LIMA, Rodrigo Nogueira - USP · 2020. 8. 3. · 3 RODRIGO NOGUEIRA LIMA O Romantismo...

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O ROMANTISMO REVOLUCIONÁRIO ATRAVÉS DAS AFINIDADES ELETIVAS ENTRE O MOVIMENTO SURREALISTA, HENRI LEFEBVRE E A INTERNACIONAL SITUACIONISTA LIMA, Rodrigo Nogueira O ROMANTISMO REVOLUCIONÁRIO ATRAVÉS DAS AFINIDADES ELETIVAS ENTRE O MOVIMENTO SURREALISTA, HENRI LEFEBVRE E A INTERNACIONAL SITUACIONISTA São Carlos 2018

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O ROMANTISMO REVOLUCIONÁRIOATRAVÉS DAS AFINIDADES ELETIVAS ENTRE O MOVIMENTO SURREALISTA, HENRI LEFEBVRE E A INTERNACIONAL SITUACIONISTA

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

INSTITUTO DE ARQUITETURA E URBANISMO/ IAU-USP

RODRIGO NOGUEIRA LIMA

O Romantismo Revolucionário através das afinidades eletivas entre o Movimento

Surrealista, Henri Lefebvre e a Internacional Situacionista.

São Carlos-SP

2018

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RODRIGO NOGUEIRA LIMA

O Romantismo Revolucionário através das afinidades eletivas entre o Movimento

Surrealista, Henri Lefebvre e a Internacional Situacionista.

Versão Corrigida

(Versão original encontra-se na unidade que aloja o Programa de Pós-graduação)

Tese apresentada ao Instituto de Arquitetura e Urbanismo da

Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Doutor em

Ciências. Área: teoria e história da arquitetura e do urbanismo.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Roberto Monteiro de Andrade

São Carlos-SP

2018

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O primeiro homem que, havendo cercado um pedaço de terra, disse “isso

é meu”, e encontrou pessoas tolas o suficiente para acreditarem nas suas

palavras, este homem foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos

crimes, guerras e assassinatos, de quantos horrores e misérias não teria poupado

ao gênero humano aquele que, arrancando os marcos, ou tapando os buracos,

tivesse gritado aos seus semelhantes: Livrem-se de escutar esse impostor; pois

estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos, e a terra de

ninguém!

Jean Jacques Rousseau, O contrato social, 1762.

Dedico a minha tese a todos os espíritos livres que um dia ao longo da história ousaram

proclamar: NEM MESTRES, NEM ESCRAVOS!

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Agradecimentos

Agradeço à CAPES pelas bolsas de estudos concedidas, de âmbito nacional pelo período de

julho de 2014 a julho de 2018, e de âmbito internacional pelo período de maio a outubro de 2017,

as quais foram fundamentais para o desenvolvimento desta pesquisa. Agradeço ao meu orientador,

Prof. Dr. Carlos Roberto Monteiro de Andrade pela dedicação, orientação, entusiasmo pelo tema,

paciência e amizade. Vale a pena salientar a sua rara generosidade, dedicação nas revisões dos

meus ensaios e delicadeza para indicar os melhores caminhos a serem tomados. Agradeço ao amor,

dedicação e apoio de meus amados pais, Antônio Aparecido Matos Lima e Marina Nogueira Lima,

a presença dos meus irmãos Gustavo Nogueira Lima e Marcelo Nogueira, e as queridas Denise e

Bianca. Agradeço a minha amada companheira Tatiana Francischini, pela paciência, incentivo,

debates, carinho, revisões e inestimável ajuda nessa longa caminhada. Agradeço a Rosangela

Francischini pela revisão. Agradeço as conversas e o apoio dos meus amigos Paolo Colosso, Jéssica

Omena, Fabiano Sartori e Lana Barreto.

Agradeço ao Prof. Dr. Michael Löwy pela supervisão do meu estágio na École des hautes

études en sciences sociales – EHESS, em Paris, pelas conversas, orientações, esclarecimentos em

relação ao ideário do surrealismo, e por ter gentilmente me apresentado ao Groupe de Paris du

mouvement surréaliste. Experiência inestimável para a minha formação acadêmica e

principalmente para a ampliação da minha visão de mundo. Agradeço a todos os membros do

Groupe de Paris, pela acolhida, presentes, conversas, amizade e pelo prazer de poder frequentar

suas reuniões semanais. Agradeço as entrevistas concedidas por Jöel Gayraud, Guy Girard, Michel

Zimbacca e Anny Bonin, membros do Groupe de Paris, e pelos presentes do poeta Alfredo

Fernandes. Agradeço a acolhida fraterna do Grupo de Madrid do movimento surrealista, pela

entrevista coletiva concedida por Eugenio Castro, José Manuel Rojo, Lurdes Martínez, Andrés

Devesa, e pela entrevista individual de Emilio Santiago. Agradeço à Profª. Drª. Jill Fenton pela

recepção em Londres e entrevista concedida. Agradeço ao poeta e colagista Alex Januário, membro

fundador do grupo surrealista DeCollage, membro do Grupo de São Paulo do movimento surrealista

e colaborador do movimento surrealista internacional, pelos livros, acolhida e incentivo; além do

contato junto com Guy Girard, que viabilizou a minha visita ao Grupo de Madrid do movimento

surrealista. Agradeço ao Prof. Dr. Emmanuel Rubío pela conversa e entusiasmo no tema.

Agradeço à Profª. Drª. Amélia Luisa Damiani pelos livros, conversas, entusiasmo e interesse

pela relação entre Henri Lefebvre e a Internacional Situacionista. Destaco a sua rara generosidade

e gentileza. Agradeço ao sociólogo francês Dr. Hugues Lethierry pela conversa, gentileza e interesse

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no tema. Agradeço ao historiador Dr. Jaelson Trindade pela ajuda, amizade fraterna e entusiasmo

pela obra de Henri Lefebvre.

Agradeço ao Prof. Dr. Fábio S. Santos por sua persistência em destacar a importância do

Movimento Surrealista, pela ajuda, amizade, interesse e disponibilidade para conversas sobre o

tema e seus desdobramentos na arte contemporânea. Agradeço ao grupo de pesquisa NEC, no qual

me tornei agregado. Agradeço aos professores que o compõem, Dr. Ruy Sardinha, Dr. David

Sperling e Dr. Luciano Costa, pela acolhida, conversas e discussões, assim como a todos os

pesquisadores e amigos que animam o grupo.

Agradeço ao casal de amigos Luiza Carrozza e Philippe pela acolhida fraterna em Paris, por

todo o suporte, amor e carinho, me senti sinceramente um membro da família. Serei eternamente

grato pelo apoio, ajuda, conselhos e amizade sincera. Agradeço aos amigos pesquisadores Ana

Gambardella (Céu), Paula Pacheco, Rodrigo Scheeren, pela ajuda e revisões, e pelo apoio de Nayara

Benatti, Lucas Pereira e Gabriele Landim. Agradeço a todos os amigos pesquisadores de São Carlos,

pelas relações fraternas, amizade e clima familiar. Agradeço aos amigos pesquisadores Jansen Faria

e Milena Lima por terem iniciado junto comigo o grupo de leituras da obra de Henri Lefebvre no

IAU, em 2015. Agradeço à Profª. Drª. Eulalia Negrelos por ter se unido a nós, e a todos os

professores e pesquisadores que em algum momento participaram das atividades do grupo de

leituras, ao longo desses quatro anos. Assim como agradeço a todos os professores e pesquisadores

vinculados ao grupo de pesquisa URBIS, do qual participei nesses últimos anos. Agradeço às

secretárias da pós Mara lino e Flávia Cavalcanti, pelo excelente trabalho prestado, sempre

educadas, prestativas e organizadas. Agradeço a todos os funcionários das bibliotecas e arquivos,

nacionais e internacionais nos quais pude trabalhar. Enfim, agradeço a todos os amigos

pesquisadores ou não que fiz ao longo dessa jornada, incluo o vigilante Valmir, sempre alerta, bem-

humorado e simpático, com o qual pude dar boas risadas.

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Resumo:

A presente tese propõe analisar criticamente as aproximações históricas e ideológicas entre

o Movimento Surrealista, a Internacional Situacionista e a obra do filósofo e sociólogo Henri

Lefebvre, a qual é utilizada como mediação teórica e crítica entre os dois movimentos, abrangendo

o período de formação do Movimento Surrealista e a dissolução da Internacional Situacionista, de

1924 a 1972. Nosso principal objetivo é identificar no Movimento Surrealista, na obra de Henri

Lefebvre e na Internacional Situacionista, manifestações modernas da corrente de pensamento

romântico, pertencentes à tipologia do “Romantismo Revolucionário e/ou Utópico”, de tendência

do “romantismo marxista”. Portanto, o conceito de romantismo revolucionário é o fio condutor

adotado para esclarecer as relações entre os três objetos de nossa pesquisa. A definição do conceito

é adotada a partir de duas fontes: com base na obra do próprio Lefebvre, cuja formulação é

apresentada pela primeira vez na Nouvelle Revue Française, no artigo Vers un romantisme

révolutionnaire, publicado em 1957 e, posteriormente, retomada no artigo Vers un nouveau

romantisme?, editado em 1962, no livro Introduction à la modernité; e na obra dos autores Michael

Löwy e Robert Sayre desenvolvida no livro Révolte et mélancolie: le romantisme à contre-courant

de la modernité, publicado em 1992, os quais são autores da tipologia do Romantismo

Revolucionário e/ou Utópico, de tendência do romantismo marxista. O objetivo geral do trabalho

é identificar as afinidades eletivas entre o conceito de romantismo revolucionário, elaborado por

Lefebvre, e o conceito desenvolvido por Löwy e Sayre, assim como as suas divergências. Os

objetivos e as hipóteses derivam da compreensão estabelecida a partir da contraposição entre as

duas formulações de romantismo revolucionário. Verificaremos as hipóteses de que tanto Lefebvre

quanto a I.S. apesar de negarem, compartilham da nostalgia romântica pelo passado; que os

situacionistas, na tentativa de realizar a revolução da vida cotidiana, revelam que suas afinidades

eletivas são de ordem teórica com Lefebvre e de ordem prática com o Movimento Surrealista; e

que no esforço de criar meios de intervenção na vida cotidiana, os situacionistas tentam racionalizar

os meios poéticos do surrealismo, transformando a deambulação poética em um meio de

investigação psicogeográfica. A partir da metodologia adotada, examinamosde forma comparativa

os textos primários produzidos pela Internacional Situacionista, pelo Movimento Surrealista, por

Henri Lefebvre e por Michael Löwy e Robert Sayre, contrapondo suas ideias no campo da arte,

cultura, política e meios de ação no espaço urbano. Os textos secundários (comentadores)

fornecem um panorama mais amplo do universo surrealista, situacionista e da obra de Lefebvre no

contexto das décadas de 20 a 70.

Palavras-chave: Internacional Situacionista; Surrealismo; Henri Lefebvre; Guy Debord; Romantismo

Revolucionário.

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Abstract:

This thesis proposes to critically analyze the historical and ideological approaches

between the Surrealist Movement, the Situationist International and the work of the philosopher

and sociologist Henri Lefebvre, which is used as theoretical and critical mediation between the two

movements, covering the period of formation of the Movement Surrealism and the dissolution of

the Situationist International from 1924 to 1972. Our main objective is to identify in the Surrealist

Movement, in the work of Henri Lefebvre and in the Situationist International, modern

manifestations of the romantic current of thought, belonging to the typology of “Revolutionary and

/ or Utopian Romanticism”, a bias of “marxist romanticism”. Therefore, the concept of

revolutionary romanticism is the guiding line adopted to clarify the relations between the three

objects of our research. The definition of the concept is adopted from two sources: based on

Lefebvre's own work, the formulation of which is presented for the first time in the Nouvelle Revue

Française, in the article Vers un romantisme révolutionnaire, published in 1957, and later taken up

in the article Vers a nouveau romantisme?, published in 1962 in the book Introduction à la

modernité; and in the work of authors Michael Löwy and Robert Sayre developed in the book

Révolte et mélancolie: le romantisme à contre-courant de la modernité, published in 1992, who are

the authors of the Revolutionary and / or Utopian Romanticism’s typology, a bias of marxist

romanticism.The general objective of the work is to identify the elective affinities between

Lefebvre's concept of revolutionary romanticism and the concept developed by Löwy and Sayre, as

well as their divergences. The objectives and hypotheses derive from the understanding established

from the contraposition between the two formulations of revolutionary romanticism. We will

examine the hypotheses that both Lefebvre and the I.S., although they deny they shared the

romantic nostalgia for the past; that the situationists in the attempt to realize the revolution of

daily life, reveal that their elective affinities are of theoretical order with Lefebvre and of practical

order with the Surrealist Movement; and that in the effort to create means of intervention in

everyday life, the Situationists try to rationalize the poetic means of surrealism, transforming poetic

déambulation into a means of psychogeographical investigation.Based on the adopted

methodology, we examined in a comparative way the primary texts produced by the Situationist

International, the Surrealist Movement, Henri Lefebvre and Michael Löwy and Robert Sayre,

opposing their ideas in the field of art, culture, politics and means of action in space urban. The

secondary texts (commentators) provide a broader overview of the surrealist, situationalist, and

Lefebvre universe in the context of the 1920s and '70s.

Keywords: Situationist International; Surrealism; Henri Lefebvre; Guy Debord; Revolutionary

Romanticism.

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Lista de Ilustrações:

Figura 01 - Documento Sur Le Hasard publicado em 2006 .......................................................... 170

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Sumário

Introdução 19

Capítulo 1

Do Romantismo ao Romantismo Revolucionário: uma análise do conceito

1.1 - O Romantismo e suas tipologias a partir de Michael Löwy e Robert Sayre 31

1.2 - O Romantismo esquecido do pensamento de Henri Lefebvre. 54

1.3 - O Romantismo Revolucionário a partir de Henri Lefebvre. 63

Capítulo 2

As afinidades eletivas entre Henri Lefebvre e a Internacional Situacionista

2.1 – A nostalgia presente no pensamento de Henri Lefebvre e da Internacional

Situacionista. 87

2.2 – Henri Lefebvre e a Internacional Situacionista, uma história de amor que

terminou mal. 106

2.3 – Da crítica à revolução da vida cotidiana: uma análise da miséria e riqueza da

vida cotidiana. 125

Capítulo 3

A crítica situacionista ao Movimento Surrealista.

3.1 –Um breve histórico do Movimento Surrealista, da sua fundação à atividade

contemporânea. 137

3.2 – Um desvio racional: das deambulações à psicogeografia. 159

Considerações finais 185

Referências Bibliográficas 191

Apêndice

Levantamento por palavra chave 203

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A presente tese intitulada O Romantismo Revolucionário através das afinidades eletivas

entre o Movimento Surrealista, Henri Lefebvre e a Internacional Situacionista, propõe analisar

criticamente as aproximações históricas e ideológicas entre o Movimento Surrealista, a

Internacional Situacionista (I.S.) e a obra do filósofo e sociólogo Henri Lefebvre, a qual é utilizada

como mediação teórica e crítica entre os dois movimentos, abrangendo o período de formação do

Movimento Surrealista e a dissolução da Internacional Situacionista, de 1924 a 1972. Adotamos o

livro Révolte et mélancolie: le romantisme à contre-courant de la modernité, dos autores Michael

Löwy e Robert Sayre,com intuito de analisarmos as manifestações do romantismo para além das

interpretações que o reduzem a uma corrente artística e literária, ampliando a análise para as suas

posições políticas. A complexa diversidade de manifestações que são designadas pelo termo

romantismo coloca aos autores a difícil tarefa de identificar e definir um princípio unificador, os

quais o definem como uma visão de mundo que implica a “[...] crítica da modernidade, isto é, da

civilização capitalista, em nome de valores e ideias do passado (pré-capitalista, pré-moderno)”

(LÖWY; SAYRE, 2015, p.38). O protesto romântico contra a modernidade tem uma tonalidade

nostálgica particular, a qual permite criticar a sociedade burguesa industrial a partir dos valores

humanos por ela suprimidos. Nesse sentido, os românticos dirigem seus ataques principalmente ao

individualismo liberal, à destruição das relações orgânicas comunitárias, à quantificação da vida e

das relações humanas, assim como ao desencantamento do mundo. Entre as diferentes posições

que os românticos adotam, que vão desde o romantismo reacionário ao revolucionário, Löwy e

Sayre propõem organizá-las em tipologias dentre as quais adotamos a Revolucionário e/ou Utópica

de tendência marxista para identificar e analisar as aproximações entre os três objetos de nossa

pesquisa, o Movimento Surrealista, a obra de Henri Lefebvre e a Internacional Situacionista.

