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© Acervo Anglo Metáfora Uma lata existe para conter algo Mas quando o poeta diz: “Lata” Pode estar querendo dizer o incontível Uma meta existe para ser um alvo, Mas quando o poeta diz: “Meta” Pode estar querendo dizer o inatingível Por isso, não se meta a exigir do poeta Que determine o conteúdo em sua lata Na lata do poeta tudonada cabe Pois ao poeta cabe fazer Com que na lata venha caber O incabível Deixe a meta do poeta, não discuta Deixe a sua meta fora da disputa Meta dentro e fora, lata absoluta Deixe-a simplesmente metáfora (RENNÓ, Carlos (Org.). Gilberto Gil –Todas as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.) SISTEMA ANGLO DE ENSINO 29 ENSINO MÉDIO ZETA - 1 a SÉRIE Aula 7: Figuras de linguagem de semelhança Nesta aula, vamos estudar as figuras de linguagem compostas por relações de similaridade. Para começar A canção a seguir, “Metáfora”, é de autoria do compositor baiano Gilberto Gil e foi gravada por ele no disco Um Banda Um, de 1982. Apesar de ter sido exilado em 1969, durante o regime militar, Gil escreveu essa letra como uma resposta àqueles que achavam que a música popular sempre deveria ter motivação política. Ele acreditava que o artista precisava ter liberdade para escrever sobre o que bem entendesse, brincando com a linguagem, experimentando novos significados para as palavras. No primeiro verso de cada uma das duas estrofes iniciais da canção, as palavras “lata” (que “existe para conter algo”) e “meta” (que “existe para ser um alvo”) estão usadas em seu sentido habitual, de dicionário. Mas, logo em seguida, o eu lírico da canção afirma que, quando os poetas utilizam essas palavras, eles podem estar querendo dizer outras coisas, como o “incontível” ou o “inatingível”. Por que será que uma palavra, dependendo da situação, pode ser usada com significados diferentes? Literatura

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Metáfora

Uma lata existe para conter algoMas quando o poeta diz: “Lata”Pode estar querendo dizer o incontível

Uma meta existe para ser um alvo,Mas quando o poeta diz: “Meta”Pode estar querendo dizer o inatingível

Por isso, não se meta a exigir do poetaQue determine o conteúdo em sua lataNa lata do poeta tudonada cabePois ao poeta cabe fazerCom que na lata venha caberO incabível

Deixe a meta do poeta, não discutaDeixe a sua meta fora da disputaMeta dentro e fora, lata absolutaDeixe-a simplesmente metáfora

(RENNÓ, Carlos (Org.). Gilberto Gil –Todas as letras.

São Paulo: Companhia das Letras, 1996.)

SISTEMA ANGLO DE ENSINO 29 ENSINO MÉDIO ZETA - 1a SÉRIE

Aula 7:Figuras de linguagem de semelhança

Nesta aula, vamos estudar as figuras de linguagem compostas por relações de similaridade.

Para começar

A canção a seguir, “Metáfora”, é de autoria do compositor baiano Gilberto Gil e foi gravada por ele no disco Um Banda Um, de 1982. Apesar de ter sido exilado em 1969, durante o regime militar, Gil escreveu essa letra como uma resposta àqueles que achavam que a música popular sempre deveria ter motivação política. Ele acreditava que o artista precisava ter liberdade para escrever sobre o que bem entendesse, brincando com a linguagem, experimentando novos significados para as palavras.

No primeiro verso de cada uma das duas estrofes iniciais da canção, as palavras “lata” (que “existe para conter algo”) e “meta” (que “existe para ser um alvo”) estão usadas em seu sentido habitual, de dicionário. Mas, logo em seguida, o eu lírico da canção afirma que, quando os poetas utilizam essas palavras, eles podem estar querendo dizer outras coisas, como o “incontível” ou o “inatingível”. Por que será que uma palavra, dependendo da situação, pode ser usada com significados diferentes?

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Exercícios

1. Considerando que a primeira acepção do substantivo

lata, de acordo com o dicionário Houaiss, designa o

“recipiente, caixa, vasilhame, utensílio ou embalagem”

feita de folha-de-flandres (uma chapa de ferro lamina-

do fina, coberta com uma camada de estanho), releia

a letra de “Metáfora” e:

a) Aponte em que ocorrências de lata, nas duas últi-

mas estrofes do poema, o substantivo foi empregado

fora dessa acepção.

b) Com base na sua resposta ao item a, explique como

se constrói o sentido da palavra lata nesses casos.

2. A canção, logo em seu título, já faz referência a uma

figura de linguagem, a metáfora. Assinale a alternativa

em que a palavra em destaque foi usada em sentido

metafórico.

a) Uma lata existe para conter algo

b) Mas quando o poeta diz: “Meta”

c) Deixe a meta do poeta, não discuta

d) Meta dentro e fora, lata absoluta

e) Deixe-a simplesmente metáfora

3. O fragmento a seguir foi extraído do poema “O alba-

troz”, de Charles Baudelaire. Nele, o poeta francês

conta a história de marinheiros que, por diversão, em

longas viagens, prendem um albatroz no convés do

navio. Como essa ave tem asas muito longas (sua en-

vergadura pode chegar a 3,5 m), o albatroz não con-

segue abri-las no pequeno espaço do convés e, por

isso, é obrigado a andar, o que faz de modo extrema-

mente desajeitado. Na última estrofe do poema, apa-

rece uma comparação ousada.

O Poeta se compara ao príncipe da alturaQue enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;Exilado no chão, em meio à turba obscura,As asas de gigante impedem-no de andar.

(BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Edição bilíngue, com tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.)

turba: multidão.

obscura: sombria, tenebrosa, terrível, assustadora.

Charles Baudelaire (1821—1867)

Poeta francês do século XIX, autor de As flores do mal, livro polêmico publicado em 1857, que teve al-guns de seus poemas censurados, acusados de ultrajar a moral pública. Considerado

um dos precursores do Simbolismo, sua obra in-fluenciou profundamente a literatura moderna.

a) Que relação se estabelece entre o poeta e o

albatroz?

b) Com base na sua resposta anterior e considerando

que muitas vezes os poetas são tidos como desajus-tados, marginais, de comportamento incomum, expli-

que o último verso do poema.

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Em casa

Linguagem figurada Quando Gilberto Gil, na canção “Metáfora”, fala sobre a “lata do poeta”, ou quando ele diz que não devemos “exigir do poeta / Que determine o conteúdo em sua lata”, a palavra lata não foi usada em seu sentido de dicionário, também chamado de literal ou próprio. Nos dois casos, o substantivo lata designa o lugar onde o poeta deposita os significados do poema, o que remete à criação da lin-guagem poética. Dizemos que, nesses exemplos, o sentido próprio da pa-lavra deu lugar a um novo sentido (muitas vezes, não dicio-narizado), que chamamos figurado. Assim, ao chamar a atenção para a relação entre as latas e os conteúdos da poesia, utiliza-se a linguagem de uma maneira inesperada. É isso que acontece quando dizemos que uma garota “é uma flor”, para traduzir-lhe a beleza ou a delicadeza. Literalmente, flor não significa beleza ou delicadeza. No entanto, como, tradicionalmente, a flor é vista como em-blema da beleza e da delicadeza, ao atribuirmos a uma mulher as características de uma flor não estamos dizendo que essa mulher é uma flor, mas, sim, que ela tem quali-dades da beleza e da delicadeza próprias de uma flor. Esses usos não literais da linguagem, que definem o sentido figurado, são comuns também no dia a dia (em frases como “Ele é um cachorro!”, “Perdi minha gilete!” ou “O bico do bule quebrou!”), embora sejam mais fre-quentes nos textos literários, que se tornam mais expres-sivos justamente por empregar a linguagem de maneira menos convencional, dando mais ênfase à mensagem que está sendo veiculada. Imagine o caso de um sujeito que se dirige a uma moça para defender que devemos aproveitar o momento pre-sente. Eis suas palavras:

Você deve aproveitar o dia de hoje sem pensar no amanhã, porque, com o passar dos anos, sua beleza diminuirá e, quanto mais perto da morte, menos você vai querer curtir a vida. Por-tanto, não espere a maturidade, aproveite o momento presente!

