Longa Jornada Noite Adentro

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LONGA JORNADA NOITE ADENTROEUGENE ONEILL

Quando Eugene ONeill terminou Longa Jornada Noite Adentro, em 1941, decidiu que a pea no poderia ser lida nem montada seno vinte e cinco anos aps a sua morte. Indagado sobre as razes dessa exigncia, ONeill respondeu apenas que uma das personagens ainda vivia. Raros amigos tiveram o privilgio de ler os originais, antes que eles fossem enviados para os cofres da Randon House, a editora que publicava as obras de ONeill, e para a Biblioteca da Universidade de Yale. Mas a vontade do autor no foi cumprida. Em 1956, trs anos depois de sua morte, a viva de ONeill, Carlotta Monterey, liberou a publicao e a montagem da pea. Soube-se ento por que o dramaturgo no desejava que a Longa Jornada Noite Adentro viesse a pblico. Com essa autobiografia dramtica, como tantos a chamariam, ele ressuscitava seus mortos o pai, a me, o irmo , traando um comovente retrato da famlia ONeill, no qual o autor se identificava com o personagem Edmund. Em 1941, ao concluir a pea, apenas Edmund-Eugene estava vivo. Apesar de seu carter autobiogrfico, Longa Jornada Noite Adentro muito mais do que um retrato do artista quando jovem. Ainda que ONeill tenha reproduzido na obra parte de sua vida, tambm certo que determinados aspectos da realidade foram omitidos e outros simplesmente inventados. A aventura desse homem singular chamado Eugene ONeill, tuberculoso na juventude, dominado pelo medo de se tornar um alcolatra como o irmo, filho de uma mulher que se abandonou ao vcio das drogas e de um ator famoso que aviltou seu talento em peas de sucesso comercial, tem paralelos muito estreitos com a realidade de Longa Jornada Noite Adentro. Mas esse destino particular, ao ser recriado por meio do teatro, ganhou dimenso maior graas, precisamente, ao carter inconfundvel das experincias pessoais do autor , transfigurando-se e revestindo-se de um sentido comum e universal. UM LAR PROVISRIO A Barret House era uma penso familiar situada na Broadway, em Nova York, onde se hospedavam artistas de teatro, como James ONeill, que, ao regressar de suas excurses pelo pas, fazia daquela casa o seu lar. Ali, no quarto 236 do terceiro andar, nasceu Eugene Gladstone ONeill, na tarde de 16 de outubro de 1888. James ONeill, catlico de origem irlandesa, foi um grande ator que se perdeu. Poderia ter sido maior que o shakespeariano Edwin Booth (1833-1893), pois, na opinio deste, que o vira como protagonista em Otelo, James interpretava melhor que ele o famoso personagem. Mas James no soube aproveitar seu talento e se tornou apenas um bom ator, dedicando a maior parte de sua vida a representar Edmund Dantes em O2

Conde de Monte Cristo, percorrendo a Amrica de costa a costa e ganhando uma fortuna em cada temporada. Alguns bigrafos relacionam essa mudana de rumo com o seu casamento com Ella Quinlan, filha de abastado comerciante, uma jovem frgil, delicada e muito religiosa. Para casar-se com o ator, Ella foi obrigada a romper com seu meio social e sua famlia. James tinha adorao pela mulher e, para compens-la do que havia perdido, construiu casas requintadas que ela nunca pde habitar. Em 1878, nasceu James ONeill Jr., o primeiro filho do casal. Foi internado muito cedo no Colgio Notre-Dame, uma aristocrtica escola catlica. Quando Eugene nasceu James tinha dez anos e s viu o irmo trs meses depois, durante uma visita em que os pais levaram o beb ao internato. Entre James Jr. e Eugene, Ella tivera outro filho, Edmund, que morrera ainda beb, na casa dos avs, enquanto a me acompanhava o marido numa temporada pelo interior. Ella jamais se refez do sentimento de culpa por ter abandonado Edmund. Alm do mais, era uma mulher sensvel e sofria intensamente com a falta de razes que ligassem a famlia ONeill a uma casa, a uma vizinhana, a uma parquia. Desde o parto de Eugene, Ella descobrira que a morfina, que fora receitada pelo mdico para lhe aliviar as dores, tambm diminua seu nervosismo e sua insatisfao permanente. Procurou esconder do marido esse vcio e quando James descobriu j era muito tarde. Enviado para um internato catlico em Nova York. o Mount Saint-Vincent, em 1895, Eugene passou a ver seus pais muito raramente. Era um menino triste e quieto, mergulhado numa solido que se acentuava com a falta de calor humano das freiras e com o sentimento de rejeio em relao famlia. Em 1900, Eugene saiu do Saint-Vincent e foi para o De La Salle Institute, em Nova York. No segundo ano de sua permanncia no La Salle, a me resolveu intern-lo novamente. O menino esforou-se nos estudos, passou de ano com excelente mdia, mas a me sentia que era insuportvel viver com o filho, cujos olhos pareciam reprovar constantemente seus atos. Ela acabou convencendo o marido, e Eugene voltou a ser internado, em 1902, na Academia Betts, em Stanford, um colgio laico. Nessa fase ocorre sua revolta contra a religio catlica e Eugene estreita sua ligao com o irmo James, que passa a ser uma espcie de tutor, introduzindo o adolescente no outro lado do mundo teatral, do qual os pais tinham procurado preserv-lo durante a infncia. Ao terminar o curso secundrio, no ano de 1906, Eugene entrou na aristocrtica Universidade de Princeton, no leste. Sentiu imediatamente que estava num ambiente tradicional, esnobe e, sobretudo, pouco estimulante intelectualmente. Nove meses mais tarde, era expulso, por atirar uma garrafa contra a janela da casa onde vivia Woodrow Wilson (1856-1924), presidente da Universidade e, durante a Primeira Guerra Mundial, presidente dos Estados Unidos.3

Em Nova York, Eugene encontrou um clima de tenso muito grande na famlia, pois James, tambm expulso de Notre-Dame, no ano anterior, no conseguia se definir profissionalmente, entregando-se a bebedeiras e farras sem fim. Tentara a carreira de reprter e depois resolveu ser ator. Eugene, por sua vez, foi trabalhar como escriturrio numa empresa de promoes. O emprego era tedioso, mas Eugene passava a maior parte do tempo numa livraria da 6. Avenida, cujo proprietrio, Benjamin Tucker, era um dos mais conhecidos membros do movimento anarco-individualista americano. Eugene absorvia suas idias, seus livros, suas palavras de ordem; mas a contribuio mais importante de Tucker foi revelar a ONeill a obra de Friedrich Nietzsche (1844-1900). Assim Falava Zaratustra, a grande obra proftica de Nietzsche, acabou por se tornar o catecismo de ONeill, a resposta que ele desejava contrapor ao primeiro dos seus catecismos: o catlico. Naquela fase de sua vida anrquica, o pensamento de Nietzsche no era apenas uma refutao ao nvel religioso, mas a confirmao de um estado de esprito, uma disposio em relaco vida que era a sua. Deves trazer o caos dentro de ti para fazer nascer uma estrela bailarina. Um dia, em 1909, Eugene comunicou famlia que ia se casar. Na verdade, a moa, Kathleen Jenkins, j estava grvida. O filho nasceu pouco tempo depois do breve e tumultuoso casamento, quando ONeill no se encontrava mais nos Estados Unidos. Havia ido para Honduras, em busca de novas oportunidades ou, segundo a opinio unnime de seus bigrafos, para fugir dos problemas. O casamento foi um erro e o casal divorciou-se oficialmente em 1912. Vtima da febre amarela, Eugene teve que voltar para Nova York. O pai tentou ento fazer dele uma espcie de assistente de diretor, em sua companhia de teatro; mas em trs meses de excurso, Eugene no demonstrou o menor interesse pelo trabalho. Lia muito, principalmente relatos de viagem de Jack London (1876-1916), Josef Conrad (1857-1924) e Rudyard Kipling (1865-1936). Um dia resolveu partir para Buenos Aires, no navio Charles Racine, que saiu do porto de Nova York na primavera de 1910. Em Buenos Aires, trabalhou algum tempo num frigorfico e numa fbrica de mquinas de costura. Durante os perodos de desemprego ia aos bares do cais, freqentados por marinheiros que contavam suas aventuras, falavam de amores distantes, bebiam e jogavam muito. Em 1911 voltou para Nova York, engajado como marinheiro no Ikalis. Ao chegar, no procurou imediatamente a famlia nem demonstrou curiosidade em conhecer o filho, Eugene Gladstone ONeill Jr. Sua primeira providncia foi alugar um quarto numa penso que ficava em cima do Jimmy-the-Priest, conhecido bar de marinheiros. O bar e a penso eram freqentados por estivadores, prostitutas, contrabandistas, desempregados e anarquistas. De vez em quando Eugene aceitava um emprego em algum barco-correio ou navio de longo curso. O mar havia se tornado para ONeill um smbolo de liberdade e conhecimento.4

Mas afinal, cansado e sem dinheiro, foi ao encontro da famlia, em Nova Orleans. O pai achou que estava na hora de arranjar um emprego para o filho e convidou-o para fazer uma ponta em O Conde de Monte Cristo. No havia alternativa e Eugene seguiu a companhia at o extremo oeste dos Estados Unidos. Na volta, ficaram algum tempo na casa de New London, em Connecticut. Foi ali, no ms de agosto, que ONeill comeou a trabalhar como reprter no Telegraph. O proprietrio do jornal, Frederick Latimer, interessou-se pelos escritos de Eugene e percebeu que ele no tinha apenas talento literrio, mas gnio. Naquela poca Eugene escrevia muito, apesar do precrio estado de sade que acabou por lev-lo para um sanatrio de tuberculosos. No sanatrio, durante o inverno e a primavera de 1912-13, ONeill sentiu que escrever para teatro era a melhor forma de expressar o que sentia em relao vida. A deciso de se tornar um dramaturgo no surgiu subitamente. Na verdade, ONeill no sabia de teatro apenas o que o velho James lhe ensinara. Lera toda a obra de William Shakespeare (1564-1616), assistira a numerosas montagens dos autores gregos e elisabetanos, conhecia alguma coisa do teatro europeu do sculo XIX. Desde 1911, seu interesse crescera muitssimo e ele se convertera num espectador assduo dos teatros de Nova York. Era um grande admirador de Ibsen (1828-1906) e, sobretudo, de Strindberg (1849-1912). Em 1914, quando entrou para a Oficina Dramtica do professor George Peirce Baker, em Harvard, ONeill j havia escrito vrias peas de teatro, como Uma Esposa para Sempre (A Wife for Life) e A teia de Aranha (The Web). Essas e outras obras, algumas das quais includas no volume Sede e Outras Peas em Um Ato (Thirst and Other One-Act-Plays), seriam renegadas mais tarde pelo autor, que as considerava de m qualidade. Dessa fase, apenas Sede, Rumo a Este para Cardiff (Bound East for Cardiff) e Nvoa (Fog) chegaram a ser montadas. ONeill permaneceu no curso do professor Baker apenas oito meses. Em junho de 1915 abandonou Harvard. Trs meses depois estava morando em Greenwich Village, Nova York, onde encontrou um bar irlands, o Hell Hole, sucedneo do velho JimmythePriest. O Hell Hole tambm era freqentado por marginais, s que de uma espcie diferente a dos intelectuais outsiders: jornalistas, atores, anarquistas, polticos de esquerda. No Village, ONeill conheceu Terry Carlin, cuja prosa brilhante conquistara algumas amizades, como a de Jack London e Theodore Dreiser (1871-1945), o jornalista John Reed (1887-1920) e sua mulher Louise Bryant. Durante o vero de 1916, ONeill, Carlin, John e Louise foram para Provincetown, uma cidade praiana de Cape Cod, Massachusetts, que se tornou decisiva na vida de ONeill. Desde o ano anterior, um grupo de teatro do Village, os Players, fazia ali suas montagens de vero. ONeill e seus companheiros ligaram-se ao grupo, que ficou logo interessado na encenao de Rumo a Leste para Cardiff. Duas semanas mais tarde, a pea era montada com sucesso. A experincia de Provincetown animou o grupo a se5