Segundo Löwy e Sayre, a obra Discours sur l'origine et les fondements de l'inégalité parmi

les hommes de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), publicada no século XVIII no ano de 1754, é

adotada como marco inicial do romantismo, o qualatravessa três séculose perdura até hoje.

Espectro político amplo cuja manifestação do romantismo revolucionário de tendência marxista é

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classificada por Löwy e Sayre como a corrente quente do marxismo, na qual seus representantes

mais ilustres são Georg Lukacs, Walter Benjamin, Ernst Bloch, Theodor Adorno, José Carlos

Mariátegui, Edward PalmerThompson, e na França, o Movimento Surrealista, Henri Lefebvre e a

Internacional Situacionista. A corrente quente do marxismo apoia suas críticas sobre o pensamento

utópico, os sentimentos e o amor, contraposta àcorrente friaque privilegia uma análise científica e

racional do capitalismo (LÖWY; SAYRE, 2015, p.253).A corrente fria, que predominou no

pensamento marxista ao longo do século XX, considera o romantismo enquanto movimento

passadista e reacionário. Entretanto, veremos ao longo desta tese, que há múltiplas tendências do

romantismo, inclusive a denominada romantismo revolucionário. Eis a importância do trabalho de

Löwy e Sayre que resgata, nos textos de Karl Marx, sua crítica à reificação das relações humanas,

do amor e da amizade. Marx não pode ser considerado um autor romântico; no entanto, ele

reconhece a importância da crítica romântica à sociedade burguesa, o que legitima identificar uma

tendência marxista dentro do pensamento romântico. Portanto, parece indispensável rever o

romantismo, frequentemente desprezado pela esquerda progressista, para iluminar a crítica da

alienação e da exploração sobre uma dimensão humana mais ampla, em que o romantismo e a luta

de classes andam lado a lado.

Nosso principal objetivo é identificar no Movimento Surrealista, na obra de Henri Lefebvre

e na Internacional Situacionista, manifestações modernas da corrente de pensamento romântico,

pertencentes à tipologia do Romantismo Revolucionário e/ou Utópico, de tendência do

romantismo marxista, inserindo-os em um espectro político mais amplo. Portanto, o conceito de

romantismo revolucionário é o fio condutor adotado para esclarecer as relações entre os três

objetos de nossa pesquisa. A definição do conceito é adotada a partir de duas fontes: a do próprio

Lefebvre, cuja formulação é publicada pela primeira vez na Nouvelle Revue Française, no artigo Vers

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un romantisme révolutionnaire1, em 1957, posteriormente retomada a reflexão no artigo Vers un

nouveau romantisme?, editado em 1962 no livro Introduction à la modernité2, e republicada a

versão de 1957 em 1971 no livro Au-delà du structuralisme3; e a dos autores Löwy e Sayre,

desenvolvida no livro Révolte et mélancolie: le romantisme à contre-courant de la modernité,

lançado pela primeira vez em francês em 1992, em seguida em português, em 19954, e

recentemente reeditado em 20155 pela editora Boitempo.

Löwy, no livro A estrela da manhã: surrealismo e marxismo6, compreende o romantismo

revolucionário como “[...] a vasta corrente de protesto cultural contra a civilização capitalista

moderna, que se inspira em certos valores do passado pré-capitalista, mas que aspira antes de tudo

a uma utopia revolucionária nova - desde Rousseau e Fourier até os surrealistas e os situacionistas”

(LÖWY, 2002, p.15). Portanto, é possível estabelecer um fio condutor, nas palavras de Löwy, um

“fio vermelho e negro” entre os surrealistas, Henri Lefebvre e os situacionistas, os quais

compartilham da tentativa de “[...] um protesto contra a racionalidade limitada, o espírito

mercantilista, a lógica mesquinha, o realismo rasteiro, de nossa sociedade capitalista-industrial, e

a aspiração utópica e revolucionária de ‘changer la vie’” (LÖWY, 2002, p.09).

Com o objetivo de caracterizar o ponto de encontro entre os objetos deste estudo,

mobilizaremos a noção de afinidade eletiva (Wahlverwandtschaft) definida por Löwy a partir de sua

interpretação da apropriação deste conceito para o universo das ciências sociais tomando como

1 O texto ainda não tem tradução para o português.Entretanto, foi relançado em 2011 com apresentação do autor Rémi

Hess. HESS, Rémi. Présentation. In : LEFEBVRE, Henri. Vers un romantisme révolutionnaire. Clamercy : Nouvelles Éditions

Lignes, 2011. 2 LEFEBVRE, Henri. Introdução à Modernidade. Trad. Jehovanira Chrysóstomo de Souza. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra,

1969. 3 ____. Au-delà du structuralisme. Paris: Editions Anthropos, 1971. 4 LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia. O romantismo na contramão da modernidade. Trad. Guilherme

João de Freitas. Petrópolis: Vozes, 1995. 5 LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade. Trad. Nair Fonseca.

1°ed. São Paulo: Boitempo, 2015. 6 LÖWY, Michael. A estrela da manhã: surrealismo e marxismo. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2002. Reeditado em 2018, ____. A estrela da manhã: surrealismo e marxismo. Trad. Eliana Aguiar. 2.ed. São Paulo:

Boitempo, 2018.

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base a obra de Max Weber. Apesar deste último nunca ter definido o termo, Löwy ensaia a seguinte

compreensão:

[...] afinidade eletiva é o processo pelo qual duas formas culturais – religiosas,

intelectuais, políticas ou econômicas – entram, a partir de determinadas

analogias significativas, parentescos íntimos ou afinidades de sentidos, em uma

relação de atração e influência recíprocas, escolha mútua, convergência ativa e

reforço mútuo (LÖWY, 1999, p.44;LÖWY, 2011, p.139)7.

Utilizado pela primeira vez na alquimia medieval, posteriormente pelo médico neerlandês

Hermanus Boerhave (1668-1738)8, e pelo químico sueco Torbern Olof Bergman (1735-1784)9, o

termo afinidade eletiva sofre transmutações à medida em que, ao longo dos anos, é incorporado

por novos campos de conhecimento. Em um primeiro momento, foi utilizado para determinar a

atração química entre compostos e substância; anos mais tarde, seguido pela literatura, enquanto

metáfora romanesca utilizada por Goethe, quando este discorre sobre a mútua atração entre seres

humanos e/ou substâncias, “lien particulier entre les âmes”10 (LÖWY, 1999 p.43); e por fim, foi

mobilizadonas ciências sociais como instrumento de análise sociológicaatravés de Max Weber,

principalmente, em sua produção no campo da Sociologia das religiões11.

No caso das ciências sociais a acepção do conceito de afinidade eletiva, diferente de termos

como “adequação” e “parentesco anterior”12 pressupõe “a seleção, a escolha ativa e a atração

recíproca” (LÖWY, 2011, p.139). Nesse sentido, Lowy pontua, segundo Weber, que a relação de

afinidade eletiva acontece quando há o desenvolvimento de uma íntima e sólida unidade entre os

7 LÖWY, Michael. Le concept d'affinité élective en sciences sociales. In: Critique internationale, vol. 2. 1999. La formation

de l'Europe. p. 42-50;Disponível em:http://www.persee.fr/doc/criti_1290-7839_1999_num_2_1_1539. Acesso em: 10

out. 2017.LÖWY, Michael. Sobre o conceito de “afinidade eletiva” em Max Weber. PLURAL: Revista do Programa de

Pós‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.17.2, 2011, pp.129‑142. 8 O referido médico, e humanista neerlandês utiliza o termo afinidade eletiva para caracterizar “a força em virtude da

qual duas substâncias diversas ‘se procuram, unem-se e se encontram’ em um tipo de casamento, de noce chimique [...]”

(LÖWY, 2011, p.130). 9 Químico sueco autor de De attractionibus electivis (Uppsala, 1775), obra em que aparece pela primeira vez o termo

attractionis electivae. 10 Texto original. Tradução do autor: “Relação particular entre almas”. 11 É na obra A ética protestante e o “espírito” do capitalismo em que são tecidas considerações sobre as afinidades

eletivas estabelecidas entre dois fatos sociais: a ética protestante e o espírito do capitalismo, conforme explicitado no

título da obra. 12 Outros termos sugeridos por cientistas sociais que pretendiam incorporar o sentido do conceito de afinidade eletiva.

Para maiores informações sobre o tema, ver: LÖWY, Michael. Sobre o conceito de “afinidade eletiva” em Max Weber.

PLURAL: Revista do Programa de Pós‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.17.2, 2011, pp.129‑142.

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fatos sociais, e não apenas uma influência. Sobre isso, aponta: “A seleção e a escolha recíproca

implicam uma distância prévia, um intervalo cultural que deve ser preenchido, uma

descontinuidade ideológica” (LÖWY, 2011, p.141).

As afinidades eletivas que aproximam os três objetos de estudos ao ideário romântico são

o seu repúdio à miséria da vida cotidiana; os surrealistas propõem reencantar a vida cotidiana

através da poesia, Lefebvre organiza a crítica racional da vida cotidiana e os situacionistas ensaiam

a revolução da vida cotidiana.Lefebvre, enquanto teórico pertencente à corrente quente do

Marxismo e os surrealistas e situacionistascomo movimentos estético-políticos, não propuseram

unicamente a transformação das relações sociais de produção, mas a revolução do conjunto das

relações sociais humanas. A paixão, o desejo e a subjetividade radical são as armas utilizadas para

destruir e superar a civilização de acumulação capitalista, na construção de um novo projeto de

sociedade que torne a vida apaixonante.

O termo romântico, assim como o conceito de romantismo revolucionário, é controverso.

No capítulo um iremos abordar a análise de Löwy e Sayre sobre o romantismo, assim como a sua

definição de romantismo revolucionário que diverge daquela cunhada por Lefebvre que nega a

nostalgia pelo passado. Ao longo da tese, para identificarmos as diferentes definições desses

teóricos, utilizaremos os termos romantismo revolucionário (Löwy e Sayre) e romantismo

revolucionário lefebvriano. Passaremos pela importância do pensamento romântico presente na

obra de Lefebvre, o qual o autor Rémi Hess destaca “[...] Henri Lefebvre comme philosophe ‘oublié’

tout le mouvement ‘romantique’ de sa pensée”13 (HESS, 2011, p.15)14, e analisaremos a própria

definição de romantismo revolucionário proposto por Lefebvre em 1957. Estabelecidas as

afinidades eletivas entre os dois conceitos e suas divergências, passaremos à análise das afinidades

13 Texto original. Tradução do autor: “[...] Henri Lefebvre como filósofo ‘esquecido’ de todo o movimento ‘romântico’ de

seu pensamento”. 14HESS, Rémi. Présentation. In : LEFEBVRE, Henri. Vers un romantisme révolutionnaire. Clamercy : Nouvelles Éditions

Lignes, 2011.

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eletivas entre Lefebvre e a Internacional Situacionista através do paradigma do romantismo

revolucionário lefebvriano, revelando a fonte romântica do ideário situacionista, a qual o autor

Patrick Marcolini afirma que em última análise “[...] c’est cette sensibilité romantique qui irriguait

souterrainement la critique situationniste et qui faisait sa vigueur et son originalité”15 (MARCOLINI,

2007, p.45)16.

No capítulo dois analisaremos a presença da nostalgia romântica na obra de Lefebvre, assim

como nas proposições da I.S.,apesar dos idealizadores desta última a negarem. Pretendemos

verificar a hipótese deque tanto Lefebvre quanto a I.S. compartilham do sentimento de perda

trazido pela modernidade, destacando seus interesses pela crítica romântica e por sociedades pré-

capitalistas. Constatação esta que alinha Lefebvre e os situacionistas ao conceito de romantismo

revolucionário formulado por Löwy e Sayre. Após termos demonstrado a pertinência do conceito

elaborado por Löwy e Sayre para a análise da posição de Lefebvre e dos situacionistas em relação

ao romantismo, trataremos da relação entre Lefebvre e a I.S., a qual rejeita explicitamente o

conceito de romantismo revolucionário lefebvriano. Relação conturbada entre a I.S. e Lefebvre, o

qual se refere“[...] comme une histoire d’amour qui n’a pas bien fini”17 (LEFEBVRE, 1975, p.109)18,

rica em afinidades eletivas no início e, após o ano de 1962, com algumas divergências de âmbito

teórico e pessoal. No entanto, ainda pouco explorada pela historiografia, no livro Writing on

cities/Henri Lefebvre19 as autoras Eleonore Kofman e Elizabetn Lebas afirmam que "the relationship

between Lefebvrian and Situationist concepts awaits a serious study"20 (KOFMAN; LEBAS, 1996,

15 Texto original. Tradução do autor: “[...] é essa sensibilidade romântica que irrigava subterraneamente a crítica

situacionista e que fazia seu vigor e sua originalidade”. 16 MARCOLINI, Patrick. L’Internationale situationniste et la querelle du romantisme révolutionnaire. Noesis, 11, 2007, p.31-

46. Disponível em: https://journals.openedition.org/noesis/723. Acesso em: 10 ago. 2017. 17 Texto original. Tradução do autor: “[...] como uma história de amor que terminou mal”. 18 LEFEBVRE, Henri. Le temps des méprises. Paris: Editions Stock, 1975. 19 KOFMAN, Eleonore; LEBAS, Elizabetn. Writing on cities/Henri Lefebvre. Selected, translated, and introduced by Eleonore

Kofman; Elizabetn Lebas. Great Britain:BlackWell, 1996. 20 Texto original. Tradução do autor: "a relação entre conceitos lefebvrianos e situacionistas aguarda um estudo sério".

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p.13), e David Harvey no livro Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana21, se limita

a dizer que havia em Lefebvre “[...] seu evidente primeiro fascínio pelos situacionistas e suas

ligações teóricas pela ideia de uma psicogeografia da cidade, a experiência da deriva urbana através

de Paris e a exposição ao espetáculo” (HARVEY, 2014, p.12). É importante esclarecer que a

investigação aqui desenvolvida não se propõe a tecer um exaustivo estudo sobre Lefebvre e a I.S.,

mas traçar uma primeira abertura a partir do romantismo revolucionário para compreendermos

suas afinidades e divergências, dentro de uma corrente de pensamento mais ampla.