Esse mesmo sujeito, se fosse um leitor voraz da poesia brasileira do século XVII, poderia recorrer a famosos versos do poeta baiano Gregório de Matos, que – de outro modo – dizem a mesma coisa:

Goza, goza da flor da mocidade,Que o tempo trota a toda ligeirezaE imprime em toda flor sua pisada.

Oh, não aguardes que a madura idadeTe converta essa flor, essa belezaEm terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.

(MATOS, Gregório de. Obra poética. Rio de Janeiro: Record, 1992.)

Gregório de Matos Guerra (1636 – 1695), advogado e poeta baiano, é considerado um dos nomes mais representati-vos da poesia do século XVII. Foi um crítico im-piedoso da igreja católica, o que lhe valeu o apelido de Boca do Inferno.

Se tivéssemos de optar pelo texto que usa a linguagem de modo mais imprevisto, a escolha, provavelmente, recai-ria sobre Gregório de Matos. Isso porque seus versos valo-rizam a linguagem figurada: juventude é “flor da mocida-de”; o tempo não passa rápido, ele “trota a toda ligeireza”, e não destrói a beleza das pessoas, mas sim “imprime em toda flor sua pisada”; além disso, a morte não é apenas a morte, é “terra”, é “cinza”, é “pó”, é “sombra”, é “nada”. Dentro do universo da linguagem figurada, existem al-guns recursos que já foram estudados e nomeados. Cha-mamos esses recursos, que consistem em selecionar pala-vras e combiná-las de maneira pouco usual, de figuras de linguagem ou figuras de retórica, cujo principal objetivo é tornar a mensagem mais expressiva.

Figuras de linguagem compostas por relações de semelhança Existem vários mecanismos responsáveis pela criação de figuras de linguagem. Por enquanto, daremos destaque à similaridade. É muito comum tomar o nome que cabe a uma coisa e transportá-lo para outra, dada a relação de semelhança entre elas. Desse modo, saímos do universo do sentido literal e entramos no território do sentido figurado. Num dos exemplos anteriores, quando dissemos que uma garota “é uma flor”, a palavra flor está sendo empre-gada em sentido figurado, pois não está traduzindo o que normalmente significa. Nesse caso, flor corresponde à beleza ou à delicadeza da garota. O que permite conside-rarmos a mulher uma flor é a relação de semelhança que se estabelece entre ambas. Houve, então, um transporte de significado, em que características da flor (beleza, delicadeza) foram atribuídas à mulher. Isso só pôde ser feito porque, entre esses dois elementos, havia pelo menos um traço semântico comum que permitiu que se realizasse o transporte. Há várias figuras que se valem desse processo: um termo é usado em lugar de outro devido ao fato de possuírem pelo menos um traço semântico em comum. Estudaremos cinco delas: a comparação, a metáfora, a catacrese, a pro-sopopeia e a sinestesia.

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A comparação, como o próprio nome sugere, é a expli-citação de uma relação de semelhança entre dois termos. Para identificar uma comparação, é necessário encontrar uma partícula comparativa: feito, tal qual, qual, que nem, assim como, como, etc. Além disso, verbos como parecer ou lembrar e expressões como é melhor (do) que, é pior (do) que, mais ___ (do) que, menos ___ (do) que podem encerrar relações de semelhança. No poema “Relâmpago”, o poeta modernista Cassiano Ricardo escreve:

A onça pintada saltou tronco acima que nem um relâmpagode rabo comprido e cabeça amarela:

Zás! Mas uma flecha ainda mais rápida que o relâmpago fez rolar

ali mesmo aquele matinal gatão elétrico e bigodudo que ficou estendido no chão feito um fruto de cor que

tivesse caído de uma árvore!

(RICARDO, Cassiano. Martim Cererê. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.)

Cassiano Ricardo Leite (1895 – 1974), jornalista, ensaísta e poeta paulista, destacou-se como repre-sentante do movimento modernista de tendência nacionalista, fundou e participou de diversas re-vistas literárias e, mais tar-de, veio a aproximar-se do

grupo que criou o movimento concretista na poesia brasileira.

Nesses versos, há três comparações: entre o salto da “onça pintada” e o “relâmpago” (1o verso), entre a “flecha” e o “relâmpago” (3o verso) e entre a onça (chamada de “matinal gatão elétrico e bigodudo”) e o “fruto de cor que tivesse caído de uma árvore” (5o verso). Nos três casos, as partículas comparativas são evidentes: “que nem”, “mais ____ que” e “feito”. Nos dois primeiros exemplos, o traço em comum entre os elementos da comparação é a velocidade, pois a onça saltou tão rápido que parecia um relâmpago e a flecha foi ainda mais veloz do que eles. No último exemplo, o que há de comum entre a onça abatida e o fruto é o fato de ambos despencarem da árvore para o chão. Mas também é possível estabelecer relações de seme-lhança sem que se usem partículas comparativas. Nas fra-ses “ela é uma gata” ou “ele é um gato”, para nos referir-mos a uma pessoa bonita, ninguém imagina que se trata de um felino propriamente dito. Somos capazes de perce-ber que, nesse caso, a mulher ou o homem estão sendo, implicitamente (ou seja, sem partículas comparativas), comparados ao animal. Se disséssemos “ela é como uma gata” ou “ele é como um gato”, teríamos comparações. Como as partículas com-

parativas não foram usadas, as frases apresentam metáforas. Chamaremos de metáfora (palavra que, em grego, significa “mudança, transposição, transporte”) toda fi-gura de linguagem que estabelece uma relação de seme-lhança sem que as partículas comparativas sejam explicitadas. Quando Gregório de Matos, nas estrofes que transcre-vemos do soneto “Discreta e formosíssima Maria”, chama a juventude de “flor da mocidade” e diz que o tempo “trota a toda ligeireza” e “imprime em toda flor sua pisa-da”, estamos diante de casos de metáforas Muitas vezes, de tão usada, a metáfora se desgasta e torna-se facilmente compreensível. Isso acontece quando ela se torna tão popular que passamos a ter dificuldades em perceber que se trata de uma figura de linguagem. Por exemplo: se dissermos “o pé da mesa quebrou”, nenhum falante tem dificuldade em entender essa frase. No entan-to, ela nasce de uma metáfora: por sustentar a mesa, assim como o pé sustenta o corpo, cada uma das hastes que permite que a mesa não caia passou a ser chamada de pé da mesa. Como essa metáfora se cristalizou (até porque não há outra expressão tão econômica para designar o que ficou conhecido como pé da mesa), temos a impressão de que pé da mesa nem chega a constituir um caso de linguagem figurada. Essa metáfora desgastada pelo uso recebe o nome de catacrese (que, em grego, poderia significar “uso abusivo”), e pode ser definida como uma figura pela qual transpor-tamos o nome de um ser a outro, devido à existência de uma relação de semelhança, com a ressalva de que a per-cepção do transporte efetuado já se perdeu, ou não é le-vada em conta. É o que acontece em expressões como batata da perna, bico do bule ou asa da xícara. Por causa de seu caráter utilitário, há quem defenda que a catacrese nem seja considerada figura de linguagem, pois muitas vezes ela não é utilizada como meio de trazer ex-pressividade aos textos. Ao contrário, essa figura é muito mais usada em textos informativos. Por exemplo, o termo embarcar (que seria próprio apenas para designar a entra-da num barco) hoje é utilizado para referir-se à entrada em aviões ou trens, e enterrar (mais adequado para tra-duzir a ideia de algo que está sendo colocado na terra) é associado a qualquer ação de colocar uma coisa dentro da outra, como em “ele enterrou um espinho na mão” ou “ela enterrou a faca no bolo”. Existe, ainda, uma figura de linguagem de semelhança que consiste em atribuir características humanas a seres não humanos. Esse ato de animar seres não humanos é chamado de personificação ou prosopoeia (que, em gre-go, significa “ação de fazer falar um personagem numa narrativa”). Se dizemos, por exemplo, “o céu chora” para transmitir que está chovendo, tem-se uma prosopopeia, em que uma característica humana, o ato de chorar, está sendo atribu-ída a algo não humano, o céu. Em Os Lusíadas, no episódio conhecido como “Velho do Restelo”, há uma estrofe que aborda o sofrimento dos

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parentes dos navegadores portugueses, na época das Gran-des Navegações. Esses parentes não acreditavam que os marinheiros voltariam da expedição às Índias e, por isso, já se despediam dos seus entes como se todos fossem re-almente morrer. Eis os versos de Camões:

Nestas e outras palavras que diziamDe amor e de piedosa humanidade,Os velhos e os meninos os seguiamEm quem menos esforço põe a idade;Os montes de mais perto respondiam,Quase movidos de alta piedade;A branca areia, as lágrimas banhavam,Que em multidão com elas se igualavam.

