Louco infrator história
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CINCIA, TRABALHO E LEIS: A HISTRIA DO LOUCO INFRATOR NA
CONSTRUO DA SOCIEDADE MODERNA1
Mrcio Vincius de B Cirqueira2
A problemtica da forma coletiva de trato comum ao louco infrator na
sociedade goiana, exige anlise histrica do contexto moderno em que este trato ocorre
no sentido da incluso social das pessoas com este perfil.
Na anlise que se segue abordamos, mais precisamente, o trabalho em
sade e o modus operandi da justia como partcipes determinantes desta problemtica,
com os quais a populao aprendeu at bem pouco tempo (at fins da dcada de 1980 e
incio da dcada de 90) a segregao, os maus tratos e a excluso social em imundos e
desumanos depsitos de gente (denominados hospcios) como destino adequado a
essas pessoas, uma vez que sobretudo a cincia, na pessoa do mdico, justificava e
esclarecia a situao.
Dessa forma, ao se buscar a compreenso do problema apresentado,
entendemos que necessrio a anlise da histria de constituio do poder mdico e
cientfico em sua tarefa de justificao, esclarecimento3 e ordenamento social no
Estado de Gois.
Contrariamente a este histrico de segregao e maus tratos, o Programa
de Ateno Integral ao Louco Infrator (PAILI), objeto desta pesquisa, surge ao lado dos
Centros de Ateno Psicossocial (CAPS) servios pblicos, estatais , se colocando
como veculo de objetivao da incluso social do louco infrator no contexto da reforma
psiquitrica brasileira. Entende-se, portanto, que tambm com este Programa, reedita-se
o desafio cientfico de ordenamento, formao social e cultural da sociedade com
pretenses esclarecedoras, inclusivas, pela via do investimento de trabalho humano na
rea da sade (mais especificamente: investigao e tratamento) e, em funo deste
trabalho, influenciar de modo determinante a rea do direito e da justia (enquanto
1 Texto manuscrito como referncia para exame de qualificao do Programa de Mestrado em Educaoda Faculdade de Educao da Universidade Federal de Gois.2 Centro de Ateno Psicossocial Beija-Flor (CAPS Beija-Flor) Professor de Educao Fsica. AlamedaPresidente Baldomir, Chcara 7- Setor Jardim Presidente CEP: 74353-030 - Goinia GO. Tel: (62)3290-7665 3524-16463
Esclarecimento que de fato se constituiu como mistificao da figura do louco, ainda mais do loucoinfrator.
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poder judicirio estatal). A sade investiga e trata a doena enquanto a justia investiga
o crime e julga as pessoas as encaminhando para tratamento ou para a cadeia, todo este
trabalho tendo por base a investigao cientfica da rea da sade e a legislao vigente.
Por isso, o respaldo cientfico de que gozam as intervenes programadasdo Estado quanto ao louco infrator requer detida anlise crtica. Neste sentido, herdeira
do iluminismo, a relao entre cincia e justia ocorre no cotidiano da sociedade e do
trabalho em sade e direito. A informao sobre essa relao e os conceitos que dela
fazem parte, porm so superficiais para a populao de um modo geral.
O domnio pblico de conceitos e princpios cientficos, como poder ser
visto adiante, se tornou fato fundamental na formao de opinies, atitudes e
procedimentos necessrios hexis4 urbana da modernidade. Ento, a formao dohomem moderno passa pelo crivo de sua racionalidade sistematizada: a cincia, para
que assim haja o exerccio cotidiano (pblico) de atitudes, opinies e hbitos das
pessoas de modo a garantir a produo e reproduo da modernidade capitalista.
A hexis, ento formada, justamente por ser um fenmeno humano,
civilizatrio, ocorre no meio scio-cultural organizado e ordenado pelo Estado, fato que
faz com que outra questo se coloque reiteradamente: a relao entre o saber e o
exerccio do poder. Aqui o Estado se apresenta como instncia complexificadora naorganizao e ordenamento dos hbitos, atitudes, procedimentos e opinies entre
pessoas, grupos e instituies, sejam estes produtivos ou no.
No que se refere ao louco infrator, discurso e ao estatal com a clara
intencionalidade de intervir na hexis relativa a esta figura, pode ocorrer como estratgia
discursiva em prol da tecnologia de governamentalidade liberal historicamente
filantrpica e humanitria5. Esta estratgia, como alternativa terico-prtica de
enfrentamento da problemtica moderna acerca do louco infrator, se objetiva pela via datecnologia contempornea voltada para a reconstruo da histria da civilizao e suas
4 [Na Grcia antiga] Quem, na polis, tinha o costume de tratar as coisas pblicas, adquiria as referidas"virtudes", sendo nelas treinado desde o final da infncia. Agir segundo os padres definidos pela cidade,nas assemblias guerreiras ou pacficas, ou nos tribunais, tornava-se algo "natural", feito sem maioresforo da mente ou da vontade, algo automtico. Esta forma coletiva de agir, adquirida e operada semreflexes se definia como hexis, o hbito, o costume, donde surge a palavra tica. (ROMANO, 2002, p.55; grifos no original)5 Haja vista os nobres e admirveis princpios humanitrios de Pinel (1745-1826), o pai da psiquiatria, bem como a filantropia e o humanitarismo como prticas sociais inspiradas no cdigo moral doliberalismo (COSTA, 2010, p. 65)
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instituies (MENDES, 2009, p. 10), dentre as quais inclui-se o hospital psiquitrico, o
manicmio judicirio e os programas de atendimento a este sujeito, como o PAILI.
Uma das objetivaes da constante (re)construo histrica da civilizao
o estabelecimento de modos de produo. Ento, neste sentido, no se pode perder devista que a criao, manuteno ou mesmo a negao/superao de instituies,
prticas, tecnologias, enfim, de quaisquer recursos (objetivos ou subjetivos) utilizados
para produo/reproduo da realidade humana, sempre formaram modos de produo
determinados, at ento bastante marcados pela excluso social como caracterstica
formativa de suas civilizaes.
No que se refere s relaes produtivas fortemente influenciadas pelo
Estado como instncia organizadora e ordenadora da hexis (marca civilizadora), Cassine Botiglieri (2009, p. 113) resgatam historicamente o fato de que no modo de produo
comunista primitivo, organizado sem classes sociais, a formao para o trabalho e
ideolgica6 dos sujeitos dava-se de modo espontanesta, estando esta formao
orientada/ordenada pelo acompanhamento dos filhos aos seus pais no trabalho e na vida
em comunidade, neste contexto produzindo e reproduzindo as condies de produo da
vida.
O modelo da formao, originalmente atrelado a uma concepo de sociedadetotalizada nos moldes do antigo trabalho artesanal, tinha seu destino traado
pela prpria prtica produtiva dos homens no movimento histrico daindustrializao. A experincia formativa pelo trabalho social acompanha odesenvolvimento do processo de trabalho e tudo o que isto representa emtermos de transformaes culturais, cientficas, tecnolgicas etc. (MAAR, 1995,
p.17)
Porm, foi o desenvolvimento das foras produtivas e a conseqente
complexificao das relaes humanas que possibilitou a fundao de modos de
produo diferenciados (escravista, feudal e capitalista) e, por isso, tambm fundou aorganizao de sociedades em que muitos homens trabalham e alguns outros se
apropriam dos resultados do trabalho daqueles. (Cassin e Botiglieri, 2009).
Esta nova organizao da base econmica da sociedade determina,gradativamente, o surgimento da necessidade dos proprietrios dos meios de
produo em criarem mecanismos que legitimem sua propriedade, bem comogarantam sua apropriao sobre o trabalho e o produto daqueles no
proprietrios, tese que segundo Marx demonstra o aparecimento do Estado,instrumento da classe dominante para se manter enquanto tal [...] (CASSIN eBOTIGLIERI, 2009, p. 113)
6 Segundo os autores, O conceito de ideologia aqui [neste trecho somente] est sendo usado comoconcepo de mundo.
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Neste sentido, os recursos (mecanismos) objetivos e subjetivos que
legitimam a propriedade dos meios de produo e do trabalho alheio se tornam, ao
mesmo tempo deste processo de legitimao, dispositivos que orientam o meio scio-
cultural. , ento, de fundamental importncia que se forme uma cultura de
concordncia com a situao de existncia de uma minoria que no trabalha, dominando
uma maioria que trabalha, como condio de reproduo da vida humana em sociedade.
Para isto, nas sociedades ps-primitivas, ento, a produo de
conhecimentos e mitologias se tornou papel poltico importante pelo fato de estes
(conhecimentos e mitologias) serem forma de justificar e legitimar o exerccio do poder,
sua produo material e distribuio.
A diviso do trabalho s vai efetivamente se tornar diviso a partir do momentoem que surge uma diviso entre o trabalho material e o espiritual. A partir da aconscincia pode efetivamente imaginar ser algo distinto da conscincia da
prxis existente, que ela representa de fato algo sem representar algo real; desdeento a conscincia est em condies de emancipar-se do mundo e entregar-se criao da teoria, da teologia, da filosofia, da moral, etc., puras. (MARX &ENGELS, 2010, pp. 57-8)
Lanando mo daqueles recursos subjetivos (conhecimentos e mitologias),
firmou-se uma cultura acerca do papel do Estado vinculado religio, o qual se forma e
se reafirma no mbito do convvio social com aquela cultura da propriedade privada 7.
Numa anlise mais detida v-se, ento, que para se garantir o modo de produo da
vida, a cultura acerca do papel do Estado tem se harmonizado com a cultura de
propriedade privada que se tem (escravista, medieval ou capitalista).
No uso de recursos objetivos e subjetivos para excluso, o fato de o Estado
garantir em nvel de seu discurso e ao a propriedade privada como fundamento para a
organizao social, econmica e poltica humana, cria a realidade que se afirma
cotidiana e historicamente na prtica. A realidade ento construda passa a ser prova da
razo de si mesma.
O fato que determinados indivduos, atuando produtivamente de determinadomodo, estabelecem determinadas relaes polticas e sociais... A conscinciados homens no pode ser nada alm de ser consciente, e o ser dos homens seu
processo de vida efetivo [determinado] (MARX e ENGELS apud MAAR,2002, p. 90)
7 No podemos deixar aqui de nos reportar aos ensaios de Max Weber em tica Protestante e o Espritodo Capitalismo. Capitalismo houve na China, na ndia, na Babilnia, na antiguidade clssica e na IdadeMdia, mas, em todos esses casos, faltava, como veremos este ethos particular [do capitalismo moderno].
[...] A honestidade til porque assegura o crdito; do mesmo modo a pontualidade, o trabalho rduo, aparcimnia, e esta a razo pela qual so virtudes [para o protestantismo, como apresentado porBenjamin Franklin] (WEBER, 2005, p. 27; grifos no original)
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Sabendo que o acesso ao trabalho da rea do direito, portanto o acesso s
cortes, assim como o acesso ao resultado de todo e qualquer trabalho na sociedade
capitalista estratificado, e que a capacidade do Estado brasileiro de criar condies
favorveis realizao de direitos limitada por ter papel importante na estratificao
social, vemos claramente um sistema que produz direitos mas, ao mesmo tempo, uma
cultura de excluso.