Os autores que identificamos e que tratam da referida relação de forma mais extensa e

criteriosa, cujos livros adotamos para ampliar a análise do contexto francês do período, são Rémi

Hess, no livro Henri Lefebvre et l’aventure du siècle22 (1988), Éric Brun, no livro Les Situationnistes,

une avant-garde totale23 (2014), e Patrick Marcolini, no livro Le mouvement situationniste: une

histoire intellectuelle24 (2013). Após abordarmos a hipótese que a diferença entre Lefebvre e a I.S.

está no esforço situacionista de elaboração de uma prática radical de intervenção na vida cotidiana,

de um programa de ações que não está presente no ideário teórico de Lefebvre, passaremos à

análise da compreensão da problemática da miséria e da riqueza na vida cotidiana tal como

proposta por Lefebvre. Delimitamos a nossa abordagem às obras Critique de la vie quotidienne,

volume I25 (1947) e La vie quotidienne dans le monde moderne26 (1968).Entretanto,Lefebvre dá

continuidade ao tema nos livros Critique de la vie quotidienne, volume II: Fondements d'une

sociologie de la quotidienneté27 (1962) e Critique de la vie quotidienne, volume III. De la modernité

21 HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. Trad. Jeferson Camargo. São Paulo: Martins

Fontes, 2014. 22 HESS, Rémi. Henri Lefebvre et l’aventure du siècle. Paris: A.M. Métailié, 1988. 23 BRUN, Éric. Les Situationnistes, une avant-garde totale (1950-1972). Paris: CNRS Éditions, 2014. 24 MARCOLINI, Patrick. Le mouvement situationniste: une histoire intellectuelle. Montreuil: Éditions L’Échappée, 2013. 25 LEFEBVRE, Henri. Critique de la vie quotidianne, I, Introduction. Paris: L’Arche, 1947. 26 ______. La vie quotidienne dans le monde moderne. Paris: Gallimard, 1968. Publicado em português: _____. A vida

cotidiana no mundo moderno. Trad. Alcides João de Barros. São Paulo: Ática 1991. 27 ______. Critique de la vie quotidianne, II: Fondements d'une sociologie de la quotidienneté. Paris: L’Arche, 1962.

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au modernisme : pour une métaphilosophie du quotidien28 (1981). A crítica da vida cotidiana, além

de seu conteúdo sociológico, representa um esforço do autor em formular uma análise global, da

totalidade em relação ao modo de produção capitalista de fragmentação da vida, o qual nesse

primeiro período, resulta no exame da polarização entre os termos miséria e riqueza da vida

cotidiana.

No capítulo três, apresentaremos um breve histórico do Movimento Surrealista a partir da

cronologia das publicações de suas principais revistas, marcando os seus distintos períodos, com

ênfase no período do pós Segunda Guerra Mundial, dada sua importância na formação da segunda

geração do movimento, a qual foi alvo das principais críticas e embates dos situacionistas. Na

sequência, salientando a morte de André Breton no ano de 1966, trataremos da tentativa oficial de

dissolução do Movimento Surrealista proclamada no artigo Le Quatrième Chant, publicado em

1969, pelos principais representantes da segunda geração, a qual foi contestada inicialmente pelo

grupo surrealista tchecoslovaco. Reação esta que marca o início do movimento surrealista

contemporâneo, cujos grupos se mantém ativos em diversas cidades do mundo, frequentemente

com atividades marginais. Após o panorama histórico delineado, analisaremos a hipótese de que

os situacionistas reveem as práticas surrealistas com o objetivo de racionalizar seus meios poéticos,

a deambulação poética urbana surrealista é racionalizada e transformada em meio de investigação,

em estudo dos efeitos psicogeográficos. Hipótese específica que é resultado de nossa hipótese

geral, cujas afinidades eletivas entre Lefebvre e a I.S. são de ordem teórica, e entre a I.S. e o

Movimento Surrealista são, principalmente, de ordem prática. É importante destacar que

construímos as nossas hipóteses, resultado de nossa análise, com base nos documentos que

tivemos acesso, manuscritos originais, fontes primárias e secundárias. Esses foram

majoritariamente produzidos ao longo dos doze boletins da I.S. e livros publicados por seus

28 ______. Critique de la vie quotidianne, III. De la modernité au modernisme: pour une métaphilosophie du quotidien.

Paris: L’Arche, 1981.

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membros, assim como as obras de Lefebvre. Portanto, a presente tese reflete, principalmente, a

posição crítica de Lefebvre e da I.S. em relação ao Movimento Surrealista. A posição crítica que os

surrealistas do período assumem em relação aos situacionistas e a Lefebvre, é um trabalho ainda a

ser explorado.

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1Cap

Do Romantismo ao Romantismo Revolucionário:

uma análise do conceito

1.1 - O Romantismo e suas tipologias a partir de Michael Löwy e

Robert Sayre.

1.2 - O Romantismo esquecido do pensamento de Henri Lefebvre.

1.3 - O Romantismo Revolucionário a partir de Henri Lefebvre.

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1Cap

Do Romantismo ao Romantismo Revolucionário:

uma análise do conceito

1.1 - O Romantismo e suas tipologias a partir de Michael Löwy e

Robert Sayre.

1.2 - O Romantismo esquecido do pensamento de Henri Lefebvre.

1.3 - O Romantismo Revolucionário a partir de Henri Lefebvre.

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1.1 - O Romantismo e suas tipologias a partir de Michael Löwy e

Robert Sayre.

No livro Revolta e Melancolia os autores Michael Löwy e Robert Sayre propõem o árduo

objetivo de identificar e definir um princípio unificador para a complexa diversidade de

manifestações que designa o temo romantismo. O “enigma” romântico, assim denominado pelos

autores, expõe seu caráter extraordinariamente contraditório nas suas manifestações

simultaneamente, ou alternadamente, “revolucionário e contrarrevolucionário, individualista e

comunitário, cosmopolita e nacionalista, realista e fantástico, retrógrado e utopista, revoltado e

melancólico, democrático e aristocrático, ativista e contemplativo, republicano e monarquista,

vermelho e branco, místico e sensual” (LÖWY;SAYRE, 2015, p.19). Desde o século XIX, são

classificados como românticos autores de variadas áreas do conhecimento, como escritores, poetas

e artistas, ideólogos e políticos, filósofos, teólogos, historiadores, economistas etc., e, em alguns

casos, as contradições acompanham as obras de um único autor, diversidade que dificulta uma

unidade conceitual.

No esforço de formular uma tentativa de redefinição do romantismo, Löwy e Sayre

retomam as definições dos principais especialistas no tema apontando suas insuficiências. Citam o

crítico norte-americano Arthur O.Lovejoy29, cuja proposta é a eliminação do termo “romântico”. O

principal argumento defendido pelo autor para justificar tal escolha é a variedade nacional e

cultural do fenômeno devido ao fato de existirem romantismos de origem alemã, francesa e inglesa,

mas não um romantismo universal. Outro argumento utilizado para evitar as contradições do

romantismo é destacar a incoerência e a frivolidade dos ideólogos e escritores românticos,

destacando o “ocasionalismo subjetivado” e a “insuficiência moral” dos textos românticos,

29LOVEJOY, Arthur O. The Need to Distinguish Romanticisms. In: HALSTED, JOHN BURT (Org.). Romanticism: Problems of

Definition, Explanation, and Evaluation. Boston: D. C. Heath, 1965.

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defendidos pelo autor Carl Schmitt. Entretanto, Löwy e Sayre, apontam as limitações de Carl

Schmitt que escapam da análise das obras políticas de Jean-Jacques Rousseau, de Edmund Burke,

de Franz von Baader ou de Friedrich Daniel Ernst Schleiermache (LÖWY; SAYRE, 2015, p.20).

O principal esforço de Löwy e Sayre é descontruir a interpretação histórica do romantismo

como uma mera escola literária, a qual contrapõe o romantismo ao classicismo, para iluminar as

suas dimensões políticas e filosóficas. Os três principais críticos norte-americanos mais conhecidos

da história do romantismo, a saber: M.H. Abrams30, René Wellek31 e Morse Peckham32, tentam

encontrar denominadores comuns que vão além das reduções literárias que identificam o

romantismo pelas suas regras de composição não clássica ou pela sua “alma nacional”. Para esses

autores os românticos formam uma unidade e têm um conjunto coerente de ideias que valorizam

“[...] a imaginação, a natureza, o símbolo e o mito [...] seus valores comuns são: a mudança, o

crescimento, a diversidade, a imaginação criativa e o inconsciente” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.22). No

entanto, Löwy e Sayre, destacam que a abordagem metodológica de enumeração de

denominadores comunsapesar de ajudar a indicar traços significativos das obras de muitos

escritores românticos, é insuficiente para exprimir a essência do fenômeno, principalmente por

negligenciar suas formas políticas.

O principal problema enfrentado é dar unidade conceitual às suas manifestações diversas

e contraditórias, “[...] qual é o conceito, o Begriff (no sentido hegeliano-marxista do termo) do

romantismo, capaz de explicar suas incontáveis formas de aparição, seus diversos traços empíricos,

suas múltiplas e tumultuosas cores?” (LÖWY;SAYRE, 2015, p.24). Dentro dessa perspectiva

filosófica e política, o romantismo contém diversas interpretações e expressões históricas, para as

30ABRAMS, M.H. O espelho e a lâmpada. Trad. Alzira Leite Vieira Allegro. São Paulo: Editora da Unesp, 2010. ____. Natural

Supernaturalism: Tradition and Revolution in Romantic Literature. Nova York: Norton & Company, 1973. 31 WELLEK, René. The Concept of Romanticism in Literary History. In : GLECKNER, ROBERT F.; ENSCOE, GERALD E. (Orgs.).

Romanticism : Points of View. Detroit : Wayne State University Press, 1975. 32 PECKHAM, Morse. Toward a Theory of Romanticism. In: GLECKNER, ROBERT F.; ENSCOE, GERALD E. (Orgs.).op.cit.

Romanticism : Points of View. Detroit : Wayne State University Press, 1975.

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quais Löwy e Sayre propõem uma hipótese de tipologias que representam as principais

manifestações românticas, classificadas conforme sua posição adotada em relação à crítica à

sociedade moderna. Os seis tipos são organizados da “direita” para a “esquerda” dentro do

espectro político como Restitucionista, Conservador, Fascista, Resignado, Reformador,

Revolucionário e/ou utópico. O sexto e último tipo, interesse de nossa investigação, é desdobrado

em cinco tendências distintas: 1°-jacobino-democrática, 2°-populista, 3°-socialista utópico-

humanista, 4°-libertária, 5°-marxista(LÖWY;SAYRE, 2015, p.86). A partir da classificação proposta

por Löwy e Sayre, levantamos a hipótese de que os três objetos da nossa pesquisa: o Movimento

Surrealista, Henri Lefebvre e a Internacional Situacionista, pertencem à tipologia “Romantismo

Revolucionário e/ou Utópico”, de tendência do “romantismo marxista”, conforme iremos

demonstrar ao longo da tese.

Löwy e Sayre se alinham às interpretações dos críticos e historiadores de orientação

marxista, os quais foram capazes de explorar as relações entre o romantismo e suas realidades

social e econômica, escapando às análises literárias limitadas e polarizadas entre classicismo-

romantismo, e filosóficas, racionalismo-irracionalismo. A hipótese proposta pelos autores, o “eixo

comum” das análises marxistas, é compreender o romantismo como “oposição ao mundo burguês

moderno”, a qual é adotada como elemento unificador das manifestações românticas nos principais

centros europeus, Alemanha, Inglaterra e França. No entanto, a maior parte dos autores marxistas

interpreta a crítica antiburguesa do romantismo somente pelo aspecto reacionário, conservador e

retrógrado, à qual Löwy e Sayre se contrapõem iluminando suas manifestações utópicas e

revolucionárias (LÖWY; SAYRE, 2015, p.29). Os principais autores responsáveis pela interpretação

do romantismo como uma manifestação de oposição conservadora à burguesia capitalista, segundo

Löwy e Sayre, são Karl Mannheim, um dos primeiros a desenvolver uma análise sistemática da

filosofia política romântica, e György Lukács33. Entretanto, existe uma variedade de textos marxistas

33 LUKÁCS, György. El Asalto a la Razón. Trad. Wenceslao Roces. Barcelona: Grijalbo S.A, 1976.

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que abordam de forma dialética as contradições e a unidade essencial do romantismo, sem negar

suas correntes revolucionárias; os autores citados são Ernst Fischer, Herbert Marcuse, Ernst Bloch,

e os ingleses E.P. Thompson, Raymond Williams e Eric Hobsbawm (LÖWY; SAYRE, 2015, p.33).

A partir da premissa da ausência de uma análise global do fenômeno romântico a qual leve

em conta sua ampla e verdadeira extensão e toda a sua multiplicidade, Löwy e Sayre propõem

conceituar o romantismo como “Weltanschauung, ou visão de mundo, isto é, como estrutura

mental coletiva” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.34). Ainda, tomam como ponto de partida os autores

Lucien Goldmann e Lukács, Goldmann por elaborar o conceito moderno de “visão de mundo” e

Lukács por criar o conceito de “anticapitalismo romântico” para designar o conjunto de formas de

pensamento no qual a crítica da sociedade burguesa se inspira em uma “nostalgia passadista”.

Nosso quadro explicativo global continua a ser sobretudo a teoria da Weltanschauung

tal como exposta na obra de Goldmann; por outro lado, nossa conceitualização do

romantismo em particular inspira-se nas análises de Lukács, que foi o primeiro a

relacionar explicitamente o romantismo como a oposição ao capitalismo (na expressão:

“romantischer Antikapitalismus”) (LÖWY; SAYRE, 2015, p.35).

Apesar de Löwy e Sayre prevenirem o leitor de que a obra de Goldmann não tem muito a

contribuir para a análise do romantismo, é no seu livro “A Sociologia do Romance”34que Goldmann

identifica o conflito entre sociedade burguesa e certos valores humanos, “[..] certos indivíduos

“problemáticos”, motivados por valores qualitativos opostos ao reino do simples ‘valor de troca’:

os artistas, os escritores, os filósofos, os teólogos etc.” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.35).O conceito de

romantismo que pode reunir a diversidade de suas manifestações é definido como: “[...] o

romantismo representa uma crítica da modernidade, isto é, da civilização capitalista, em nome de

valores e ideais do passado (pré-capitalista, pré-moderno). Pode-se dizer que, desde a sua origem,

o romantismo é iluminado pela dupla luz da estrela da revolta e do ‘sol negro da

34 GOLDMANN, Lucien. A Sociologia do Romance. Trad. Álvaro Cabral, 3. Ed., São Paulo: Paz e Terra, 1990.

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melancolia’35(Nerval)”(LÖWY; SAYRE, 2015, p.38). Portanto, são dois fatores fundamentais que

estruturam o conceito de romantismo, o primeiro como crítica da modernidade e o segundo como

uma tonalidade particular dessa crítica, a “experiência de uma perda”, “[...] no real moderno uma

coisa preciosa foi perdida, tanto no nível do indivíduo quanto no da humanidade” (LÖWY; SAYRE,

2015, p.43).

Os autores julgam limitado o arco temporal adotado para explicar os fenômenos

românticos, se contrapõem à interpretação de que o romantismo seria o “fruto da decepção diante

das promessas não cumpridas da revolução burguesa de 1789” ou “um conjunto de perguntas e

respostas à sociedade pós-revolucionária”,majoritariamente adotado por autores franceses os

quais consideram que o romantismo não existiu antes da Revolução Francesa, tendo sido iniciado

pela desilusão que se seguiu à tomada do poder pela burguesia. Löwy e Sayre defendem que o

fenômeno deve ser compreendido como uma reação à transformação mais lenta e profunda, de

ordem econômica e social, que é o advento do capitalismo. Este se inicia a partir de meados do

século XVIII, logo, a distinção entre romantismo e pré-romantismo, perde o seu sentido

(LÖWY;SAYRE, 2015, p.38). Os autores negam a distinção entre pré-romantismo e romantismo ao

adotarem a abordagem da história lexical dos termos “romântico” (adjetivo) e “romantismo”

(substantivo) comparado à história do fenômeno cultural (LÖWY;SAYRE, 2015, p.67). O adjetivo

“romântico” antecede em meio século o substantivo que está relacionado à eclosão do fenômeno

cultural que nasceu de forma independente e sincrônica na Inglaterra (1760), França (1770) e

Alemanha (1770), como reação ao processo de modernização e desenvolvimento do capitalismo.