(CAMÕES, Luís de. Obras completas – volume IV.Lisboa: Sá da Costa, 1946.)

O trecho em negrito é um exemplo dessa associação entre seres animados e inanimados. Os montes (seres não humanos) recebem características humanas (eles respon-dem e, principalmente, sentem piedade dos parentes dos navegantes), o que estabelece uma relação de semelhança entre os montes e os homens. Trata-se, pois, de uma prosopopeia. A prosopopeia, que consiste num processo de huma-nização, serve basicamente para dar vida a animais, a elementos naturais ou a objetos concretos. Muito comum em textos artísticos, essa figura aparece repetidamente em fábulas clássicas (narrativas em que os animais são as per-sonagens principais) e em textos que querem, por exem-plo, valorizar a natureza. A última figura de linguagem composta por relações de semelhança consiste em associar pelo menos dois sentidos do corpo. Audição, olfato, paladar, visão e tato sempre estiveram presentes nos textos: expressões como melodia sincopada, camélias cheirosas, sabor adocicado, paisa-gem paradisíaca ou pele macia não são raras. Mas é pos-sível misturar essas percepções sensitivas. Ao considerar-mos que uma canção tem uma melodia doce, estamos fundindo percepções auditiva e tátil. É o mesmo fenômeno que acontece na abertura do po-ema “Mocidade e morte”, de Castro Alves:

Oh, eu quero viver, beber perfumes,Na flor silvestre que embalsama os ares,Ver minha alma adejar pelo infinitoQual branca vela na amplidão dos mares.

(ALVES, Castro. Espumas flutuantes. São Paulo: Ateliê, 1997.)

A expressão “beber perfumes” associa o ato de beber (que está ligado ao paladar) aos perfumes (que estão ligados ao olfato). Essa relação de semelhança, em que um traço ca-racterístico de um dos cinco sentidos é transportado para um elemento de um outro sentido do corpo, é chamada de sinestesia (que, em grego, significa “sensação ou percepção simultânea”). A sinestesia consiste, portanto, em fundir sentidos. Sua função é dar ênfase às expressões – não é su-ficiente dizer: “sentir o aroma dos perfumes”, é preciso es-crever: “beber perfumes”, pois o ato de beber, nesse caso, parece mais enfático do que o de sentir o aroma.

Tarefa mínima

Instrução para as questões 1 e 2

Uma das maneiras de desqualificar uma pessoa é atri-buir-lhe traços não humanos, num processo de animali-zação. Trata-se do contrário da prosopopeia. As questões a seguir trabalham com isso. O fragmento que você vai ler pertence a Memórias pós-tumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, num momento em que o narrador fala da situação incômoda de Dona Plácida, cuja responsabilidade era tomar conta da casa em que Virgília, uma mulher casada, encontrava-se com seu amante, Brás Cubas.

Memórias póstumas de Brás Cubas (1881)

Obra-prima machadiana, este romance é a narrativa sarcástica da vida de Brás Cubas, que, depois de morto, conta episódios de sua exis-tência fútil e interesseira. Trata-se de uma obra revolu-cionária – quer pelas experi-mentações linguísticas, quer pela posição do defunto au-tor Brás Cubas –, que alçou Machado de Assis à posição de um dos nomes mais im-portantes da literatura mundial no século XIX.

[...] e tudo ficou sob a guarda de Dona Plácida, suposta, e, a certos respeitos, verdadeira dona da casa.

Custou-lhe muito a aceitar a casa; farejara a intenção, e doía-lhe o ofício; mas afinal cedeu. Creio que chorava, a prin-cípio: tinha nojo de si mesma. Ao menos, é certo que não le-vantou os olhos para mim durante os primeiros dois meses; falava-me com eles baixos, séria, carrancuda, às vezes triste. Eu queria angariá-la, e não me dava por ofendido, tratava-a com carinho e respeito; forcejava por obter-lhe a benevolência, depois a confiança.

(ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Garnier, 1993.)

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1. (Fuvest – adaptada) A expressão que retrata de modo

mais depreciativo o comportamento de Dona Plácida é

a forma verbal farejara. Por quê?

2. O uso desse verbo configura uma figura de linguagem.

Aponte-a e mostre como ela foi construída.

Tarefa complementar

No conto “Famigerado”, de Guimarães Rosa, um jagun-ço chamado Damázio, famoso pela violência com que trata seus inimigos, procura o narrador para que ele lhe diga qual o significado da palavra famigerado. Num certo momento, ele pergunta incisivamente ao narrador:

– Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo – o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos igno-râncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe preguntei? Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:

– Famigerado?– Sim senhor... – e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos

vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo – apertava-me. [...]

(ROSA, Guimarães João. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.)

João Guimarães Rosa (1908 – 1967) foi um es-critor que se caracterizou pela invenção linguística. De uma maneira muito pessoal, ele encontrou combinações sintáticas e sonoras extremamente originais, criando um estilo inconfundível. Acon-tece que nem sempre seus textos são de fácil inte-lecção, como no caso do conto “Famigerado”, que está repleto de palavras inventadas.

1. Sabendo disso, tente explicar o significado das seguin-

tes frases ou expressões que aparecem no texto.

a) tem nenhum ninguém ciente

b) o livro que aprende as palavras

c) com padres não me dou: eles logo engambelam

d) vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado

2. Nas três últimas linhas do texto, podemos encontrar

um exemplo bastante criativo de sinestesia. Transcre-

va-o e explique seu significado no contexto do conto.

Leitura complementar

Na canção “Pedaço de mim”, que pertence à comédia musical Ópera do malandro, de autoria de Chico Buarque, as comparações e metáforas são usadas para traduzir a dor que a saudade representa. Na peça, essa música é cantada em dueto por Max e Teresinha – que formam o par amo-roso da história –, no momento em que os dois são obri-gados a se separar:

Oh, pedaço de mim,Oh, metade afastada de mim,Leva o teu olharQue a saudade é o pior tormento,É pior do que o esquecimento,É pior do que se entrevar.

Oh, pedaço de mim,Oh, metade exilada de mim,Leva os teus sinaisQue a saudade dói como um barcoQue, aos poucos, descreve um arcoE evita atracar no cais.

Oh, pedaço de mim,Oh, metade arrancada de mim,Leva o vulto teuQue a saudade é o revés de um parto,A saudade é arrumar o quarto Do filho que já morreu.

Oh, pedaço de mim,Oh, metade amputada de mim,Leva o que há de tiQue a saudade dói latejada,É assim como uma fisgadaNo membro que já perdi.

Oh, pedaço de mim,Oh, metade adorada de mim,Lava os olhos meusQue a saudade é o pior castigo,E eu não quero levar comigoA mortalha do amor,Adeus.

(BUARQUE, Chico. Letra e música. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.)

entrevar: perder os movimentos.

mortalha: pano ou vestimenta com que se envolve o cadáver de

pessoa que será sepultada.

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Aula 8: Figuras de linguagem de contiguidade e oposição

Nesta aula, vamos estudar as figuras de linguagem compostas por relações de contiguidade e de oposição.

Para começar

Alguns poetas souberam extrair interessantes efeitos das relações semânticas de oposição, principalmente no momento de tratar da questão do sentimento amoroso. Um bom exemplo é “Soneto do maior amor”, de Vinicius de Moraes, poeta brasileiro do século XX:

Maior amor nem mais estranho existe Que o meu, que não sossega a coisa amada E quando a sente alegre, fica triste E se a vê descontente, dá risada.