Portanto, a cultura de excluso historicamente tem ratificado o modo de
produzir9 e, com isso, o modo de ser da realidade. Incluir, seja atravs de recurso a
cortes (justia) ou atravs de polticas pblicas, passa a ser a anti-tese (tese contrria) do
porque produzir, ou seja, um desafio do modo de produzir a vida, portanto um desafio
do trabalho humano. Mas, como incluir, a priori, produzindo excluso?Ora, com a (falsa) cultura de progresso da modernidade capitalista, que
tudo justifica, no qual a cincia, o Estado e a iniciativa privada esto a todo tempo
corrigindo o modo de produo, tornando-o mais justo ao definir os modos dessa
incluso quem dever ser includo, como e porqu.
Contextualizando esta cultura de progresso histria da infrao legal
do louco no Brasil, destacamos dois mecanismos que ao final do sculo XIX e primeiras
dcadas do sculo XX puderam promover os modos de incluso e excluso do loucoinfrator no Brasil. O primeiro de natureza mais subjetiva (cientfico) foi o uso de trs
conceitos-diagnstico chave para a poca: criminalidade nata, monomania e
degenerao10 (CARRARA, 2010) tendo em vista forte influncia da psiquiatria
francesa (COSTA, 2010) e o advento da repblica sob fogo cerrado de positivistas,
evolucionistas e socialistas de vrios matizes (CARRARA, 2010, p. 22); e o
segundo, de natureza objetiva (da rea do Direito), foi a inaugurao/funcionamento dos
manicmios judicirios a partir da dcada de 1920 no Brasil, estimulados pelo decreto1.132 de 22/12/1903, o qual estabeleceu que cada Estado deveria reunir recursos para
construo de manicmios judicirios (Idem, p. 17).
9 O contrrio tambm verdadeiro: o modo de produzir tem ratificado a cultura de excluso.10 Segundo Harris (1993), a publicao de Auguste Morel Trait des Dgnrescences (1857) foi umacriao penetrante marcada por suas [de Morel] convices religiosas, preocupaes metafsicas, etendncias filantrpicas (Idem, p. 59), o que foi importante para o estabelecimento da degeneraoenquanto teoria a teoria da degenerao, a qual gozou de imensa popularidade, uma vez que
cientificamente explicava a causa de tendncias anti-sociais e criminosas incurveis. Da ainstabilidade poltica, a luta de classes e a injustia social foram traduzidas com toda a segurana numaterminologia medicalizada (Ibidem, p. 83).
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Vislumbrar toda uma organizao estatal, social e cientfica em funo de
conceitos e estruturas modernas era o ideal. Tavolaro (2002) destaca a idealizao do
psiquiatra paulista Franciso Franco da Rocha quanto inaugurao de manicmios
judicirios no Brasil desde os primeiros anos da repblica, divulgada na imprensa da
poca. [...] j em 1895 ele [F. da Rocha] assinara diversos artigos para os jornais O
Estado de S. Paulo e Correio Paulistano (p. 27), criticando a inexistncia de uma
instituio para doentes mentais criminosos. Nesses artigos ele criticava o sistema
judicirio e os governantes da poca. Na prtica, segundo Franco da Rocha, nada era
resolvido. Somente uma grande reforma poderia solucionar a intrnseca questo (Idem)
V-se com isso que o mito da periculosidade e, por isso, da excluso do
louco foi produzido por sculos, com muito trabalho.Hoje o desafio , em nvel histrico e socialmente amplo, manter o sentido
do trabalho alienante e a excluso social segmentada (principalmente) em classes, mas
tambm em caracterizaes estticas e morais feio/bonito, normal/anormal (ou
doente), bom/mau. Porm, na hexis da relao com os tipos excludos dos segmentos
sociais dominantes busca-se manter traos indelveis de incluso. O trabalho em sade
e em direito so determinantes na composio deste quadro.
Frade (2008) e Mdici (1992) nos auxiliam na contextualizao do referidoquadro. O primeiro, na verdade uma autora, Laura Frade, nos auxilia ao entender que a
construo da criminalidade est fundada sobre questes econmicas, culturais,
polticas e filosficas e que a definio de transgressor fruto da aplicao automtica
e impensada de valores internalizados e por vezes invisveis a ns mesmos. Esta autora
defende que, ao mesmo tempo, o exerccio do poder instalado no prprio corpo, nas
falas (como bandido bom bandido morto), nos espaos institucionais, Est presente
nas artimanhas e redes de influncia. Mais grave: na construo do conceito legal decriminalidade, do delito, do que o Estado e a sociedade definem como anormal,
construindo a figura do indivduo perigoso [...] (Idem, p.92).
O segundo autor nos auxilia ao entender o prevenir e o curar como lgicas
distintas de abordagem questo da incluso na rea da sade. Mdici (1992) percebe,
ento, a preveno estando prioritariamente fora da responsabilidade de mercado, por
esta prever procedimentos relacionados ao autocuidado (haja vista a gerao de
conhecimento e a difuso cientfica), procedimentos que quando envolvem trabalho
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alheio nos campos da higiene (sanitarismo) e da imunizao (vacinao) coletivas, os
localiza como responsabilidade do Estado; e, por outro lado, independentemente das
formas coletivas da ateno sade acima descritas funda-se em paralelo uma prtica
mdica voltada para aqueles que podem pagar (Idem, p. 54), ou seja, estabelece-se a
cura enquanto trabalho prioritariamente mdico, e caro (como as cirurgias), o que na
abordagem efetiva questo da incluso na rea da sade agrava a distncia entre os
que podem pagar e aqueles que no o podem. Poucas so as pessoas que se dispem a
pagar por preveno em sade. (Ibidem, p. 67)
Agora retornemos complexidade do adoecimento mental, de difcil
possibilidade de preveno e cura. Como faz-las?
Levando-se em conta que a cura de doenas que envolvem quadrospsicticos no seja vislumbrada a curto ou mdio prazo, poder-se-ia pensar que a
preveno aos males da vida moderna (estresse cotidiano, violncia), potenciais
adoecedores do psiquismo, passaria pela melhora da qualidade de vida da populao o
que j havia sido pensado na transio do sculo XIX para o sculo XX. Quando
[Auguste] Morel falou sobre os efeitos ou as doenas da civilizao na origem do
distrbio mental, estava apenas reiterando uma opinio geral. (HARRIS, 1993, p. 65).
Harris (1993), por exemplo, destaca elementos da modernizao da vidaurbana (alcoolismo, a criao de uma classe operria, masculinidade/feminilidade e
crimes passionais) que acabaram vistos como novas causas de infraes legais na
Frana de fins do sculo XIX. Carrara (2010, p. 20) por sua vez destaca profundas
alteraes sociais que foram responsveis pelo aumento da criminalidade nas grandes
cidades da belle poquebrasileira (Rio de Janeiro e So Paulo):
[...] aumento populacional intenso, liberao no planejada da mo-de-obraescrava, incorporao de grandes contingentes de imigrantes nacionais e
estrangeiros, industrializao, formao de um mercado de trabalho competitivoem moldes capitalistas, modernizao da estrutura urbana e mudanassignificativas no estilo de vida.
A preveno em sade mental exigiria, ento, negao/superao dos
dissabores da vida moderna. Como campanha de promoo da sade, isso poderia
envolver o amplo questionamento da organizao poltica, social e econmica
capitalista, para se garantir reduo de jornadas de trabalho abusivas, melhoras
significativas nas condies de trabalho, ampliao do acesso ao lazer, a bons servios
de sade pblica e outros direitos sociais. Porm, a cultura de progresso da modernidade
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capitalista no esclarecia as causas das mazelas sociais modernas como tendo
determinantes da prpria ordem social pretendida11. Os motivos do bom e do ruim do
mundo moderno deveria estar localizado no indivduo, por vezes (e preferencialmente)
em seu organismo, sua raa, seu sexo, seus hbitos. Esta era a vantagem do mtodo
biomdico: no levar em conta o papel dos fatores sociais ou subjetividade individual na
definio de doenas ou tratamento.
Ento, em fins do sculo XIX hospitais psiquitricos e manicmios
judicirios se tornam facilmente justificveis12.
Em sua proposta inicial, o Manicmio Judicirio [Franco da Rocha, em SoPaulo] trazia alguns padres que se tornaram comuns na virada do sculo. SoPaulo recebia, nesse perodo, o impacto do incio da industrializao. A cidade
antiga dos bondes e das carroas perdia seu charme. Com 30 mil habitantes emmeados do sculo XIX, saltou para mais de 350 mil no incio do sculo XX onze vezes mais em cerca de cinqenta anos. O fluxo desordenado das ruasabalou o cenrio buclico paulistano e gerou um exrcito de excludos. Loucos,desempregados, ex-escravos, prostitutas, silfdicos, jogadores e bbadosdividiam as ruas e compunham uma multido que representava, para as elites, orisco de contgio e epidemias, como febre amarela, tifo e varola, e derevolues sociopolticas, como as insurreies anarquistas e a greve geral de1917. (TAVOLARO, 2002, p. 25)
No aspecto do tratamento dispensado ao louco infrator, quanto ao e
discurso do Estado relativos infrao legal e ao adoecimento mental, pretendemosdestacar, ento, a complexidade da ao programada do Estado e seu discurso oficial.
Estado que historicamente funciona como rbitro favorvel classe social que o
domina e que, em sua constituio moderna, historicamente diz distanciar-se do mito e
da religiosidade buscando ter, ao mesmo tempo, a cincia como sua base espiritual a
cincia como esprito da modernidade.
Interessante notar que a histria das relaes produtivas entre cincia e
justia se iniciam com a modernidade, que antes, neste aspecto, a justia se relacionava
com a Igreja, uma vez que a cincia, in ovo, no estava colocada nas relaes produtivas
como fora poltica capaz de influenciar a justia, um universo to intimamente
relacionado moral.
No entanto, o perodo compreendido entre o final do sculo XVIII e incio
do sculo XIX foi uma poca de
11 Opinio que ainda predomina no legislativo federal brasileiro. (Cf. Frade, 2008)12 Hoje, parte-se para o que Lima (2010, p. 113) chama de estrutura de tratamento, a qual tem como
novo plano a inveno de novos dispositivos de tecnologias de cuidado, substituindo a clnica fechada porinstrumentos abertos, diversificados de natureza comunitria (Idem) como os hospitais-dia, Centros deAteno Psicossocial, Servios Residenciais Teraputicos, e o prprio PAILI.