estabelecer, de maneira regular, num teatro em Nova York, o Playwrights Theatre, cujo nome foi sugerido por ONeill. O objetivo do grupo era a montagem de peas novas de autores americanos. Entre 1917 e 1918, ONeill escreveu vrias peas em um ato, das quais as mais significativas foram reunidas depois no volume S. S. Glencairn: A Longa Viagem de Volta (The Long Voyage Home), Na Zona (In the Zone), A Lua das Caraibas (The Moon of the Caribees). E foi no outono de 1917 que Eugene comeou a se projetar como dramaturgo. Algumas de suas peas foram publicadas a partir desse ano, na revista Smart Set. Os Washington Square Players interessaram-se por Na Zona e montaram-na em outubro daquele mesmo ano, enquanto A Longa Viagem de Volta era encenada pelos comediantes de Provincetown. Em 1918, ONeill casou-se com Agnes Boulton, jovem escritora que ele conhecera no Hell Hole, em fins de 1917. Mas o casamento fracassou. Eugene precisava de uma esposa que tambm fosse me e secretria, e Agnes estava muito empenhada em seu prprio trabalho. Haviam feito um acordo de no ter filhos, mas Agnes acabou dando luz dois: Shane, que nasceu em 1919, e Oona, em 1925. Separaram-se em 1926. Apesar de suas grandes desavenas com Agnes, ONeill criou nesse perodo a maior parte de suas obras-primas, tendo mesmo dedicado a ela sua primeira pea em trs atos Alm do Horizonte (Beyond the Horizon). A pea foi apresentada no Morosco Theatre, na Broadway, em 1920, e lhe valeu o Prmio Pulitzer, em junho desse mesmo ano. Eugene ONeill estava definitivamente lanado. Alm do Horizonte fazia sucesso na Broadway; Chris Christopherson era aplaudida em Atlantic City; Exorcismo (Exorcism), uma pea experimental, estreava no Village; ONeill escrevia Ouro (Gold) e se preparava para retomar o tema de Chris Christopherson e criar Anna Christie, a histria da regenerao de uma prostituta pelo amor. Anna Christie estreou em 1921 e ONeill recebeu seu segundo prmio Pulitzer. Grande parte dos dramas escritos por ONeill abordava a condio de alguns homens que ele conhecia bem, especialmente aqueles ligados ao mar. O desenvolvimento dramtico de suas peas baseava-se no naturalismo cnico, mas a grande novidade de sua obra no estava na forma e sim nos temas, na rudeza de seus personagens, na devassa que ele fazia de seus pensamentos e sentimentos mais ntimos. Desde o incio, ONeill permeou suas obras de uma ironia trgica. Quase sempre, os homens alimentavam-se de sonhos que no conseguiam realizar, pois os caminhos escolhidos conduziam ao fracasso. Se, por um lado, os personagens de ONeill no podem viver sem iluses, tambm certo que sofrem com a impresso de que jamais alcanaro seus objetivos. As iluses constituem a perdio e a redeno dos personagens, pois ONeill afirma que sonhar uma das condies para viver. Devemos alimentar nossos sonhos, mesmo sabendo que ser difcil concretiz-los. Para ONeill, o nico sucesso est no fracasso e qualquer6

homem que se surpreenda um dia pensando no haver mais o que perseguir est acabado. O Imperador Jones (The Emperor Jones), escrita em 1920 e levada cena no mesmo ano pelos Provincetown Players, tinha pouca relao com as outras peas de ONeill. Na verdade, O Imperador Jones foi um marco, no s na histria de ONeill como na do prprio teatro americano. A pea abandona os moldes naturalistas, para introduzir o expressionismo na obra de ONeill e no teatro americano. O protagonista um negro, Brutus Jones, carregador de malas numa estao ferroviria, que comete um assassinato e foge de navio para uma ilha das ndias Ocidentais, onde acaba se tornando imperador de uma tribo. Jones explora o povo, faz fortuna, at que a tribo se revolta e ele se v obrigado a fugir, refugiando-se na floresta, onde finalmente morto. Em 1921, ONeill parecia interessado unicamente no seu trabalho. O Primeiro Homem (The First Man), A Fonte (The Fountain) e O Macaco Peludo (The Hairy Ape) foram escritas nesse ano. O Macaco Peludo era a mais brilhante e ofuscou as duas primeiras. A Fonte, na qual ONeill dramatiza o idealismo de Ponce de Lon ao buscar a fonte da juventude, s chegou cena em 1925. O Primeiro Homem estreou em maro de 1921 e foi uma das produes menos felizes do autor. Durante os ensaios, em fevereiro, ONeill recebeu um telegrama de James, que se encontrava na Califrnia com a me, comunicando que ela estava muito doente. Poucos dias depois ela morreria. No dia anterior morte de Ella, O Macaco Peludo tinha estreado no Playwrights Theatre, com um sucesso fantstico. Um ms depois, iniciava sua carreira na Broadway. O papel de Milkdred era interpretado ento por uma bela atriz, Carlotta Monterey, que substitura Mary Blair. O primeiro contato de Carlotta com ONeill nada teve de excepcional e ele mal se deu conta de sua presena. Quando voltaram a se ver, cinco anos mais tarde, o reencontro foi decisivo na vida de ambos. Em 1923, ONeill escreveu Acorrentados (Welded), na qual abordou o tema do casamento, analisando um casal em sua relao de amor e dio. Nesse mesmo ano escreveu outra pea, Todos os Filhos de Deus Tm Asas (All God s Children Got Wings), que tratava de um tema at ento indito nos palcos americanos: o problema conjugal entre uma branca e um negro. Em novembro desse ano, ONeill perdeu o irmo James, que passara vrios meses numa clnica tentando se recuperar do alcoolismo. Desejo sob os Olmos (Desire Under the Elms) foi o grande xito de 1924. Nessa obra evidenciava-se nitidamente a influncia da tragdia grega, mais precisamente de Hiplito e Media, de Eurpides (484-406 a.C.). A madrasta se apaixona pelo enteado, trai o marido e engravida, acabando por matar o filho para provar ao esposo o seu amor. A pea criou problemas com a censura e chegou a ser proibida em algumas cidades, como Boston e Los Angeles. Em janeiro de 1925, ONeill, cansado e preocupado com o vcio de beber, temeroso de ter o mesmo fim do irmo, resolveu submeter-se psicanlise. Por sugesto do psicanalista comprou uma casa nas Bermudas e se mudou com a famlia para l, onde trabalhou em duas novas peas O Grande Deus7

Brown (The Great God Brown) e Marco Milhes (Marco Millions), esta ltima iniciada em 1923. No fim de 1925, o Greenwich Village Theatre, do qual ONeill fazia parte como scio, encenou A Fonte, e em janeiro de 1926, O Grande Deus Brown. ONeill estava empenhado tambm na cara produo de Marco Milhes, na qual um produtor da Broadway, David Belasco, parecia interessado. Mas depois de um ano de indecises, Belasco desistiu e Marco Milhes teve que esperar mais dois anos para ser encenada, no Guild Theatre. Tanto O Grande Deus Brown como Marco Milhes, apesar de sua diferente ambientao (a primeira se passava na poca contempornea, nos Estados Unidos, e a segunda tratava da viagem de Marco Polo China no sculo XIII), eram uma crtica ao mito do sucesso e do dinheiro. Ainda em 1926, ONeill escreveu Lzaro Riu (Lazarus Laughed), na qual dramatizava a vida de Lzaro, aps a sua ressurreio por Cristo. ONeill procurava situar um novo idealismo religioso, mesclado de elementos cristos, nietzscheanos e orientais. No vero desse mesmo ano, ONeill e a famlia foram para o Maine, nos Estados Unidos. Perto da casa dos ONeill morava uma amiga do autor, Elizabeth Marbury, que na poca estava hospedando Carlotta Monterey. O reencontro de ONeill e Carlotta foi decisivo. Apaixonaram-se, voltaram a se encontrar em Nova York e, no ano seguinte, Eugene abandonou Agnes. O divrcio seria muito mais difcil de conseguir do que ONeill imaginava. Agnes no chegava a um acordo sobre a penso e desejava sempre mais do que ONeill estava disposto a conceder. Em janeiro de 1928 estreou Estranho Interldio (Strange Interlude), no John Golden Theatre. A pea, de nove atos, no era nem uma tragdia, nem um drama realista, nem um drama simblico, mas uma mistura de todas essas formas num drama sobre uma mulher, Nina Leeds, em toda uma gama de papis: me, esposa, amante, filha. Estranho Interldio foi a pea de ONeill que alcanou maior xito comercial: rendeu-lhe duzentos mil dlares. Ficou anos em cartaz e graas a ela ONeill recebeu mais um prmio Pulitzer. Eugene e Carlotta resolveram ento fazer uma viagem Europa e embarcaram, incgnitos, em fevereiro de 1928. Foi uma longa viagem, que se estendeu at o Oriente. ONeill no conseguia trabalhar: bebia demais para aliviar a tenso provocada pelas exigncias de Agnes sobre o divrcio. A ltima bebedeira, em Xangai, culminou com seu internamento num hospital. Em julho de 1929, Agnes finalmente concedeu-lhe o divrcio. ONeill e Carlotta casaram-se em Paris. Quando terminou de escrever Electra e os Fantasmas (Mourning Becomes Electra), ONeill dedicou-a a Carlotta. Era mais uma obra-prima. ONeill lanara-se ao projeto ambicioso e feliz de basear sua pea num mito da Antiguidade clssica. Foi uma prova difcil, mas ele arrebatou mais elogios da crtica por essa pea do que em qualquer das anteriores. Electra e os Fantasmas passou histria como a maior tragdia americana.8

ONeill e Carlotta retornaram aos Estados Unidos em maio de 1931. Em outubro, Electra foi levada cena e, para no fugir regra, o autor no compareceu estria. Estava em sua casa, recm-adquirida, a Genotta, em Sea Island, na Gergia, e comeava a escrever Dias sem Fim (Days Without End). A pea abordava a aridez espiritual da poca e s ficou pronta em 1933. No ano anterior, ONeill concluiu A Juventude no Tudo (Ah, Wilderness!), uma comdia. Em 1934, Dias sem Fim foi encenada pelo Guild Theatre um grande fracasso. ONeill resolveu afastar-se temporariamente das lides teatrais para se dedicar a um ciclo de peas que trataria da ascenso e queda de uma famlia americana. Trabalhou no projeto de 1935 a 1939, mas, insatisfeito com os resultados, rasgou a maior parte dos manuscritos. Sobraram apenas duas peas: Um Toque de Poeta (A Touch of Poet) e A mais Slida Manso (More Stately Mansion). Depois de dois anos de silncio foi surpreendido, em 1936, com a concesso do prmio Nobel de Literatura. Mudou-se da Gergia para a Califrnia, onde, em sua Tao House, uma imponente manso, escrevia e recebia poucos amigos. Viveu na Tao House por mais de seis anos, sua maior permanncia numa casa at ento, e s a abandonou por motivos de sade, em 1944. Foi na Tao House que ONeill voltou a ver os filhos, Shane, Oona e Eugene Jr. Quando Oona se casou com Charles Chaplin, em 1943, ONeill a deserdou e nunca mais quis v-la. Shane tornou-se um segundo James ONeill, e Eugene Jr. parecia, em seu cargo de professor assistente em Yale, o nico de seus filhos a lhe trazer satisfaes. Desde seu retiro voluntrio, Eugene ONeill comeou a sofrer os primeiros sintomas da doena que acabaria por impedi-lo de escrever, pois atacava o sistema motor. A partir de 1939, com a guerra, a mudana para a Califrnia e a doena, ONeill comeou a se voltar para o seu passado. Naquele mesmo ano escreveu O Geleiro Chegou (The Iceman Cometh). Havia na pea um bar chamado Harry Hope, uma mistura do Hell Hole e do Jimmy-the-Priest. Foi nessa volta ao passado, revendo seus fantasmas, que escreveu Longa Jornada Noite Adentro (Long Days Journey into Night, 1919-41), a ltima e a mais dolorosa das suas peas de carter autobiogrfico, e Uma Lua para o Bastardo (A Moon for the Misbegotten), onde dramatizava a vida de James, seu irmo. Os ltimos anos da vida de ONeill foram extremamente difceis e solitrios. Sua ligao com o mundo exterior era Carlotta. Os mdicos no conseguiam deter o curso da doena. Em 1951, ONeill mudou-se para um hotel, em Boston, o Shelton, prximo ao hospital onde trabalhava a equipe mdica que o assistia. Em novembro de 1953 seu estado se agravou. No dia 24 deixou de comer; na madrugada do dia 27, morreu. Nesses dias de agonia, num momento de lucidez, balbuciou: Nascido num quarto de hotel e, maldito seja, morto num quarto de hotel! UMA RDUA JORNADA9