(MORAES, Vinicius. Antologia poética. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.)

Nessa estrofe, para sintetizar a desarmonia entre os sentimentos de um casal, o eu lírico afirma que, enquanto a mulher amada está “alegre”, o homem “fica triste”, e que, se ela se mostra “descontente”, ele “dá risada”. Ao colocar, no mesmo verso, esses sentimentos, o eu lírico promove a aproximação de elementos contrários. Podemos então lembrar que, além de tornar os textos mais expressivos por meio de figuras de linguagem compostas por relações de semelhança, também é possível fazê-lo por meio de oposições. Mas será que esses são os únicos meios de criar figuras de linguagem?

Exercícios

Leia o poema a seguir, também de autoria de Vinicius de Moraes, para responder às próximas três questões:

Soneto de separação

De repente, do riso fez-se o pranto,Silencioso e branco como a bruma,E das bocas unidas fez-se a espuma,E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente, da calma fez-se o vento,Que dos olhos desfez a última chama,E da paixão fez-se o pressentimento,E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente,Fez-se de triste o que se fez amante,E de sozinho o que se fez contente,

Fez-se do amigo próximo o distante,Fez-se da vida uma aventura errante,De repente, não mais que de repente.

(MORAES, Vinicius. Antologia poética. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.)

1. O tema deste soneto é a separação amorosa repentina, o que já vem sugerido no título do texto. Considerando então

o primeiro verso do texto (“De repente, do riso fez-se o pranto”), aponte:

a) que palavra ou expressão melhor indica que a separação foi repentina?

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b) o que significam as palavras “riso” e “pranto” no

contexto?

c) como a única forma verbal que aparece no verso

confirma que a separação de fato ocorreu?

2. Analise agora a maneira como o eu lírico empregou as

palavras riso e pranto no primeiro verso do poema.

a) Considerando sua resposta ao item b da questão

anterior, o uso isolado de cada uma dessas palavras

constitui uma figura de linguagem. Qual? Como ela

é construída?

b) Se considerarmos a relação entre as palavras nesse

verso, há outra figura de linguagem. Aponte-a e

explique-a.

3. É possível encontrar no “Soneto de separação” outras

ocorrências da mesma figura de linguagem que você

indicou no item a da questão 2. Cite duas dessas

ocorrências.

4. O soneto também traz outros exemplos da mesma fi-

gura que você indicou no item b da questão 2. Trans-

creva dois desses exemplos.

Em casa

Mais figuras de linguagem Além da semelhança, como já vimos na aula passada, as oposições também são capazes de produzir figuras de lin-guagem. Se comparar dois ter-mos com traços em comum traz expressividade ao texto, o mesmo se pode dizer das opo-sições: explicitar dois valores antagônicos também contri-bui para aumentar a expressi-vidade textual, como no caso do “Soneto de separação”. No poema a seguir, de au-toria de Gregório de Matos, o eu lírico se dirige à mu-lher amada para falar sobre as contradições dos sen ti-mentos:

Ardor em firme coração nascido!Pranto por belos olhos derramado!Incêndio em mares de água disfarçado!Rio de neve em fogo convertido!

Tu, que um peito abrasas escondido,Tu, que em um rosto corre desatado,Quando fogo em cristais aprisionado,Quando cristal em chamas derretido.

Se és fogo como passas brandamente?Se és neve como queimas com porfia?Mas ai! que andou Amor em ti prudente.

Pois para temperar a tirania,Como quis que aqui fosse a neve ardente,Permitiu parecesse a chama fria.

(MATOS, Gregório. Obra poética. Rio de Janeiro: Record, 1992.)

porfia: insistência, perseverança.

Nesse soneto, é possível perceber o efeito expressivo das oposições: o par fogo (em vermelho) e água (em azul) se espalha por todos os versos para representar as contrarie-dades das relações amorosas. No início do poema, temos, de um lado, o “ardor em firme coração nascido” e, de outro, o “pranto por belos

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olhos derramado”. O ardor pode representar a paixão, a loucura, o desejo carnal, enquanto o pranto representaria a serenidade, a razão, a contenção dos desejos. A partir da explicitação dos termos em oposição, o eu lírico começa a fundir esses elementos: o incêndio se disfarça “em mares de água”; o rio de neve se converte “em fogo”. Na segunda estrofe, o “ardor” e o “pranto” já estão mis-turados: o fogo está “em cristais aprisionado”; o cristal está “em chamas derretido”. Então, o eu lírico pergunta à mu-lher: se ela é o fogo, como pode demonstrar tanta bran-dura? Se ela é a neve, como pode queimar com tanta per-sistência? E aí vem a conclusão: a culpa dessa confusão é do “Amor”. O Amor que coloca desejo onde deveria haver contenção (“quis que aqui fosse a neve ardente”) e impõe serenidade à loucura (“Permitiu parecesse a chama fria”). Note-se que o par fogo / água, presente em todo o poema, vai gerando oposições cada vez mais fortes até chegar às expressões “neve ardente” e “chama fria”.

Figuras de linguagem compostas a partir de oposições Os dois primeiros versos do poema de Gregório (“Ardor em firme coração nascido” e “Pranto por belos olhos der-ramado”) constituem um exemplo de antítese (palavra formada pelo acréscimo do prefixo ant(i)-, que significa “contra”, “em oposição a”, à palavra “tese”), a mais co-mum figura de linguagem composta a partir de oposições. Podemos defini-la como a aproximação de elementos contrários. É exatamente essa aproximação que ocorre nos versos do “Soneto do maior amor” transcritos no PARA COME-ÇAR (“E quando a sente alegre, fica triste / E se a vê des-contente, dá risada.”) e em diversas passagens do “Soneto de separação”. Mas a antítese não é a única figura que explora termos de sentido contrário. Existem oposições mais radicais do que ela, que acabam gerando contradições. A antítese é a aproximação de elementos contrários. Quando esses ele-mentos são simultâneos e referem-se a um mesmo objeto, temos um paradoxo (que, em grego, significa “estranho, bizarro, extraordinário”). Trata-se de uma figura de lin-guagem que pode ser considerada um tipo mais radical de antítese. Se dizemos que uma pessoa ontem estava alegre e hoje está triste, não há contradição, apenas oposição. Mas se dizemos que alguém está alegre e triste, há uma contradi-ção, pois – em tese – uma pessoa não pode estar alegre e triste ao mesmo tempo. Portanto, se há uma simples opo-sição de ideias, falamos em antítese; se os termos dessa oposição ocorrem simultaneamente, podemos considerá-la um paradoxo. É possível extrair interessantes efeitos expressivos dos paradoxos. Em Dom Casmurro, de Machado de Assis, por exemplo, no célebre capítulo “Olhos de ressaca”, Bentinho – que é o narrador do romance – cria um paradoxo para descrever suas sensações ao fitar um pouco mais demora-damente os olhos de Capitu.

Atraído pelo olhar da vizinha, ele tenta desviar os olhos dos olhos dela, mas não consegue: ele está completamente domi-nado. Então, ele diz:

Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios.

(ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Garnier, 1992.)

pêndula: pêndulo (corpo pesado, pendurado num ponto fixo,

que oscila num movimento de vaivém, comum em

relógios).

suplício: tortura, sofrimento.

O trecho em verde constitui uma típica antítese: as fe-licidades e os suplícios não são simultâneos; o que a eter-nidade quer é saber a duração das alegrias humanas, quan-do essas ocorrerem, e das tristezas, quando essas tomarem o primeiro plano. Já o trecho em azul encerra um exemplo de paradoxo: em princípio, o tempo ou é infinito ou é breve, já que essas qualidades são contraditórias. Ao serem colocadas lado a lado, simultaneamente, nota-se o para-doxo, que, nesse caso, é perfeitamente explicável: o tempo que Bentinho e Capitu se entreolharam foi, objetivamente, pequeno, daí a expressão tempo breve; no entanto, aquilo foi de tal modo intenso para Bentinho que é como se, subjetivamente, aquela troca de olhares tivesse sido eterna; daí a expressão tempo infinito.