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grandes escndalos para a justia tradicional, poca dos inmeros projetos dereformas; nova teoria da lei e do crime, nova justificao moral ou poltica dodireito de punir; abolio das antigas ordenanas, supresso dos costumes;
projeto ou redao de cdigos modernos. FOUCAULT (1987, p. 11)
A medicina, a este mesmo tempo, se qualificava como fora produtiva
moderna de grande poder poltico, utilizando o corpo (visto como organismo) como
objeto da estratgia de sua racionalidade, como sede de sua competncia investigativa e
de ao teraputica, superando o paradigma medieval de centralidade na alma e no
proceder filantrpico e religioso. Sobre a radicalidade desta mudana na relao
filantrpica da sociedade com o doente para uma relao produtiva burguesa, Mdici
(1992, p. 65) contribui:
Comecemos pela instituio basilar destinada cura na sociedade moderna: ohospital. Esta instituio at meados do sculo XVIII, era um mero depositriode doentes pobres cujas perspectivas de cura no mais existiam. Os doentesrecebiam apenas roupa e comida, mas nunca visitas mdicas acompanhadas deobservao. O hospital era no uma instituio de cura13, mas um corredor entrea vida e a morte e o pessoal que trabalhava nos hospitais era geralmentecomposto por missionrios e religiosos, cujo trabalho principal era prepararespiritualmente o doente para a vida eterna.
No entanto, esta mudana trouxe, como objetivado pela prpria cincia (no
caso, pela pessoa dos mdicos), a necessidade de formao da populao no sentido do
entendimento do discurso cientfico e da ordem poltico-social moderna (burguesa) paravalidao deste mesmo discurso, uma vez que se entendia no ser possvel o
desenvolvimento desta cincia sem mudana no modo de conceber a sociedade e o
trabalho nela a ser desenvolvido (no caso, o trabalho mdico de produo de
conhecimento e interveno na realidade). Para usufruto do saber-poder mdico sobre a
sociedade era necessrio avanar historicamente em termos de ordem poltico-social e
vice-versa.
No sculo XVIII essa tendncia vai se popularizando, primeiramente por meioda literatura, naquilo que viria a ser chamado de narrativas humanitrias.Thomas Laqueur (1992, p. 241) afirma que o corpo individual, vivo ou morto,adquiriu um poder prprio, ao contrrio do perodo anterior em que areferncia era o Corpo Universal de Deus que era representado pelo sofredorque estimulava as aes humanitrias. Nesse sculo, segundo esse autor, adescrio pormenorizada do corpo (possibilitada pelos avanos das cincias
biolgicas) se transforma num locus comum, capaz de suscitar a compreenso ea sensibilidade o corpo era representativo da dor. As narrativas mdicas, aindaque romanceadas, predominam, mas j anunciam o movimento cientfico queLaqueur (1992, p. 254) vai chamar de soberania epistemolgica sobre as
13 As palavras hospital e hospcio tm origem semntica no sentido de hospedar, que era o objetivodestas casas (hospitais e hospcios) no perodo medieval.
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mentes e corpos alheios, para a qual a literatura ser um instrumento poderosode difuso. Vai se afirmando, gradativamente, a crena de que as cincias
biolgicas e seus profissionais podem saber mais sobre as aes humanas e seusfundamentos do que as prprias pessoas em questo, as quais tm seucomportamento descrito pormenorizadamente; os recessos ntimos do corpohumano vo sendo revelados, caracterizando, em grande medida, a arte daModernidade. (SILVA, 1999, p. 17-18)
Aquela crena de empoderamento do saber das cincias biolgicas e seus
profissionais de que fala Silva (1999) na citao acima, pde ser transformadora da
realidade poltica da transio secular referida (XVII/XVIII) porque trouxe a idia de
que estas cincias e estes profissionais poderiam saber mais; no s saber mais que
as prprias pessoas em questo, mas saber mais que a Igreja e seus consortes,
respectivamente, a instituio e casta esclarecida dominantes do modo de produo
medieval que, tambm por isso, vinha sendo superado pelo nascente capitalismo.
O aprender a cobrir, evitar, ferver, lavar, etc., mais determinantes do
proceder mdico com os trabalhos de Pasteur (1822-1895) em pesquisa e Nightingale
(1820-1910) em procedimentos de enfermagem14, trs, ento, o discurso cientfico
centrado na higiene,
[...] tida por muitos mdicos [do sculo XIX] como o principal ramo da cinciamdica, na medida em que esta ramificao seria propriamente aquela da qual
se originaria um programa suficientemente eficaz para equacionar os problemasdo mundo social, de suas instituies e de seus sujeitos (GONDRA, 2004, p.154)
Como a socializao do conhecimento e das aes acerca dos
procedimentos em sade resulta e resultante, tambm, da assumncia deste mesmo
discurso por parte do Estado, a reboque, vieram as campanhas de vacinao e
preveno, as mudanas arquitetnicas e urbansticas das cidades (que necessitavam de
escolas, construes higienicamente planejadas, ruas largas para circulao do
ar/oxignio), o servio de limpeza urbana, o desenvolvimento da indstria farmacuticaetc.
No mundo contemporneo, herdeiro dos princpios higinicos modernos, a
assumncia por parte do Estado das habilidades e competncias cientficas para soluo
14 Ambos por defenderem procedimentos higinicos no hospital que foram responsveis pela reduo damortalidade por febre puerperal, por exemplo, que chegou a ser epidmica em 1746 (Wenzel apudKalil eCosta, 1994, p. 01). Para se ter uma idia do procedimento mdico comum antes de Pasteur e Nightingale,[...] os ferimentos eram lavados diariamente com uma esponja que servia a todos os pacientes. Todosesses ferimentos tornavam-se infectados. A mortalidade aps amputao era em torno de 60%. S as alas
ocupadas pelas enfermarias de maternidade e cirurgia eram aquecidas e a gua que se bebia provinhadiretamente do Sena. A ala da maternidade era localizada no poro e freqentemente enchentes do Senalevavam gua e lixo ao cho desta ala. A febre puerperal era comum [...] (Idem).
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e/ou alvio de problemticas da rea de sade, gera demandas, direitos, revoltas, enfim,
a noo esclarecida do que fazer nas circunstncias daquela problemtica naquela
sociedade d sentido produo e reproduo social. Azevedo (1997), no entanto, nos
chama a ateno para o entendimento das inicitativas estatais voltadas soluo de
problemas sociais e/ou do convvio como forma de produo e reproduo social.
Neste quadro importante, tambm, ter presente como se d o surgimento deuma poltica pblica para um setor, ou, melhor dizendo, como um problema deum setor ser reconhecido pelo Estado e, em conseqncia, ser alvo de uma
poltica pblica especfica. Poltica esta que surgir como o meio de o Estadotentar garantir que o setor se reproduza de forma harmonizada com os interessesque predominam na sociedade. (AZEVEDO, 1997, p. 61)
Tem-se, portanto, problemas setorizados, legislao que versa sobre eles, e
a estruturao de ao (servios) relativa aos mesmos, tudo com vistas formaosocial, suas prticas e justificativas. No processo formativo de uma prtica social,
tambm participa o que Azevedo (1997) chama de programa de ao, que a
proposta/soluo para alguma problemtica que deveria ser alvo de atuao e controle
por parte do Estado (AZEVEDO, 1997, p. 62)15.
No devir histrico, a ampla problematizao social de algum setor (gnero,
etnia, trabalho, sade etc.) administrada pelo Estado e por instituies de destaque na
defesa e garantia dos interesses hegemnicos na sociedade ONGs, Fundaes,PROCONs, sindicatos, associaes etc. Assim, o Estado e estas instituies envolvem
as problematizaes trazendo para si a reponsabilidade por sua soluo ou alvio. Neste
sentido, as dimenses e a complexidade do problema so comumente critrio para
definio de quem assumir a questo. A educao e cuidados em sade da pobreza no
Brasil (e no s no Brasil), por exemplo, se tornam polticas pblicas ou programas de
ao, uma vez que so processos que de antemo no geram lucro porque so caros e
tm a difcil tarefa de serem capazes de abarcar ao mximo categorias mais diversas deexcludos (miserveis, marginais, retardados, loucos etc.), ou seja, so processos
inclusivos, alentadores de uma parcela da populao mal quista, pouco produtiva, ou at
improdutiva, portanto, em nossa cultura de segmentao de papis entre proprietrios e
no-proprietrios de capital, no se colocando como da alada de responsabilidade da
iniciativa privada.
15 Neste sentido, o conceito de endemia vem bem a calhar, por se tratar de problema epidemiolgico semsoluo, com o qual nos resta evitar ao mximo para que no se transforme em epidemia. O Estado,assim, justifica uma ao sua ad eternum.
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O Estado tido como irresponsvel e incompetente se no alenta a
sociedade a contento das individualidades envolvidas ou dos que ficam na expectativa
pela doma da danao daqueles dignos de incluso gera-se, com isto, a idia que
melhor incluir as pessoas que conviver com seus comportamentos/manifestaes
revoltosos. burguesia resta o papel de administradora-proprietria de bens e servios,
de uma classe que no pode se responsabilizar por estas mazelas sociais (seno faliria),
uma vez que j cumpre seu papel de empregar e produzir mercadoria de acordo com a
demanda do mercado, e pessoas de acordo com seu merecimento; merecimento este que
tem critrios histricos emanados pela prpria burguesia moralidade, esttica, higiene,
colocao no processo produtivo (se proprietrio ou no, se profissional liberal ou no).
Entendemos, ento, que programas de incluso em nossa sociedade so para incluso
em uma sociedade regulada pelo mercado base de competncias individuais que
esto para serem colocadas nesta mesma sociedade, seja como consumidor, seja como
produtor.
Este modo contemporneo da formao de opinio sobre de quem
democraticamente esperar ou mesmo exigir direitos, provoca um deslocamento do
olhar para o Estado de modo a isentar o olhar/opinio para/sobre a classe proprietria
dos meios de produo, de qualquer responsabilidade direta com miserveis,
analfabetos, doentes desdentados, loucos, marginais, enfim, livrar a classe proprietria
de qualquer responsabilidade com essa gente analfabeta interessada em denegrir a
boa imagem da nossa nao (VIANNA, 1994). Esta situao formada e formadora
de uma prtica social (hexis) reprodutivista viciosa, porque advm da opinio formada
(construda) sobre o mesmo problema social que ela mesma gera.
A opinio sobre os setores-alvo da ateno de polticas pblicas e
programas de ao negro, criana, marginal, mulher, louco etc. hoje, muito
comumente tem argumentao cientfica tanto por parte do cidado comum, como de
trabalhadores da rea em questo e mesmo do Estado.
Segundo Foucault (1987; 2003), corroborado por Harris (1993), Carrara
(2010), Costa (2010) e Silva (1999), a opinio que se tem hoje sobre a loucura e o
crime, por exemplo, foi construda com o advento da modernidade, a qual oportunizou o
estabelecimento da medicina como fora produtiva capital, bem como a assumncia do
discurso cientfico por parte da Justia e do Estado.