A tragdia de Longa Jornada Noite Adentro motivada pelo drama da famlia Tyrone, cujos elementos se baseiam na biografia da famlia ONeill. O pai, James Tyrone (como James ONeill), filho de pobres imigrantes irlandeses. Da mesma forma que James, Tyrone investiu sua carreira numa obra de sucesso fcil, sabendo que poderia ter sido um grande ator. H uma caracterstica no personagem, entretanto, que no corresponde ao modelo real: o materialismo exacerbado. Edmund corresponde a Eugene ONeill. Ao longo da pea o autor alude sua vida de vagabundo na Amrica do Sul, febre amarela contrada nos trpicos, s noites na taverna Jimmy-the-Priest, infncia nefasta de James, o irmo mais velho. Mas o autor omite que em 1912, ano dos acontecimentos de Longa Jornada Noite Adentro, Edmund j havia se casado, tido um filho e se divorciado. Curiosamente, ONeill apropriou-se do nome do irmo falecido, Edmund, enquanto que, no decorrer da pea, a me se refere ao filho morto como Eugene. James inteiramente James ONeill, um bbado irrecupervel, intil e perdulrio, sem qualquer esperana de redeno. Traz em si a marca de Caim o filho e irmo maldito. rejeitado pela me e pelo pai, acusado de corromper Edmund, responsvel (segundo a me) pela morte do pequeno Eugene, pois tinha cime dele. Aos sete anos, quando contraiu sarampo, sabia que devia ficar afastado do beb mas entrou no quarto do irmo, deliberadamente e o contaminou, levando-o morte. Mary Tyrone, a me, corresponde a Ella, numa imagem de pureza e inocncia, a projetar no destino os motivos de sua falncia. Mary diz: Nenhum de ns pode remediar as coisas que a vida nos faz! Esto feitas antes mesmo que a gente se aperceba... Ela aceita a condenao impotncia, como se fosse uma sina, e tenta sobreviver dentro do sonho provocado pela droga. Esta, por instantes, preserva-a da dor de viver uma vida que no teve nenhuma complacncia com sua fragilidade. A Longa Jornada Noite Adentro, como especifica ONeill, aconteceu num dia de agosto de 1912, quando a famlia estava reunida em sua casa de veraneio. Edmund apresentava sintomas de tuberculose e trabalhava no jornal daquela pequena comunidade beira-mar. O pai estava muito preocupado mas bastante esperanoso, pois Edmund comeara a escrever. No cenrio em que se ambienta a pea, o tapete surrado, mas h muitos livros em duas estantes distintas. A de Tyrone, com livros histricos, obras de Shakespeare, Dumas e Victor Hugo; a de Edmund, com obras de Zola, Ibsen, Strindberg e outros autores, que o velho James ONeill como James Tyrone considerava decadentes. Nesse cenrio, inundado de sol no primeiro e segundo atos, obscurecido pelo nevoeiro s 18h30 do mesmo dia, no terceiro ato, e rodeado pela noite no quarto ato, que os personagens se atormentam e se descobrem. Longa Jornada Noite Adentro uma tragdia porque os personagens so em parte responsveis por sua prpria destruio, embora tambm sejam vtimas de algo que no conseguem controlar e que se pode chamar de destino. No se trata de uma pea de enredo mas de ao psicolgica, pois o que realmente aconteceu aos Tyrones est no10

passado; esse passado revisitado, trazido cena nos sucessivos embates entre os personagens, justificando a ao presente. O tempo do drama vai das 8h30 da manh at a meia-noite, mas o tempo psicolgico muito maior, porque esse dia corresponde a uma vida inteira. A ao comea numa manh ensolarada, com Mary Tyrone entrando em cena, sorrindo afetuosamente, e termina quando ela, meia-noite, envolta pelo sonho provisrio da morfina, remete ao ponto onde tudo comeou. Nesse momento, Mary sente falta de alguma coisa que se perdeu e durante alguns minutos procura descobrir como e quando isso teria ocorrido. Voltando ao passado, ela se reencontra no convento, experimentando uma vocao religiosa que no foi levada adiante. Logo a seguir, numa primavera, ela conheceria James Tyrone, apaixonar-se-ia por ele e, durante algum tempo, seria muito feliz. Entre a imagem de Mary sorrindo afetuosamente e a cena final, todos os personagens percorreram um trajeto idntico dentro de sua prpria noite. Para cada um houve momentos de confisso, de revelao, de esclarecimento, atravs dos vrios conflitos entre eles. Um dos conflitos mais importantes se d entre Edmund e seu irmo James. Pouco antes, James Tyrone e Edmund haviam tido seu confronto definitivo, quando o velho revelara ao filho mais moo as razes que o levaram a prostituir-se profissionalmente. O confronto termina com um momento de compreenso entre o pai e o filho. O conflito com James, que aparece camuflado desde o incio, revela-se afinal mais violento e profundo. James demonstra todo seu rancor por Edmund ter sido sempre o queridinho, porque Edmund est no caminho de se encontrar e ele se sente perdido. James tenta destruir as iluses do irmo, como deliberadamente procurara destru-lo no passado, quando o introduziu em seu estilo de vida decadente. James no tem iluses, nem sonhos, nem vontade, nem f. o mais indefeso, porque ainda lhe restam alguma lucidez e conscincia sobre seu prprio estado. Sabe que irrecupervel, como o prprio James ONeill, que morreu aos 45 anos, vitima do lcool e de si mesmo. A jornada de Edmund mais positiva. No itinerrio do sofrimento, ele chega luz, erguendo o vu das iluses. Se por um lado isso lhe causa imensa dor, por outro o projeta numa dimenso na qual ele consegue superar seu desespero, iluminando-se, redimindo-se. Em Lzaro Riu, ONeill tem uma frase que poderia resumir a condio dos personagens de Longa Jornada Noite Adentro: A vida para cada homem uma cela solitria cujas paredes so espelhos. Assim o foi para os quatro Tyrones na viagem de um longo dia dentro da noite, quando conseguiram levar at o fim a descoberta insuportvel de sua fragilidade.

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PERSONAGENS JAMES TYRONE MARY CAVAN TYRONE, sua esposa JAMIE TYRONE, seu primognito EDMUND TYRONE, o filho caula CATHLEEN, a empregada

CENRIOS ATO 1 Sala da casa de veraneio dos Tyrone. s 8h30 da manh de um dia de agosto de 1912.

ATO II Cena I O mesmo, por volta das 12h45. Cena II O mesmo, mais ou menos uma meia hora aps. ATO III O mesmo, tarde, por volta das 6h30. ATO IV O mesmo, meia-noite.

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ATO I CENRIO Sala da casa de veraneio de James Tyrone, numa manh de agosto de 1912. No fundo do cenrio, duas portas duplas com portires. A da direita leva a uma sala de frente, cujo aspecto solene e bem arrumado revela que raramente usada. A outra d para uma sala dos fundos, escura e sem janelas, que serve apenas de passagem do living room para a sala de jantar. Junto parede, entre as portas, h uma pequena biblioteca sobre a qual pende um retrato de Shakespeare e que contm romances de Balzac, Zola, Stendhal e obras filosficas e sociolgicas de Schopenhauer, Nietzsche, Marx, Engels, Kropotkin e Max Steiner, peas de Ibsen, Shaw e Strindberg, poemas de Swinburne, Rossetti, Wilde, Ernest Dowson, Kipling, etc... Na parede da direita, no fundo, h uma porta telada que conduz ao ptio, o qual rodeia quase que a metade da casa. Mais adiante, trs janelas do para o parque e sobre o porto e a avenida que bordeja o cais. Contra a parede h uma mesinha de vime e uma escrivaninha de carvalho, dessas de tipo comum, encostadas s janelas. Na parede da esquerda, uma srie anloga de janelas d sobre os terrenos do fundo. Sob as mesmas, um div de vime com almofades, cuja cabeceira se acha voltada para o lado de fora. Mais atrs v-se uma grande biblioteca com porta de vidro, com colees de Dumas, Victor Hugo, Charles Lever, trs volumes de Shakespeare, a Melhor Literatura do Mundo em cinqenta grandes tomos, a Histria da Inglaterra, de Hume, a Histria do Consulado e do Imprio, de Thiers, a Histria da Inglaterra, de Smollett, a Histria da Decadncia do Imprio Romano, de Gibon, e diversos volumes com antigas comdias, poemas e histrias da Irlanda. O que chama a ateno nessas colees que todos os volumes parecem ter sido lidos. O cho de hardwood parece estar totalmente recoberto por um tapete de desenho vago e tonalidades apagadas. No centro h uma mesa redonda com uma lmpada de ler, munida de um13

abajur verde, cujo cordo est embutido em uma das quatro lmpadas do lustre. Ao redor da mesa, ao alcance da luz, h trs poltronas de vime e direita, adiante daquela, uma cadeira de balano, de carvalho envernizado, com assento de couro. So, pouco mais ou menos, oito horas e meia. O sol penetra pelas janelas da direita. Ao levantar-se o pano do fundo, a famlia acaba de tomar o caf da manh. Mary Tyrone e seu marido saem juntos da sala dos fundos. Vm da sala de jantar. Mary tem cinqenta e quatro anos e uma mulher de estatura mediana. Sua silhueta elegante, ainda juvenil, um tanto rolia, mas nela no se notam a cintura e as cadeiras prprias da idade madura, apesar de no usar um colete muito ajustado. Seu rosto tipicamente irlands. Deve ter sido um rosto lindo, e ainda chama a ateno. No se harmoniza com a sade que sua silhueta denota. enxuto e plido, nele sobressaindo a estrutura ssea. Tem o nariz longo e reto e a boca larga, de lbios carnudos e sensveis. No usa ruge nem qualquer espcie de maquilagem. O cabelo farto e de um branco puro emoldura sua testa. Acentuados por esse cabelo e por sua palidez, seus olhos, de um pardo escuro, parecem negros. So excepcionalmente grandes e belos, de sobrancelhas negras e pestanas frisadas. O que imediatamente chama a ateno seu extremo nervosismo. Suas mos nunca esto quietas. Foram lindas mos de longos dedos finos, mas o reumatismo tornou nodosas as articulaes e deformou os dedos, que agora parecem mutilados. Todos evitam fit-los, sobretudo porque se nota que Mary no consegue esquecer o triste aspecto que apresentam, e sente-se humilhada por no poder dominar esse nervosismo que mais chama a ateno sobre suas mos. Veste-se com simplicidade, mas com uma segura intuio do que lhe vai bem. Tem o cabelo cuidadosamente penteado. Sua voz e suave e atraente. Quando est alegre, sente-se nessa voz um leve sotaque irlands. Sua qualidade mais sedutora e que nunca perdeu o simples e espontneo encanto juvenil de uma menina de colgio, uma inata inocncia alheia vida mundana. James Tyrone tem sessenta e cinco anos, porm parece ter dez anos menos. De estatura mdia, largo de ombros e de peito, dir-se-ia que sua estatura mais elevada devido ao14

porte, cujas caractersticas so prprias de um soldado: leva a cabea erguida, o peito estufado, o ventre contrado e os ombros quadrados. Seu rosto j apresenta os primeiros sinais da velhice, mas ainda assim um belo rosto de homem a cabea grande, bem modelada , possui um belo perfil e olhos fundos, de uma tonalidade parda e clara. Seu cabelo grisalho rareia, e ostenta uma calvcie semelhante tonsura de um frade. Na sua personalidade est inconfundivelmente estampado o selo de sua profisso. No porque tenha por hbito comprazerse em alguma das deliberadas atitudes temperamentais prprias do ator teatral. Por gosto e natureza, um homem simples, sem pretenses, cujas inclinaes no se afastam muito do humilde incio que teve na vida e dos agricultores irlandeses que foram seus antepassados. Mas, inconscientemente, ator, e se trai em todos os vcios e hbitos de linguagem, em seu modo de ser, nos gestos prprios de uma tcnica estudada. Tem uma bela voz sonora e flexvel, de que muito se orgulha. Seu modo de vestir no certamente prprio de um papel romntico. Usa um bluso americano cinza, de confeco; e uns sapatos negros, sem lustre algum; uma camisa sem colarinho, e um grande leno branco enrolado frouxamente no pescoo. Esta indumentria de uma humildade vulgar em que nada revela uma pitoresca negligncia. Tyrone de opinio que se deve usar a roupa enquanto esta dura. Vestiu-separa trabalhar no jardim e no se incomoda em absoluto com o prprio aspecto. Nunca esteve realmente enfermo um dia sequer de sua vida. como se no possusse nervos. Nele h muito do campons estpido e rude em que se mesclam veias de melancolia sentimental, e irrompem raros fulgores de intuitiva sensibilidade. O brao de Tyrone envolve a cintura de sua mulher quando ambos vm da sala dos fundos. (Ao entrar, abraa-a com ar travesso.) TYRONE difcil abra-la, Mary, agora que voc aumentou dez quilos.15