Dom Casmurro (1899)Às vezes, já conhecemos algumas obras mesmo an-

tes de lê-las. É o caso do célebre romance Dom Cas-murro, história do amargurado Bento de Albuquerque Santiago, advogado solitário que escreve um livro de memórias para culpar sua esposa Capitu, já falecida, pelo fracasso de suas vidas afetivas, uma vez que ela o teria traído com o seu melhor amigo.

Mas o mais impor-tante não é descobrir se houve adultério, até porque só conhecemos o ponto de vista do narrador. O encanto da obra prima de Ma-chado de Assis está na investigação minucio-sa do caráter de um homem atormentado pelas lembranças do passado.

Como se percebe nesse exemplo machadiano, o parado-xo que, do ponto de vista lógico, parece um contrassenso, do ponto de vista expressivo é uma forma sintética de ex-primir interpretações diferentes de uma mesma realidade. Outra figura de oposição que podemos apontar é a iro-nia (que, em grego, significa “ação de interrogar fingindo

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ignorância; dissimulação”), também chamada de antífra-se, que consiste em exprimir uma ideia pelo seu contrário. Afirma-se algo e, implicitamente, nega-se essa afirmação. Evidentemente, na linguagem escrita, só o contexto é que pode esclarecer se uma palavra está sendo empregada em sentido literal ou em sentido irônico. Na linguagem fala-da, além do contexto, a entonação pode caracterizar a ironia. Assim, se dizemos “ela é horrível”, para nos referirmos a uma mulher evidentemente bonita, estamos nos valendo da ironia – horrível, nesse contexto, deve ser entendido como muito bonita. Em Memórias póstumas, quando Brás Cubas está acama-do, por causa de uma pneumonia que o levaria à morte, ele recebe a visita de Virgília. Então um sujeito que estava no quarto do narrador, vendo a chegada da ex-amante de Brás, retira-se:

O estranho levantou-se e saiu. Era um sujeito que me visitava todos os dias para falar do câmbio, da colonização e da neces-sidade de desenvolver a viação férrea; nada mais interessante para um moribundo. Saiu; Virgília deixou-se estar de pé; du-rante algum tempo ficamos a olhar um para o outro, sem articular palavra. Quem diria? De dois grandes namorados, de duas pai-xões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois; havia apenas dois corações murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados.

(ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Garnier, 1993.)

O trecho em destaque constitui uma ironia. Na situação em que Brás estava, o “câmbio”, a “colonização” e a “via-ção férrea” não lhe eram assuntos interessantes. Mas ele diz que eram, o que caracteriza a ironia: o narrador diz algo, mas quer que entendamos exatamente o contrário do que foi dito.

Figuras de linguagem compostas por relações de contiguidade

É possível, além da semelhança e da oposição, formar figuras de linguagem a partir de relações de contiguidade ou de implicação mútua. Se um fazendeiro afirma que tem cinquenta mil cabeças de gado, ninguém irá supor que ele

tem só as cabeças do gado; qualquer falante da língua é capaz de perceber que ele tem, na realidade, cinquenta mil animais. De maneira análoga, se ouvimos de alguém uma frase como “quero um copo de água”, entendemos que o sujeito não quer o copo em si, mas sim a água que será servida nele. Em ambos os casos, nota-se uma substituição, uma per-muta: cabeças de gado está no lugar de animais, enquanto copo de água significa água dentro do copo. Não há nenhuma relação de semelhança ou de oposi-ção entre cabeças de gado e unidades bovinas, ou entre copo de água e água dentro do copo. Na realidade, no primeiro exemplo, temos uma relação em que a parte (a cabeça) representa o todo (o gado) – chamamos essa re-lação de contiguidade; no segundo, o continente (o copo) representa o conteúdo (a água) – chamamos essa relação de implicação mútua. São duas as figuras que estabelecem essas relações de contiguidade e de implicação mútua: a sinédoque e a me-tonímia. Podemos defini-las como figuras de linguagem por meio das quais transportamos o nome de uma coisa para outra, em vista de uma relação de interdependência entre as duas coisas. A metonímia (que, em grego, significa “emprego de um nome por outro”) engloba todos os casos de figuras compostas a partir de relações de contiguidade, implica-ção mútua, interdependência, proximidade ou causali-dade. Ela consiste na associação entre dois termos que, embora não tenham traços semânticos que permitam uma comparação, são de tal maneira próximos que um acaba sugerindo o outro. É até possível, como as gramá-ticas tradicionais fazem, enumerar os vários tipos de me-tonímia (a parte pelo todo, o autor pela obra, a matéria pelo objeto, o efeito pela causa, o singular pelo plural, a marca pelo produto), mas o mais importante é notar que todos esses casos de metonímia nascem do mesmo tipo de relação. Vejamos um exemplo bíblico. No Gênesis, após o peca-do original, Deus expulsa Adão e Eva do Paraíso e castiga os dois pela desobediência. A Adão, Deus diz:

No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela fostes formado: porque tu és pó e ao pó te tornarás.

(Gênesis, capítulo 3, versículo 19)

A expressão em destaque é um caso consagrado de me-tonímia: Deus castiga Adão, dizendo que, a partir daquele momento, os homens teriam que ganhar o pão trabalhan-do. No entanto, em lugar de dizer trabalho, Deus diz “suor do rosto”. Usa-se então o efeito (o suor) no lugar da causa (o trabalho que produzirá o suor). A função dessa metonímia divina é mostrar para Adão as dificuldades pelas quais ele vai passar por ter comido a maçã da árvore do bem e do mal: não basta falar do trabalho, é preciso – para ganhar expressividade – já falar no suor, para evi-denciar que os esforços serão muitos. Já a sinédoque (que, em grego, significa “empregar um termo em um sentido mais abrangente”) não constitui

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uma figura de linguagem autônoma. Trata-se, na realidade, de um tipo específico de metonímia que estabelece uma relação de contiguidade: a parte pelo todo ou o todo pela parte. Vejamos, inicialmente, um exemplo de parte pelo todo, presente na terceira estrofe do “Poema de sete faces”:

O bonde passa cheio de pernas:pernas brancas pretas amarelas.Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.Porém meus olhosnão perguntam nada.

(ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia.Rio de Janeiro: Record, 2001.)

O bonde não passa ape-nas cheio de pernas. Ele passa cheio de pessoas ou, mais especificamente, no contexto do poema, de mu-lheres. Assim, temos uma representação da parte (per-nas) pelo todo (mulheres que andam no bonde), que visa a reiterar a ideia de sen-sualidade presente em todo o texto.

Como toda sinédoque é uma metonímia, não é possível fazer uma distinção absoluta entre essas duas figuras. O importante é saber que existem vários tipos de metonímia e um deles, que encerra uma relação entre a parte e o todo, recebe o nome de sinédoque.

Tarefa mínima

Leia o soneto a seguir, de Luís de Camões, para respon-der ao que se pede:

Amor é um fogo que arde sem se ver,É ferida que dói e não se sente,É um contentamento descontente,É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer,É um andar solitário por entre a gente,É um nunca contentar-se de contente,É um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;É servir a quem vence, o vencedor;É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como pode causar seu favorNos corações humanos amizade,Se tão contrário a si é o mesmo amor?

(CAMÕES, Luís de. Obras completas. vol. I.Lisboa: Sá da Costa, 1946.)

1. Em cada um dos onze primeiros versos do poema,

emprega-se uma mesma figura de linguagem. De que

figura se trata? Como ela é construída?

2. Levando em conta sua resposta à questão anterior, ten-

te explicar o último verso do poema.

Tarefa complementar

No texto teórico, apresentamos um fragmento bíblico com um caso muito comum de metonímia. Vamos ler novamente o que Deus diz a Adão:

No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela fostes formado: porque tu és pó e ao pó te tornarás.

(Gênesis, capítulo 3, versículo 19)

Ao empregar o efei-to (o suor) pela causa (o trabalho que pro-duzirá o suor), temos uma metonímia que é retomada pelo escritor português contempo-râneo José Saramago no prefácio ao livro de fotos Terra, do fotógra-fo Sebastião Salgado. Analisando o desem-prego e falando sobre a injusta distribuição de terras no Brasil, Sa-ramago, de maneira provocativa, faz alusão a essa passagem bíblica e à metonímia usada por Deus.

