PUCCETTI, Ricardo. O Riso em Três Tempos. Revista do Lume. Campinas: vol.1, nº1, 1998. p. 67-74.
REIS, Demian Moreira. Caçadores de risos: o mundo maravilhoso da palhaçaria. Salvador: EDUFBA, 2010.
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RENGEL, Lenira Peral. Corponectividade Comunicação por Procedimento Metafórico nas Mídias e na Educação. Tese de Doutorado, Signo e Siginficação da Mídias, Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007.
SILVA, Bárbara Conceição Santos da. A Tessitura de sentidos na composição improvisada em dança: como o dançarino cria propósitos em cena. Dissertação de Mestrado, Artes, Dança. Universidade Federal da Bahia, 2011.
Denise Torraca Mestranda em Dança pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Dança Universidade Federal da Bahia – UFBA (2012) – com orientação da Professora Doutora Lenira Peral Rengel. Possui Licenciatura em Pedagogia pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC (2005) e formação Técnica em Dança pela Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia – FUNCEB (2008). Membro do Grupo de Pesquisa Estudos Corponectivos em Dança, coordenado pela Profª. Dra. Lenira Peral Rengel na Escola de Dança (UFBA). E-mail: [email protected]