MARY (sorrindo afetuosamente) Diga clara e simplesmente que engordei demais, querido. Na verdade, deveria perder um pouco deste peso. TYRONE Em absoluto, minha senhora! Voc est tima! No falemos de perder peso. Foi por isso que comeu to pouco no caf? MARY To pouco? Julguei at que tivesse comido muito. TYRONE No. Pelo menos no tanto quanto eu teria desejado. MARY (em tom de brincadeira) Oh! Voc pretende, por acaso, que todos comam feito voc? Ningum poderia devorar um caf da manh igual ao seu, sem morrer de indigesto. (D uns passos e se detm direita da mesa.) TYRONE (seguindo-a) No creio que eu seja assim to gluto. (Com sincera satisfao) Porm, graas a Deus, conservo o apetite e a digesto de um jovem de vinte anos, apesar dos meus sessenta e cinco. MARY Bem o creio, James. Ningum poderia neg-lo! (Ri e se senta na cadeira de vime que se acha direita, afastada da mesa. Seu marido se aproxima por trs, escolhe um charuto de uma caixa que est sobre a mesa, e com uma pequena tesoura corta-lhe a ponta. Da sala de jantar chegam as vozes de Edmund e Jamie. Mary volve a cabea nessa direo.) Por que tero os rapazes ficado na sala de jantar? Cathleen deve estar esperando que venham embora a fim de poder tirar a mesa. TYRONE (em tom alegre, mas com um laivo de ressentimento na voz) Certamente fazem alguma conspirao, e no querem que os oua. Aposto como esto urdindo algum plano para extorquir dinheiro do velho! (Mary no responde e permanece com a cabea voltada em direo s vozes dos filhos. Suas mos se movem inquietas sobre a mesa. Tyrone acende seu charuto, senta-se na cadeira16

de balano direita da mesa, e, com ar satisfeito, lana baforadas de fumo.) TYRONE Nada como o primeiro charuto que se fuma aps o caf da manh, quando de boa qualidade. E esse novo mao de charutos tem o sabor perfeito, ideal. Alm do mais, foi uma pechincha. Comprei-os muito barato. Foi McGuire quem os conseguiu para mim. MARY (com certo azedume) Suponho que no lhe ter impingido, ao mesmo tempo, uma nova propriedade. Suas pechinchas em matria de negcios no do assim to bom resultado! TYRONE (na defensiva) No sou dessa opinio, Mary. Afinal de contas, foi ele quem me aconselhou a comprar aquela casa da rua Chestnut, e a revendi com um belo lucro. MARY (sorrindo com zombeteiro afeto) Bem o sei! A famosa oportunidade que nunca se repete na vida... Certamente McGuire no sonhou sequer... (Acaricia a mo do marido.) Perdoa-me, James. Quem poderia convenc-lo de que no um especulador astuto em negcios de bens? TYRONE (com ar aborrecido) No se trata disso. Mas terra sempre terra, e mais seguro que os ttulos e as aes dos vigaristas de Wall Street. (Em tom conciliador) melhor que, to cedo, no falemos de negcios. (H uma pausa. Tornam-se a ouvir as vozes dos filhos, e um deles tem acesso de tosse. Mary escuta com ar inquieto. Seus dedos tamborilam sobre o tampo da mesa, nervosamente.) MARY James, deveria passar um pito em Edmund, por no comer o suficiente. Apenas beliscou alguma coisa, alm do caf. Se no come, forosamente se enfraquecer. Repito-o sem cessar, mas ele me responde simplesmente que no tem fome. Com efeito, um forte resfriado de vero torna qualquer um inapetente. TYRONE , natural. Contanto que no se aflija... MARY (rapidamente)17

Oh! No! Sei que Edmund, se tomar cuidado, estar restabelecido dentro de alguns dias. (Como se quisesse desviar o assunto, porm sem consegui-lo.) Mas uma pena que tenha ficado doente... logo agora. TYRONE Sim, foi pouca sorte! (Olha-a de soslaio, inquieto.) Mas, no se preocupe com isso, Mary. Lembre-se de que deve tambm cuidar-se. MARY (bruscamente) No me preocupo. No h motivo para tal. Por que haveria de supor... TYRONE Por nada. Nestes ltimos dias tenho notado que voc anda um pouco nervosa. MARY (com um sorriso forado) Verdade? Que absurdo, meu bem. pura imaginao. (Com um ar bruscamente tenso) No fique assim me observando a toda hora, James. Quero dizer isso que me irrita e me pe nervosa. TYRONE (pe a mo sobre uma das de sua esposa, que novamente tamborilam sobre a mesa) Vamos, vamos, Mary. Agora a culpa da sua imaginao. Se a observo apenas para admirar o quanto est rolia e bonita. (Bruscamente a emoo na sua voz trai um profundo sentimento.) No imagina, querida, o quanto me sinto feliz ao v-la assim, desde que voc retomou a vida ao nosso lado. (Inclina-se e impulsivamente a beija. A seguir, volvendo o rosto, com um ar constrangido, acrescenta) Insista nesse esforo, Mary... por favor. MARY (que afastou o rosto) Eu o farei, querido. (Levanta-se com ar impaciente e caminha at as janelinhas da direita.) Por sorte, a neblina est se dissipando. (Volta-se) Esta manh sinto-me malhumorada. Perturbou-me o sono essa horrvel sirene que esteve apitando a noite inteira. TYRONE Sim, como ter uma baleia ferida no ptio dos fundos! A mim, tampouco me deixou dormir. MARY (achando graa e com ar afetuoso) mesmo?!! Voc tem uma forma estranha de insnia! Roncava tanto, que eu no sabia distinguir os seus roncos dos apitos da sirene! (Aproxima-se rindo e lhe d uma pancadinha afetuosa no rosto.) Nem mesmo dez sirenes bastariam para acord-lo. No tem nervos. Nunca os teve.18

TYRONE (irritado na sua vaidade, com tom impertinente) Que tolice! Sempre exagera ao falar de meus roncos! MARY Se pudesse ouvir a si mesmo... (Da sala de jantar chega um estalar de gargalhadas. Mary volta a cabea, sorridente.) De que esto rindo tanto? TYRONE (spero) De mim. Sou capaz de apostar. Sempre se riem s custas do velho. MARY (com ar brincalho) Sim, todos ns o pirraamos muito... no assim? (Ri e acrescenta com ar satisfeito, de alvio.) Bem. No sei se riem, mas de qualquer forma me alivia ouvir o riso de Edmund. Ele tem estado to deprimido, ultimamente! TYRONE (como se no tivesse ouvido essas ltimas palavras, prossegue, ressentido.) Apostaria como alguma brincadeira de Jamie. Est sempre caoando de algum. MARY Vamos, no comece j a criticar o pobre do Jamie, meu bem . (Sem convico alguma) Ver como ele acabar por ser um homem de verdade. TYRONE Pois que trate ento de comear logo a s-lo... Falta-lhe pouco para completar trinta e quatro anos. MARY (ignorando essas palavras) Meu Deus! Ser que os rapazes pretendem ficar o dia todo na sala de jantar? (Vai at a porta da sala dos fundos e chama) Jamie? Edmund! Venham para c, para que a Cathleen possa tirar a mesa. (Edmund responde: J vamos, mame. E Mary retorna ao seu lugar primitivo.) TYRONE (mal-humorado) Sempre lhe achar desculpas, faa o que fizer. MARY (sentando-se ao seu lado, acaricia-lhe a mo) Silncio.19

(Entram os filhos de ambos, Jamie e Edmund, que vm da sala dos fundos. Ambos sorriem, achando ainda graa no que os fez rir. Olham de esguelha para o pai, e seus sorrisos ento se acentuam. Jamie, o mais velho, tem trinta e trs anos. Herdou o fsico do pai: largo de ombros e o trax forte, mede uma polegada a mais de estatura e pesa menos, porm parece mais baixo e atarracado, porque lhe faltam o porte e o garbo de Tyrone. No tem, tampouco, a vitalidade do pai. Notam-se nele sintomas de prematuro envelhecimento. Seu rosto ainda belo, apesar dos evidentes vestgios nele deixados por uma vida de libertinagem, mas nunca teve a galhardia do pai, se bem que se parea mais com este do que com a me. Tem uns lindos olhos pardos, cuja tonalidade oscila entre a cor mais clara dos olhos paternos e mais escura dos olhos de Mary. Seus cabelos comeam a rarear e nele j desponta a calvcie do pai. Tem um nariz acentuadamente aquilino, diverso dos demais membros da famlia. Junto sua habitual expresso de cinismo, tal trao imprime ao seu semblante um carter mefistoflico. Todavia, nas raras ocasies em que sorri sem sarcasmo, pressentem-se em sua personalidade os ressaibos de um jovial encanto irlands, romntico e irresponsvel, o do tipo folgazo, simptico, dotado de um veio de poesia sentimental que atrai as mulheres e o torna popular entre os homens. Veste um bluso tipo americano, no to gasto quanto o do pai, e colarinho e gravata. Sua pele, muito clara, est bronzeada e adquiriu uma tonalidade avermelhada, salpicada de sardas. Edmund tem dez anos menos que o irmo. Leva-lhe de vantagem umas duas polegadas de estatura. fraco e nervoso. Enquanto Jamie saiu ao pai e pouco se parece com a me, Edmund lembra a ambos, aproximando-se mais do tipo de Mary. Os grandes olhos escuros so o trao dominante de seu rosto alongado e enxuto. A boca denota a mesma hipersensibilidade da de Mary. Sua testa larga a da me, ainda mais acentuada e traz o cabelo escuro, que o sol descolorou nas pontas, tornando-o avermelhado, bem penteado para trs. Mas tem o nariz paterno e seu rosto, de perfil, recorda o de Tyrone. As mos de Edmund evocam, de maneira evidente, as da sua me de dedos excepcionalmente finos. Revelam at, em menor escala, o mesmo nervosismo. A semelhana de Edmund com a me afirma-se20

precisamente na extrema sensibilidade nervosa de ambos. evidente que seu estado de sade no bom. Muito mais fraco do que deveria ser, tem os olhos febris e fundas as mas do rosto. Se bem que o sol lhe tenha tostado a pele at torn-la escura, sua tez ostenta uma lividez de pergaminho. Veste camisa, colarinho e gravata, e umas velhas calas de flanela. No usa palet. Nos ps cala sapatos com sola de borracha.) MARY (voltando-se para ele, sorrindo, num tom jovial e um tanto forado) Caoava de seu pai, por causa de seus roncos. (Dirigindo-se a Tyrone) Os filhos que o digam, James! Devem t-lo ouvido. No voc no, Jamie. Ouvi-o roncar na outra extremidade do corredor, quase to ruidosamente como seu pai. igual a ele. Mal encosta a cabea no travesseiro e j adormece e nem dez sirenes despert-lo-iam. (Interrompe-se bruscamente ao notar que Jamie a fita com mal-estar e um ar inquisitivo. Seu sorriso se esbate. Disfarando) Por que me olha assim, Jamie? (Leva nervosamente as mos ao cabelo.) Ser que o meu cabelo est desarrumado? Custame tanto agora pente-lo devidamente. Minha vista est cada vez pior e nunca encontro meus culos. JAMIE (desviando o olhar, com ar de culpa) Seu penteado est perfeitamente em ordem, mame. Eu pensava apenas no quanto voc est bonita. TYRONE (alegremente) justamente o que eu dizia, Jamie. Est to atrevidamente gorda que breve no haver meio de abra-la. EDMUND Sim, certo que voc est esplndida, mame. (Mary se tranqiliza e sorri afetuosamente para o filho. Ele lhe pisca o olho, com um ar brincalho.) EDMUND Quanto aos roncos de papai, dou-lhe toda razo. Senhor, que barulho! JAMIE Tambm o ouvi. (Declama enfaticamente, como um ator dizendo uma citao) O Mouro... conheo o seu clarim! (A me e o irmo riem.) TYRONE (com ironia)21