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A ordem social se estabelece com forte referncia na opinio cientifizada
sobre os excludos (porque existem, como se comportam, o que esperar deles, como e
porque adequ-los), e sobre o modo correto de com eles lidar com que recursos,
conceitos, instrumentos.
1.1. Loucura e Infrao Legal: relaes produtivas modernas
O processo de ascenso da cincia como episteme enunciadora da verdade
trouxe a cientifizao das opinies ao substituir a metafsica dogmtica religiosa
medieval pelo pensamento do homem moderno formado em nvel de lgica, geometria
e fsica (ABBAGNANO, 2007, p. 161) como capazes de, conforme previso de Bacon,
grande reforma na vida humana(CHAU, 1998, p. 116).
Bacon acreditava que o avano dos conhecimentos e das tcnicas, as mudanassociais e polticas e o desenvolvimento das cincias e da Filosofia propiciariamuma grande reforma do conhecimento humano, que seria tambm uma grandereforma na vida humana. (Idem)
Esta reforma se deu com desdobramentos incomensurveis no processo
produtivo, consequentemente colocando o capitalismo como superao do modo de
produo medieval pela aproximao entre o modo de produzir conhecimento e
mercadorias e a forma de socializao16 dos mesmos (conhecimentos e mercadorias)
(MARX e ENGELS, 2001). O trabalho aqui (no processo produtivo capitalista) assume
um papel formativo de espaos, instituies, hbitos e costumes, justificados pelo
conhecimento cientfico socializado e imposto.
At 1789, a formulao mais poderosa e adiantada desta ideologia de progressotinha sido o clssico liberalismo burgus. [...] Era uma filosofia estreita, lcida ecortante que encontrou seus mais puros expoentes, como poderamos esperar,na Gr-Bretanha e na Frana.Ela era rigorosamente racionalista e secular, isto , convencida da capacidade
dos homens em princpio para compreender tudo e solucionar todos osproblemas pelo uso da razo, e convencida tambm da tendncia obscurantistadas instituies (entre as quais incluam o tradicionalismo e todas as religiesoutras que o racional) e do comportamento irracionais. Filosoficamente,inclinavam-se ao materialismo ou ao empiricismo, que condiziam com umaideologia que devia suas foras e mtodos cincia, neste caso principalmente matemtica e fsica da revoluo cientfica do sculo XVII. (HOBSBAWM,1997, p. 256)
Maar n Guisa de Introduo de edio brasileira da obra Educao e
Emancipao de Theodor W. Adorno, afirma que o mote O trabalho forma de Hegel
16 Numa distribuio desigual muito bem justificada pela economia poltica.
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foi superado por Marx quando este inclui a histria enquanto categoria de anlise em
suas consideraes sobre este mesmo mote. A realidade efetiva da histria uma
formao pelo trabalho: eis a revoluo copernicana de Marx. (MAAR, 1995, p.
17). O problema ento colocado quanto formao proporcionada pelo trabalho que
sua forma social na sociedade capitalista alienada e alienante. Tudo o que pode ser
trabalhado pelo homem lhe objeto de trabalho. O olhar para o objeto de trabalho
humano e para o produto do trabalho humano abordado por Marx em sua obra O
Capital.
No processo de trabalho, a atividade do homem opera uma transformao,subordinada a um determinado fim, no objeto sobre que atua por meio doinstrumental de trabalho. O processo extingue-se ao concluir-se o produto. O
produto um valor-de-uso, um material da natureza adaptado s necessidades
humanas atravs da mudana de forma. O trabalho est incorporado ao objetosobre que atuou. Concretizou-se e a matria est trabalhada. O que semanifestava em movimento, do lado do trabalhador, se revela agora qualidadefixa, na forma de ser, do lado do produto. Ele teceu e o produto um tecido.Observando-se todo o processo do ponto de vista do resultado, do produto,evidencia-se que meio e objeto de trabalho so meios de produo e o trabalho trabalho produtivo. (MARX)
Considerando o psiquismo humano como objeto de trabalho, o temos no
sistema produtivo moderno tratado fundalmentalmente pela cincia enquanto fora
produtiva. Ou seja, no se legitimou no mundo moderno, trato ao psiquismo humano(em nvel de trabalho) que no pela cincia. No entanto, o mesmo tambm se deu no
devir histrico do trato moderno ao crime, marcado principalmente pelo fim do suplcio
pblico dos condenados, de modo a se exercer punio sobre a alma, leia-se: punio
sobre o corao, o intelecto, a vontade, as disposies. (FOUCAULT, 2007, p. 18).
Passou-se a entender que elementos circunstanciais do crime devem ser
levados em conta no objetivo de se conhecer o criminoso seu passado, preferncias,
hbitos, moralidade, a normalidade de seu pensamento para da se extrair a penaadequada ou sua absolvio.
Este levar em conta, para a cincia, exige mtodo para descrio o mais
pormenorizada possvel do comportamento humano, mtodo que a objetiva ser (a
cincia) capaz de saber mais sobre as aes humanas e seus fundamentos do que as
prprias pessoas em questo (SILVA, 1999, p. 18). O como levar em conta
cientfico se tornou sua via de legitimao junto sociedade, trazendo para a mesma, a
racionalidade que inculca humanidade (assim constituda) no trabalho com o psiquismo.
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A assumncia da loucura como seu objeto de estudo orgnico, colocou a
medicina moderna (portanto, a cincia) como vanguarda de superao do pensamento
supersticioso medieval, apesar de inicialmente ser importunada pela Igreja e pelo Estado
por causa de suas explicaes materialistas para o problema mente/corpo (HARRIS,
1993, p. 20). Aproveitando o clima de anticlericalismo e anti-nobreza herdado da
Revoluo Francesa, a empiria dos mtodos de pensamento e procedimento cientfico
positivista eram (e ainda so) bastante envolventes e convincentes, considerados pela
populao e pelos novos mdicos que neste mtodo se formavam, uma lgica otimista,
palpvel, diferente da opressora, arbitrria e supersticiosa crena religiosa que se
pretendia superar, politicamente, inclusive.
Harris (1993) discorre sobre o modo como os mdicos promoveram eapoiaram a Repblica17 na Frana, baseada no sufrgio masculino universal, na reforma
educacional, nos valores meritocrticos, e na libertao da superstio religiosa,
ingressando na Cmara dos Deputados, ocupando cargos em partidos polticos e
ministrios importantes. Esta lealdade Repblica foi recompensada com a laicizao
dos hospitais pblicos, primeiro pela criao (em 1879) de uma cadeira para o estudo de
doenas mentais na Faculdade de Medicina de Paris (uma instituio medieval, smbolo
do poder da Igreja sobre o conhecimento) e, depois, pela lei de 30 de novembro de 1892
sobre a prtica da medicina, que proporcionava uma base educacional, institucional e
corporativa mais favorvel, permitindo ampliar seu virtual monoplio sobre as artes
curativas (p. 20), o que significou empoderamento dos psiquiatras em seu trabalho:
liberdade para disseminar e desenvolver sua anlise cientfica da mente.
Os mdicos no eram portanto vistos apenas como pessoas que curavam osdoentes, mas sim analisados favorvel ou desfavoravelmente como sendo aincorporao de certas filosofias, ideais e aspiraes morais e sociais. Eram os
profetas do progresso, positivistas que desposavam uma teoria do conhecimentoque rejeitava explicaes metafsicas. Pelo contrrio, abraavam um mtodoexperimental que buscava um padro ordenado e previsvel para os processosnaturais. A cincia oferecia uma perspectiva otimista, um fundamento lgico
para os procedimentos intervencionistas visando melhorar a sade doorganismo social. Alm disso, os mdicos foram os primeiros e convincentesdefensores da teoria evolucionria. (HARRIS, 1993, p. 20)
Inicialmente, como caminho de legitimao e fora argumentativa,
revolucionariamente o organismo foi considerado locus privilegiado de causa da
17 Destaco aqui que nesta poca, defender uma Repblica era ser, acima de tudo, contrrio monarquia, nobreza, ao poder do clero que se atribua o poder de Deus, enfim, ordem ento estabelecida.
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degenerao moral e/ou psquica humana. Com isso, confirmou-se a transmutao do
sistema de pensamento sobre o corpo no crime e na loucura, ou sobre o corpo do
criminoso e do louco: de alvo de martrio e castigo de motivao clerical e religiosa,
para alvo de estudo e conhecimento.
Os milagres no so assim to fceis: a mutao que permitiu, e todos os diasainda permite, que o leito do doente se torne campo de investigao e dediscursos cientficos, no a mistura, repentinamente deflagrada, de um velhohbito com uma lgica ainda mais antiga, ou a de um saber com um esquisitocomposto sensorial de um tato, um golpe de vista e um faro. A medicinacomo cincia clnica apareceu sob condies que definem, com sua
possibilidade histrica, o domnio de sua experincia e a estrutura de suaracionalidade. (FOUCAULT, 2003, XIV)
A capacidade humana de conhecer, classificar e caracterizar ocomportamento humano e suas determinaes psquicas consideradas patolgicas ou
no, marcou o conhecimento sobre o louco e o criminoso.
Assim, a racionalidade cientfica durante o sculo XVII e at fins do sculo
XVIII, ainda influenciada pela escolstica e metafisicamente confusa quanto
causalidade da loucura, justificava procedimentos invasivos ou no, mas, de um modo
geral violentos contra pessoas em sofrimento mental sangrias, purgaes, banhos etc.,
administrao de pio e/ou de um mtodo chamado educao da vontade, baseado emcastigos fsicos.
Philippe Pinel (1745-1826), no entanto, entendia que, ao contrrio do que
acontecia na poca, os loucos deviam ser tratados como doentes e no de forma
violenta. Considerado o pai da psiquiatria, Pinel, o mdico francs que participou
da Revoluo que derrubou Lus XVI (SERRANO, 1986, p. 36), foi bastante
homenageado em seu tempo por ser pessoa de generosidade incomum sua poca,
bondoso, caridoso para com os sofredores, libertou os loucos das correntes e celasque os prendiam (ALVARES, 2010), porm mantendo-os, ainda, isolados nos
hospcios mais famosos da Frana (Bictre para homens e Salptrire pra mulheres),
deixando, por outro lado, parte da sociedade e da classe mdica contrariamente
indignadas frente a seus atos.