Assim, como negam a periodização adotada pela historiografia corrente, a qual determina o fim do

romantismo ou mesmo a sua marginalização à virada do século XIX; Löwy e Sayresustentam que

apesar dos movimentos artísticos deixarem de ser chamados românticos no século XX, a presença

da “visão de mundo” romântica permanece nos movimentos do expressionismo, surrealismo, e

35NERVAL, Gérard de. El Desdichado, 1854. In: Une forêt de symboles. Une petite anthologie littéraire. Paris: Les Éditions

du Carrousel, 1999. p.316.

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movimentos socioculturais como as revoltas dos anos 60, o ecologismo, o pacifismo e os

situacionistas (LÖWY;SAYRE, 2015, p.38).

É importante esclarecer que o romantismo como “visão de mundo”,defendido pelos

autores Löwy e Sayre, se define por uma totalidade coerente que se organiza em torno de um eixo,

no qual seu elemento central é a contradição ou oposição entre dois sistemas de valores “[...] os

do romântico e os da realidade social dita ‘moderna’. O romantismo como visão do mundo

constitui-se enquanto forma específica de crítica da ‘modernidade’.” No entanto, mesmo se

revoltando contra a modernidade, os românticos são profundamente influenciados por sua época

a medida em que reagem, refletem e escrevem em termos modernos, o que os levam a constituir

uma “autocrítica da modernidade”(LÖWY; SAYRE, 2015, p.43). O termo “modernidade”, crucial

paraa análise do romantismo, é adotado por Löwy e Sayre a partir da concepção de Max Weber, a

qual dá um sentido mais amplo ao fenômeno correntemente sintetizado em dois fatores

fundamentais “a civilização moderna engendrada pela Revolução Industrial e a generalização da

economia de mercado”.

Como já constatado por Max Weber, as principais características da modernidade – o

espírito de cálculo (Rechnenhaftigkeit), o desencantamento do mundo (Entzauberung

der Welt), a racionalidade instrumental (Zweckrationalität), a dominação burocrática –

são inseparáveis do aparecimento do ‘espírito do capitalismo’ (LÖWY; SAYRE, 2015,

p.39).

A seguir abordaremos de forma sucinta as principais características que constituem a

modernidade segundo Max Weber. O “desencantamento do mundo” pode ser compreendido

menos como uma característica da modernidade do que uma privação essencial. Segundo Löwy e

Sayre utilizando uma citação de Marx, o romantismo é uma reação do “entusiasmo cavalheiresco”

contra “as águas geladas do cálculo egoísta”36, levando a tentativas de reencantamento do mundo,

das quais sua principal modalidade é o retorno às tradições religiosas e místicas. Porém, as formas

36ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto Comunista. trad. Álvaro Pina, 1. ed. rev., São Paulo: Boitempo, 2010, p.42.

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tradicionais religiosas não são o único meio de reencantamento do mundo, os românticos também

se voltam para a magia, as artes esotéricas, a feitiçaria, a alquimia, a astrologia; descobrem os mitos

pagãos ou cristãos, as lendas, os contos de fadas, as narrativas góticas; “[...] exploram os reinos

ocultos do sonho e do fantástico – não apenas na literatura e na poesia, mas também na pintura,

desde Füssli e Blake até Max Klinger e Max Ernst” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.53). O romantismo

também aspira reencantar a natureza se contrapondo a uma ciência da natureza moderna a qual

desenvolve uma abordagem estritamente racional, instrumental e utilitária em relação ao meio

ambiente, reduzindo-o às “matérias-primas” da indústria, enquanto os românticos defendem uma

relação harmônica entre homem e natureza. Segundo Löwy e Sayre, é esse o papel da filosofia

religiosa da natureza de um Schelling, de um Ritter ou de um Baader.

O recurso ao mito é uma das estratégias mais perigosas de reencantamento do mundo, o

qual pode ser explorado de múltiplas maneiras: pela via poética ou literária de referência aos mitos

antigos, orientais ou populares, pela via dos estudos eruditos, históricos, teológicos ou filosóficos

da mitologia, ou pela via da tentativa de criar um novo mito. “Nesses três casos, a perda de

substância religiosa do mito – resultado da secularização moderna – torna-o uma figura profana de

reencantamento, ou melhor, uma via não religiosa para encontrar o sagrado” (LÖWY; SAYRE, 2015,

p.55). Nos extremos antagônicos das tentativas de criar novos mitos, podemos situar a perversão

mitológica do Terceiro Reich, a manipulação dos símbolos nacionais e raciais elaborada pelos

ideólogos nazistas, contraposta ao novo mito de espírito “humano-universal” iluminado pela “luz

utópica do futuro”, presentes nas obras de Ernst Bloch, Friedrich Schelling e Friedrich Schlegel.

Löwy e Sayre, a partir da obra de Schelling, destacam que para a “Fruhromantik [primeiro

romantismo alemão]”, o novo mito não é “nacional-germânico”, mas “humano-universal”; o texto

Discours sur la mythologie (1800)37, de Schlegel, é considerado pelos autores como:

37SCHLEGEL, Friedrich. Rede über die Mythologie. In : Romantik. Stuttgart : Reclam, 1984, V.1, p.240-1. Ed. Bras.:Conversa

sobre a poesia e outros fragmentos. Trad. Victor-Pierre Stirnimann. São Paulo: Iluminuras, 1994, p.51-52.

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“[...] um dos textos ‘teóricos’ mais visionários do romantismo alemão [...]”,

associando inseparavelmente poesia e mitologia, fazendo da nostalgia do

passado um fermento utópico, “[...] em outras palavras, o romântico Schlegel

não quer restaurar os mitos arcaicos; sua ambição, sem precedentes na história

da cultura, é criar livremente uma mitologia nova, poética, não religiosa e

‘moderna’” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.57).

Schlegel ao conceber a idade de ouro no futuro e não no passado, transforma o mito em

energia utópica e investe a mitopoesia de um poder mágico, “intuição fulgurante” a qual Löwy e

Sayre consideram “[...] prenunciar tanto Freud quanto o surrealismo” (LÖWY;SAYRE, 2015, p.58).

A “quantificação do mundo” é criticada pelos românticos por seus efeitos sociais negativos,

dissolução de todos os laços humanos qualitativos, supressão do exercício da imaginação e do

romanesco, homogeneização da vida, alienação das relações entre os indivíduos e destes com a

natureza, decorrentes do espírito de cálculo racional capitalista. Löwy e Sayre fazem referência a

Charles Dickens para ilustrar a crítica romântica à quantificação mercantil, no romance Tempos

difíceis, publicado em 1854, em que Dickens descreve a cidade fictícia inglesa industrial moderna

de Coketown, na qual “o espaço e o tempo parecem ter perdido toda diversidade qualitativa e toda

variedade cultural, tornando-se uma estrutura única, contínua, moldada pela atividade ininterrupta

das máquinas”(LÖWY; SAYRE, 2015, p.60). A modernidade expulsou da vida material de seus

habitantes qualidades como beleza, cor e imaginação, reduzindo-a a uma rotina tediosa e uniforme.

A “mecanização do mundo”, reflexo da industrialização, da maquinaria, da conquista e

exploração mecanizada do meio ambiente, é duramente criticada pelos românticos os quais

expressam sua profunda hostilidade a tudo que é mecânico e artificial e defendem o espírito

nostálgico da harmonia perdida entre homem e natureza. Eles são atormentados pelo horror à

mecanização do próprio ser humano, das relações abstratas e do progresso tecnológico os quais

corroem as relações sociais orgânicas, vivas e dinâmicas. A crítica romântica ao artificial, ao

geométrico, ao inorgânico, à ausência de vida e alma, se estende à política moderna como sistema

mecânico, “[...] o Estado moderno, baseado no individualismo, na propriedade, no contrato e na

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administração burocrática racional, uma instituição tão mecânica, fria e impessoal quanto uma

fábrica.” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.63). O Estado moderno é visto como uma máquina cega que se

torna autônoma e esmaga os seres humanos que a criaram. Porém, as propostas elaboradas pelos

românticos são diversas e contraditórias, vão do retorno tradicionalista ao “Estado orgânico”

monárquico do passado à abolição anarquista de toda a forma de Estado, em nome da livre

comunidade social (LÖWY; SAYRE, 2015, p.63).

Para caracterizar a “abstração racionalista” Löwy e Sayre se apoiam nas análises de Karl

Marx e Max Weber. Segundo Marx a economia capitalista se fundamenta em um sistema de

categorias abstratas: o trabalho abstrato, o valor abstrato de troca, o dinheiro. Já para Weber, “[...]

a racionalização está no âmago da civilização burguesa moderna, que organiza toda a vida

econômica, social e política conforme as exigências da racionalidade em relação aos objetivos

(Zweckrationalität) – ou racionalidade instrumental – e da racionalidade burocrática” (LÖWY;

SAYRE, 2015, p.64). A crítica romântica à abstração racional também se expressa pelos interesse e

resgate dos comportamentos “não racionais e/ou não racionalizáveis”, o que implica na

revalorização das intuições, das premonições, dos instintos, dos sentimentos, em especial do amor,

um tema clássico da literatura romântica. O amor é adotado como emoção pura, impulso

espontâneo irredutível a qualquer cálculo racional, a loucura é adotada como uma afirmação

positiva, como ruptura do indivíduo com a “razão” socialmente instituída. A radicalização e fusão

dos dois temas se apresenta na literatura surrealista em O Amor Louco, de André Breton. A distinção

entre o “irracional” e o “não racional”, destacada por Löwy e Sayre, é fundamental para

compreender os equívocos da apologia ao irracionalismo, na qual o “irracional” é compreendido

como a “negação programática da racionalidade”, enquanto o “não racional” é a “delimitação das

esferas psíquicas não redutíveis à razão”. O culto ao irracionalismo leva a formas perigosas de ódio

à razão como “[...] fanatismo religioso, intolerância, culto irracional do “chefe” carismático, da

nação, da raça etc” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.65).

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A “dissolução dos vínculos sociais” tem como lugar as cidades modernas, cuja vida urbana

revela o isolamento do indivíduo em seu eu egoísta, que constitui uma dimensão importante da

civilização capitalista. Os românticos têm uma percepção aguda da deterioração da qualidade das

relações humanas advindas da modernidade, denunciando o seu caráter mecânico e contratual, o

qual destrói as antigas formas “orgânicas” e comunitárias da vida social. Na literatura, em Saint-

Preux de A nova Heloísa38, de Rosseau, o herói romântico isolado e incompreendido tem como

ambiente o “deserto da cidade” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.66).

Após definirem o romantismo como a visão de mundo que representa acrítica à

modernidade, a qual dá unidade às suas múltiplas manifestações, Löwy e Sayre propõemdistinguí-

las em função da atitude e/ou da posição tomada em relação à sociedade moderna, conforme suas

propostas de enfrentamento e superação, o que os levou à hipótese de tipologias distintas. As

tipologias propostas recusam as divisões tradicionais relacionadas à tradição nacional, ao campo

cultural específico ou ao período histórico, e se colocam como um sistema de interpretação que

associa ao mesmo tempo o econômico, o social e o político. O primeiro tipo é intitulado de

“Romantismo Restitucionista”, o qual o próprio título define o seu desejo de restituição, ou seja,

de restauração ou recriação do passado que é objeto de nostalgia. Grande parte dos escritores e

pensadores românticos de envergadura pertencem a essa tipologia cuja nostalgia do passado é, por

vezes, a sociedade agrária tradicional, ou o desejo de retorno à Idade Média, que são estruturados

pelos valores de “[...] ordem hierárquica das Stände, os vínculos feudais de pessoa a pessoa, a

comunhão de todo o corpo social na fé religiosa e no amor ao monarca”(LÖWY; SAYRE, 2015, p.88).

Na Alemanha os seus principais teóricos no campo político e econômico são os autores Roland

Baader, Joseph von Görres e Adam Müller, no plano teológico e filosófico são Johann Wilhelm

Ritter, Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher e os irmãos Schlegel. Na Inglaterra são os autores

Robert Southey, William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge, e na França são François-René de

38ROUSSEAU, Jean-jacques. Júlia ou A Nova Heloísa. Trad. Fúlvia Moretto. Campinas: Hucitec, 1994.

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Chateaudbriand,Alfred de Vigny, Alphonse de Lamartine, Hughes Félicité Robert de Lamennais

eVictor Hugo, no início de suas formulações (LÖWY; SAYRE, 2015, p.89).

O segundo tipo, “Romantismo Conservador”, não tem como proposta restabelecer um

passado longínquo, mas manter o status quo o qual pôde persistir na Europa do final do século XVIII

até a segunda metade do século XIX, entretanto é romântico por apreciar o que essa sociedade

ainda conserva das formas antigas, anteriores à modernidade. Na esfera política apoiam a ordem

estabelecida, como resultado “natural” da evolução histórica, defendem as “tradições

cavalheirescas”, o velho espírito feudal da vassalagem e a propriedade rural entendida como

verdadeira herança dos antepassados. Seu principal autor é Edmund Burke, e os autores Hugo,

Savigny, Friedrich Julius Stahl e Schelling se aproximam do romantismo conservador (LÖWY; SAYRE,

2015, p.91). Sobre o terceiro, “Romantismo Fascista”, Löwy e Sayre destacam que não se trata do

tipo mais importante e refutam as interpretações da história do romantismo como um prelúdio ao

fascismo, ou indissoluvelmente ligado à ideologia fascista, sustentadas em sua maioria por alguns

autores marxistas. As ideologias fascistas não se identificam de maneira simples com a perspectiva

romântica e é inegável que tenham extraído do arsenal cultural do romantismo alguns de seus

temas. O princípio nostálgico por sociedades antigas se manifesta no fascismo italiano pela

referência à Antiguidade romana e no fascismo alemão pela vida camponesa tradicional, a rejeição

ao capitalismo, os elogios às sociedades primitivas e aos instintos irracionais, a crítica radical ao

pensamento das luzes e aos ideias liberal-democráticos, o antiparlamentarismo, a ideia de

singularidade da nação germânica no nazismo assim como o recurso ao mito do Terceiro Reich. No

entanto, segundo Löwy e Sayre, existe uma diferença fundamental entre as ideologias fascistas e a

visão romântica “[...] a dimensão moderna, industrial e tecnológica do fenômeno nazista, que se

exprime tanto em sua cultura quanto em sua prática” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.94).

Qual é a especificidade do romantismo em sua forma fascista? Em primeiro lugar, a

rejeição ao capitalismo mescla-se a uma condenação violenta da democracia

parlamentar, bem como do comunismo. Além do mais, o anticapitalismo tem

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frequentemente uma matriz de antissemitismo [...]. Em seguida, a crítica romântica da

racionalidade é elevada ao extremo para se tornar a glorificação do irracional em estado

puro, do instinto bruto em suas formas mais agressivas. Assim, o culto romântico do

amor torna-se o oposto: o louvor da força e da crueldade. Os passados nostálgicos mais

característicos são: a pré-história do homem bárbaro, instintivo e violento; a

Antiguidade greco-romana em seu aspecto guerreiro, elitista, escravagista; a Idade

Média – na pintura nazista, Hitler aparece às vezes como um cavaleiro medieval [...]

(LÖWY; SAYRE, 2015, p.96).