Se so necessrios os meus roncos para que voc se lembre de Shakespeare em vez de s pensar em programas de corridas, creio que prefervel que eu continue a roncar... MARY Vamos, James! no seja to suscetvel. (Jamie d de ombros e se senta direita de sua me.) EDMUND (com irritao) Ora, papai. Pelo amor de Deus. Acabamos de tomar o caf da manh. D-nos uma trgua, sim? (Afunda-se na cadeira esquerda da mesa junto ao irmo. Seu pai o ignora.) MARY (em tom de reprovao) Seu pai no o estava censurando. No preciso voc estar sempre a tomar o partido de Jamie. como se, dos dois, fosse voc o mais velho e ele dez anos mais moo... JAMIE (com enfado) Para que tanto alvoroo? Esqueamos isso! TYRONE (desdenhosamente) Sim, esqueamos. Esqueamos tudo! No enfrentemos coisa alguma. uma filosofia muito cmoda se no se tem ambio alguma na vida a no ser de... MARY James, por favor, cale-se. (Pe-lhe um brao em volta do ombro, persuasiva.) Voc se deve ter levantado hoje da cama com o p esquerdo. (Aos rapazes, mudando de assunto) De que que vocs estavam rindo tanto quando entraram? Qual era a piada? TYRONE (fazendo um visvel esforo para se mostrar camarada) Sim, contem-nos o que era, rapazes! Disse sua me que estava certo que a piada me dizia respeito. Mas, no importa. J estou habituado. JAMIE (em tom seco) No olhe para mim. Isso com Edmund. EDMUND (sorrindo) Pensava contar-lhe ontem noite, papai, mas esqueci de faz-lo. Ontem, quando sa para dar uma voltinha, entrei num bar...22

MARY (inquieta) No deveria beber agora, Edmund. EDMUND (como se no a tivesse ouvido) Sabem quem encontrei ali numa tremenda bebedeira? Shaughnessy, o arrendatrio de sua granja... MARY (sorrindo) Aquele homenzinho horrvel?! Mas divertido. TYRONE (de sobrecenho fechado) No to divertido assim quando acontece que se o proprietrio da fazenda. E muito manhoso e malevel. De que que ele se queixa agora, Edmund? Porque, sem dvida, deve estar queixando-se de alguma coisa. Certamente querer que lhe reduza o arrendamento. J lhe alugo a granja por uma ninharia, s para ter algum ali, e s me paga quando o ameao de despejo. EDMUND No, no se queixou de nada. Estava to satisfeito da vida que at me pagou uma bebida, o que da parte dele simplesmente inacreditvel! Estava encantado de ter entrado em luta com o seu amigo Harker, o milionrio da Standard Oil, vencendo-o gloriosamente! MARY (com um ar de divertida consternao) Oh! meu Deus, Jamie, vai ter que fazer alguma coisa. TYRONE pouca sorte para Shaughnessy, de qualquer modo. JAMIE (maliciosamente) Aposto que da prxima vez que voc encontrar Harker no clube e o cumprimentar com a habitual considerao, ele nem o olhar. EDMUND isso mesmo. No o considerar um cavalheiro, porque hospeda um arrendatrio que no se humilha em presena de um monarca yankee. TYRONE Nada de expresses socialistas. No me interessa ouvir... MARY (com tato) Continue contando, Edmund.23

EDMUND (sorrindo de modo provocante para seu pai) Bem... Como voc sabe, papai, a reserva de gua de Harker fica junto granja, e Shaughnessy cria porcos. Segundo parece, na cerca h uma brecha, e os porcos esto se banhando no tanque do milionrio; e seu capataz disse a Harker que estava certo de que Shaughnessy tinha arrebentado de propsito a cerca para dar aos seus sunos um banho gratuito! MARY (escandalizada, mas achando graa) Meu Deus! TYRONE (com uma amargura em que h um laivo de admirao) E tenho certeza como de fato o velhaco assim o fez. Seria muito prprio dele. EDMUND E por causa disso Harker foi pessoalmente tomar satisfaes de Shaughnessy. (Rindo) Uma idia muito estpida! Se ainda nos faltasse uma prova de que os plutocratas que nos governam e sobretudo os que herdaram as suas fortunas no so mentalmente uns gigantes, esta seria categrica. TYRONE (admitindo-o sem refletir) Sim, Harker no estaria altura para vencer um Shaughnessy. (Como que caindo em si) Guarde suas malditas idias anarquistas para si mesmo. No as consinto em minha casa. (Porm a curiosidade transborda e ele indaga) Que aconteceu? EDMUND As probabilidades de vitria de Harker eram tantas corno as que eu poderia ter com um Jack Johnson. Shaughnessy tinha bebido a mais no poder, e o esperava no gradil a fim de lhe dar as boas-vindas. Contou-me que nem deu a Harker a oportunidade de abrir a boca. Comeou logo por gritar-lhe que no era escravo da Standard Oil, para que esta o pisoteasse. Era um rei da Irlanda, j que tinha os seus direitos, e a gentalha para ele no passava mesmo de gentalha, por mais dinheiro que tivesse roubado aos pobres. MARY Oh! meu Deus. (Mas no pode reprimir o riso.) EDMUND Foi logo acusando Harker de ter ordenado ao seu capataz que derrubasse a cerca para atrair os porcos at o tanque e liquid-los. Os pobres animais gritou Shaughnessy morreram de frio. Muitos se acabavam de pneumonia e outros estavam doentes de raiva, por ter bebido aquela gua contaminada. Declarou a Harker que ia contratar um24

advogado para process-lo por danos e prejuzos. E concluiu que j bastava ter que suportar em seu stio a erva venenosa, os carrapatos, as serpentes e raposas, mas que era um homem honrado; que entre as granjas havia traado uma linha divisria e que nem o diabo o levasse, no permitiria que um ladro da Standard Oil o desrespeitasse. Em vista do que, pedia a Harker que tivesse a bondade de retirar aqueles ps imundos de suas terras, antes que lhe atiasse o cachorro em cima. E Harker foi-se embora. (Ele e Jamie riem.) MARY (escandalizada, porm rindo) Oh! Cus, que lngua terrvel a desse homem. TYRONE (num impulso de admirao) Que malandro! Meu Deus, no h meios de dobr-lo. (Ri logo se interrompe bruscamente e franze o sobrolho.) Que canalha mais sujo. capaz de me botar em apuros! Na certa lhe ter dito que eu ficaria indignado se... EDMUND Disse-lhe que a voc entusiasmaria essa vitria irlandesa e assim mesmo. Deixe de comdias, papai. TYRONE Pois eu no estou nada entusiasmado. MARY (zombeteira) Est sim, James. Sinto-o completamente louco de alegria. TYRONE No, Mary, uma brincadeira uma brincadeira, mas... EDMUND Disse a Shaughnessy que devia lembrar a Harker que um milionrio da Standard Oil devia saber muito bem o gosto de porco na sua gua salgada, como um tempero adequado. TYRONE Para o inferno com a sua lembrana. (Franze a testa.) No envolva nos meus assuntos suas nefastas idias socialistas e anarquistas. EDMUND

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Shaughnessy quase se ps a chorar, porque no lhe havia ocorrido dizer isso a Harker, mas prometeu inclu-lo numa carta que lhe est escrevendo, junto com outros insultos tambm esquecidos. (Ele e Jamie riem.) TYRONE De que voc ri? Isto nada tem de engraado. Que bom filho quem ajuda a esse patife a me meter em apuros! MARY Vamos, James. No perca a calma. TYRONE (virando-separa Jamie) E voc ainda pior do que ele, apoiando-o dessa maneira. Suponho que lamenta no ter estado presente para atiar Shaughnessy, sugerindo-lhe insultos ainda mais causticantes! Tem talento para isso. S para isso! MARY James! No h motivo para censurar Jamie. (Jamie se prepara para dar ao pai uma resposta sarcstica, mas d de ombros e se cala.) EDMUND (repentinamente exasperado) Oh! Papai, pelo amor de Deus. Se voc vai comear de novo, vou-me embora. (Levanta-se de um salto.) De qualquer forma deixei o meu livro l em cima. (Dirigindo-se para a sala da frente em tom aborrecido) Puxa, papai! Julguei que voc se cansasse de dizer... (Desaparece. Tyrone o segue com o olhar irritado.) MARY Voc no deve aborrecer-se com Edmund, James. Lembre-se de que ele est doente. (Ouve-se Edmund, que tosse enquanto sobe para o primeiro andar. Mary, nervosa, acrescenta) Esses resfriados de vero pem qualquer um irritadio. JAMIE (sinceramente preocupado) No um simples resfriado. Ed est doente de verdade. (O pai o fita com uma advertncia no olhar, porm Jamie nem o nota.) MARY (voltando-se para o filho, ressentida) Por que diz isso? No passa de um resfriado. Isso se pode ver logo. Sempre est imaginando coisas!26

TYRONE (com outro olhar de advertncia a Jamie, em tom casual) Jamie quis apenas dizer que Ed talvez tenha alguma coisa a mais que lhe agrave o resfriado. JAMIE claro, mame. Foi isto o que eu quis dizer. TYRONE O Dr. Hardy acredita que ele possa ter apanhado malria quando esteve nos trpicos. Caso seja assim, o quinino o por bom em dois tempos. MARY (por cuja fisionomia passa uma sombra de hostilidade e desdm) O Dr. Hardy! No creio numa s palavra que ele diga; nem que jure sobre uma pilha de Bblias! Conheo bem os mdicos! So todos iguais! Apelam para todos os meios, contanto que o doente os visite amide. (Cala-se bruscamente, nervosssima, ao notar que os olhos do esposo e do filho esto fitos nela. Ergue as mos ao cabelo, num gesto espasmdico, e sorri um sorriso forado.) Que h? Que que vocs esto olhando? Meu cabelo se... TYRONE (abraando-a com uma cordialidade exagerada e apertando-a de encontro a si como que de brincadeira) Seu cabelo est impecvel! Quanto mais saudvel e mais gorda, mais vaidosa voc fica! Breve passar a metade do dia enfeitando-se ao espelho! MARY (em parte tranqilizada) Na verdade eu precisaria de uns culos novos. Vejo to mal agora... TYRONE (com uma galanteria verdadeiramente irlandesa) Seus olhos so formosos, e bem o sabe. (Beija-a. Um constrangimento tmido e encantador ilumina o rosto de Mary. De repente surpreendentemente assoma sua fisionomia a garota de antigamente; no um espectro, e sim um ser cheio de vida.) MARY No seja tolo, James. E logo em presena de Jamie! TYRONE27

Oh! Ele tambm a conhece. Sabe que todas essas preocupaes com os seus olhos e cabelo so um mero pretexto para provocar elogios. No mesmo, Jamie? JAMIE (cujo rosto tambm se aclarou e em cujo sorriso afetuoso ressurge a seduo infantil de antanho) sim. Voc no nos pode enganar, mame. MARY (ri, e sua voz trai um leve sotaque irlands) Vo passear, vocs dois! (Com uma solenidade de adolescente) Mas, no meu tempo, eu tive realmente um cabelo lindo, no verdade, James? TYRONE O mais lindo deste mundo! MARY Era de um castanho avermelhado pouco comum, e to comprido que chegava abaixo dos meus joelhos. Deve tambm se lembrar disso, no, James? Foi s depois do nascimento de Edmund que me apareceu o primeiro fio branco. E a todo o meu cabelo comeou a ficar branco... (A expresso de adolescente desaparece de seu rosto.) TYRONE (prontamente) E assim ainda ficou mais lindo do que nunca! MARY (novamente encabulada e satisfeita) Escute s o seu pai, Jamie... depois de trinta e cinco anos de casamento! Pra alguma coisa lhe serve ser um grande ator, hein? Que se passa com voc, James? Elogia-me s porque caoei dos seus roncos? Ento retiro tudo o que disse... Vai ver que o que ouvi foi mesmo a sirene!!! (Ri e eles a acompanham na sua alegria. Numa transio brusca, Mary passa a falar em tom prtico.) No posso, porm, ficar mais tempo aqui, nem mesmo para ouvir elogios. Tenho que ir falar com a cozinheira e combinar com ela o jantar e as compras necessrias. (Levanta-se e suspira com exagero jovial.) Bridget to preguiosa! to fingida! Comea logo por falar-me de todos os seus parentes para que eu no possa intercalar uma s palavra e repreend-la! Bom! Mais vale que eu no d importncia a isso! (Caminha at a porta da sala de jantar, mas volta com um ar inquieto.) No deve fazer o Edmund trabalhar com voc no jardim, Jamie. No o esquea. (Na sua fisionomia reaparece um estranho ar de obstinao.) No porque Ed no seja bastante robusto. Mas na certa transpiraria, e o seu resfriado poderia piorar. (Sai pela sala dos fundos. Tyrone se vira para o filho com um ar reprovador.)28