Pinel elevou a categoria dos doentes, [aqueles] antes tratados como criminososou endemoniados, condio de homo paciens e a doena mental, como oresultado de uma exposio excessiva a estresses sociais e psicolgicos, e, emcerta medida, a danos hereditrios, sendo que tais enfermidades decorreriam dealteraes patolgicas no crebro. Com isso, baniu tratamentos antigos tais
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como sangrias, vmitos, purgaes e ventosas, preferindo terapias queinclussem a aproximao e o contato amigvel com o paciente,
proporcionando-lhes, ainda, um programa de atividades ocupacionais, onde otratamento digno e respeitoso foi a tnica. (ALVARES, 2010)
Harris (1993) tem uma opinio crtica sobre o assunto:
[...] ocorreu uma mudana na percepo cultural da loucura entre 1780 emeados de 1820, marcando esta ltima data o incio das controvrsias acerca damonomania. Os mdicos que se empenharam nesta luta foram inspirados pelo
pai da psiquiatria francesa, Philippe Pinel (1745-1826), e estavamentusiasmados, vendo a si mesmos como heris de uma tradio humanitriasintetizada pela lenda de Pinel (provavelmente mtica) que rompia as correntesque algemavam os internos nos hospitais de Bictre e de Salptrire. Estaimagem identificava o alienismo18 como uma misso libertarista visando aliviara condio de um dos segmentos da sociedade mais dignos de piedade, o qual,segundo eles, era injusta e brutalmente maltratado. (p. 16)
No entanto, a mesma autora sugere que o que prevaleceu foi o senso comum
no que se refere ao uso dos conceitos quanto insanidade. No obstante, pouco havia
na herana de Pinel que pudesse sugerir um conflito inevitvel com as idias mdicas e
de senso comum quanto insanidade. (Harris, 1993, p. 17). Deste excerto, Harris
discorre sobre conceitos determinantes para a psiquiatria da poca principalmente
monomania e manie sans dlire, construdos a partir de simples observao e
categorizao emprica. A cincia justificou o senso-comum.
Ou seja, no havia um estatuto cientfico claro ou uma metodologia de
formao de conceitos cientficos19 (ou as duas coisas) que legitimasse o entendimento
cientfico acerca do adoecer psquico, por mais que este entendimento fosse at
judicialmente determinante.
Embora a polmica sobre a monomania nos anos 20 e 30 do sculo passado[Sc. XIX] conferisse aos especialistas um papel judicial, os alienistas
continuaram a encontrar obstculos at o Segundo Imprio. Continuaramimportunados tanto pela Igreja quanto pelo Estado pelas suas explicaesmaterialistas para o problema mente/corpo (HARRIS, 1993, p. 19).
Se se pretendia um estatuto cientfico organicista, faltavam-lhes meios para
legitim-lo, o que no os impediu de fundarem o determinismo organicista pela
18 O termo alienismo e suas derivaes como: alienista, para se referir aos psiquiatras; alienado para sereferir aos doentes mentais; alienao, para se referir ao adoecimento psquico foram muito utilizadosna poca (sculos XVIII e XIX). A proximidade com o conceito de alienao trabalhado por K. Marxpode ser estudada.19 A psicopatologia como estudo do adoecimento mental das pessoas centra seus estudos em conceitosque subjetivizam o adoecer. O adoecimento do humor, do afeto, por exemplo, mesmo que entendido quetenha causa orgnica, no foge de sua condio subjetiva.
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produo do conhecimento mdico, e pelo empoderamento do Hospital e da figura do
mdico, respectivamente como instituio e perito suficientes junto sociedade e ao
sistema judicirio moderno.
poca da afirmao poltico-cientfica do mdico e do hospital para a
modernidade burguesa, a polmica diferenciao ente o patolgico e o moralmente
deplorvel polarizou o entendimento sobre o nvel de determinao da loucura e do
comportamento criminoso, de modo a esclarecer se estes fenmenos tm determinao
moral ou orgnica. De repente, a distino entre loucura e maldade tornou-se
excessivamente problemtica, exigindo o conhecimento de um especialista para fazer
uma distino exata. (HARRIS, 1993, p. 18). Foi o caminho cientfico de
individualizao da pena que culminou num programa de defesa social do Estado
francs.
O programa de defesa conjecturado concentrava-se na fontes de risco contidasno tat psycho-social do infrator. A orientao judicial, portanto, exigia umaavaliao individual para se tratar cada infrator segundo o risco que elerepresentava, um programa contrastante com o sistema clssico de um
penalidade predeterminada associada a um crime e no a um indivduo.Enfatizando assim a individualizao das penalidades, os franceses haviamaceitado um preceito bsico da antropologia penal italiana, sucintamenteresumida por Raffaele Garafalo no segundo Congresso Internacional daAntropologia Penal em 1889: o direito penal reconhece apenas dois termos, ocrime e a pena, enquanto que a nova criminologia reconhece trs, o crime, ocriminoso e a pena. (HARRIS, 1993, p. 124)
Os trabalhos de Lombrozzo (1835-1909), considerado por Gould (apud
SILVA, 1999, p. 21) a doutrina mais influente jamais produzida pela tradio
antropomtrica, e Alphonse Bertillon (1853-1914) foram marcantes para estas relaes
produtivas entre medicina e direito.
Bertillon, policial francs, foi o criador do primeiro sistema cientfico de
identificao de um criminoso atravs do emprego da identificao antropomtrica,
com base em cinco ou seis medidas sseas que foram aprovadas em lei como sendo
suficientes para marcar um indivduo (Idem, p. 13).
Lombrozzo, mdico de forte formao positivista, referendou-se nas medidas
antropomtricas para afirmar uma igualdade entre o biolgico e o social, por que no
dizer uma sujeio, do segundo em relao ao primeiro.
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Lombrozzo apresenta, entre seus argumentos bsicos, a existncia de umacorrelao entre os traos dos criminosos e as caractersticas dos macacos e dosselvagens, sendo todos criminosos natos. Para isso, faz uma incurso noantropomorfismo, exemplificando com o que ele chamaria de atos criminososdos animais (Gould 1991, p. 124), com a atribuio de claras caractersticas eaes humanas, como adultrio, violncia, esquartejamento, entre outras, satitudes tomadas por formigas, cegonhas, castores etc. Essa viso de mundoantropomorfisada era a tnica do seu trabalho como perito em julgamentoscriminais, e essa era a forma de atuao da escola positiva de criminologia,numa clara referncia ao fundamento filosfico e extrema valorao doemprico em seus trabalhos. (Ibidem, p. 21)20
Esta relao entre medidas antropomtricas e aparncia fsica, contribuiu
para que se formasse um reconhecimento do corpo preso s aparncias e justificado por
uma cincia que investiga e socializa o funcionamento orgnico.
A concepo de personalidade vinculada aparncia corporal vai gerar, num primeiro momento, um recato vitoriano21 caracterizado pelo excesso devesturio, pelo desejo de cobrir-se. Como diz Sennett (1988, p. 218), adeformao fsica do corpo por meio das roupas adquire sentido nos mesmostermos: quando o corpo estiver retorcido e fora de qualquer forma natural,deixar de falar. (Ibidem, p. 14)
Com tudo isto se reforou a cultura cientfica positivista da quantificao, do
fascnio pelos nmeros, da idia de que atravs deles (dos nmeros) se chegaria
verdade sobre as pessoas, seu comportamento, sua sade, e principalmente sua moral. Aformao do hbito de se vestir de maneira considerada recatada, foi claramente um
exemplo de influncia das relaes de produo entre cincia e justia dentro desta
cultura, da hexis.
A Cincia positiva chegou at a determinar caracteres orgnicos ligados adeterminados tipos de delito. O conjunto dos caracteres orgnicos doentes,quando presentes em um indivduo, constitua o delinqente nato. Acriminologia positiva de Lombroso foi muito divulgada em sua poca. Tinha a
caracterstica de propor a substituio das prises por hospcios, dos juzes pormdicos alienistas, dos cdigos penais por tratados de psiquiatria. (LUZ, 1982,p. 171)
importante destacar o fato de que a medicina e a justia como locus da
produo do conhecimento e do poder coercitivo sobre a populao, colocaram o
20 No discurso de mdicos brasileiros, tambm ao fim do sculo XIX, comparecem referncias s escalaszoolgicas e das sociedades desde as selvticas das primeiras idades, at as industriosas e esclarecidassociedades dos tempos modernos [conforme o Dr Andrada Junior] -, como argumento que justifica apresena do instinto de conservao, o qual era responsvel pelo combate aos insultos da dr, e firmar o
imprio do bem estar [Andrada Junior]. Nessa linha de raciocnio, o instinto de conservao teria sido,tambm, constituidor das primeiras regras da higiene. (GONDRA, 2004, p. 155, grifos no original)21 A Era Vitoriana se refere ao perodo de 1837 a 1901, relativo ao reinado da rainha Vitria da Inglaterra.
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trabalho e as relaes entre estas duas reas como determinantes culturais. No que se
refere ao crime, a atitude de Lombrozzo de justificar a condenao de pessoas
simplesmente por ter a cabea grande, lbios finos e destes desgrenhados, por exemplo,
influenciou o preconceito esttico, at hoje determinante na relao excludente do louco
infrator.
Harris (1993) fala ainda de outros determinantes cientficos que ao fim do
sculo XIX foram fundamentais na cultura sobre o crime e a loucura feminilidade (o
fato de a pessoa ser do sexo feminino), masculinidade, alcoolismo e pobreza.
1.2. Brasil: brota a cincia... e a repblica, a democracia...
Importante notar a coincidente participao/envolvimento da medicina
enquanto cincia na poltica de superao da Monarquia e instalao da Repblica, tantona Frana quanto no Brasil22. Brito (2008), em referncia a Harris (1993), destaca que os
mdicos eram figuras consideradas como os profetas da Repblica. Para fazerjus a
esta considerao, os processos produtivos de conhecimento da rea da medicina, bem
como o exerccio de sua profisso, tiveram o poder de serem formadores de opinies,
posturas e prticas profissionais e sociais higinicas, de convvio, polticas coerentes
com a nova ordem social que se instalava.23
De um e de outro lado do Atlntico, a preocupao com a formao das novasgeraes se encontrava no horizonte da medicina, de modo a possibilitar umamodelao dos novos sujeitos ordem urbana que se queria forjar, para o queum novo repertrio se tornava necessrio, de modo a fundar e erigir novasorganizaes e novas prticas consoantes com as prescries da cincia mdica,da racionalidade e da ordem burguesa (GONDRA, 2004, p. 157)
Referindo-se a esta poca, Costa (2002, p. 61) destaca que As escolas de
Medicina so mais do que lugares de formao de profissionais para atuar no combate
s doenas, so verdadeiros celeiros de criao intelectual de elites dirigentes.,
entendendo, alm disso, que mesmo que o saber mdico no elaborasse uma teoria
sobre a vida urbana, era capaz de fornecer ( poca) elementos para que se pudesse
pensar o modo de organizao ideal das cidades, uma vez que a urbanizao da vida
cotidiana seria (e ainda ) uma das marcas histricas do sistema capitalista, prova de
progresso de determinada regio, pas ou Estado.22 No Brasil, porm, esta instalao da Repblica ocorreu exatamente cem anos depois em relao Frana, considerando-se a Tomada da Bastilha (1789) e a Proclamao da Repblica no Brasil (1889)como os marcos de inaugurao do governo republicano nestes dois pases.23 Pelo interesse do estudo aqui desenvolvido, destaco a medicina como rea que teve de fato um poderformativo determinante, porm no foi o nico ou o mais determinante. Marx, por exemplo, destaca adeterminncia do processo produtivo industrial.