[deve ser] pouca coisa ser-se um Deus, quando, apesar dos famosos atributos de onisciência e onipotência, mil vezes exaltados em todas as línguas e dialetos, foram cometidos, no projeto de criação da humanidade, tantos e tão grosseiros erros de previsão, como foi aquele, a todas as luzes imper-doável, de apetrechar as pessoas com glândulas sudorí-paras, para depois recusar o trabalho que as faria fun-cionar – as glândulas e as pessoas. Ao pé disto, cabe perguntar se não teria merecido mais prêmio que castigo a puríssima inocência que levou a nossa primeira mãe e o nosso primeiro pai a provarem do fruto da árvore do conhe-cimento do bem e do mal. A verdade, digam o que quiserem autoridades, tanto as teológicas como as outras, civis e mi-litares, é que, propriamente falando, não o chegaram a co-mer, só o morderam, por isso estamos nós como estamos, sabendo tanto do mal, e do bem tão pouco.

(prefácio de José Saramago em SALGADO, Sebastião. Terra.São Paulo: Companhia das Letras, 1997.)

Levando em consideração tudo o que foi dito, tente explicar a passagem em negrito.

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José Saramago (1922 – 2010)

Escritor português fa-moso por romances como Memorial do convento, O evangelho segundo Jesus Cristo e Ensaio sobre a ce-gueira, escritos a partir de 1980, recebeu o Nobel de Literatura em 1998.

Comunista e ateu, Sara-mago envolveu-se em po-lêmicas com o Vaticano e com setores mais conser-vadores da sociedade por-tuguesa, o que o levou a exilar-se na Espanha, onde morou, até sua morte, na ilha de Lanzarote, no ar-quipélago da Canárias.

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Leitura complementar

O fragmento a seguir foi extraído do já citado capítulo XXXII, intitulado “Olhos de ressaca”, de Dom Casmurro, romance de Machado de Assis. Nessa passagem, os ado-lescentes Bentinho e Capitu estão conversando na casa da menina, até que o narrador pede para ver os olhos da menina:

Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me per-guntava o que era, se nunca os vira, eu nada achei extraordi-nário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra ideia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atri-buo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...

Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arras-tava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.

(ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Garnier, 1992.)

oblíqua: tortuosa, maliciosa.

Para saber mais

O oximoro e a preterição Existem oposições ainda mais radicais do que o para-

doxo. Elas ocorrem quando, numa mesma unidade de sentido, dois termos de sentidos opostos são usados, de modo que o atributo é contraditório em relação ao ob-jeto. Quando isso ocorre, tem-se um oximoro (que, em grego, significa “engenhosa aliança de palavras contradi-tórias”). No paradoxo, temos dois elementos que, asso-ciados simultaneamente, produzem a contradição. No oximoro, temos apenas um termo e, dentro dele, a contradição. Para simplificar, podemos dizer que há três casos clás-sicos de oximoro. Nos três, o termo determinante (em marrom) nega o termo determinado (em verde): 1. O predicado (determinante) nega o sujeito

(determinado): Exemplo: O discurso foi silencioso.

2. O adjunto adverbial (determinante) nega o verbo (determinado):

Exemplo: Conversamos silenciosamente.

3. O adjunto adnominal (determinante) nega o nome (determinado):

Exemplo: O silêncio daquele discurso comoveu a todos.

Nesses exemplos, não são apenas duas características opostas que são atribuídas ao mesmo tempo a um ob-jeto (como seria no caso de um paradoxo); apenas uma característica é atribuída e, entre o determinante e o determinado, já há uma contradição. O oximoro é a oposição mais forte que pode aparecer na superfície textual. Não faltam exemplos literários de oximoros. Podemos citar, mais uma vez, Gregório de Matos:

Enquanto, com gentil descortesia [...],

(MATOS, Gregório. Obra poética. Rio de Janeiro: Record, 1992.)

O próprio Luís de Camões:

Amor [...]É um contentamento descontente [...],

(CAMÕES, Luís de. Obras completas. vol. I. Lisboa: Sá da Costa, 1946.)

ou, ainda, Clarice Lispector:

E eu era atraída por ele. Não amor, mas atraída pelo seu silêncio e pela controlada impaciência que ele tinha em nos ensinar e que, ofendida, eu adivinhara.

(LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.)

A mera distinção entre antítese, paradoxo e oximoro não deve ser uma preocupação. A grande figura de lingua-gem composta a partir de oposições é a antítese: o para-doxo seria um tipo específico de antítese e o oximoro um tipo específico de paradoxo. O mais importante é notar as diferenças entre os efeitos expressivos produzidos por cada uma dessas três figuras.

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Outra figura de oposição que podemos citar é a preterição. Ela ocorre quando se faz uma afirmação no enunciado e se nega explicitamente o que se afirmou. Quando se faz uma afirmação e se nega implicitamente o que se afirmou, temos a ironia. Em ambos os casos, a oposição se dá entre uma opinião explícita no enunciado e a intenção real do enunciador. Vejamos um exemplo de preterição, extraído da canção “O meu país”, de Livardo Alves, Orlando Tejo e Gilvan Chaves, gravada pelo músico Zé Ramalho, no disco Nação nordestina:

Tô vendo tudo, tô vendo tudo,Mas bico calado, faz de conta que sou mudo.

[...]Um país que perdeu a identidade,Sepultou o idioma português,Aprendeu a falar pornofonês,Aderindo à global vulgaridade;Um país que não tem capacidadeDe saber o que pensa e o que diz,Que não pode esconder a cicatrizDe um povo de bem que vive mal;Pode ser o país do carnaval,Mas não é, com certeza, o meu país.

Um país que seus índios discriminaE as ciências e as artes não respeita,Um país que ainda morre de maleita,Por atraso geral da medicina,Um país onde escola não ensinaE hospital não dispõe de raios X,Onde a gente dos morros só é feliz,Se tem água de chuva e luz do sol;Pode ser o país do futebol,Mas não é, com certeza, o meu país.

Tô vendo tudo, tô vendo tudo,Mas bico calado, faz de conta que sou mudo.

Disponível em: <http://www.zeramalho.com.br/sec_discografia_letra.php?id=177>.Acesso em: 10 fev. 2011.

No trecho transcrito dessa canção, ocorre uma típica preterição: o enunciador, ao afirmar que vai ficar de “bico ca-lado” como se fosse mudo, sugere que não vai dar suas opiniões sobre o Brasil. No entanto, as duas décimas (isto é, estrofes de dez versos) criticam duramente a situação social, política, econômica e cultural brasileira, mostrando que a intenção do enunciador não é, portanto, ficar de “bico calado”. Aparentemente, o enunciador demonstra uma intenção; mas o enunciado contradiz explicitamente essa intenção, configurando um caso de preterição.

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Aula 9:Outras figuras de linguagem

Nesta aula, vamos estudar as figuras de linguagem compostas por repetição e tensividade.

Para começar

Existem certas ideias que, no nosso universo de valores, costumam ser chocantes. Um exemplo é a morte. Por mais cuidadoso que um falante seja, informar uma pessoa sobre a morte é sempre tarefa difícil. Muitas vezes, temos de re-correr a manobras linguísticas que atenuam o impacto que certas informações podem causar no interlocutor. Um exemplo literário desse recurso está em Camões, no soneto “Alma minha gentil que te partiste”, em que o eu lírico conversa com a amada morta:

Roga a Deus, que teus anos encurtou [...].

(CAMÕES, Luís de. Obras completas. vol. I. Lisboa: Sá da Costa, 1946.)

Nesse verso, encurtar anos é mais suave que matar. Você conhece outras maneiras de atenuar a ideia de morte? E você sabe que figura de linguagem é essa?