TYRONE Seu estpido! No tem nenhum critrio? Acima de tudo, o que preciso evitar dizerlhe algo que possa afligi-la ainda mais a respeito de Edmund! JAMIE (dando de ombros) Se voc o prefere assim... Acho que seria melhor que mame no continuasse enganando-se a si prpria. Ser muito mais duro para ela, quando tiver que enfrentar a verdade. Voc v que deliberadamente ela se atordoa, falando num resfriado de vero. E, no entanto, sabe a verdade. TYRONE A verdade? Ningum a sabe ainda. JAMIE Pois eu sei. Acompanhei Edmund na segunda-feira, quando foi ver o Dr. Hardy. Ouvio aludir malria. Insistiu que devia ser isso. Porm ele prprio no acredita no que diz. Voc o sabe to bem quanto eu, pois falou com o Dr. Hardy quando foi ao povoado, ontem... no verdade? TYRONE Ele no me pde afirmar coisa alguma com certeza. Deve telefonar-me hoje antes que Edmund v v-lo. JAMIE (lentamente) Hardy cr que seja tuberculose... no assim, papai? TYRONE (de m vontade) Disse-me que podia ser isso. JAMIE (comovido, sentindo aflorar-lhe ao peito o afeto pelo irmo) Pobre rapaz! Que pouca sorte! (Volta-se para o pai com ar acusador.) Isso no teria acontecido se voc o tivesse entregue s mos de um mdico de verdade, quando ele apareceu doente. TYRONE E o que h de errado em Hardy? Foi sempre o nosso mdico aqui. JAMIE O que tem de errado? Tudo! At neste miservel povoado o consideram um medicastro. um vulgar charlato! TYRONE29

A est... Despreza-o! Despreza todo mundo! Para voc todos so uns impostores! JAMIE (com desprezo) Hardy cobra apenas um dlar! Por isso que voc o considera um bom mdico! TYRONE (atingido pela frase do filho) Cale-se! Agora no est bbedo! No tem desculpa... (Dominando-se, na defensiva) Se insinua que no me posso permitir o luxo de chamar um desses mdicos da alta sociedade que vivem de explorar os veranistas ricaos... JAMIE Que voc no se pode permitir esse luxo?! Mas se voc um dos proprietrios mais importantes da regio... TYRONE Isso no significa que eu seja rico... Tenho tudo hipotecado. JAMIE Porque voc continua a comprar novas terras em vez de pagar as hipotecas! Se Edmund fosse apenas um desses miserveis acres de terra que voc tanto cobia, na certa estaria disposto a pagar qualquer preo. TYRONE Isso falso! E seus sarcasmos contra o Dr. Hardy tambm so falsos! Hardy no se veste com requintes, nem tem consultrio em bairro elegante, nem viaja em carro de luxo. Isso o que custeamos, quando pagamos a um desses mdicos figures cinco dlares por uma consulta, e no a sua capacidade! JAMIE (encolhendo os ombros num gesto de desdm) Est bem, est bem! Perco meu tempo discutindo com voc. No adianta. No se pode tirar as manchas do leopardo. TYRONE (com crescente clera) No, no se pode tirar... Essa lio eu a aprendi demasiado bem. Quanto a voc, j perdi toda a esperana de que mude de pele! Voc se atreve a me dizer, a mim, o que posso gastar? No sabe o que vale um dlar, nem poderia saber. Jamais economizou um s! No fim de cada temporada est sempre sem um centavo! Esbanja o seu salrio semanal em usque e prostitutas! JAMIE30

Meu salrio, Deus meu! TYRONE Tem mais do que merece, e graas a mim que o recebe. Se no fosse meu filho nenhum empresrio lhe daria trabalho, to lamentvel a sua reputao. Ainda tenho que me humilhar e mendigar um papel para voc, dizendo que est regenerado, que agora outro homem, embora saiba que tudo isso falso! JAMIE Jamais quis ser ator. Voc me obrigou a dedicar-me ao teatro. TYRONE Mente! No queria outra coisa. Esperava que eu lhe conseguisse um emprego e bem sabe que s tenho influncia no teatro. Diz que o obriguei. No queria outra vida a no ser vagar pelos bares! Voc se conformaria em passar o resto de sua existncia preguiosamente, e vivendo do meu dinheiro. Depois de tudo que gastei para o educar, s conseguiu foi ser expulso, de uma maneira desonrosa, de todos os colgios secundrios que freqentou! JAMIE Oh! por favor! No desenterre essa velha histria. TYRONE O fato de que tenha que voltar aqui cada vero para viver do meu dinheiro no uma velha histria. JAMIE Pago o teto e a comida, trabalhando no jardim. Assim lhe poupo um jardineiro. TYRONE Qual o qu! At para isso quase preciso fustig-lo. (Sua clera se amaina e se dilui num queixume cansado.) No me importaria em absoluto se ao menos sentisse de sua parte um pouco de gratido. Mas s me agradece repetindo-me que sou um avaro repulsivo, fazendo pouco de minha profisso, caoando de tudo que existe no mundo... exceto de si mesmo. JAMIE (com um trejeito) Isso no verdade, papai. O que acontece que voc no me pode ouvir quando me censuro a mim mesmo. TYRONE (olha-o com ar perplexo, e cita em tom maquinal) Oh! ingratido, a mais infame dentre todas as ciznias que se conhecem...31

JAMIE Tinha certeza de que voc viria com esse verso! Oh! Cus! quantos milhares de vezes deverei... (Interrompe a frase, cansado de discusso, e d de ombros.) Est bem, papai. Sou um boa-vida. Sou tudo o que voc quiser, contanto que ponhamos fim a esta discusso. TYRONE (exortando-o, indignado) Se ao menos fosse ambicioso, e no estpido! Ainda moo. Poderia destacar-se! Tem o talento necessrio para ser um ator excelente. Tem-no de fato. meu filho! JAMIE (enfadado) Esqueamos a minha pessoa. O assunto no me interessa. Nem a voc tampouco. (Tyrone cede. Jamie continua, em tom negligente) Como foi que comeamos a falar de tudo isso? Ah! sim, referamo-nos ao Dr. Hardy. Quando que ele lhe telefonar para tratar do assunto de Edmund? TYRONE Ao meio-dia. (Pausa; na defensiva) Eu no poderia ter confiado Ed a um mdico melhor. Hardy sempre o atendeu, desde garoto. Conhece como ningum o seu organismo. No que seja tacanho, como pretende. (Com amargura) E o que poderia fazer por Edmund o melhor especialista dos Estados Unidos, agora que, deliberadamente, esbanjou a sua sade com a vida absurda que tem levado desde que foi expulso da universidade?! Quando ainda estava na escola comeou a viver assim, de modo imprudente e relaxado. Era o janota da Broadway, s para imit-lo, embora no tivesse o seu organismo para poder suportar uma existncia dessas! Voc um homenzarro sadio feito eu, ou pelo menos assim o fui na sua idade. Mas Edmund nunca passou de um feixe de nervos, tal qual a me! Durante anos e anos preveni-o de que seu corpo no poderia suportar uma vida daquelas, mas ele nunca quis me dar ouvidos, e agora tarde demais. JAMIE (asperamente) Que quer dizer? Tarde demais por qu? Voc fala como se acreditasse que... TYRONE (num impulso de sua conscincia que se sente culpada) No seja idiota! Quis dizer apenas o que a todos claro e evidente! A sade de Edmund est abalada; e talvez durante muito tempo ele no passe de um invlido! JAMIE (fita-o absorto, e comenta, ignorando a observao do pai) Sei que os camponeses irlandeses crem que a tuberculose sempre fatal. E provvel que o seja de fato, quando se vive num casebre sobre um pntano; porm aqui, com um tratamento moderno.. adequado...32

TYRONE Acaso no o sei? Que disparates est dizendo a? E no fale da Irlanda com essa lngua suja, nem faa pouco de seus camponeses e casebres... (Em tom acusador) Quanto menos disser sobre a doena de Edmund, melhor ser para a sua conscincia! mais culpado do que qualquer um! JAMIE (ferido) Isso mentira! No o admito, papai! TYRONE a pura verdade! Exerceu sobre Edmund uma influncia nefasta. Ao crescer, ele o admirava como a um heri! Que belo exemplo lhe oferecia! Que eu o saiba nunca lhe deu um s exemplo que no fosse pssimo. F-lo envelhecer prematuramente, entulhando-o do que cr ser a sabedoria humana; e isto quando Edmund ainda era jovem demais para compreender que era seu prprio fracasso que lhe envenenava a alma; que para voc todo homem no passa de um canalha venda e toda mulher de uma cretina ou uma prostituta. JAMIE (defendendo-se novamente com uma espcie de indiferena e de cansao) Est bem. Sim; explicava a Edmund a verdade sobre os fatos da vida, mas somente quando o via excitado a ponto de fazer alguma asneira, e que sabia que ele zombaria de mim se eu tentasse dar-lhe um bom conselho... o tradicional conselho fraternal. Limitei-me a fazer dele um camarada, e fui absolutamente franco; para que dos seus erros ele tirasse a lio, e compreendesse que... (encolhe os ombros cinicamente) se no se pode ser um santo, ao menos deve-se ser cauteloso! (Seu pai respira fortemente, com desdm. Repentinamente, Jamie se sente comovido.) Sua acusao absurda, meu pai. Voc bem sabe tudo o que Ed significa para mim e a intimidade que sempr existiu entre ns dois... No a que usual entre irmos... Eu faria tudo por ele. TYRONE (impressionado, abranda-se) Talvez tenha realmente acreditado que fosse para o seu bem, Jamie. Eu o sei. No digo que o tenha feito de propsito, para prejudic-lo. JAMIE Mesmo porque isso seria falso! Gostaria de ver algum influir sobre Ed contra a sua vontade... Aquele seu jeito taciturno faz com que todos acreditem que podem manejlo vontade... Mas Edmund muito esperto e s faz o que quer, e manda s favas todo o resto! Acaso tive alguma coisa que ver com as loucuras que andou praticando nesses ltimos anos... correndo mundo como marujo, e tudo mais?!... A vida dele me parecia estpida, e eu lho disse vrias vezes! Acho que voc bem pode calcular que no me agradaria muito permanecer encalhado na Amrica do Sul, ou viver em33

tugrios imundos, bebendo cachaa de m qualidade, no verdade? No, muito obrigado! Que me dem a mim a Broadway e um apartamento com banheiro privado, e bares onde sirvam do melhor usque, isso sim! TYRONE Voc e a sua Broadway! Isso o que faz de voc o que . (Com laivo de orgulho) Faa Edmund o que fizer, tem a coragem de seguir adiante, e no vem choramingar junto de mim, mal se encontra sem um centavo! JAMIE E por acaso no acaba sempre por regressar casa sem dinheiro? E o que lucrou em ir para longe? Olhe para ele, como est agora! (Bruscamente envergonhado) Deus meu! No tive a inteno de dizer o que disse... Foi indigno de minha parte. TYRONE (ignorando as palavras do filho) Edmund est fazendo progressos como jornalista. Julguei que ele tivesse, por fim, encontrado o emprego sonhado. JAMIE (sarcstico e novamente enciumado) Num jornaleco de um povoado insignificante! Ignoro que mentiras lhe so contadas, meu pai, mas o que me dizem a mim que Ed no passa de um cronista muito folgado... Se ele no fosse seu filho... (Mais uma vez arrependido) No, isto no verdade! No jornal todos se alegram de t-lo por companheiro e apreciam o material especializado que ele lhes proporciona. Alguns de seus poemas e pardias so realmente notveis. (Novamente spero) Mas claro que no ser escrevendo coisas assim que ele chegar a grandes alturas. (Precipitadamente) Embora no haja dvida de que comeou com o p direito. TYRONE Sim, comeou bem. Costumava dizer sempre que queria ser jornalista, mas nunca se disps a comear desde o primeiro degrau. JAMIE Ora, papai! Pelo amor de Deus! Deixe-me em paz! TYRONE (olha-o fixamente e logo desvia o olhar, e diz depois de uma pausa) Que azar que Edmund tenha ficado doente precisamente agora! Isso no poderia ter acontecido em pior ocasio. (Acrescenta, sem conseguir disfarar um certo mal-estar, quase furtivo) Nem para sua me tampouco. terrvel que isso a venha transtornar, logo agora, quando mais necessita de paz e despreocupao. Estava to bem quando voltou h dois meses. (Sua voz torna-se trmula e rouca.) Foi ento o paraso para mim. Esta casa tornou a ser um lar... Mas no preciso dizer-lhe isso, Jamie.34