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Neste aspecto do desenvolvimento urbano moderno brasileiro Gondra
(2004, p. 146; grifos no original), por sua vez, aborda em seu estudo oito teses
mdicas sobre o problema educacional escritas entre 1854 e 1857 por alunos da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (FMRJ),
intituladas Esboo de uma hygiene de Collegiios applicavel aos nossos;regras principaes tendentes conservao da sade e ao desenvolvimentodas foras physicas e intellectuaes, segundo as quaes se devem regular nossoscollegiios, havendo ligeira variao na pontuao, na diagramao dos ttulose no uso do verbo (regular e reger)24. (...) Seus autores [destas teses], com baseem um diagnstico negativo sobre a educao escolar, formulam prescriessobre: 1) Localizao dos estabelecimentos colegiais, dimenso dosestabelecimentos e sua arquitetura. Nesse ponto, a preocupao maior eraconstruir a escola longe de qualquer foco de infeco e dentro dos preceitos dehigiene to caros medicina da poca; 2) comunicao entre meninos de
idades diferentes, sendo assinalada uma severa proibio desse tipo decontato; 3) tempo, tipo de aula e o tempo de recreio; 4) alimentao:quantidade, qualidade e rotinas; 5) vestimentas; 6) os sentidos e as excrees;7) o quarto o sono; 8) os banhos; 9) a natureza do trabalho fsico e intelectual;e 10) princpios morais e disciplinares. (Idem, p. 153-154; grifos no original)
O argumento pela tomada do setor educacional por parte dos princpios
higienistas vem da compreenso do fato de ser esta relao (educao/sade) [...] a
base para melhorar o estado sanitrio, a civilizao, o engrandecimento moral e material
da Corte e de seus habitantes (Ibidem, p. 155).
Por outro lado, a questo da sade e da higiene em fins do sculo XVIII
era realmente preocupante, por exemplo, no Rio de Janeiro. Aquela era uma cidade
imunda, onde as pessoas se sentiam vontade para fazer seus despejos de lixo em
praias, ruas, lagoas etc. No entanto, A partir de 1830, um grupo de mdicos, higienistas
na sua maioria, comea a pedir, entre outras medidas de higiene pblica, que se construa
um hospcio para os alienados (COSTA, 2010, p. 39).
A primeira postura da Cmara Municipal [do Rio de Janeiro] referente limpeza, data de 1830, e curiosamente versava sobre: limpeza,desempachamento das ruas e praas, providncias contra a divagao de loucos,embriagados e animais ferozes e os que podiam incomodar o pblico. Estas
posturas eram basicamente normativas, isto , definem proibies e estabelecemsanes quanto ao despejo de lixo nas vias pblicas. (Asseio MRJ, 2010)
24 Conforme explicao do prprio Gondra: a repetio dos ttulos cumpre a funo de identificar temaspriorizados pela FMRJ e de assegurar uma produo e circulao do modo mdico de encar-los. (p.155). o evidenciamento da inteno mdica de ordenar espaos e hbitos.
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O evitar a divagao25 de loucos referida acima (tida como atitude
higinica), includo neste processo de modificao geral de espaos, hbitos e
costumes como processo formativo de uma prtica social. [No Brasil] as primeiras
instituies de internao psiquitrica foram criadas respondendo a uma exigncia
scio-urbana para que os loucos fossem retirados das ruas (RIBEIRO, 1999, p. 21)
Medeiros apudRibeiro (1999, p. 20) afirma que
A instituio psiquitrica na sua inaltervel forma de asilos, hospcios,hospitais integra-se na histria da progressiva urbanizao brasileira,erigindo-se em suas cidades que se estavam desenvolvendo, na estratgia de seuordenamento e de sua moralidade [...]
Esta progressiva urbanizao higinica brasileira foi, como apontado no
excerto de Asseio MRJ (2010) acima, tambm, imposta. O modo como ocorreram as
mudanas urbansticas naquela mesma cidade (Rio de Janeiro), no incio do sculo XIX,
um exemplo disso. Politicamente preocupado com a crescente e pretendida
participao do Brasil no mercado internacional e, mais especificamente com a fama de
sua capital (o Rio de Janeiro) como tmulo dos estrangeiros em razo grandes
epidemias de febre amarela, varola e peste bubnica que ali ocorriam, o ento
presidente da Repblica Rodrigues Alves (1902-1906), orientado pelos ideais de
saneamento e modernidade exerce o empoderamento do Estado na figura do prefeito
Pereira Passos, e da cincia (medicina) nas figuras do engenheiro Lauro Mller e do
mdico Osvaldo Cruz26, e pem em prtica uma ampla reforma urbana, que ficou
conhecida como bota abaixo. Reforma que consistia na demolio de velhos prdios e
cortios superlotados dando lugar a grandes avenidas, edifcios e jardins. (BERTOLLI
FILHO, 2000)
Na imposio de espaos urbanos, milhares de pessoas (a maioria negros e
pobres), foram expulsas de suas casas, sem a menor considerao e muito menos direito
a indenizao, sendo obrigadas a morar nos morros e na periferia; outros, em funo da
problemtica quanto febre amarela, tiveram suas casas invadidas por funcionrios do
Servio Sanitrio, normalmente acompanhados pela polcia, compondo as Brigadas
Mata Mosquitos que lavavam caixas d'gua, desinfetavam ralos e bueiros, vedavam
residncias para aplicao de veneno, limpavam telhados e calhas etc. (BERTOLLI
FILHO, 2000)
25 A palavra divagao aqui tem o sentido de circulao, perambulao.26 Neste empoderamento, ao prefeito Pereira Passos, ao engenheiro Lauro Mller e ao sanitarista OswaldoCruz foi dada imunidade a quaisquer aes judiciais.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Febre_amarelahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Var%C3%ADolahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Peste_bub%C3%B4nicahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Peste_bub%C3%B4nicahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Peste_bub%C3%B4nicahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Rodrigues_Alveshttp://pt.wikipedia.org/wiki/1902http://pt.wikipedia.org/wiki/1906http://pt.wikipedia.org/wiki/Pereira_Passoshttp://pt.wikipedia.org/wiki/Osvaldo_Cruzhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Periferiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Var%C3%ADolahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Peste_bub%C3%B4nicahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Rodrigues_Alveshttp://pt.wikipedia.org/wiki/1902http://pt.wikipedia.org/wiki/1906http://pt.wikipedia.org/wiki/Pereira_Passoshttp://pt.wikipedia.org/wiki/Osvaldo_Cruzhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Periferiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Febre_amarela -
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Desta investida sanitria de Osvaldo Cruz, Lauro Muller, Rodrigues Alves
e Pereira Passos, o que chama a ateno na discusso que realizamos a chamada
Revolta da Vacina (1904). Com a fora da Lei da Vacina Obrigatria 27, as Brigadas
Sanitrias com o auxlio de policiais, tinham a permisso de entrar nas casas das pessoas
e vacin-las fora contra a varola. A imprensa (basicamente jornais e revistas)
criticava a ao do governo e se tornou obsessiva na publicao tanto de charges com o
tema da vacina obrigatria quanto das brigadas sanitrias, e defendiam supostos perigos
causados pela vacina28. Alm disso, em tempos de maior recato, muitos viam nos
vacinadores um bando de sem-vergonhas interessados em desnudar os braos e at as
coxas das mulheres, o que agravou a ira da populao, que se rebelou. (BERTOLLI
FILHO, 2000)
Entre os dias 10 e 16 de novembro daquele ano, revoltosos exaltados
viraram e incendiaram bondes, depredaram lojas, fizeram barricadas e atacaram a
polcia com pedras, paus e pedaos de ferro. Esta revolta deixou centenas de feridos e
presos, bem como dezenas de mortos e exilados no Acre. (BERTOLLI FILHO, 2000)
A Revolta foi abafada e a cidade higienicamente produzida, por um lado,
pelas relaes produtivas entre medicina, arquitetura e direito, e por outro, pelas
relaes polticas entre Estado e cincia.
Entendemos que esses fatos ilustram muito bem a contradio de se tentar
mudar pela interveno forada do Estado, espaos, hbitos e costumes de uma
sociedade urbana e moderna, positivista e meticulosamente pensada para funcionar
harmonicamente.
O Estado toma o conhecimento e participa na sua transformao em linguageme rituais que servem para separar o conhecimento do consumo de massa e dotrabalho manual do processo de produo direta. Isso legitima uma ideologiaespecfica os valores e normas burguesas ao transformar essa ideologia
jurdico-poltica num conjunto de fatos e decises tecnocrticas, baseadas emestudos cientficos, na autoridade etc. [...] O Estado incorpora a cincia aosseus mecanismos de poder [...] (CARNOY, 1988, p. 147-148)
Essa tomada de conhecimento cientfico por parte do Estado como razo
legtima de sua ao, participa, ento, como poderosa influncia do ethos e da hexis
urbana. Por outro lado, o processo de produo do conhecimento distanciado, separado,
no-apropriado pela populao empobrecida, insana e ignara, justifica medidas
27 O discurso oficial do Estado quando na forma de lei, legitima o processo produtivo da justia, mesmoque seja para exerccio da violncia.28 Interessante notar aqui o papel da imprensa como instituio formadora de cultura.
http://pt.wikipedia.org/wiki/10_de_novembrohttp://pt.wikipedia.org/wiki/10_de_novembrohttp://pt.wikipedia.org/wiki/16_de_novembrohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Bondehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Bondehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Barricadahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Pol%C3%ADciahttp://pt.wikipedia.org/wiki/10_de_novembrohttp://pt.wikipedia.org/wiki/16_de_novembrohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Bondehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Barricadahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Pol%C3%ADcia -
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necessrias, que no compreendidas, mal compreendidas ou criticamente
compreendidas pela populao, se impe em concordncia com os excessos
expropriadores de bens, direitos e dignidade, tpicos do modo de produo capitalista,
pela ao do Estado. No entanto, levando-se em conta a experincia da Lei da
Vacinao Obrigatria e seus programas de ao correlatos (brigadas sanitrias e
bota abaixo), v-se que no possvel a formao de hbitos e prticas sociais
impondo-os fora.
Assim, diante do crescimento e adensamento populacional moderno, as
revoltas urbanas, a misria, as epidemias, a violncia, os afrontamentos entre
burgueses e operrios, ricos e pobres, tornam-se mais freqentes (COSTA, 2002,
p.66)
29
, e tendo-se claro o equvoco de, neste mesmo contexto histrico, se intervir pelafora para formar opinies, hbitos e atitudes, opta-se por uma sada ideolgica:
polticas de informao educativa30(AZEVEDO, 1997, p.62).