Exercícios

Leia a primeira estrofe do soneto “A um poeta”, de Olavo Bilac, para responder aos exercícios que se seguem:

Longe do estéril turbilhão da rua, Beneditino, escreve! No aconchego Do claustro, na paciência e no sossego, Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

(BILAC, Olavo. Poesias. São Paulo: Martins Fontes, 1996.)

estéril: improdutivo, desimportante.

turbilhão: agitação intensa.

Beneditino: religioso pertencente à Ordem de São Bento; por extensão de sentido, designa aquele que se devota incansavelmente a

trabalho meticuloso.claustro: convento, mosteiro.

lima: aprimora.

1. No segundo verso do poema, o eu lírico chama o poeta de beneditino. Assim, por um processo metafórico, estabelece-

se uma relação de semelhança entre o poeta e o monge. Qual o traço semântico comum entre eles?

2. Para intensificar o tema do esforço para compor um poema, o último verso transcrito recorre a uma figura de linguagem

que consiste na repetição das mesmas palavras. Que figura é essa? Por que ela é considerada um uso não conven-

cional da linguagem?

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3. O último verso do poema apresenta cinco formas verbais, dispostas de tal modo que constituem uma figura de lin-

guagem. Aponte-a e mostre o efeito produzido por ela.

4. Comparando sua resposta anterior aos efeitos produzidos pelos dois versos citados no PARA COMEÇAR, analise as dife-

renças entre as figuras de linguagem empregadas em cada caso.

Em casa

Outros mecanismos produtores de figuras de linguagem Todos os textos que lemos exprimem, em maior ou menor grau, tensões, que englobam as emoções, os con-flitos ideológicos, as dúvidas existenciais e filosóficas dos seres humanos. Seria impossível uma criação humana que as conseguisse evitar por completo. Por isso, todo enun-ciador – do texto literário ao texto científico – tem que lidar com esses sentimentos. Existem algumas figuras de linguagem que consistem em manipular, atenuando ou exagerando, essa tensividade. É perfeitamente aceitável que todas as produções do homem reflitam momentos de tranquilidade (ou rela-xamento) e de agitação (ou intensidade). Sendo assim,

a tarefa do enunciador é, de acordo com suas intenções, valorizar um desses polos: atenuando a agitação ou agi-tando a tranquilidade, confirmando o relaxamento ou negando-o.

Figuras compostas por tensividade A primeira dessas figuras é o eufemismo (que, em grego, significaria “dizer palavras que tragam boas impressões”), que consiste em empregar uma palavra ou expressão, em lugar de outra, com o intuito de atenuar uma informação inoportuna. Vejamos mais um exemplo de Dom Casmurro. No começo do romance, antes de começar a narrar seu caso amoroso com Capitu, Bentinho faz um balanço da sua vida – ele está na casa dos sessenta anos – e percebe que a maioria de seus amigos antigos já morreu. Refletindo sobre isso, ele escreve:

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Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia en-ganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas creem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a usar o dicionário, e tal frequência é cansativa.

(ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Garnier, 1992.)

O trecho destacado configura um belo caso de eufe-mismo. Bentinho diz que seus amigos “foram estudar a geologia dos campos santos”. O que entender por isso? Geologia é a ciência que estuda as transformações do globo terrestre, especialmente as que ocorreram no subsolo; “campos santos” é uma expressão usada para nos referirmos a cemitérios. Portanto “estudar a geolo-gia dos campos santos” significa estudar o subsolo dos cemitérios, isto é, morrer. Convenhamos que falar que alguém foi estudar a geologia dos campos santos é me-nos traumático do que afirmar que esse alguém morreu. Se o eufemismo consiste em suavizar ideias que possam ser chocantes, a hipérbole (que, em grego, significa “ex-cesso”) consiste exatamente no contrário: sua função é exagerar a expressão de uma ideia, justamente para chocar e, assim, obter maior grau de expressividade. Eis outro exemplo de Olavo Bilac, extraído do poema “A alvorada do amor”, do livro Alma inquieta:

Rios te correrão dos olhos, se chorares [...].

(BILAC, Olavo. Poesias. São Paulo: Martins Fontes, 1996.)

Por mais que uma pessoa chore, ela nunca vai chorar um rio. Esse verso, portanto, contém uma hipérbole em que se amplificam os possíveis efeitos da tristeza de al-guém. Podemos dizer, de maneira simplificada, que a hi-pérbole pode ser usada em duas situações:

-ra, impressionante;

impressionante. Assim como a hipérbole, a apóstrofe caracteriza-se por aumentar a tensão do texto, amplificando a força de algu-mas ideias. A apóstrofe é uma figura de linguagem que consiste na interpelação emotiva e exagerada de pessoas (ou de coisas personificadas):

Ó mar salgado, quanto do teu salSão lágrimas de Portugal. [...]

(PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.)

Nesse exemplo, o mar é personificado e o enunciador se dirige a ele, de maneira grandiloquente, para salientar os sofrimentos portugueses nas conquistas dos mares. A quarta figura de linguagem ligada à tensividade é a

gradação. Essa figura consiste em enumerar vários ter-mos de modo que cada um deles acrescente um traço de significado ao termo anterior. Sua função é preparar o terreno para chegar a uma ideia que poderá ser espantosa. A gradação configura, desse modo, um percurso de au-mento de tensão: os termos vão se sucedendo, de maneira que cada um deles exagera um pouco mais a expressão de uma ideia. É o que acontece na canção “Luz do sol”, do compositor baiano Caetano Veloso.

Luz do sol, Que a folha traga e traduz Em verde novo,

Em folha, em graça, em vida,em força, em luz.

Disponível em: <http://ww.caetanoveloso.com.br/sec_busca_obra.php?language=pt_BR&page=1&id=123&f_busca=luz do sol>.

Acesso em: 10 fev. 2011.

Aqui, a folha – passando pela graça, pela vida e pela força – chega à luz, formando uma gradação de valores positivos, por meio da qual há um aumento da expressi-vidade dos textos.

Figuras compostas por repetições As repetições – de palavras, de expressões, de frases, de ideias, de sons – também produzem figuras de linguagem. Nesse caso, porém, não há transporte de significados (isto é, a substituição de um termo por outro, como ocorre na metáfora ou na metonímia), mas sim a exploração do efeito expressivo da repetição. Para reforçar uma ideia, é comum repetir uma informa-ção que já foi veiculada por outro termo da frase. É o que acontece, por exemplo, na abertura do Cântico dos cânticos, um dos livros mais famosos do Velho Testamento. Eis o início do “Cântico”, na tradução de João Ferreira de Al-meida, quando a esposa se dirige ao homem:

Beija-me com os beijos de tua boca, porque melhor é o teu amor do que o vinho. Suave é o aroma dos teus unguentos, como unguento derramado é o teu nome; por isso as donzelas te amam. Leva-me após ti, apressemo-nos.

(Cântico dos cânticos, capítulo 1, versículos de 2 a 4.)

Nessa passagem, a mulher faz um convite, um pedido ao seu esposo, tanto é assim que o verbo beijar é usado no imperativo. No entanto, em vez de ela apenas dizer “Beija-me”, ela reforça esse convite com a expressão “com os beijos de tua boca”. Na perspectiva objetiva, essa expres-são seria desnecessária, pois a forma verbal beija já pres-supõe a existência de um beijo e os beijos já pressupõem a ideia de boca. Porém, do ponto de vista da expressivi-dade, “com os beijos de tua boca” não é uma expressão gratuita, pois reforça o pedido feito pela esposa.

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Todas as vezes em que uma informação já transmitida é enfatizada por outro termo, temos um caso de pleonas-mo (que, em grego, significa “superabundância”, “amplificação”). Outro caso de repetição é o polissíndeto (que, em grego, designa o “que contém muitas conjunções”), que consiste numa repetição de uma mesma conjunção, ligando vários termos coordenados. Nessas situações, a repetição contribui, decisivamente, para marcar o ritmo do texto; talvez por isso o polissíndeto seja muito recorrente em textos poéticos. No famoso poema “Morte do leiteiro”, de Carlos Drum-mond de Andrade, há um exemplo disso:

Os tiros na madrugadaliquidaram meu leiteiro.Se era noivo, se era virgem,se era alegre, se era bom,não sei,é tarde para saber.

(ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 1991.)