(Pela primeira vez, o filho o fita com simpatia e compreenso. Dir-se-ia que entre ambos acaba de surgir um sentimento comum no qual o velho antagonismo poderia ser olvidado.) JAMIE (suavemente) Sinto o mesmo, pai. TYRONE Sim. Desta vez, voc deve ter notado como ela se mostra forte e segura de si. E uma mulher completamente diferente. Domina seus nervos, ou pelo menos os dominava at que Ed apareceu doente. Agora, sente-se nela a tenso e o medo que procura a todo custo reprimir. Oxal pudssemos ocultar-lhe a verdade, mas isso ser impossvel se tivermos que enviar Ed para um sanatrio. O que agrava ainda mais a situao que o pai de Mary morreu tuberculoso. Ela o adorava e nunca o esqueceu. Sim, vai ser duro para ela. Mas poder reagir. Tem agora a fora de vontade necessria. Devemos ajud-la de todas as formas possveis, Jamie! JAMIE (comovido) Naturalmente, papai. (Hesitante) A no ser os nervos, parecia estar muito bem esta manh. TYRONE (j com renovada confiana) Nunca esteve melhor! Transborda de alegria e malcia. (Repentinamente franze o sobrecenho, olhando para Jamie.) Por que diz parecia? Por que no h de estar muito bem? Que diabo quer insinuar?! JAMIE No me provoque mais, pai. Num assunto desta natureza, deveria ser possvel falarmos, um com o outro, com franqueza e sem discutir. TYRONE Desculpe, Jamie. (Com voz tensa) Mas, vamos.. diga-me. JAMIE Nada tenho a dizer-lhe. Estava enganado, pronto! Referia-me, apenas, a esta ltima noite. Bem... voc sabe como so essas coisas. No consigo esquecer o passado. Nem dominar as minhas suspeitas. Como voc o faz... (Com amargura) E isto terrvel.. terrvel tambm para mame! Ela sente que a observamos...35

TYRONE (sombriamente) Eu sei!! (Novamente tenso) E depois? No pode falar claro por uma vez? JAMIE Mas se lhe afirmo que no h nada... E s essa minha maldita estupidez! Acordei hoje s trs horas da madrugada e a ouvi caminhar para o quarto de hspedes. A seguir foi ao banheiro. Fingi que dormia. Mame parou no corredor e ficou espreita, como se quisesse ter certeza de que eu estava realmente dormindo. TYRONE (fingindo no dar importncia) Ora! Cus! e s isso? Ela mesma me disse que a sirene a havia despertado e, desde que Edmund ficou doente, passa as noites subindo e descendo as escadas para ver como ele est. JAMIE (com veemncia) isso mesmo! Fica de ouvido colado sua porta, escutando. (De novo vacilante) O que me assustou foi o fato de ela ter ido ao quarto de hspedes. Lembrei-me de que, sempre que ela comea a querer dormir sozinha ali, sinal de que... TYRONE Pois, desta vez, no se trata disso! E a explicao muito simples. Aonde ir ela, noite, para fugir dos meus roncos?! (Entrega-se a um acesso de clera e de ressentimento.) Meu Deus! No entendo como pode viver com uma mentalidade dessas, vendo sempre os motivos piores atrs de tudo o que acontece. JAMIE (irritado) No me venha com suas crticas. J lhe disse que me enganara. No creia que isso me alegra tanto quanto o pensa. TYRONE (apaziguador) Tenho certeza de que no fundo como diz, Jamie. (Pausa. Sua expresso torna-se cada vez mais preocupada. Fala lentamente, com um terror supersticioso.) Seria uma fatalidade se ela no pudesse evitar que a sua preocupao por Edmund... Foi quando esteve muito doente, logo aps o nascimento de Ed que ela, pela primeira vez... JAMIE Mame no teve culpa nenhuma nisso! TYRONE No a estou culpando.36

JAMIE (sarcstico) Ento, a quem que voc culpa? A Edmund por ter nascido?! TYRONE Seu estpido! Ningum teve culpa! JAMIE O nico culpado foi aquele mdico velhaco. A julgar pelo que mame conta, no passava de um charlato vulgar, tal qual Hardy! Voc no lhe quis pagar um mdico de primeira... TYRONE Mente! (Furioso) Ento eu que tenho a culpa, hem! a que quer chegar, no assim, seu vagabundo maldito?! JAMIE (em tom de advertncia, ouvindo sua me mover-se na sala de jantar) Shss! (Tyrone se levanta rpido e fica olhando para fora pela janela da direita. Jamie muda por completo de assunto.) JAMIE Bem. Se temos que recortar a sebe ali na frente, melhor que comecemos logo. (Entra Mary que vem da sala de espera. Olha para ambos rapidamente, com ar de suspeita. Seus gestos so nervosos e pouco naturais.) TYRONE (afastando-se da janela, e falando com a mxima naturalidade) sim. A manh est linda demais, para que se fique em casa a discutir. Espie pela janela, Mary. No h mais nvoa no porto. Parece-me que o manto que se abatera sobre a cidade se dissipou. MARY (aproximando-se) Assim o espero, meu querido. (A Jamie, esforando-se por sorrir) Ouvi quando sugeria ir trabalhar na sebe, Jamie. de assombrar! Deve estar muito precisado de dinheiro, no, meu filho? JAMIE (em tom brincalho) Quando que no estou? (Pisca-lhe o olho e olha com ar de zombaria para o pai.) Espero receber pelo menos o soldo de cabo raso em fim de semana... e ir gast-lo todinho na farra!

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MARY (a alegria de Jamie parece nela no encontrar eco suas mos vo ajeitando a parte da frente do vestido) Sobre que assunto vocs dois discutiam? JAMIE (dando de ombros) Os mesmos assuntos de sempre. MARY Ouvi que falava de um mdico, e seu pai o acusava de ser maldoso. JAMIE (apressadamente) Ah, isso?! Eu estava dizendo que, para mim, o Dr. Hardy no era o melhor mdico do mundo! MARY (sente que Jamie est mentindo e replica num tom indeciso) Oh! No! Certamente que no ! Sou da mesma opinio. (Mudando de assunto, com um sorriso forado) Essa tal de Bridget! Julguei que nunca me livraria dela! Contoume toda a vida de seu primo-irmo que trabalha na polcia de Saint Louis. (Nervosa e irritada) Pois bem. Se estava disposto a trabalhar na cerca, por que no vai de uma vez? (Precipitadamente) Aproveite o sol antes que volte a neblina. (Num tom estranho, como se falasse consigo mesma.) Sei, porm, que voltar... (De repente adivinha que ambos a olham fixamente e diz, nervosamente, agitando as mos) Ou antes: quem o sabe o reumatismo das minhas mos. Prev melhor o tempo do que voc, James. (Contempla absorta suas prprias mos como que possuda de uma repulsa que, ao mesmo tempo, a fascina.) Oh! como esto feias as minhas mos! Quem poderia crer que j foram lindas? (Eles a fitam, absortos, por sua vez, com um temor crescente.) TYRONE (segura-lhe as mos e as abaixa com carinho) Vamos, vamos, Mary. Deixe de tolices. So as mos mais encantadoras deste mundo! (Ela sorri, seu rosto se ilumina, e beija-o agradecida. Ele se volve para o filho.) Vamos andando, Jamie. Sua me tem razo de nos censurar. A nica maneira de se comear a trabalhar comear de fato a trabalhar! O sol ardente far com que transpire e derretera um pouco toda essa banha que tem na barriga! (Abre a porta telada, sai para o ptio e desce por uma escadinha ao jardim. Jamie se levanta, tira o palet e vai at a porta. No batente volta-se; porm evita olhar para a sua me. Ela tampouco o encara.)38

JAMIE (com uma ternura inquieta e desajeitada) Todos nos orgulhamos de voc, mame. Voc nos torna to felizes! (Ela se vira para ele, rgida, e o encara num desafio assustador. Ele continua num tom hesitante.) Mas voc ainda deve tomar cuidado. E no se inquietar tanto por Edmund. Ele se h de curar... MARY (com um olhar carregado de ressentimento) claro que se h de curar. E no sei o que voc quer insinuar ao dizer-me que tenha cuidado... JAMIE (magoado, encolhendo os ombros) Est bem, mame. Lamento ter falado. (Sai para o ptio. Ela espera, rgida, at que ele desaparea. A seguir deixa-se cair na cadeira em que Jamie estava sentado. Sua fisionomia revela um desespero assustado, e suas mos correm sobre a mesa, mudando os objetos de lugar, sem finalidade alguma. Escuta os passos de Edmund que desce. Ao chegar ao p da escada, tem um acesso de tosse. Ela se ergue de um salto como se quisesse fugir de tal som e caminha, rpido, at a janela da direita. Olha para fora, aparentemente serena, quando ele entra, vindo da sala da frente, com um livro na mo. Mary volta-se para o filho. Nos seus lbios h um sorriso maternal de boas-vindas.) MARY Ah! era voc? Ia justamente subir para v-lo. EDMUND Esperei que eles sassem. No quero envolver-me em discusses. Sinto-me mal, muito mal. MARY (como que com ressentimento) Oh! estou certa de que exagera! to garoto ainda! Gosta de nos afligir para que nos preocupemos com voc. (Precipitadamente) Estou caoando, meu filho. Compreendo como voc deve sentir-se mal. Mas hoje est melhor, no verdade? (Inquieta, segura-lhe o brao.) De qualquer modo, est muito fraco. Precisa descansar o mais possvel. Sente-se que o ajeitarei confortavelmente. (Edmund senta-se na cadeira de balano e sua me coloca-lhe uma almofada por trs das costas.) Assim; que tal est agora?39

EDMUND timo! Obrigado, mame. MARY (beijando-o com ternura) S precisa de uma coisa: que sua me cuide de voc. Com todo esse tamanho, continua sendo o garoto da famlia... no isso mesmo? EDMUND (segurando-lhe a mo, profundamente srio) No pense em mim. Cuide de si prpria. Isto o que importa. MARY (desviando o olhar) Mas eu o fao, querido. (Com um riso forado) Meu Deus! no v como engordei? Vou ter que alargar todos os meus vestidos. (Vira-se e caminha at as janelas da direita. Toma um tom frvolo e alegre.) J comearam a podar a sebe. Pobre Jamie! Como o aborrece ter que trabalhar na frente da casa, onde pode ser visto por todos os que passam! L vo os Chattfield na sua Mercedes nova. Que lindo carro, no acha? No como o nosso Packard de segunda mo. Coitado do Jamie! Agachou-se atrs da cerca para que no o vejam! Os Chattfield cumprimentam seu pai, e este lhes responde como se o pano de fundo do teatro se abrisse e ele aparecesse para receber os aplausos! E veste aquela roupa velha e surrada que tentei por todos os meios fazlo pr de lado. (Percebe-se amargura na sua voz.) James deveria ter mais amorprprio e no dar tais espetculos! EDMUND Qual! Papai faz muito bem em no se preocupar com a opinio alheia. E Jamie um tolo de dar tanta importncia aos Chattfield. Por Deus! quem jamais ouviu falar neles fora desse vilarejo? MARY (com satisfao) Ningum. Tem toda a razo, Edmund. No passam de grandes sapos num pequeno charco. Jamie um tolo. (Interrompese enquanto olha pela janela, e logo seguir continua, com um travo de inveja e insatisfao.) Contudo, os Chattfield, e toda a gente como eles, significam algo. Possuem casas decentes, de que no tm que se envergonhar. E amigos a quem recebem e que por sua vez os convidam. No vivem isolados de todos. (Afasta-se da janela.) No que me interessam. Sempre odiei esse povoado e seus habitantes. Bem o sabe. Eu no queria viver aqui, mas seu pai agradou-se do lugar, insistiu em edificar esta casa, e agora tenho que vir todos os veres. EDMUND40

Bem... sempre prefervel do que pass-los num hotel de Nova York... no verdade? E este lugarejo no assim to ruim. Agrada-me bastante. Talvez porque seja o nico lar que j tivemos.