Segundo Löwy e Sayre o quarto tipo, “Romantismo Resignado”,se aproxima do romantismo

conservador por aceitar a contragosto o capitalismo, no entanto podemos entender o romantismo

resignado por um deslocamento temporal, no qual as esperanças de restauração das relações

sociais pré-capitalistas se rendem à constatação do processo de industrialização capitalista ser

irreversível a partir da segunda metade do século XIX. A esperança transforma-se em resignação o

que dá lugar a uma visão trágica do mundo e à radicalização da crítica social da civilização industrial,

na qual os valores sociais e culturais orgânicos estão condenados ao desaparecimento.No campo

da literatura os autores que se aproximam do romantismo resignado são Charles John Huffam

Dickens, Gustave Flaubert, Thomas Mann e Honoré de Balzac, e no campo da sociologia alemã são

Max Weber e principalmente Ferdinand Tönnies (LÖWY; SAYRE, 2015, p.98).

“[...]Ferdinand Tönnies, em sua célebre obra Gemeinschaft und Gesellschaft

(Comunidade e sociedade), de 1887, confronta duas formas de sociabilidade: por um

lado, a “comunidade” (família, vilarejo, cidadezinha tradicional), universo regido pela

concórdia, pelos costumes, pela religião, pela ajuda mútua, pela Kultur, e, por outro, a

“sociedade” (a cidade grande, o Estado nacional, a fábrica), conjunto movido pelo

cálculo, pelo lucro, pela luta de todos contra todos, pela Zivilisation enquanto progresso

técnico e industrial” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.99).

O quinto tipo, “Romantismo Reformador”, pode ser compreendido como uma variável à

resposta do romantismo resignado, pois ao invés de adotar uma visão trágica do mundo,propõe

uma ação reformista, cujo interesse é remediar os males mais flagrantes da sociedade burguesa,

graças ao papel regulador de instituições que traduzam valores pré-capitalistas. A convicção de que

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os valores antigos podem ser restaurados se limita às reformas,tentativas de esclarecimento da

consciência das classes dirigentes, o que ilustra bem a diferença entre o diagnóstico duro e realista

que os românticos reformadores faziam sobre a sua época e a timidez de suas propostas. O período

mais notável do romantismo reformador concentra-se na primeira metade do século XIX, na França,

e os seus principais representantes são Alphonse de Lamartine, Charles Augustin Sainte-Beuve,

Jules Michelet, Hughes F. R. de Lamennais e Victor Hugo (LÖWY; SAYRE, 2015, p.100). O sexto tipo,

“Romantismo Revolucionário e/ou Utópico”, é significativamente diferente dos outros já

apresentados pelo fato de se apropriar da nostalgia do passado pré-capitalista como inspiração

para a construção de uma sociedade futura. O romantismo revolucionário recusa:

“[...] tanto a ilusão de um retorno puro e simples às comunidades orgânicas do passado

quanto a aceitação resignada do presente burguês ou seu aprimoramento por meio de

reformas, aspira - de uma maneira que pode ser mais ou menos radical, mais ou menos

contraditória – à abolição do capitalismo ou ao advento de uma utopia igualitária em

que se recuperariam certos traços e valores das sociedades anteriores.” (LÖWY; SAYRE,

2015, p.102).

O tipo “Romantismo Revolucionário e/ou Utópico” contém uma série de tendências que

abordaremos de forma sucinta para nos estendermos na análise da tendência marxista, na qual

está contida a obra de Henri Lefebvre, a Internacional Situacionista e o Movimento Surrealista. A

primeira tendência é o “romantismo jacobino-democrático”, que se caracteriza pela crítica radical

contra as opressões das forças do passado, a monarquia, a aristocracia e a Igreja, e ao mesmo

tempo, contra as novas opressões burguesas. Essa dupla crítica se faz em nome da Revolução

Francesa e dos valores representados por sua tendência principal e mais radical, o jacobinismo.

Essa tendência está bem delimitada no tempo, começa com Rousseau e concentra-se, sobretudo,

no período da Revolução Francesa e em sua sequência imediata. Seus principais representantes na

França são Rousseau e os jacobinos, na Inglaterra são William Blake, Lord Byron e Percy Bysshe

Shelley, e na Alemanha são Johann Christian Friedrich Hölderlin e Christian Johann Heinrich Heine

(LÖWY;SAYRE, 2015, p.102). A segunda tendência é o “romantismo populista” que propunha

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desenvolver formas de produção e vida comunitária camponesas e artesanais do povo pré-

moderno, o qual se contrapunha duramente tanto ao capitalismo industrial, quanto à monarquia e

à servidão. Seu principal representante é o economista Jean Charles Léonard de Sismondi, cujas

ideias tiveram maior repercussão entre os economistas russos, como B. Efroussi, V. Vorontsov e

Nicolaison, os quais adotam a comuna rural tradicional da Rússia (obschtchina) como fundamento

de uma nova via especificamente russa para o socialismo (LÖWY; SAYRE, 2015, p.106). A terceira

tendência representa os românticos que estavam ligados à corrente do “socialismo utópico-

humanista”, a qual estrutura a sua crítica não apenas em nome de uma classe, o proletariado, mas

em nome de toda a humanidade, ou mais particularmente, da humanidade que sofre, e dirige-se a

todos os homens de boa vontade. Os principais autores românticos socialistas são Charles Fourier,

Pierre Leroux, Karl Grün (“socialismo verdadeiro”), o expressionista Ernst Toller, o humanista

marxista Erich Fromm e Moses Hess. Löwy e Sayre destacam que a obra do socialista judeu-alemão

Moses Hess é um exemplo esclarecedor dessa corrente, seu ensaio mais importante é

provavelmente “A essência do dinheiro”, escrito em 1848 e publicado em 1845, que teve uma

influência considerável sobre os jovens Marx e Engels. “Esse texto critica veementemente a

dominação do dinheiro divinizado sobre os homens, o sistema de venda da liberdade humana que

caracteriza a modernidade” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.109).

A quarta tendência é o “romantismo libertário”, ou anarquista, ou anarcossindicalista, o

qual se baseia nas tradições coletivistas de camponeses, artesões e operários qualificados pré-

capitalistas, e propõe compor uma federação descentralizada de comunidades locais que visa se

contrapor ao capitalismo e à formação do Estado moderno. Os seus principais autores são Pierre

Joseph Proudhon, Mikhail Aleksandrovitch Bakunin, Piotr Alexeyevich Kropotkin e Jean Jacques

Élisée Reclus, e o apogeu do ideário libertário se deu no final do século XIX e no começo do século

XX, no qual a Guerra Civil Espanhola foi a sua principal experiência histórica (LÖWY; SAYRE, 2015,

p.110).Löwy e Sayre apontam o autor alemão Gustav Landauer como um dos expontes do

romantismo libertário, o qual fez amargas críticas ao positivismo técnico de Marx:

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[...] Marx, esse ‘filho da máquina a vapor’, por admirar os sucessos técnicos do

capitalismo. A tarefa do socialismo não consiste em aperfeiçoar o sistema industrial,

mas ajudar os homens a recuperar a cultura, o espírito, a liberdade, a comunidade. [...]

Bem mais do que a greve geral ou a insurreição, o caminho que conduz ao socialismo

libertário é o abandono da economia capitalista e a construção da Gemeinschaft

socialista hic et nunc no campo (LÖWY; SAYRE, 2015, p.111).

A quinta e última tendência é o “Romantismo Marxista”, a qual abordaremos agora de

forma mais extensa. Segundo Löwy e Sayre, o que distingue a sensibilidade romântica de tendência

marxista é a preocupação central com algumas questões essenciais do marxismo como a luta de

classe, o papel do proletariado como classe universal emancipadora e a possibilidade de utilizar as

forças produtivas modernas em uma economia socialista, mesmo que as conclusões sobre essas

questões não sejam exatamente as mesmas às de Marx e Engels (LÖWY; SAYRE, 2015, p.113). O

objetivo de Löwy e Sayre é resgatar uma dimensão romântica na obra de Marx e Engels que foi

eliminada pelo marxismo “oficial”, direcionado pela Segunda e a Terceira Internacional para uma

interpretação positivista e evolucionista39. Os autores salientam que a primeira tentativa

importante de reinterpretação neorromântica do marxismo foi realizada por William Morris, no

final do século XIX, apesar das propostas de Morris estarem situadas entre o marxismo e o

anarquismo. Na Inglaterra, os autores E.P. Thompson e Raymond Williams, recuperam a

importância de Morris, excluído do campo marxista por causa de sua perspectiva não ortodoxa. Na

Alemanha, os autores e correntes marxistas com uma forte matriz romântica são o húngaro György

Lukács, Ernst Bloch e a Escola de Frankfurt, especialmente em Walter Benjamin e Herbert Marcuse.

Na França seus representantes são Henri Lefebvre (LÖWY; SAYRE, 2015, p.112), o Movimento

Surrealista e a Internacional Situacionista (LÖWY, 2002, p. 83).

39No Brasil temos a recente retomada da obra de Marx a partir da Marx-Engels-Gesamtausgade (MEGA), a qual reiniciou

em 1998 a reedição histórico-crítica das obras completas de Marx e Engels.Esta abre um campo de percepção renovado,

liberado da corrente marxismo-leninismo, a qual revela a concepção romântica da obra marxiana. Para saber mais sobre

o tema ver: TIBLE, Jean. Marx Selvagem. São Paulo: Autonomia Literária, 2018.

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A apropriação dos autores marxistas ante a visão romântica do mundo não é simples, Löwy

e Sayre identificam uma certa ambivalência que os caracterizam, a qual se traduz por uma relação

de atração/repulsão em relação ao romantismo; mesmo os autores mais próximos do ideário

romântico mantêm uma distância crítica inspirada pela herança progressista das Luzes. Para ilustrar

essa ambivalência, Löwy e Sayre recorrem à análise das obras de Marx, Rosa Luxemburgo e György

Lukács.

Superficialmente Marx e Engels não têm nada em comum com o romantismo, no entanto

Löwy e Sayre identificam a forte presença dos autores românticos em suas formações intelectuais.

A obra de ambos foi significativamente influenciada não somente por economistas românticos

como Sismondi ou o populista russo Nikolai Danielson, com quem se corresponderam durante vinte

anos, mas também por escritores como Dickens e Balzac, por filósofos sociais como Thomas Carlyle

e por historiadores da comunidade antiga, como Georg Ludwig von Maurer, Barthold Georg

Niebuhr e Lewis Henry Morgan, sem comentar os socialistas românticos, como Fourier, Leroux ou

Hess. A leitura de Carlyle e Balzac realizadas por Marx e Engels é “altamente seletiva”, eles

reconhecem o valor da crítica social formulada pelos românticos, se apropriam sem hesitar de sua

crítica da modernidade industrial burguesa, no entanto, criticam duramente suas propostas

positivas, as classificam como reacionárias e recusam suas ilusões passadistas. Marx e Engels se

alinham à tradição romântica ao se apropriarem da análise das devastações sociais provocadas pela

civilização capitalista, bem como seu interesse pelas comunidades pré-capitalistas como exemplos

de sociedades orgânicas, porém se contrapõem aos românticos ao reconhecerem e exaltarem o

papel “eminentemente revolucionário” da burguesia conquistadora e suas realizações

econômicas(LÖWY; SAYRE, 2015, p.123).

O anticapitalismo de Marx não visa a negação abstrata da civilização industrial

(burguesa) moderna, mas seu Aufhebung, isto é, tanto sua abolição quanto a

conservação de suas grandes conquistas, sua superação por um modo de produção

superior. [...] Entretanto, ele não ignora o reverso dessa medalha “civilizadora”; numa

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atitude tipicamente dialética, vê o capitalismo como um sistema que ‘transforma todo

progresso econômico em uma calamidade pública’ (LÖWY; SAYRE, 2015, p.120).

O interesse de Marx e Engels por sociedades pré-capitalistas é estimulado pela descoberta

das obras de Georg Ludwig von Maurer, historiador das antigas comunidades germânicas, e mais

tarde de Lewis Henry Morgan. Segundo Löwy e Sayre, é graças a esses autores que Marx e Engels

puderam se referir a uma formação pré-capitalista exemplar, distinta do sistema feudal, exaltado

pelos românticos tradicionalistas: a comunidade primitiva. A partir do ano de 1860, Marx e Engels

manifestam fascínio pelas comunidades rurais primitivas “da gens grega à velha Mark germânica e

à obschtchina russa”, creem que essas formações antigas incorporavam qualidades sociais que

estavam perdidas para as civilizações modernas, qualidadesestasque poderiam prefigurar certos

aspectos de uma futura sociedade comunista. Löwy e Sayre destacam três aspectos fundamentais

da visão romântica em Marx e Engels, o primeiro se refere à rejeição do “progressismo” linear e

ingênuo, ou mesmo apologético, que considera a sociedade burguesa universalmente superior às

formas sociais anteriores, o segundo ilumina o caráter contraditório do progresso

indiscutivelmente trazido pelo capitalismo, e o terceiro é o julgamento crítico da civilização

industrial-capitalista como se representasse, em certos aspectos, um recuo, principalmente do

ponto de vista humano, em relação às comunidades do passado (LÖWY; SAYRE, 2015, p.124). No

entanto, Löwy e Sayre ressalvam que não se trata de demonstrar que Marx e Engels eram

pensadores românticos, interpretação que se revela completamente equivocada, visto que suas

obras devem mais à Filosofia da Luzes e à economia política clássica do que às críticas românticas

da civilização industrial. Os autores esclarecem que Marx e Engels utilizam as críticas românticas da

sociedade industrial-burguesa para identificar os seus limites e as suas contradições. Löwy e Sayre

defendem que as ideias de Marx e Engels não foram nem românticas nem “modernizantes”, mas

uma tentativa de Aufhebung dialética de ambas, em uma visão de mundo nova, crítica e

revolucionária (LÖWY; SAYRE, 2015, p.130).

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Nem apologético da civilização burguesa nem cego a suas realizações, ele visava uma

forma superior de organização social que integrasse tanto os avanços técnicos da

sociedade moderna quanto algumas das qualidades das comunidades pré-capitalistas –

e, sobretudo, que abrisse um campo novo e ilimitado para o desenvolvimento e o

enriquecimento da vida humana (LÖWY; SAYRE, 2015, p.131).

O entusiasmo em relação às sociedades pré-capitalistas, assim como pela crítica ao

progressismo positivista e todas as interpretações insipidamente “modernizadoras” do marxismo,

também estão presentes em outros autores marxistas. Löwy e Sayre destacam componentes

românticos nas obras de Rosa Luxemburgo e José Carlos Mariátegui. A obra de Rosa Luxemburgo,

como a de Marx, parece o oposto do romantismo, sua demonstração é baseada em uma análise

das consequências irreversíveis da industrialização capitalista da Polônia, que modernizou sua

economia ao entrar no mercado russo. No entanto, é nos seus escritos econômicos que Löwy e

Sayre identificam a presença de análises românticas em sua obra. Segundo os autores, Rosa

Luxemburgo tinha grande interesse pelo romantismo econômico de Sismondi, que culminará no

livro A acumulação do capital, em que Rosa Luxemburgo ensaia uma superação crítica do

romantismo econômico, se referindo às observações do próprio Marx em relação a Sismondi. No

manuscrito inacabado, intitulado Introdução à economia política, Rosa Luxemburgo analisa de

maneira crítica e original a “evolução” das formações sociais na contracorrente das visões

“progressistas” lineares, obra na qual ela designa sociedades comunistas primitivas como

referências de oposição à sociedade mercantil capitalista (LÖWY; SAYRE, 2015, p.131). “Para ela,

portanto, trata-se de encontrar e ‘salvar’, no passado primitivo, tudo o que possa, ao menos até

certo ponto, prefigurar o socialismo moderno – uma atitude típica da visão romântica

(revolucionária)” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.132). O pensador marxista peruano José Carlos

Mariátegui, se aproxima das análises de Rosa Luxemburgo ao propor que o socialismo moderno

deve se apoiar nas tradições que remontam ao comunismo Inca para atrair as massas camponesas

para o seu combate(LÖWY; SAYRE, 2015, p.134).