A repetição da conjunção se nesses versos também pro-duz o efeito de ênfase: o enunciador ressalta seu desconhe-cimento a respeito das condições de vida do leiteiro antes de morrer. Agora que ele morreu, “é tarde para saber”. A anáfora (que, em grego, juntava ana-, “para trás” com phorá, “ação de levar, transportar” e significava “ação de repetir”), à semelhança do polissíndeto, consiste na repe-tição de um mesmo termo ao longo de um período. Mas enquanto o polissíndeto marca a repetição de uma mesma conjunção, a anáfora consiste na repetição de um termo qualquer em intervalos relativamente regulares. António Vieira, mestre da oratória, usava muito a anáfora:

A nuvem tem relâmpago, tem trovão e tem raio; relâm-pago para os olhos, trovão para os ouvidos, raio para o coração; com o relâmpago alumia, com o trovão assom-bra, com o raio mata. Mas o raio fere a um, o relâmpago a muitos, o trovão a todos. As-sim há de ser a voz do prega-dor: um trovão do céu, que assombre e faça tremer o mundo.

(VIEIRA, António. Obras completas.vol. I. Porto: Lello, 1945.)

Nesse fragmento, do final do já citado Sermão da Sexa-gésima, o princípio de construção do texto é o da anáfora. A ênfase na forma verbal tem e nas preposições para e com, na mesma posição em cada uma das orações, além de reforçar o sentido dos termos repetidos, valoriza o rit-mo do texto. Outra figura importante do grupo das repetições, o quiasmo (que, em grego, significa “disposição em

cruz”), também chamado de conversão, consiste em repetir de maneira invertida uma frase que já tinha aparecido no texto, produzindo um efeito de zigue-zague. O quiasmo contribui para enfatizar o sentido de uma expressão, ao mesmo tempo que dá regulari-dade rítmica ao texto. O célebre poema “No meio do caminho”, de Drummond, é construído a partir de vá-rios quiasmos:

No meio do caminho tinha uma pedratinha uma pedra no meio do caminhotinha uma pedrano meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimentona vida de minhas retinas tão fatigadas.Nunca me esquecerei que no meio do caminhotinha uma pedratinha uma pedra no meio do caminhono meio do caminho tinha uma pedra.

(ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. Rio de Janeiro: Record, 2001.)

Ainda existe a possibilidade de produzir figuras de lin-guagem por meio da repetição dos mesmos sons. Pode-mos considerá-las figuras de sonoridade. A repetição dos mesmos sons produz interessantes efei-tos expressivos, principalmente em textos que valorizam as questões rítmicas. A repetição sistemática de um mesmo fonema vocálico num texto define a figura de linguagem que chamamos de assonância. De modo semelhante à assonância, a ali-teração também consiste numa repetição sistemática de consoantes. Muitas vezes, aliterações e assonâncias podem ocorrer ao mesmo tempo. É o que ocorre na canção “Flor da ida-de”, que Chico Buarque compôs para a peça teatral Gota d’água, parceria do compositor com o dramaturgo Paulo Pontes:

Vê passar ela, como dança, balança, avança e recua,A gente sua,A roupa suja da cuja se lava no meio da rua.Despudorada, dada, à danada agrada andar seminuaE continua...Ai, a primeira dama, o primeiro drama, o primeiro amor...

(BUARQUE, Chico. Letra e música. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.)

No quarto verso transcrito, ocorrem – simultaneamente – a aliteração do d (que aparece nove vezes) e a assonância do a (que aparece treze). A repetição sistemática, ao mes-mo tempo, de vogais e consoantes contribui para valorizar, ainda mais, o ritmo do texto.

Tarefa mínima

Releia a estrofe a seguir, extraída de Os Lusíadas, já usada na Aula 7, para responder ao que se pede:

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SISTEMA ANGLO DE ENSINO 46 ENSINO MÉDIO ZETA - 1a SÉRIE

Nestas e outras palavras que diziamDe amor e de piedosa humanidade,Os velhos e os meninos os seguiamEm quem menos esforço põe a idade;Os montes de mais perto respondiam,Quase movidos de alta piedade;A branca areia, as lágrimas banhavam,Que em multidão com elas se igualavam.

(CAMÕES, Luís de. Obras completas. vol. IV. Lisboa: Sá da Costa, 1946.)

O professor Ivan Teixeira, coautor do material didático do Anglo, propõe, em sua edição comentada do poema camoniano (São Paulo: Ateliê, 1999), a seguinte tradução didática para essa estrofe:

Enquanto as mulheres diziam estas e outras palavras de amor e sentimentos piedosos, os velhos e os meninos, em quem os sentimentos são mais brandos por causa da idade, seguiam com os olhos a procissão de navegantes. Quase emocionados por elevada piedade, os montes correspondiam aos sentimentos da multidão. As lágrimas, vertidas em grande quantidade, ba-nhavam a areia branca da praia.

De posse dessas informações, explique como se constrói a figura de linguagem de tensividade presente no trecho em negrito.

Tarefa complementar

1. O trecho a seguir foi extraído de “Aquarela do Brasil”,

de Ary Barroso, uma das canções mais famosas da

história da MPB:

Brasil!Terra boa e gostosaDa morena sestrosaDe olhar indiscreto.Ô Brasil, verde que dáPara o mundo se admirar,Ô Brasil, do meu amor,Terra de Nosso Senhor.Brasil! Brasil!Pra mim... Pra mim...

Ô esse coqueiro que dá coco,Onde eu amarro a minha redeNas noites claras de luar.Brasil! Brasil!

(CHEDIAK, Almir. Songbook Ary Barroso. vol. II. Rio de Janeiro: Lumiar, 1994.)

A expressão coqueiro que dá coco é um exemplo de pleonasmo. Ocorre que, além de uma figura de linguagem, o pleonasmo também pode ser considerado um vício de linguagem. Isso se dá quando a repetição provocada pelo pleonasmo não traz nenhuma vantagem ao texto, como ocorre em expressões como subir para cima ou entrar para dentro. Nesses casos, convém evitar a repetição. Pen-sando nisso, a expressão coqueiro que dá coco é uma

redundância desnecessária ou ela aumenta a expressivida-de do texto? Justifique sua resposta.

2. Observe os textos a seguir. O primeiro foi extraído da

abertura do poema “Antífona”, de Cruz e Sousa, que

já lemos no caderno 2, e o segundo é uma estrofe de

“Boa noite”, de Castro Alves:

Texto I

Ó Formas alvas, brancas, Formas clarasDe luares, de neves, de neblinas!...Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...Incensos dos turíbulos das aras...

(SOUSA, João da Cruz e. Missal e Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1993.)

turíbulos: recipiente circular de metal, usado em rituais

religiosos, em cujo interior se queima incenso.

aras: altares.

Texto II

A frouxa luz da alabastrina lâmpadaLambe voluptuosa os teus contornos...Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinosAo doudo afago de meus lábios mornos.

(ALVES, Castro. Espumas flutuantes. São Paulo: Ateliê, 1997.)

alabastrina: lâmina de alabastro que se utiliza em lugar de

vidros.

voluptuosa: sensual.

doudo: doido.

afago: carícia, carinho.

a) No texto I, há três assonâncias. Aponte-as.

b) No texto II, o que a aliteração do /l/ pode sugerir?

Leitura complementar

O soneto a seguir é de autoria de Gregório de Matos. Nas últimas aulas, comentamos versos esparsos extraídos desse texto. Mas há muito mais a perceber nesse texto, que recorre a diversas das figuras de linguagem que estudamos.

Discreta, e formosíssima Maria,Enquanto estamos vendo a qualquer horaEm tuas faces a rosada Aurora,Em teus olhos, e boca o Sol, e o dia:

Enquanto com gentil descortesiaO ar, que fresco Adônis te namora,Te espalha a rica trança voadora,Quando vem passear-te pela fria:

Goza, goza da flor da mocidade,Que o tempo trota a toda ligeireza,E imprime em toda a flor sua pisada.

Oh, não aguardes, que a madura idadeTe converta em flor, essa belezaEm terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.

(MATOS, Gregório. Obra poética. Rio de Janeiro: Record, 1992.)