MARY Esta casa nunca me pareceu um lar. Desde o inicio foi um fracasso! Tudo foi feito com a maior economia possvel. Seu pai no quis gastar o necessrio para p-la em condies. melhor que no tenhamos feito amizades por aqui. Eu me envergonharia se atravessassem o limiar de nossa porta. A James nunca lhe agradaram os amigos da famlia. Aborreceu-o sempre visit-los ou receb-los. S lhe agrada acotovelar-se com homens no clube ou em algum bar. Jamie e voc so como ele, mas a culpa no lhes cabe. Aqui nunca tiveram oportunidade de conhecer gente decente. No seriam o que so se tivessem lidado com moas direitas, em vez de farrear com... Nunca se teriam desonrado dessa maneira... a tal ponto que nenhum pai respeitvel permite a sua filha que aparea em pblico com vocs. EDMUND (com irritao) Ora, mame. Esquea isso. E que importncia tem? Se fosse assim, Jamie e eu morreramos de tdio! E quanto ao velho... de que adianta falar?... no podemos mud-lo. MARY (censurando-lhe as palavras mecanicamente) No chame seu pai de velho. Seja mais respeitador. (Com tristeza na voz) Compreendo que intil falar. Mas s vezes sinto-me to s. EDMUND De todos os modos voc deve ser justa. Talvez a culpa a princpio tenha sido mesmo somente dele, de papai, mas voc bem sabe que depois, mesmo que ele o tivesse aceito, no poderamos receber gente aqui.. (Hesita, com ar culpado.) Quero dizer... voc seria a primeira a no receber ningum. MARY (tem um sobressalto e seus lbios tremem de modo lastimvel) No diga isso. Magoa-me quando o recorda. EDMUND No leve a mal! Por favor, mame, estou tratando de ajud-la. Porque no convm que voc se esquea... preciso que voc se lembre. Sempre... para estar de guarda... Voc sabe o que j passou. (Com um ar desolado) Deus meu! Voc deve compreender41

o quanto sofro ao faz-la recordar tudo isso! Fao-o porque tem sido maravilhoso tla novamente em casa, e seria tremendo... MARY (aborrecida) Por favor, querido. Sei que a sua inteno das melhores, mas... (Na sua voz reaparece o mal-estar com que pretende proteger-se) No compreendo por que diz de repente coisas assim. Por que lhe ocorrem essas idias hoje? EDMUND (evasivamente) Por nada. Talvez porque me sinta desanimado e triste. MARY Diga-me a verdade. A propsito de que essa repentina desconfiana? EDMUND Mas no existe desconfiana alguma. MARY Oh! sim, bem que a pressinto. Seu pai e Jamie tambm desconfiam de mim... sobretudo Jamie. EDMUND Vamos! No comece a imaginar coisas, mame. MARY (suas mos se agitam nervosamente) A vida toma-se muito mais penosa quando se vive numa atmosfera de constantes suspeitas, sabendo que todos so levados a espionar-nos e ningum confia em ns. EDMUND Isto absurdo, mame. Todos confiamos em voc. MARY Se ao menos eu tivesse para onde fugir por um dia ou uma tarde sequer... Uma amiga com quem falar... Oh! sobre nada de srio... apenas para rir e conversar e esquecer por algum tempo... algum que no fosse essa empregada... essa pobre estpida Cathleen. EDMUND (inquieto, levanta-se e passa-lhe o brao em volta dos ombros) Chega, mame, voc se irrita sem motivo.42

MARY Seu pai sai. Encontra-se com os amigos no bar ou no clube. Voc e Jamie tambm tm amigos e saem pelo seu lado. Mas, eu fico s sempre tenho estado s. EDMUND (em tom tranqilizador) Ora, mame, voc bem sabe que isso no verdade. Um de ns fica sempre com voc ou a acompanha quando voc d um passeio de carro. MARY (com amargura) Porque receiam deixar-me a ss. (Voltando-se com aspereza) Insisto em que me diga por que agiu de uma maneira to estranha na manh de hoje... por que se achou na obrigao de me recordar... EDMUND (hesita e se desabafa com ar de culpa) tolice, bem sei. Eu no estava dormindo a noite passada quando voc entrou no meu quarto... E voc no voltou ao seu quarto aquele em que dorme com papai, e passou o resto da noite no de hspedes. MARY Porque os roncos de seu pai me enlouqueciam! Pelo amor de Deus! Por acaso j no tenho dormido muitas vezes no quarto de hspedes?... (Com amargura) Ah! mas j sei, j compreendo o que pensou... Foi ento que... EDMUND (com uma veemncia exagerada) No pensei nada! MARY Mas fingia dormir, para espionar-me melhor! EDMUND No! No! Eu o fiz porque se voc descobrisse que eu estava com febre e no conseguia conciliar o sono, ainda ia afligir-se e contrariar-se! MARY Sem dvida!... e Jamie tambm fingia dormir, e seu pai...43

EDMUND Basta, mame. MARY Oh! No posso suportar que at voc... (Ergue nervosamente as mos ao cabelo para ajeit-lo no seu gesto habitual, mecnico e ausente. De improviso, uma estranha expresso de vingana se insinua na sua voz.) Vocs bem mereciam que fosse verdade! EDMUND Mame! No diga isto! Voc fala assim quando... MARY Chega de suspeitas! Por favor, meu filho! Magoa-me assim. Eu no podia dormir porque pensava em voc. Essa a verdadeira razo. Desde que ficou doente, vivo to preocupada... (Envolve-o com os braos e o estreita contra si com carinho protetor e ao mesmo tempo temeroso.) EDMUND (num tom tranqilizador) Que tolice! Voc bem sabe que isso no passa de um resfriado de vero, desses resfriados rebeldes... MARY Sim, naturalmente eu o sei. EDMUND Mas, escute-me, mame. Prometa-me que, mesmo que isto se transforme em alguma coisa de pior, voc pensar que breve estarei curado, sem viver consumindo-se de aflio, e continuar a se tratar. MARY (com temor) No quero ouvi-lo quando diz tolices. No h motivos para que fale como se esperasse algo de terrvel. Claro que lhe prometo! Dou-lhe a minha palavra de honra. (Com triste amargura) Mas, sem dvida, recordar que essa palavra eu j a dei outras vezes. EDMUND No.44

MARY (sua amargura se abranda at se transformar em resignada impotncia) No o culpo, meu filho. Como poderia evit-lo? Como conseguiramos esquecer? (Com um ar estranho) por isso que tudo se nos torna to difcil... No podemos esquecer. EDMUND (agarrando-a pelo ombro) Mame! Chega! MARY (com um sorriso forado) Bem, querido! No queria ser to lgubre assim! No faa caso de mim... Venha, deixe-me tocar-lhe a cabea. Mas... est to fresca! Agora no tem febre... EDMUND Esquea isso, mame. voc que... MARY Mas eu me sinto perfeitamente bem, meu querido. (Lanando-lhe um olhar rpido, estranho, quase tmido e ao mesmo tempo calculador) S que, naturalmente, na manh de hoje, depois de ter passado uma noite to ruim, estou cansada e nervosa. Na verdade, deveria dormir um pouco at a hora do almoo. (Ele a fita com instintiva suspeita. Logo, porm, envergonhado de si mesmo, afasta rapidamente o olhar. Ela prossegue, nervosamente.) Que que vai fazer? Ler um pouco aqui? Seria to melhor que fosse tomar um pouco de ar e sol. Mas no se exponha demais. Para maior precauo, ponha um chapu. (Interrompe o que est dizendo e o fita nos olhos. Ele foge ao seu olhar. H uma pausa tensa. Logo a seguir, Mary fala em tom irnico.) Ou ser que receia deixar-me s? EDMUND (torturado) No! No fale assim. Voc deveria dormir um pouco. (Caminha at a porta telada e, num tom afetadamente jovial) Vou descer para ajudar Jamie a passar aquele mau pedao. Gosto de ficar estendido na sombra e v-lo trabalhar! (Ri com esforo e ela o imita. Edmund sai logo para o patamar e desce a escadinha. A primeira reao de Mary de alvio, e ela parece relaxar-se. Deixa-se cair numa das poltronas de vime que se acham por trs da mesa e joga a cabea para trs, fechando os olhos. Porm sua tenso logo aps reaparece. Abre os olhos e se inclina para a frente, num acesso de pnico nervoso. Comea a travar sua desesperada luta consigo mesma. Seus longos dedos deformados, de ndulos inchados pelo reumatismo, tamborilam sobre os45

braos da poltrona, como que impulsionados por uma vida prpria, insistente, e que prescinde de seu consentimento.) FIM DO ATO I

ATO II CENA 1 Cenrio: O mesmo; aproximadamente uma hora menos um quarto. O sol agora no entra pelas janelas da direita. O dia ainda est bonito, porm cada vez mais sufocante, com uma leve cerrao que paira no ar, amortecendo o brilho do sol. Edmund, sentado na poltrona que est esquerda da mesa, l um livro. Ou, antes, tenta concentrar-se na leitura do mesmo, sem, todavia, consegui-lo. Dir-se-ia que presta ateno a qualquer rudo que venha do primeiro andar. Seus gestos so nervosamente apreensivos, e parece ainda mais enfermo do que no ato precedente. Cathleen, a empregada, sai da sala dos fundos. Traz uma bandeja com uma garrafa de usque e um jarro de gua gelada. uma robusta camponesa irlandesa, de vinte e poucos anos e rosto rechonchudo, de ar agradvel, olhos azuis e cabelos negros. amvel, ignorante, desajeitada e dotada de uma estupidez integral, mas bem intencionada. Pe a bandeja sobre a mesa. Edmund pretende estar to absorto na sua leitura que no se apercebe de sua presena, mas ela finge no reparar nisso. CATHLEEN (com uma familiaridade loquaz) Aqui est o usque. Falta pouco para o almoo. Devo chamar o seu pai e o Sr. Jamie ou o senhor mesmo o far? EDMUND (sem erguer os olhos) Voc pode cham-los.

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CATHLEEN Por que seu pai no olha para o relgio de vez em quando? o diabo em pessoa para atrasar as refeies e Bridget comea logo a me amaldioar, como se eu tivesse culpa! Contudo, o Sr. James um homem e tanto, apesar da idade! O senhor nunca ser bonito como ele, nem o Sr. Jamie tampouco! (Ri.) Apostaria como o Sr. Jamie no perderia a oportunidade de interromper o trabalho para tomar o seu usque, se tivesse um relgio para ver as horas. EDMUND (renuncia sua simulao, e sorri) E ganharia a aposta! CATHLEEN E vou ganhar mais outra ainda: que o senhor me mandou cham-los, de modo que possa tomar, s escondidas, o seu traguinho, antes que eles venham! EDMUND Ora veja! E eu que no tinha pensado nisto... CATHLEEN Ah! no?! Vamos, Sr. Edmund! Mal eu virasse as costas... EDMUND Mas, j que voc me deu a idia... CATHLEEN (repentinamente pudica e virtuosa) Eu nunca sugeri a um homem ou a uma mulher que tocasse em bebida alguma, Sr. Edmund. Foi isso o que matou um tio meu l na Irlanda... (Abrandando-se) Mas certo que um calicezinho de vez em quando no faz mal a ningum, especialmente quando se est deprimido ou resfriado. EDMUND Obrigado por me ter fornecido uma boa desculpa. (Com forada despreocupao) melhor chamar tambm mame. CATHLEEN Para qu? Ela sempre vem n