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Porém, na obra do filósofo marxista húngaro Lukács, a crítica romântica ao capitalismo se

apresenta por outro viés, segundo Löwy e Sayre, a referência pré-capitalista do jovem Lukács não

é o comunismo primitivo nem uma formação econômica determinada, como em Rosa Luxemburgo,

ou Marx e Engels, mas ao contrário, em certas configurações culturais como o universo grego

homérico, a espiritualidade literária ou religiosa russa e o misticismo cristão, hindu ou judeu (LÖWY;

SAYRE, 2015, p.137). Não abordaremos com mais profundidade a relação contraditória que Lukács

teve com o romantismo, nos limitaremos a assinalar que de acordo com Löwy e Sayre, no início de

sua formação intelectual a crítica romântica do capitalismo foi um fator decisivo para a sua

radicalização intelectual e política, a qual o conduziu ao socialismo, primeiro próximo ao

anarcossindicalismo soleriano e depois do bolchevismo. Entretanto, posteriormente Lukács

adotará uma posição radicalmente contrária ao romantismo, atingindo o apogeu de sua estreita

concepção após a Segunda Guerra Mundial, com a publicação, em 1954, do seu livro intituladoA

destruição da razão40, no qual “[...] apresenta toda a história do pensamento alemão, de Schelling

a Tönnies e de Dilthey a Simmel, como um imenso confronto entre a ‘Reação’ e a ‘Razão’, e todas

as correntes românticas [...] como se conduzissem inelutavelmente a uma ‘irracionalização geral da

história’” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.147), a qual resultou na ideologia nazista41. Certamente, A

destruição da razão é o livro mais controvertido de Lukács que provocou a contestação unanime

de diversos autores, desde os pensadores da Escola de Frankfurt (Adorno primeiramente, e depois

por Herbert Marcuse e Leo Löwenthal), passando pelos admiradores das obras de Schelling, de

Nietzsche, de Dilthey ou de Heidegger, e chegando até aos filósofos mais próximos do pensamento

de Lukács, como Ernst Bloch e Henri Lefebvre. Lefebvre faz críticas às análises de Lukács sobre o

romantismo abordadas no referido livro, na ocasião da conferência realizada a propósito do

40 LUKÁCS, György. Die Zerstiirung der Vemunft. Aufhau-Verlag, 1954.

____. El Asalto a la Razón. Barcelona: Grijalbo S.A., 1976. 41 Para saber mais sobre a relação contraditória de Lukács com o romantismo ver: LÖWY, Michael. A Evolução Política de

Lukács: 1909-1929. São Paulo: Ed. Cortez, 1998; LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e Melancolia: o romantismo na

contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015.

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septuagésimo aniversário de Lukács, pronunciada em 8 de junho de 1955, no Instituto Húngaro de

Paris. Para Lefebvre:

[...] O romantismo exprime o desacordo, a distorção, a contradição interior do

indivíduo, a contradição entre o individual e o social. [...]Envolve, pelo menos

virtualmente, a revolta. [...] Por minha conta, não tenho perante o romantismo a

desconfiança radical que mostra Lukács. Eu não poderia sacrificá-lo globalmente

(LEFEBVRE, 1986, p.72)42.

Após termos passado pela definição do romantismo como visão de mundo que representa

a crítica à modernidade, distinguindo suas tipologias em função de suas posições tomadas em

relação à sociedade moderna, conforme suas propostas de enfrentamento e superação, passando

por suas tendências, levantamos a hipótese de podermos identificar no Movimento Surrealista, na

obra de Henri Lefebvre e na Internacional Situacionista, manifestações modernas da corrente de

pensamento romântico, pertencentes à tipologia “Romantismo Revolucionário e/ou Utópico”, de

tendência do “romantismo marxista”. Acompanhando o movimento do pensamento de Löwy e

Sayre, resta-nos saber delimitar no século XX aspectos e elementos essenciais que pertencem à

visão do mundo romântico, e isso tanto no que esse século tem de mais inovador, quanto no que

tem de mais tradicional.

Apesar do romantismo no campo da história da literatura ter sido limitado durante muito

tempo à primeira metade do século XIX, Lowy e Sayre defendem a hipótese a qual se for admitido

o conceito formulado de romantismo como “crítica da civilização capitalista-industrial”, e por outro

lado, se for admitido que essa civilização, a “modernidade”, ainda existe mesmo que modificada, e

por fim, se for admitido que certos grupos portadores da visão romântica também não

desapareceram, “[...] então podemos contar que o romantismo continue a desempenhar um papel-

chave” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.189). É evidente que o capitalismo evoluiu enormemente desde o

42Para saber mais sobre a crítica de Lefebvre a Lukács, ver a obra: LEFEBVRE, Henri. Lukács 1955/ Etre marxiste

aujourd’hui. Paris: Aubier-Montaigne, 1986. O livro é composto por dois ensaios, um de Henri Lefebvre e outro de Patrick

Tort.

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final do século XIX, porém o seu fundamento, o seu princípio base, o qual constitui a ruptura sem

precedentes causada pela sua instauração, permanece absolutamente intacto: “a dominação da

sociedade pela ‘economia’ sob a forma do todo poderoso valor de troca”, logo a crítica romântica

permanece fundamental (LÖWY; SAYRE, 2015, p.189). Apesar de existir uma continuidade entre o

romantismo do século XIX e certas formas de cultura do século XX, Löwy e Sayre apontam algumas

diferenças relevantes entre a produção desses períodos. Em primeiro lugar, os autores e

movimentos do século XX não se intitulam e tampouco são intitulados pelo termo romântico, em

alguns casos, inclusive se posicionam como antirromânticos, apesar de muitas vezes

compartilharem da visão romântica de crítica ao capitalismo em nome do passado.Em segundo

lugar é inegável que o romantismo no século XX não tenha a hegemonia que tivera no século XIX,

demonstrado pela maioria dos autores que identificam o romantismo como a cultura predominante

do século XIX. Em terceiro lugar, no século XX se constituíram formas de modernidade não

capitalistas, sociedades totalitárias e “socialistas” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.191). Adotaremos essas

três diferenças fundamentais como premissas para a nossa análise, considerando que a segunda se

trata apenas da periodização literária da história.

A primeira premissa adotada contempla os três objetos da nossa pesquisa, o Movimento

Surrealista e a I.S. não se intitulam como movimentos românticos, assim como Henri Lefebvre não

se posiciona como um filósofo romântico, entretanto Lefebvre é o único a, explicitamente, rever o

romantismo como corrente estético-político e propor um novo romantismo, o romantismo

revolucionário. Inclusive a I.S. se nega a ser identificada como um movimento romântico

revolucionário no sentido de Lefebvre. Logo, é necessário pontuar algumas diferenças entre eles,

os três objetos de nossa pesquisa podem ser interpretados como manifestações de crítica da

modernidade, porém Lefebvre e a I.S. negam que essa crítica esteja voltada aos valores e ideais do

passado, pré-capitalista ou pré-moderno. Apenas o Movimento Surrealista adota claramente que

suas propostas em relação à crítica da modernidade estejam voltadas para o passado, posição a

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qual é criticada por Lefebvre e posteriormente pelos situacionistas. Não há dúvidas de que o

Movimento Surrealista seja o exemplo mais claro das manifestações do ideário romântico no século

XX, o qual levou à mais alta expressão a aspiração romântica de reencantamento do mundo

(LÖWY,2008, p.840)43. Adotando-se o conceito de romantismo como visão de mundo formulado

por Löwy e Sayre, a contradição está em revelar que apesar de negarem sua nostalgia pelo passado,

Lefebvre e os situacionistas compartilham do “sentimento de perda” trazido pela modernidade.

Trataremos dessa questão no capítulo dois.

Se partirmos da terceira premissa de Löwy e Sayre, de que existe umaíntima ligação entre

modernidade e capitalismo, a qual é alvo e realidade econômica e social da formação da crítica

romântica, essa crítica permanece válida para as experiências de modernidade não capitalistas do

século XX? Löwy e Sayre reconhecem que a maioria dos autores românticos do século XX tem como

o seu objetivo principal, se não o único, a crítica à sociedade industrial burguesa, porém a crítica

romântica permanece pertinente principalmente ao dirigir-se à análise da modernidade “não

capitalista”, ao denunciar, sobretudo, os aspectos que essa compartilha com a civilização

capitalista, “[...] hiperindustrialização e tecnicização, racionalidade utilitária, produtivismo,

alienação do trabalho, instrumentalização do homem (Stalin: “O homem é o capital mais precioso”),

dominação-exploração da natureza etc” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.192). A crítica romântica

permanece contundente e atravessa tanto os socialistas libertários e trotskistas dissidentes como

o grupo Socialisme ou barbarie, C.L.R. James, Raya Dunayevskaya, Tony Cliff, quanto Henri Lefebvre

e a I.S., mais especificamente Guy Debord no livro A Sociedade do Espetáculo, propõe os conceitos

de “espetáculo concentrado”, “espetáculo difuso” e a sua síntese “espetáculo integrado” (DEBORD,

1997, p.171)44. Na análise desses críticos, a URSS e as sociedades inspiradas no mesmo modelo são

43 LÖWY, Michael. Carga Explosiva: o surrealismo como movimento romântico revolucionário. In: GUINSBURG, J.; LEIRNER,

Sheila. (Org.). O Surrealismo. São Paulo: Perspectiva, 2008. p.839-845. 44 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro : Contraponto, 1997.

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apenas uma variante do sistema industrial-capitalista, uma forma do que eles denominam de

“Capitalismo de Estado”.

O ponto fundamental a ressaltar é que essas sociedades não efetuaram, em hipótese

alguma, uma verdadeira ruptura com a civilização capitalista: elas transferiram,

reproduziram de outra forma, a maioria dos traços essenciais desse conjunto. Nessas

condições, não é surpreendente que também elas suscitem protestos românticos em

seu interior (LÖWY; SAYRE, 2015, p.194).

Demonstrada a pertinência da crítica romântica na cultura do século XX, Löwy e Sayre

consideram suas configurações românticas específicas mais significativas em alguns dos grandes

movimentos de vanguarda, no espírito de Maio de 68, no romantismo da cultura de massas e em

alguns movimentos sociais contemporâneos, destacando-se os ecossocialistas. Nos limitaremos a

tratar do espírito de Maio de 68 na França, por ser um fenômeno político e cultural que concentrou

a revolta romântica anti-burguesa nos três objetos da nossa análise, os quais contribuíram

diretamente para a revolta difusa e explosiva de radicalismo social, político e cultural, alavancado

pela juventude francesa que ousou colocar “a imaginação no poder” contra a lógica de

modernização capitalista e da sociedade de consumo. Como veremos a seguir, o texto Vers un

romantisme révolutionnaire, publicado em 1957, marca um momento de crise do marxismo

ortodoxo e o início de uma nova contestação romântica contra a modernidade capitalista e não

capitalista, crise da experiência soviética, que é marcada pelo “[...] fin de l’opposition anti-

stalinienne dans le parti communiste, la fin d’un espoir, celui de renouveler le mouvement

communiste de l’intérieur, cela survient en 1958”45 (LEFEBVRE, 1975, p.107-108)46, período que dá

início a uma nova época que culminará nas revoltas de Maio de 68. Nas palavras de Lefebvre “En

ce qui me concerne, je voudrais dire que dès 1957-1958, j’ai eu le pressentiment d’une nouvelle

époque. Je dis bien le pressentiment”47, época que culminou na contestação radical do poder do

45 Texto original. Tradução do autor: “Fim da oposição anti-stalinista no partido comunista, o fim da esperança de renovar

o movimento comunista no seu interior, a primeira aparece em 1958”. 46 LEFEBVRE, Henri. Le temps des méprises. Paris : Stock, 1975. 47 Texto original. Tradução do autor: “Naquilo que me concerne, eu gostaria de dizer que que a partir de 1957-1958, eu

tive o pressentimento de uma nova época. Eu disse um pressentimento”.

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Estado em escala mundial em 1968, cujos exemplos emblemáticos destacados por Lefebvre são “A

Paris, le capitalisme d’Etat est mis en question. A Prague, le socialisme d’Etat. Et, dans les deux cas,

la toute-puissance de l’Etat est visée par un mouvement qui, d’ailleurs, échoue

[...]” 48(LEFEBVRE,1975, p.107-108), constatação que direciona Lefebvre e os situacionistas, já em

meados da década de 60, à revisão crítica dos princípios de autogestão.

1.2 - O Romantismo esquecido do pensamento de Henri Lefebvre.

Rémi Hess e Charlotte Hess, na apresentação do livro Vers un Romantisme Révolutionnair,

reedição recente do primeiro texto no qual Henri Lefebvre introduz o conceito de romantismo

revolucionário, publicado em 1957 na Nouvelle Revue Française, propõem a tese “[...] il existe un

Lefebvre romantique révolutionnaire à partir de 1957 qui n’a rien à voir avec le Parti communiste

des années 1950”49 (HESS, 2011, p.9)50, período no qual Lefebvre travava, no interior do Partido

Comunista Francês o combate, anti-stalinista que resultaria em sua suspensão-expulsão,

entretanto não propõem hipóteses dos motivos pelos quais Lefebvre não revelou suas fontes

românticas até a sua ruptura com o Partido Comunista Francês. Hess destaca que o texto Vers un

romantisme révolutionnaire, mesmo retomado sua reflexão cinco anos depois em 1962, no livro

“L’Introduction à la modernité”, no texto Vers un nouveau romantisme?,Lefebvre não cita os

autores românticos alemães que o inspiraram, e propõe justificar a omissão de Lefebvre nas frágeis

hipóteses que o contexto universitário e acadêmico dos anos de 1950, não podem ser comparados

48 Texto original. Tradução do autor: “Em Paris, o capitalismo de Estado é questionado. Em Praga, o socialismo de Estado.

E, nos dois casos, a toda poderosa força do Estado é visada por um movimento que, inclusive, fracassou” 49 Texto original. Tradução do autor: “Existe um Lefebvre romântico revolucionário a partir de 1957 que não tem nada a

ver com o partido comunista dos anos 1950”. 50 HESS, Rémi. Présentation. In : LEFEBVRE, Henri. Vers un romantisme révolutionnaire. Clamercy : Nouvelles Éditions

Lignes, 2011.

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com o de hoje, e de outra parte, Lefebvre não destinava os seus escritos ao campo universitário,

mas “il écrit pour des militants”51 (HESS, 2011, p.22). No entanto, Hess ressalva que esse momento

de inflexão na trajetória de Lefebvre ainda é uma questão a ser explorada, “Expliquer pourquoi cette

influence du romantisme allemand n’a été exprimée par lui qu’au moment de la séparation d’avec

le Parti communiste serait un thème à développer. Ce cera fait dans un prochain texte!”52(HESS,

2011, p.21).

Não pretendemos responder a essa questão, apenas constatarmos o fato mais evidente

que Lefebvre só foi capaz de ensaiar uma renovação do pensamento marxista após a sua ruptura

com a interpretação oficial e centralizadora do Partido Comunista Francês, em contrapartida,

propomos inserir a obra de Lefebvre dentro do que Löwy e Sayre denominam de “corrente quente”

do marxismo, destacando as suas afinidades eletivas com a corrente de pensamento romântico.

