Linguagem e realidade
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Linguagem e realidade
Da atividade mais simples ao gesto mais complexo, tudo o que realizamos no nosso dia-a-dia
depende do uso de uma linguagem (seja ela escrita, visual, falada ou gestual). Desde uma ação
corriqueira como atravessar uma rua (observando a sinalização do trânsito) até a utilização de uma
fórmula em um exercício de Física, as diferentes linguagens estão sempre presentes, como uma
condição para o compartilhamento dos sentidos entre as pessoas e para a própria organização do
cotidiano. Sem a partilha de uma linguagem por um grupo social, não há comunicação possível.
Mas você já parou para pensar na relação entre a linguagem e a realidade à nossa volta? Como as
palavras, imagens e sons se relacionam com o mundo?
Espelhamento ou construção?
Uma maneira de conceber a relação entre as palavras e as coisas é pensar que, para cada objeto,
sentimento ou ideia que existe no mundo, existe também uma palavra correspondente. Para retratar
aquele móvel que serve de assento, com encosto e quatro pernas, existe a palavra “cadeira”; para
definir aquela sensação que a baixa temperatura atmosférica provoca nas pessoas, existe a palavra
“frio”. Essa é uma relação de correspondência, ou de espelhamento: seguindo esse raciocínio, um
idioma serviria para representar tudo o que existe, traduzindo ideias e sensações. Mas será que é
assim mesmo que funciona?
Tomemos como exemplo a palavra “saudade”, que só existe em português e galego1, e não tem
nenhum correspondente exato em outra língua. Será que o sentimento da saudade (que todos nós
conhecemos) existe – igualmente – para todas as pessoas do mundo? Nesse caso, os outros idiomas
estariam “errados”, ao não possuírem uma palavra com o mesmo significado? Se pensarmos na
relação entre a linguagem e a realidade como sendo de simples correspondência, a ideia de “erro”
na tradução de um sentimento por uma palavra parece correta. Mas não é muito estranho que os
outros idiomas não possuam uma palavra para um sentimento tão importante para nós, falantes do
português? Não seria mais plausível pensar que essa relação é um pouco mais complicada?
Há outras maneiras de se pensar a relação entre a língua e o mundo – mais complexas, mas também
muito mais ricas e fascinantes. Desde meados do século XX, com as contribuições de diversos
filósofos, sociólogos e estudiosos da linguagem que constituíram a chamada virada linguística2, a
1 Idioma falado na região da Galícia, na Espanha. 2 Em meados do século XX, a filosofia ocidental passou por um importante desenvolvimento, chamado de “virada
linguística”. Correntes como a hermenêutica, o estruturalismo, a semiótica e o pragmatismo abriram caminho para uma concepção segundo a qual a linguagem não é apenas um instrumento do pensamento, mas o constitui e é constituída por ele.
conexão entre as palavras e as coisas começou a ser pensada não mais como simples espelhamento,
mas como uma relação de mútua construção entre a linguagem e a realidade.
Para essa outra perspectiva, as palavras não apenas correspondem àquilo que vemos ou pensamos,
mas estruturam a nossa percepção das coisas. Os dois objetos representados nas figuras acima têm
formatos bastante diferentes, não é? Mas nós reconhecemos ambos com a mesma palavra
(“cadeira”). Isso só acontece porque, desde pequenos, aprendemos que objetos com essas mesmas
características e utilidades recebem o mesmo nome. Se não fosse pelo trabalho da linguagem,
poderíamos facilmente acreditar que os dois objetos pertenceriam a classes diferentes de coisas
(que, portanto, receberiam nomes distintos). Nós não conseguiríamos sequer reconhecer uma
cadeira como uma cadeira sem diferenciá-la de todos os outros objetos do mundo (sofás, bancos,
mesas etc.) através do aprendizado da língua, adquirido desde a infância. Nesse sentido, uma
cadeira real não é apenas representada com exatidão pela palavra “cadeira”; o próprio objeto é
construído por meio da linguagem.
Realidade e linguagem
Do mesmo modo que a linguagem constitui a realidade, é importante lembrar que a realidade
também constitui a linguagem. Para perceber essas influências do ambiente social e cultural sobre a
linguagem cotidiana, é possível pensar nas variações de sentido das mesmas palavras em diferentes
lugares: se um dia você estiver em Portugal e precisar comprar roupa íntima, pense duas vezes antes
de entrar na loja, pois “cueca”, por lá, é o nome de uma peça de roupa feminina...
Mas também podemos pensar nas transformações históricas que o significado de um mesmo termo
pode sofrer ao longo do tempo – que são resultado de profundas mudanças sociais, econômicas e
culturais. A palavra “deficiente”, por exemplo, só passou a ter um sentido pejorativo há cerca de
Figura 1 Figura 2
trezentos anos3. Na Idade Média, os homens e mulheres com deficiência eram considerados pessoas
sagradas, que tinham um papel importante a cumprir nas comunidades e não eram excluídas. Com o
avanço da civilização industrial – cujo fundamento é a eficácia –, o valor de um ser humano
também passou a ser medido pela capacidade de produzir, de ser “eficiente”. A partir dessas
transformações, o termo “deficiente” ganhou uma conotação fortemente negativa, e essas pessoas
passaram a enfrentar severos desafios para se integrar à sociedade.