Estas, as entendemos como polticas do conhecimento cientificamente
elaborado, que tm o intuito de que a populao se aproprie do conhecimento
cientfico como esclarecimento necessrio suficiente vida cotidiana e, ao mesmo
tempo, de prticas sociais neutras em funo da sade pblica.
Busca-se com esta neutralidade o consenso acrtico, o qual Gramscirelaciona com a hegemonia poltica como estratgia de exerccio do poder de um modo
geral e, inclusive, do poder de coero por parte do Estado.
Em Gramsci o Estado, diferentemente de Lnin, aparece entendido no comoaparelho, mas como uma relao social cuja funo precpua no associada dominao atravs da violncia, mas sobretudo pelo consenso. O Estado emergecomo um complexo de atividades prticas e tericas que servefundamentalmente para obter o consenso dos dominados, ou seja, a hegemonia.O estabelecimento da hegemonia uma relao mista onde associam-se o poder
do Estado e a ao privada, configurando uma modalidade de dominaocomplexa que enceta a unidade dialtica entre coero e consenso, represso ehegemonia, Estado e sociedade civil. (SANTOS, 2010, 52)
No mundo moderno, ento, o papel poltico da cincia no de vencer, mas
de convencer, para que sua produo forme hbitos, valores, aes de modo que
aparentemente no tenham nada a ver com questes sociais, polticas (de poder) ou
29 Porm sem o enfretamento direto da burguesia que mantm, assim, o Estado como alvo (inclusive dela
prpria) da responsabilizao pelas mazelas sociais.30 Encontradas contemporaneamente no setor da sade como o so as campanhas deconscientizao/preveno AIDS, febre amarela, dengue, gripe A etc.
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econmicas, desvinculados da questo da luta de classes, para serem entendidos
somente como questo de sade, ou prioritariamente de sade31, como superao livre
e esclarecida de aes bizarras como aquelas vividas na oportunidade da Revolta da
Vacina.
No entanto, qualitativamente diferente educar/formar a sociedade a partir
de princpios cientficos, de educar/formar a sociedade sem os mesmos. As
determinaes econmicas, sociais e polticas do perodo colonial brasileiro, por
exemplo, participaram da formao de opinio e aes sobre a loucura sem qualquer
ateno cientfica os loucos mais abastados que no fossem agitados eram tratados em
domiclio e s vezes enviados Europa, do contrrio eram (amarrados ou no) isolados
em cmodos. J os loucos mais pobres, se menos agitados, vagueavam pelas cidades ecampos e viviam da caridade alheia; se agitados, eram presos e tinham vida curta tendo
em vista os maus tratos que sofriam tanto na cadeia quanto nas Santas Casas de
Misericrdia (RIBEIRO, 1999; COSTA, 2010; SERRANO, 1986).
Por outro lado, mesmo tendo-se os postulados cientficos como princpios de
educao/formao da sociedade, tambm qualitativamente diferente educar/formar a
sociedade acerca de um adoecimento fisiolgico par excellence (como varola, AIDS,
gripe A), de educar/formar acerca de um adoecimento psquico. Sobre esta aproximaoentre adoecimento fisiolgico e doena mental, Jurandir Freire Costa contribui:
[Nos anos 1930] Os psiquiatras [brasileiros] acreditavam que existia umanatureza humana, uma essncia do sujeito, que podia ser entendida peladecifrao das leis de hereditariedade, da noo de degenerao ou dequaisquer outros termos inventados e manipulados pelo vocabulrio racista.Uma vez decodificada a essncia do homem, tornava-se fcil, teoricamente,
prevenir a reproduo ou propagao de seus caracteres psicossociaisindesejveis. Castrao, controle da imigrao, casamentos eugnicos, exames
pr-nupciais eugnicos etc. foram a decorrncia dos postulados sobre anatureza
biolgica do sujeito e sobre a existncia de raas inferiores. (COSTA, 2010,p.31; grifos no original)
Costa (Idem, p. 47) prossegue discorrendo sobre a interveno dos
psiquiatras brasileiros dos anos 30 no aspecto formativo da sociedade: Os psiquiatras,
seguindo a nova concepo de preveno [a eugenia], deslocam-se pouco a pouco, da
prtica tradicional e penetram no domnio cultural, at ento situado fora dos domnios
da Psiquiatria..
31Na Cartilha do PAILI (p. 11), A questo [loucura/infrao legal] deixa de ser focada unicamentesob o prisma dasegurana pblica e acolhida definitivamente pelos servios desade pblica.
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Diante da crescente cientifizao e laicizao (principalmente de influncia
francesa) da rea de sade mental, a educao/formao hegemnica sobre o louco no
final do sculo XIX foi marcada pela idia de tratamento, diferentemente da prioridade
dos anos 1930 que era de preveno de fundamentao eugnica (COSTA, 2010).
Assim, houve uma expanso do nmero de hospcios, o que era coerente com a
adequao da opinio pblica sobre o poder mdico e sua infraestrutura: o hospital.
A instituio psiquitrica na sua inaltervel forma de asilos, hospcios,hospitais integra-se na histria da progressiva urbanizao brasileira,erigindo-se em suas cidades que se estavam desenvolvendo32, na estratgia deseu ordenamento e de sua moralidade... Uma fase pr-cientfica desenvolveu-se
por quase todo o sculo XIX [...] executada por administradores, religiosos,guardas e vigilantes sob o comando da autoridade pblica. Uma fase delegitimao cientfica seguiu-se cronologicamente, fechando o sculo XIX a
partir dos seus anos 80, laicizando a instituio e fazendo do saber mdico otema de disputas entre a inspirao francesa [...] e a disciplina germnicaKraepeliana [...] (MEDEIROS apud RIBEIRO, 1999, p. 21)33
Lima (2010, p. 72) referindo-se ruptura poltica marcada pelo advento da
repblica brasileira, cita o decreto n 142. Diz que esta foi a primeira norma legal
republicana do Brasil sobre o campo mental, baixada exatamente 57 dias aps a
proclamao da Repblica, em janeiro de 1890, legitimando-se o pacto entre o
Estado, a psiquiatria e o direito. Este decreto foi o primeiro de uma srie de quatroque instituiu a laicidade do tratamento do louco no Brasil pela confiana da assistncia
aos alienados psiquiatria. Passa a ser tarefa exclusiva do mdico o direcionamento
conveniente do estado fsico e das faculdades morais do paciente, ou seja, o
humanitarismo mdico se substitui antropologia e tica de matriz religiosa da cultura
colonial (Massimi, 1990, p.39). (LIMA, 2010, p. 73).
No entanto, no Brasil, como na Europa, o tratamento dispensado aos loucos
era cruel e excludente marcado por isolamento, espancamento, fome, falta de higiene.No entanto, o professor de psiquiatria Joo Carlos Teixeira Brando34, questionador
quanto ao tratamento dispensado a estes pacientes, se utiliza de uma produo cientfica
dele mesmo, intitulada Os estabelecimentos para alienados no Brasil, na qual
defende a necessidade de uma legislao que regulamentasse o confinamento dos loucos
32 Como Goinia. Porm a instituio psiquitrica na forma de hospital s chega a este municpio em1954, com a inaugurao do Hospital Psiquitrico Professor Adauto Botelho.33 No entanto, segundo Harris (1993), na Europa, na mesma poca, as disputas tericas acerca da relao
infrao legal (e/ou moral) e loucura eram entre franceses e italianos.34 Segundo Lima (2010), Guilherme Messas defende que Teixeira Brando foi a principal figura doperodo inicial da psiquiatria brasileira.
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no Brasil e desse tratamento diferenciado ao louco infrator. A converso do princpio
cientfico defendido por Brando em norma legal somente se concretiza na forma do
decreto n 1.132 de 22 de dezembro de 1903, ano em que eleito deputado federal;
decreto este
[...] que estabeleceu normas para a internao dos alienados. O artigo 10, doreferido Decreto, estabelece: proibido manter alienados em cadeias pblicasou entre criminosos. E o artigo 11 deixava explcito que enquanto no
possurem os Estados manicmios criminais, os alienados delinqentes e oscondenados alienados somente podero permanecer em asilos pblicos nos
pavilhes que especialmente se lhes reservem. (PAIM apud RIBEIRO 1999, p.24)
A produo cientfica em medicina deveria, j, ser determinante no trabalho
produtivo da justia.
Segundo Souza (s/d), pelo texto do Cdigo Penal brasileiro de 1890 (art. 29
e art. 27 4) podemos ver j uma preocupao com o louco infrator e sua
inimputabilidade. O referido artigo 29 dizia: Os Indivduos isentos de culpabilidade em
resultado de affeco mental sero entregues s suas famlias, ou recolhidos a hospitaes
de alienados, se o seu estado mental assim exigir para segurana do pblico; e o Art.
27 4: No so criminosos os que se acharem em estado de completa privao de
sentidos e de inteligncia no acto de cometer o crime.
V-se com isto que a influncia cientfica j consegue ser determinante nos
primeiros momentos do discurso oficial (legal) do Estado brasileiro ps-monarquista.
1.3. Dos Loucos Anos 20 ao Hospital Psiquitrico Professor Adauto Botelho
O ttulo conquistado pela dcada de 1920 de loucos anos 20
(CHOMSKY, 1997, p. 272), levando-se em conta nosso objeto de estudo (o Programa
de Ateno Integral ao Louco Infrator PAILI), nos leva a considerar o ambientecultural dessa dcada como sendo particularmente interessante tendo em vista que
aquele foi o contexto no qual se concretizou a inaugurao do primeiro manicmio
judicirio do Brasil (1921), um sonho da cincia (de nomes como Teixeira Brando)
mediado pela letra do Decreto 1.132/1903 o qual apontava em seu artigo 10 o destino
ideal do louco infrator: os manicmios criminais.
Por outro lado, todo o perodo entreguerras (as dcadas de 1920 e 1930) no
Brasil foi de interessante efeverscncia cultural. Pode-se destacar desta poca a
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produo literria de Monteiro Lobato, a carreira artstica de Carmen Miranda, e
eventos interessantes como a Semana de Arte Moderna, a profissionalizao do futebol
no Brasil e o golpe (1930) e ditadura (1930-1945) getulistas. Estes, golpe e ditadura
inauguraram no Brasil o perodo denominado Estado Novo, a primeira leva progressista
de Getlio Vargas que tinha como uma de suas pautas polticas a Marcha para o
Oeste, um movimento de interiorizao do desenvolvimento do pas que previa a
ocupao das terras do Centro-Oeste brasileiro no intuito de explor-las na
extrao/produo de commodities que subsidiassem a industrializao do sudeste e sul
brasileiros.