Relação que Löwy e Sayre atribuem ser “[...] uma das fontes da originalidade - e singularidade até

- do pensamento de Henri Lefebvre no panorama histórico do marxismo francês, marcado desde a

sua origem pela presença insidiosa e permanente do positivismo” (LÖWY;SAYRE, 2015,

p.207).Lefebvre se alinha à corrente do marxismo romântico ao “re-traçar” os caminhos do jovem

Marx, nos quais identifica manifestações de um romantismo revolucionário que dará um

fundamento prático, e não especulativo, à sua obra de maturidade. Lefebvre rejeita a repetição

contínua de princípios instituídos do marxismo e a tese do “corte epistemológico” entre o jovem e

o velho Marx, pelo contrário, propõe pensar o atual utilizando o pensamento de Marx como fonte

de análise, se apoiando sobre uma erudição do passado com sentido a alargar continuamente o

horizonte do possível. “Voilà le programme d’Henri Lefebvre: ne pas répéter continuellement les

mêmes principes, mais reprende Marx pour penser la modernité. Et pour cela, un style de vie tourné

51 Texto original. Tradução do autor: “Ele escreve para militantes”. 52 Texto original. Tradução do autor: “Explicar porque essa influência do romantismo alemão só foi expressa por ele no

momento se sua separação com o partido comunista seria um tema a desenvolver. Isso será feito em um próximo texto”.

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vers le possible individuel et collectif !”53(HESS, 2011, p.8). O possível, termo que Lefebvre lançará

com a sua dialética dopossível-impossível pela primeira vez no texto Vers un romantisme

révolutionnaire,que será tratado mais à frente.

Lefebvre, como um autor romântico revolucionário, se tornou um dos principais opositores

do marxismo estruturalista, desferindo críticas a Louis Althusser ao longo de toda a sua trajetória

intelectual, polarização que ainda ecoa na cultura francesa recente, a qual segundo Hess, contribuiu

para um “tipo de eclipse” da obra de Lefebvre na França. Segundo Löwy e Sayre, a grosso modo,

permanecem duas grandes tendências de pensamento marxista na França, “[...] uma romântica e

outra modernizante: o ‘espírito de 68’ – corrente ‘quente’, humanista, que valoriza a paixão e a

imaginação – e o estruturalismo, seguido do pós-estruturalismo [...] – corrente ‘fria’, anti-

humanista, que valoriza a estrutura e a técnica.” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.253).

A nossa hipótese de interpretar Lefebvre como um autor romântico revolucionário se inicia

com a publicação do artigo Vers un romantisme révolutionnaire, no qual Lefebvre formula pela

primeira vez o conceito. Hess destaca que a referida publicação é o começo do processo no qual

Lefebvre revela o movimento romântico de seu pensamento. O artigo trata-se de um esboço, um

primeiro ensaio do que será desenvolvido definitivamente no livro La Somme et le reste, publicado

em 1959. Segundo Hess, La Somme et le reste é um livro incontornável, “il est à Henri Lefebvre ce

qu’Être et Temps est à Heidegger, Le Discours de la méthode à Descartes”54, livro no qual Lefebvre

rompe definitivamente com o marxismo instituído e desenvolve o seu pensamento romântico

revolucionário. “Je perçois La Somme et le reste comme un livre incontournable pour rompre avec

un marxisme institué et mortifère, et entrer dans ce que l’on pourrait nommer un marxisme

53 Texto original. Tradução do autor: “Aqui está o programa de Henri Lefebvre: não repetir continuamente os mesmos

princípios, mas retomar Marx para pensar a modernidade. E para isso, um estilo de vida orientada em direção do possível

individual e coletivo”.

54 Texto original. Tradução do autor: “(...) ele (o livro) é para Lefebvre o que Être et Temps é para Heiddeger, Le Discours

de la méthode é para Descartes” ou “(...) ele (o livro) está para Lefebvre assim como (...)”.

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instituant et vivant!”55(HESS, 2011, p.16). Além da republicação do artigo original no livro

Introduction à la modernité (1962), já citado, o conceito é utilizado para fazer referência à

juventude romântica revolucionária, denominada de possibilita no livro L’irruption de Nanterre au

sommet (1968), e é retomado de forma mais extensa no livro Au-delà du structuralisme (1971).

Segundo Hess, o período de inflexão no pensamento de Lefebvre, o qual se distancia

radicalmente da orientação do Partido Comunista Francês, se circunscreve às décadas de 50, 60 e

70, principalmente entre 1958 e 1978, praticamente o mesmo período de formação e dissolução

da Internacional Situacionista (1957-1972). Dentro do referido período fecundo de elaboração

romântica de Lefebvre, Hess destaca os livros La Métaphilosophie (1965) e La Présence et l’absence

(1980). Segundo Hess, La Métaphilosophie tem como referência teórica os filósofos românticos

alemães da cidade de Jena, os irmãos Schlegel, Frédéric Schlegel e August Wilhelm Schlegel, que

organizavam a revista l’Athenaeum em 1799 (HESS, 2011, p.19). Em uma de suas seções Schlegel

propõe o que chama de Kritische Fragmente, "fragmentos críticos" que se aproxima do conceito

Lefebvriano de resíduo, fragmento no qual é possível pensar uma nova totalidade. As ruínas, tema

de grande interesse do romantismo, segundo o autor Javier Hernández-Pacheco, não são

convertidas em focos estéticos e em valores absolutos que exigem veneração, pressuposto pelo

Classicismo, o qual busca a presença perfeita do absoluto, ao contrário, o romantismo identifica na

relatividade dos vestígios a presença desse absoluto perdido. "O resultado é o que poderíamos

chamar uma ontologia da fragmentação. Frente ao pedaço perdido que carece de significado, o

fragmento guarda a referência para a totalidade no que cobra sentido. Assim, na visão romântica

as coisas não são senão fragmentos de si mesmo” (PACHECO, 2015, p.140)56.

55 Texto original. Tradução do autor: “Eu vejo La Somme et le reste como um livro incontornável para romper com um

marxismo instituído e mortífero, e entrar naquilo que poderia se chamar um marxismo novo e vivo”. 56 PACHECO, Javier Hernández.O círculo de Jena ou a filosofia romântica. Trad.Marquessuel Dantas de Souza. Pólemos,

Brasília, vol 4, n°7, jan-jul 2015, p.134-148.

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Hess destaca que Lefebvre leu não somente os românticos alemães, mas também os

movimentos do pensamento humanista germânico (Schelling, Schleiermacher, Novalis, Dilthey),

porém ele não os cita, com as exceções de Schelling em La Somme et la reste e no artigo

Introduction’ à Schelling57, publicado em 1926, e Novalis em Critique de la vie quotidienne. v.III

(HESS, 2011, p.21). O interesse pelos pensadores românticos está presente na formação intelectual

de Lefebvre, Löwy e Sayre apontam os seus primeiros artigos sobre Schelling nos anos 1920, passa

por Nietzsche58 e Stendhal59nos anos 1930, e Musset60 nos anos 1950 (LÖWY; SAYRE, 2015, p.207).

Entretanto, Lefebvre só irá iniciar a sua contribuição para a renovação do pensamento marxista de

fonte romântica com a publicação do livro Critique de la vie quotidienne. v.I, publicado em 1947,

que terá grande repercussão entre os movimentos que fundarão a Internacional Situacionista,

como o movimento COBRA (1948-1951) e a Internacional Letrista (1952-1957), repercussão que

abordaremos mais à frente. O conceito de crítica da vida cotidiana, formulado dez anos antes do

conceito de romantismo revolucionário, percorre toda a obra de Lefebvre, mas é tratado de forma

mais extensa nos três volumes que trazem o conceito no seu título, v.I, 1947, Critique de la vie

quotidienne. Fondements d'une sociologie de la quotidienneté, v.II, 1961, e Critique de la vie

quotidienne. De la modernité au modernisme, v. III, 1981. No terceiro volume, Lefebvre ao comparar

os escritos do jovem Lukács com os de Heidegger nos anos de 1920, observa61:

É preciso lembrar que esses temas- apreciação da realidade cotidiana como trivial,

abandonada à preocupação, desprovida de sentido, o que orienta a filosofia para a

verdadeira vida, ou vida verdadeira e a autenticidade – provêm do romantismo. E mais

57 LEFEBVRE, Henri. Introductionà Schelling, Recherches philosophiques sur l’essence de la liberté humaine et sur les

problèmes qui s’y rattachent, traduction de G. Politzer, Paris, Rieder, 1926. 58 ____. Nietzsche. Paris, Editions sociales internationales, 311p, 1939. / «Nietzsche et le fascisme hitlérien », C, n°66,

p.229 et sq, 1939. / « Hegel, Marx, Nietzsche ou le royaume des ombres », Paris-Tournai, Casterman, 224 p., 1975. 59 ____. Stendhal et le problème moderne de l’individu », C, n°69, p.567 et sq, 1939. 60____.Musset. Paris L’Arche, coll. « Les grands dramaturges » (2°édition revue et corrigée 1970, collection « Travaux »,

160p., 1955. 61 Michael Löwy e Robert Sayre destacam essa passagem, assim como os autores Armand Ajzenberg, Hugues Lethierry e

Léonore Bazinek, ao tratarem do tema do romantismo revolucionário no livro: AJZENBERG, Armand; LETHIERRY, Hugues;

BAZINEK, Léonore. Maintenant Henri Lefebvre, renaissance de la pensée critique. Paris: L’Harmattan, 2011.

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precisamente do romantismo alemão: Hölderlin, Novalis, Hoffmann etc [...] (LEFEBVRE,

1981, p.23-24)62.

Entretanto, Lefebvre não tem como objetivo restabelecer o romantismo tradicional, nem o

alemão, nem o francês, nem o inglês, ao contrário, rejeita a idealização do passado para lançar as

bases de um novo romantismo, um romantismo revolucionário voltado para o futuro. A definição

de romantismo revolucionário, formulada por Lefebvre no ano de 1957, se diferencia daquela dos

autores Löwy e Sayre, abordaremos suas diferenças mais à frente no item 1.3.

No momento é importante nos atermos à definição de romantismo de Löwy e Sayre, “o

romantismo representa uma crítica da modernidade, isto é, da civilização capitalista, em nome de

valores e ideias do passado (pré-capitalista, pré-moderno)”, para os autores “[...] todos os

românticos, mesmo os revolucionários – a nostalgia do passado não está ausente [...]” (LÖWY;

SAYRE, 2015, p.208). No entanto, o conceito de romantismo revolucionário formulado por

Lefebvre, estabelece uma relação de distância em relação ao presente, não a título do passado ou

de fuga, mas sob o signo do possível-impossível. Embora Lefebvre rejeite a nostalgia pelo passado

em Vers un romantisme révolutionnaire, Löwy e Sayre demonstram a presença da nostalgia do

passado na obra de Lefebvre assim como suas afinidades eletivas com a “visão de mundo”

romântica, destacam no livro Crítica da vida cotidiana, v.I, no capítulo “Notas escritas num domingo

no interior da França”, no qual Lefebvre:

“[...] lamenta a perda de ‘uma certa plenitude humana’ da antiga comunidade rural [...]

Embora critique os retrógrados partidários dos ‘bons e velhos tempos’, ressalta que

‘contra os teóricos ingênuos do progresso contínuo e completo, é necessário

principalmente mostrar a decomposição da vida cotidiana desde a comunidade antiga e

a alienação crescente do homem’” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.209).

Apontam o interesse de Lefebvre pelas organizações sociais orgânicas de comunidades

rurais e vilarejos urbanos, como já citamos o interesse romântico pelas sociedades pré-capitalistas,

62 LEFEBVRE, Henri. Critique de la vie quotidienne III. Paris : L’Arche, 1981.

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que é abordado nos artigos La communauté villageoise63 (1956), La communauté rurale64 (1957), e

tratado de forma mais extensa em sua tese de doutorado La Vallée de Campan: étude de sociologie

rurale65, desenvolvida durante a Segunda Guerra Mundial, defendida em 1963 e publicada em

1966, cuja versão original intitulava-se Une République pastorale: la Vallée de Campan66. Nesta o

autor analisa os impactos do desenvolvimento capitalista no processo de dissolução da comunidade

rural (LÖWY;SAYRE, 2015, p.209). Além dos trabalhos sobre sociologia rural, Hess aponta o

interesse de Lefebvre pela “MIR (communauté villageoise autogérée dans la Russie traditionnelle)”,

a qual considerava “[...] des anticipations du monde à construire”67 (HESS, 2011, p.20)68, afirmação

do seu pensamento romântico revolucionário.

No livro Posição: contra os tecnocratas (1967), publicado às vésperas de maio de 1968,

Lefebvre critica o funcionamento tecnocrático do Estado moderno. Löwy e Sayre salientam o

alinhamento à crítica romântica da “mecanização do mundo”, na qual a política moderna é vista

como um sistema artificial, mecânico, em que os indivíduos são vistos como engrenagens,

subjugados pela máquina do Estado que criaram. No texto, “O mais antigo sistema do idealismo

alemão”, de provável autoria do jovem Schelling, o autor propõe “ultrapassar o Estado” (LÖWY;

SAYRE, 2015, p.63), horizonte muito próximo à superação do Estado proposta por Lefebvre a partir

dos princípios de autogestão. Lefebvre se vale do socialista utópico Fourier e de Marx em Posição:

contra os tecnocratas, para rejeitar “[...] a mitologia tecnocrática, em sua forma reacionária ou de

esquerda (especialmente a planificação autoritária soviética) e examina de um ponto de vista

dialético as contradições da tecnicidade” (LÖWY, SAYRE, 2015, p.209).

63 LEFEBVRE, Henri. La communauté villageoise. LP, n°66, p.29 et sq., 1956. 64 ____. La communauté rurale. Revue de synthèse, Albin Michel, Paris, 1957. 65 ____. La Vallée de Campan: étude de sociologie rurale. Paris, PUF, 1966. Ed. Bras.:O Vale de Campan: Estudo de

Sociologia Rural. trad. Ana Cristina Mota Silva; Anselmo Alfredo. 1.Ed., São Paulo: EDUSP, 2010. 66 ____. « Une République pastorale: la Vallée de Campan. Organisation, vie et histoire d’une comunnauté pyrénéenne ».

Textes et documents accompagnés d’une étude de sociologie historique (tese complementar de doutorado apresentada

à Faculdade de Letras da Universidade de Paris) - (Fonte : LÖWY; SAYRE, 2015, p.209). 67 Texto original. Tradução do autor: “Antecipações do mundo a construir”. 68 Texto original. Tradução do autor: “Presságios do mundo a construir”.

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Além disso, Posição: contra os tecnocratas teve grande impacto nas revoltas de Maio de

68, assim como é inegável que Lefebvre foi um dos principais inspiradores, como professor e teórico

em Nanterre, onde se iniciaram as revoltas. Na expressão de Löwy e Sayre, Maio de 68 foi animada

pelo “sopro romântico” que se manifesta no “[...] sentimento de uma comunidade humana

recuperada, na experiência da revolução como festa, nas palavras de ordem irônicas e poéticas

pintadas nos muros, no apelo à imaginação e à criatividade coletivas como imperativo político [...]”

(LÖWY; SAYRE, 2015, p.204). Em 1965, Lefebvre publicara La Proclamation de la commune, obra na

qual a sua principal tese é: “on fait la Révolution, d’abord parce que c’est une fête!”69, a revolução

da Comuna de Paris é analisada como uma grande festa popular, na qual se encorajava a destruir

as instituições, “une fête de la pensée, une fête de la présence [...]”70(HESS, 2011, p.9). Hess expõe

o espírito romântico revolucionário do pensamento de Lefebvre nos seus relatos sobre o professor

Lefebvre, o qual provocava nos estudantes um tipo de “transmutação”, “um transe”, que os

impulsionavam ao movimento teórico e prático ligados à vida, propunha uma universidade

alternativa, anti-capitalista, anti-imperialista, anti-stalinista. “C’est ce mouvement théorique et

pratique pour un romantisme révolutionnaire qui me plaisait en lui [...] Ce mouvement gagna

rapidement l’ensemble du campus, puis Paris, puis la France entière. Ce fut L’irruption de Nanterre

au sommet (1968)!”71(HESS, 2011, p.13).