Mas é importante dizer que a relação entre realidade e linguagem é dinâmica, viva, acontece e se
transforma todos os dias. É nas práticas comunicativas cotidianas, cada vez mais intensas – em casa,
na escola, nas redes sociais –, que tanto o mundo quanto a linguagem se constroem e se modificam.
Palavras novas surgem a todo momento, motivadas pelas velozes transformações do mundo
contemporâneo; novas interpretações dos fenômenos sociais e políticos são produzidas o tempo
inteiro, dando sentido à realidade e ajudando a construí-la.
Quando uma revista de circulação nacional decide retratar um evento de uma maneira ou de outra –
escolhendo diferentes palavras, imagens e cores –, esse gesto não apenas representa os
acontecimentos do mundo de maneira objetiva, mas sugere interpretações e influencia as opiniões
3 Para saber mais sobre as transformações no termo “deficiente”, consulte o texto “Pequena história da deficiência: do quase divino ao demasiadamente humano”, de Marcio Tavares d’Amaral, presente no livro Inclusão social da pessoa com deficiência: medidas que fazem a diferença, lançado pelo Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência (IBDD). Disponível em: http://www.ibdd.org.br/arquivos/livro%20IBDD.pdf
Figura 3
dos leitores sobre o tema. Representar o mundo é também construí-lo, apontar para esta ou aquela
direção. Nas imagens acima4 (Figura 3), é possível comparar duas visões muito distintas sobre o
mesmo fato: ao representar um mesmo evento real, as duas revistas constroem acontecimentos
distintos.
Assim, o problema não consiste mais em perguntar se as coisas do mundo são representadas
corretamente pela linguagem, mas em compreender como as atividades comunicativas cotidianas –
realizadas por meio das diferentes linguagens – estruturam, transformam, dão sentido ao mundo.
Dizer que a linguagem não apenas representa, mas constrói a realidade é rejeitar a ideia segundo a
qual as palavras seriam como “rótulos” para as coisas ou os conceitos. Falar, escrever, desenhar, é
atribuir sentido e dar existência ao mundo à nossa volta.
Quando nomeamos uma coisa, não estamos apenas traduzindo algo exterior à linguagem, mas
ajudando a construir algo na realidade. Toda palavra que escrevemos, toda fotografia que
publicamos em uma rede social traz consigo uma posição sobre o mundo, e pode produzir efeitos de
sentido dos mais diversos. Dizer “negro” não é o mesmo que dizer “preto”; “homossexualismo” não
é o mesmo que “homossexualidade”. O uso de um termo ou outro não é aleatório; está conectado a
múltiplos fatores sociais e culturais que permeiam qualquer interlocução.
Dependendo do contexto, a utilização de um simples termo pode ser uma manifestação de afeto ou
promover a discriminação e a injustiça. No nosso cotidiano, é preciso pensar sempre nas
consequências de uma palavra, de um desenho, de uma fotografia. Se a linguagem não é um mero
reflexo das coisas – e sim algo que produz efeitos na realidade –, cada vez mais é preciso ter
sensibilidade e responsabilidade com os gestos que realizamos em nossas interações comunicativas.
Referências:
ARAÚJO, Inês Lacerda. “Por uma concepção semântico-pragmática da linguagem”. Revista
Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL. V. 5, n. 8, março de 2007. Disponível em:
http://www.revel.inf.br/files/artigos/revel_8_por_uma_concepcao_semantico_pragmatica_da_lingu
agem.pdf
CBC Língua Portuguesa – “A linguagem como atividade sócio-discursiva”.
4 Reproduções de capas das revistas Veja (à esquerda) e Carta Capital (à direita) publicadas no dia 13 de março de 2013.
MELO, Iran Ferreira. “Linguagem e realidade social. Espelhamento ou construção?”. Revista
Língua Portuguesa – UOL. Disponível em:
http://linguaportuguesa.uol.com.br/linguaportuguesa/gramatica-ortografia/28/artigo209998-1.asp
Vídeos da série “Preto ou negro”, da Rede Jovem de Cidadania. Disponíveis em:
http://www.aic.org.br/index.php/acervo/video/
Ficha técnica do texto “Linguagem e realidade”:
Associação Imagem Comunitária
Concepção: Beatriz Bretas, Samuel Andrade e Victor Guimarães
Redação: Victor Guimarães
Colaboradores: Beatriz Bretas, Bruna Lubambo, Letícia Lopes, Marina Andalécio, Paulo Andrade,
Stéphanie Bollmann, Thaiane Rezende, Vanessa Costa