Os reflexos desta poltica para o Estado de Gois foram responsveis, por
exemplo, pela fundao de Goinia em 1933, mas, logo, por uma estagnao cultural ede infraestrutura, o que caracterizou-o como um Estado produtor, no-industrializado.
No mbito cultural nacional, segundo Costa (2010), parte da gerao
intelectual dos anos 1920-1930 se encontrava incomodada com as concesses no plano
doutrinal que mantinham tolerncia coexistncia de crenas religiosas europias (mais
especificamente da religio catlica) com crenas pags de ndios e negros. Muitos
escritores e poetas brasileiros tomaram por tarefa o aprofundamento do catolicismo
romano ou, como diz Bastide, proceder a um desaportuguesamento e a umadesafricanizao da religio catlica brasileira. (COSTA, 2010, p. 105; grifos no
original).
Como dito anteriormente, o Brasil dos anos 20 e 30 vivia momentos de
efeverscncia cultural, por isso foi possvel encontrar naquela poca outro tipo de
aspirao moral diametralmente oposta, que recusava a tradicional moral catlica, mas
o fazia proclamando a virtude dos vcios e a demolio de toda a conveno social. O
movimento modernista foi o catalisador dessa nova moral. (COSTA, 2010, p. 107;grifos no original).
No que se refere psiquiatria brasileira das dcadas em questo,
Facchinetti et al. (2010) e Carrara (2010) chamam a ateno para a fundao do
primeiro manicmio judicirio brasileiro no Rio de Janeiro em 1921; Tavolaro (2002)
destaca a histria do primeiro manicmio judicirio paulista, inaugurado em 1933; e
Costa (2010) destaca, a fundao da Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM) em
1923 como marco importante para a cultura psiquitrica do Brasil dos anos 20 e 30.
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De 1923 a 1925, a LBHM seguiu a orientao que [Gustavo] Riedel [seufundador] lhe havia imprimido, ou seja, a de procurar aperfeioar a assistnciaaos doentes. A partir de 1926, no entanto, os psiquiatras comearam a elaborar
projetos que ultrapassavam as aspiraes iniciais da instituio e que visavam apreveno, a eugenia e a educao dos indivduos (COSTA, 2010, p. 46)
Instituiu-se o pensamento assumidamente eugenista da psiquiatria
brasileira com pretenses formativas em nvel cultural, marcadas por xenofobia,
racismo e um antiliberalismo de simpatias nazistas. A eugenia da LBHM buscava
provar, antes de tudo, que a doena mental era um predicado dos indivduos no-
brancos (negros, rabes, japoneses, chineses etc.) ou dos brancos menos respeitados
pelos psiquiatras, como os portugueses. (Idem, p. 133).
Sendo assim, pode-se atribuir a inteno de construo da imagem de nao emtorno das representaes que envolvem a purificao da raa, que pretendiamtornar a populao mais apta ao trabalho, o que levaria o pas modernidadeimaginada. Esse discurso foi apropriado pela elite poltica de Gois nos anos de193035, a qual dialogava harmonicamente com os ideais varguistas, e assim, ainteno de se integrar ao projeto de construo da nao fica expressa com aconstruo da nova capital, a cidade de Goinia. (PAULA, 2010)
No entanto, o conjunto das bandeiras da LBHM teve pouca receptividade
nas diversas correntes de pensamento da poca (COSTA, 2010, p. 109), ficando a
histria da cultura brasileira das referidas dcadas marcada mesmo, pelo movimentomodernista e pela valorizao da produo cultural brasileira. Porm, segundo Lima
(2010), a legislao assumiu discurso eugenista-xenofbico. Atravs do decreto 24.559
de 3 de julho de 1934 que ser o ato legislativo que resistir por mais tempo, sendo
renovado apenas pela lei de 6 de abril de 2001 (idem, p. 84) preza-se a purificao
racial pela submisso a exame de sanidade de estrangeiros que, inclusive, poderiam
ser repatriados conforme o estado neuro-mental do requerente (BRASIL apudLIMA,
2010, p. p.85).O perodo entre a inaugurao dos manicmios judicirios Heitor Carrilho
(o primeiro do Brasil) no Rio de Janeiro em 1921, e Franco da Rocha em So Paulo em
35 Discurso que em Gois perdurou at a dcada de 1950, por exemplo, na oportunidade de inauguraodo Hospital Psiquitrico Professor Adauto Botelho em Goinia, haja vista o discurso do ento secretrioestadual de sade Jos Peixoto da Silveira naquela ocasio: Dentre os deveres primordiais do Governonenhum pode sobrepor-se ao de assistir sade do povo; este problema no nosso vasto Brasil encerratamanha gravidade, tal amplido e magnitude, que para ele se deve atentar com grande patriotismo; osrecursos e os esforos mximos do Governo precisam ser mobilizados para curar, robustecer e valorizar
o homem brasileiro. Sintetiza-se nestas palavras, o zelo de um homem pela vida de nossa gente, edefinem-se os propsitos do Governo de promover o aperfeioamento da nossa raa. (FOLHA DEGOIS 03/04/1954, apudPAULA, 2010, on line; grifos nossos)
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1933 viu fatos interessantes ocorrerem na histria do Brasil como a Semana de Arte
Moderna (1922), a crise econmica mundial (1929) que segundo Tavolaro (2002)
atrasou em quatro anos a inaugurao de Franco da Rocha , e o Golpe de Estado de
1930, que deu fim Velha Repblica a qual marcou os Estados brasileiros com a
poltica do coronelismo.
De qualquer forma, o nterim em questo (1921-1933), trouxe para o Brasil
as inauguraes de manicmios judicirios como um avano moderno que, segundo
Tavolaro (2002, p. 26), por exemplo, aproximava a burguesia paulista dos europeus,
fato que em Gois ainda era uma realidade distante, irrealizada, uma vez que Gois
chegou a ter um manicmio judicirio construdo (concludo em 2001), mas jamais
utilizado enquanto tal porque teve sua utilizao embargada administrativamente peloMinistrio Pblico do Estado de Gois, aps provocao do Conselho Regional de
Psicologia, por conta, dentre outros fatores, da arquitetura inadequada (Ministrio
Pblico do Estado de Gois, 2009, pp. 9-10).
Souza (2002), fazendo referncia a Francis Itami Campos, caracteriza
Gois como Estado perifrico ao lado de vrios outros que compem o arranjo
oligrquico que compem a Repblica Velha no plo oposto de estados hegemnicos
como So Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul36
.Segundo HEG (s/d), somente no ano de 1927 foi inaugurada em Anpolis
a segunda unidade hospitalar do Estado de Gois, o Hospital Evanglico Goiano 37
(privado), pelo casal James Fanstone (mdico cirurgio, ex-combatente da I Guerra
Mundial) e Ethel Marguerite Peatfield (a Dona Deise Fanstone), ingleses de origem.
Em 1924, [o casal Fanstone] mudou-se definitivamente para o corao doBrasil. Comprou uma casa na Rua Desembargador Jaime, em Anpolis, eadaptou-a para uso mdico. [...] Aos poucos, comprou terrenos e casas vizinhase comeou a construo do primeiro prdio prprio, com 20 leitos, sala decirurgia, raios-x e laboratrio. Esta construo se transformou oficialmente noHospital Evanglico Goiano (HEG), no ano de 1927, e teve a participao deenfermeiras inglesas no seu corpo clnico. (Idem)
O primeiro asilo para acolher pessoas com necessidades especiais (Asilo
So Vicente de Paulo, s/d) foi fundado em 1909 na cidade de Gois, com objetivos
36 O Rio Grande do Sul, segundo Kummer (2010), inaugurou seu primeiro manicmio judicirio em 1925.37 O primeiro hospital do Estado de Gois foi o Hospital de Caridade So Pedro Alcntara, inaugurado em1826 na cidade de Gois.
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claramente filantrpicos. Mas somente em 1954 este Estado recebe seu primeiro
hospital psiquitrico, o Hospital Psiquitrico Professor Adauto Botelho (HPPAB).
No Brasil, a dcada de 1940 decorreu sem muitas novidades no campo da
sade mental, entendemos que tambm por influncia da II Guerra Mundial (1939-1945).
Em 1941, em meio Segunda Guerra Mundial, existiam 65 hospitaispsiquitricos no Brasil (31 pertenciam rede pblica e 34 privada). Aps oPlano Salte, mais precisamente em 1961, existiam 140 hospitais (54 pblicos e86 privados). Nos 10 anos que seguiram, em que ocorreu a maior privatizaodos servios de sade da histria brasileira, em todo territrio nacional existiam340 hospitais (63 pblicos e 277 privados). (LIMA, 2010, p. 97)
Do encadeamento de fatos histricos que se seguiram nas dcadas de 1940e 1950, destacamos o aspecto poltico governamental como determinante do cenrio
poltico e cientfico que em Gois culminou na inaugurao do HPPAB.
Justamente neste perodo, em razo do desgaste poltico enfrentado pela
ditadura varguista desde 1942, em 1945 (ano marcado pelo fim da Segunda Guerra
Mundial) o governo de Getlio deposto por uma junta militar. Mas, em um processo
de eleies diretas promovido em 1950, Getlio Vargas eleito e retorna presidncia
da repblica nos braos do povo, para realizar sua segunda investida progressista noBrasil; em 1954, suicidar-se e, assim, sair da vida para entrar na histria.
Com o fim da Segunda Guerra inicia-se um ambiente cultural diferenciado
no Brasil e no mundo com, por exemplo, o avano de Hollywood 38 como a grande
indstria do cinema e, no Brasil, a colocao da televiso como principal veculo de
comunicao de massa que substituiria o rdio nesta importncia.
Diante da nova configurao poltica nacional e mundial do ps-guerra,
Getlio fez acordos de cooperao militar com os Estados Unidos e continuou sua
poltica de incentivo modernizao do Brasil com, por exemplo, a criao do hoje
denominado BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social) e a
campanha O petrleo nosso, a qual culminou com a fundao da PETROBRAS
(Petrleo Brasileiro S. A.). Porm, interessante notar que paralelamente a este
significativo fortalecimento infraestrutural do Estado, houve como acima j apontado
38 Avano do qual Carmen Miranda participou como protagonista de diversos filmes hollywoodianos,inclusive pela Disney (Walt Disney Company), participao esta que lhe rendeu severas crticas no Brasilpor pessoas que a consideravam americanizada demais.
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por Lima (2010, p. 97) a maior privatizao dos servios de sade da histria
brasileira.
Vindo, ento, dessa segunda leva progressista de Getlio, o HPPAB foi
construdo e inaugurado em Goinia no ano de 1954 por iniciativa do psiquiatra que lhedeu nome, o que pode ser ilustrado por trecho do discurso do ento Secretrio Estadual
de Sade Jos Peixoto da Silveira:
Inicialmente, cumpre salientar o esprito patritico do Sr. Diretor do Servio Nacional de Doenas Mentais, Professor Adauto Botelh