Em seu livro sobre os acontecimentos de Maio de 1968, L’irruption de Nanterre au sommet,

lançado em 1968, Lefebvre aborda rapidamente o romantismo revolucionário ao se referir à

juventude revoltada, a qual difere da sua geração anterior que reivindicou sobretudo no plano

econômico, esta juventude “[...] procura e talvez traz uma nova maneira de viver72. Esses jovens

atravessam o enfadonho romantismo iê-iê-iê; superam-no e vão em direção a um romantismo

69 Texto original. Tradução do autor: “Faz-se a Revolução, primeiramente porque é uma festa”. 70 Texto original. Tradução do autor: “Uma festa do pensamento, uma festa da presença”. 71 Texto original. Tradução do autor: “É esse movimento teórico e prático para um romantismo revolucionário que me

agradava nele (...) Esse movimento ganhou rapidamente todo o campus, depois Paris, depois a França inteira. Foi a

obraL’irruption de Nanterre au sommet”. 72 Grifo nosso.

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revolucionário, sem teoria, mas atuante” (LEFEBVRE, 1968, p.104). Segundo Löwy e Sayre, um

exemplo contundente desse “romantismo atuante” mas “sem teoria” durante as revoltas foi “[...]

o incêndio de carros, símbolo execrado da sociedade de consumo e de uma modernidade industrial

agressiva” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.210). No livro, Lefebvre retoma a crítica aos tecnocratas e

contrapõe três tendências da vontade política na França durante as revoltas, os arcaicos, os

modernistas e os possibilitas. Os arcaicos pertencem ao velho partido da solidez, composto por

pessoas que “nunca fizeram política” e representam “o bom senso, as certezas, os interesses

assegurados, a ordem para além da vida e da morte”. Os modernistas, os quais são mais

interessantes que os primeiros, são compostos por pessoas do centro-liberal que “[...] querem

apenas ‘adaptar’ as estruturas – a ala mercante do capitalismo francês [...] e os ‘marxistas’ que

querem ir um pouco mais longe, em direção ao modelo soviético, em direção a uma planificação

estatal centralizada”. São considerados os “recuperadores por excelência”, pessoas que “[...] têm

pouca imaginação e muita ideologia que ignoram como sendo ideologia: economistas fazendo

economismo, tecnocratas fazendo filosofismo”, têm como princípio da sua honestidade política

acabar com os atrasos e “pôr a França a serviço dos computadores”. Enfim os possibilitas, jovens

românticos revolucionários, que militam na abertura do “campo dos possíveis”. “São os entusiastas

mais preocupados com as virtualidades do que com o real. Vão portanto além do real e às vezes

além do racional, até a proclamar o primado da imaginação sobre a razão” (LEFEBVRE, 1968, p.104).

Após indicarmos a presença do pensamento romântico na obra de Henri Lefebvre, iremos

à análise do seu texto fundacional, passando pelas diferenças conceituais de Löwy e Sayre e sua

aproximação com a teoria da Internacional Situacionista.

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1.3 – O Romantismo Revolucionário a partir de Henri Lefebvre.

No artigo Vers un romantisme révolutionnaire, Lefebvre desenvolve sua reflexão no campo

da cultura a partir de uma crítica marxista sobre o sentido da arte ligada à sua potência de

transformação da vida “[...] sans négliger le fait que l’éthique et l’esthétique ont une certaine liaison;

la question du style73 concerne aussi bien la vie que la littérature”74(LEFEBVRE, 1971,p.29). O artigo

marca um período de crise do marxismo ortodoxo, como já citamos, escrito um ano e meio depois

do relatório de Khruschov75, mesmo momento no qual Lefebvre travava no interior do Partido

Comunista Francês (PCF) uma luta anti-stalinista que acaba resultando em sua suspensão-expulsão

no ano de 195876. Lefebvre inicia o texto fazendo um dublo balanço da crise do ideal socialista ou

comunista e do papel dos intelectuais marxistas, que se iniciou em meados da década de cinquenta

até atingir o que o autor denomina de “le vide actuel”, vazio ético, estético e cultural, abatendo o

entusiasmo e a confiança até mesmo no “[...] coeur de ses partisans les plus fidèles et les plus

sincères”77(LEFEBVRE, 1971,p.29). O primeiro problema se dá por uma “política de inteligência”

adotada pelo stalinismo e a supressão das forças que se contrapunham no interior do PCF, o

segundo trata do caráter da “problématiquede l’art moderne [...] qu’il repose sur le caractere

73 Grifo nosso. 74 Texto original. Tradução do autor: “Sem negligenciar o fato do ético e do estético têm uma certa ligação; a questão do

estilo refere-se tanto à vida quanto à literatura”. 75 O chamado Discurso Secreto ou Relatório Khruschov, cujo nome oficial é “Sobre o culto à personalidade e suas

consequências”, é uma famosa intervenção do político soviético Nikita Khruschov durante o XX Congresso do Partido

Comunista da União Soviética, em 25 de fevereiro de 1956. No discurso, Khruschov reafirma sua crença nos ideais

comunistas, invocando as ideias de Lenin, ao mesmo tempo que critica o regime de Stalin, particularmente pelos brutais

expurgos de militares de alto escalão e de quadros superiores do Partido - o chamado Grande Expurgo, entre 1934 e 1939

-, e pelo culto à personalidade de Stalin. 76 Segundo a autora Claire Revol, Lefebvre foi suspenso do PCF por ter se recusado a submeter o seu livro “Problèmes

actuels du marxisme, publicado em 1958, à censura interna do partido (REVOL, 2017, p.45) – (REVOL,C. Le Rythmanalyste,

Héritier du Psychogéographe? Lefebvre et l’Internationale Situationniste. In: CARITOUX, N; VILLARD, F. (Org.). Nouvelles

Psychogéographies. Lyon: Éditions Mimésis, 2017. p.43-60.) 77 Texto original. Tradução do autor: “Coração de seus partidários mais fiéis e sinceros”.

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foncièrement problématique – donc incertain – de la vie réelle [...] 78(LEFEBVRE, 1971,p.29), caráter

problemático que determina o uso dos meios de expressão, das suas formas e dos seus conteúdos.

O autor Patrick Marcolini, ao analisar o artigo Vers un romantisme révolutionnaire,

identifica o mesmo duplo balanço e destaca a crise da arte moderna no período, imobilizada pelo

impasse do seu esgotamento formal e da sua incapacidade de superar o caráter problemático do

“vivido” (MARCOLINI, 2007, p.03)79. No entanto,Marcolini trata mas não enfatiza80 o que Lefebvre

identifica ser “le problème central, problème des problèmes”81(LEFEBVRE, 1971,p.47), a relação

entre homem e natureza e o seu “pouvoir” de transformação, que nos parece ser a questão central

para compreendermos o ideário da Internacional Situacionista. Lefebvre acrescenta que dentre as

causas do caráter problemático do “vivido” se destacam os elementos de um estilo e de uma beleza,

esses ligados a partir de técnicas que por elas mesmas apenas colocam os problemas, abrem as

possibilidades, entretanto determinam formas vazias de substância, demandam um sentido.

[...] au cours des transformations du « monde moderne », et à cause même du

caractère problematique du “vécu”, se dégagent des éléments d’un style82 et

d’une beauté (et cela à partir des techniques, bien que par elles-même les

techniques posent seulement des problèmes, ouvrent des possibilités, mais ne

déterminent que des formes vides de substance)83(LEFEBVRE, 1971,p.30).

Em relação ao primeiro problema, Lefebvre faz um balanço dos fracassos dos intelectuais

marxistas e da política stalinista os quais, na tentativa de constituir uma política de “intelligentsia”,

78 Texto original. Tradução do autor: “Problemática da arte moderna (...) que elarepousa sobre o caráter totalmente

problemático – então, incerto – da vida real” 79 MARCOLINI, Patrick. L’Internationale Situationniste et la querelle du romantisme révolutionnaire. Noesis [En line], 11 I

2007. Mis en ligne le 06 octobre 2008, consulté le 10 décembre 2017.URL :http://journals.openedition.org/noesis/723 80 Marcolini não enfatiza a questão, porém trata sobre ela no referido artigo, segundo o autor o romantismo

revolucionário de Lefebvre coloca sobre novos termos “[...] la vieille question romantique du rapport entre l’homme et la

nature [...]”, o que abre a crítica sobre a propriedade privada dos meios de produção, questão central do comunismo

revolucionário. A crítica ao campo da cultura, Lefebvre a reconduz ao campo da política, crítica estético-político, [...] ce

sont justement ces deux déterminations de la praxis qu’Henri Lefebvre cherche à articuler de façon cohérente”

(MARCOLINI, 2007, p.04). 81 Texto original. Tradução do autor: “o problema central, problema dos problemas”. 82 Grifos nossos. 83 Texto original. Tradução nossa: “No curso das transformações do mundo moderno, e por causa do caráter problemático

do “vivido”, se liberam os elementos de um estilo e de uma beleza (e esta a partir das técnicas, ainda que sozinhas as

técnicas criem somente problemas, abram possibilidades, mas determinam somente formas vazias de substância”.

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sobrecarregaram o campo político mais do quelhes permitiam o seu peso social real e a sua

influência efetiva. Um novo horizonte se abre a partir da reflexão crítica desse fracasso, que deve

extrair suas lições e os seus significados. Não se trata de deixar de agir politicamente ao lado da

classe trabalhadora, nem de suspender os esforços concretos para revalorizar o ideal revolucionário

abatido pelo stalinismo diante das massas, entretanto,é necessário reavaliar a própria função dos

intelectuais, à qual Lefebvre direciona os seus esforços para o plano da cultura, dos valores e da

arte, campo por excelência dos intelectuais.

Là, sur ce plan, ils peuvent introduire leurs préoccupations et créer du nouveau,

en tant qu’intellectuels, individus et groupements. Ne doivent-ils pas aujourd’hui

revenir à cette fonction créatrice, avec plus de force lucide et de nettete, en

bénéficiant des expériences récentes?84 (LEFEBVRE, 1971,p.28)

Revisão que direciona a análise para o segundo problema, com um suplemento de

consciência crítica, Lefebvre parte para a crítica radical do existente e para a quebra das certezas

estabelecidas no campo da arte, fazendo um balanço do Classicismo e do Neo-classicismo, do

Realismo Socialista, do antigo Romantismo, do Existencialismo e dos Gêneros. Entretanto, na

segunda parte do texto, Lefebvre retoma a análise do antigo Romantismo de maneira mais extensa

para formular a sua superação, propondo um novo romantismo, o Romantismo Revolucionário.

Lefebvre através do seu método regressivo-progressivo85, analisa os movimentos

românticos na Alemanha e na França, porém não faz nenhuma referência ao romantismo na

Inglaterra, no intuito de revelar suas distorções no tempo, os equívocos e os mal-entendidos

históricos, busca descontruir a interpretação habitual do romantismo consagrado pelas análises

sincrônicas da história literária corrente. A partir de sua análise materialista histórica dialética,

Lefebvre diferencia o romantismo alemão do francês pelas suas relações sócio-políticas originárias

84 Texto original. Tradução do autor: “Aqui, nesse plano, eles podem introduzir suas preocupações e criar o novo,

enquanto intelectuais, indivíduos e agrupamento. Atualmente, eles não deveriam retomar essa função criadora com mais

força lúcida et pureza, beneficiando as experiências recentes?”. 85 Para maiores informações sobre o método, consultar: MARTINS, José de Souza. Henri Lefebvre e o retorno à dialética.

São Paulo: Hucitec, 1996.

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dos períodos de suas revoluções burguesas. O romantismo alemão nasce na virada do século XVIII

para o século XIX, o romantismo francês começa alguns anos mais tarde e será diretamente

influenciado pelo romantismo alemão. Apesar do distanciamento temporal, ambos apresentam

características análogas como o desprezo pelo real, a fuga no exótico ou no sonho, a exaltação da

juventude e da paixão, porém segundo Lefebvre, as formas podem ser as mesmas, entretanto os

significados são diferentes em cada movimento.

O período entre 1750 e1848 é marcado por duas revoluções burguesas, as preparações e

as decepções que elas carregam, segundo Lefebvre, constituem as diferenças históricas e políticas

entre os dois movimentos românticos. Lefebvre destaca que o romantismo alemão se funda como

recusa ideal da sociedade burguesa (revolução democrática burguesa), como fuga do resultado

equivocado da sua composição feudal-burguesa; ao contrário o romantismo francêsse funda sobre

a Revolução Francesa, a sua recusa da sociedade burguesa é em prol da revolução e da democracia

(LEFEBVRE, 1971,p.35).

Le romantisme allemand se fonde sur un postulat implicite : eluder la révolution

(démocratique bourgeoise) ; accepter en fait la société bourgeoise allemande, et

même son mélange équivoque de féodalité et de bourgeoise, en la refusant

idéalement, en la fuyant dans l’ironie, le rêve, le mythe, la magie et les éléments

cosmiques.

Le mouvement romantique français tire au contraire les conclusions esthétiques

de la Révolution française. Il les assimile lentement, difficilement, sur le plan de

l’art. Si le romantiquefrançais méprise les philistins, s’il refuse la société

bourgeoise et les bourgeois, c’est au nom de la Révolution et de la démocratie,

et parce que la société issue de la Révolution ne correspond ni aux aspirations, ni

aux valeurs, ni aux idées (aux idéologies) des révolutionnaires, et enfin parce que

les idéologies justifiant la société bourgeoise n’ont plus ou n’ont pas encore

d’influence profonde 86(LEFEBVRE, 1971, p.35).

86 Texto original. Tradução do autor: “O romantismo alemão se funda sobre um postulado implícito: evitar a revolução

(democrática burguesa); aceitar efetivamente a sociedade burguesa alemã, e até a sua mistura equivocada entre

feudalidade e burguesia, recusando-a idealmente, dissimulando-a na ironia, no mito, na magia e nos elementos cósmicos.

O movimento romântico francês, ao contrário, extrai conclusões estéticas da revolução francesa. Ele as assimila lenta e

dificilmente no plano da arte. Se o romantismo francês despreza os filisteus, se ele recusa a sociedade burguesa e os

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No Romantismo alemão, a recusa da sociedade burguesa envolve uma aceitação,

entretanto a aceitação no romantismo francês é apenas aparente, ele implica uma recusa profunda

e um desejo de superação, o qual explode depois de 1830, justamente quando a dominação

burguesa se consolida e torna-se evidente (LEFEBVRE, 1971, p.35). Essa diferença radical, segundo

Lefebvre, se manifesta na maneira de interpretar a natureza e de utilizá-la como meio de

investigação e expressão. Para o romantismo francês “le concept de nature garde un contenu

essentiellement anthropologique ; il implique l’égalité entre les hommes, la bonté originelle, la

liberté et la fraternité possible”87, no romantismo alemão “le concept de nature prend un sens

cosmologique ; il désigne ‘le monde’, la profundeur inaccessible, l’abîme, [...] avec laquelle il faut

trouver un ‘medium’. La nature contient le mot de l’énigme humaine, non l’inverse”88(LEFEBVRE,

1971, p.35). Só depois de 1848, que o romantismo francês corresponde aos significados análogos

ao romantismo alemão, com uma conjuntura histórica próxima, “acceptation de la société

bourgeoise comme constituant le ‘réel’ (après l’échec de la Révolution) – salut humain par la fuite

vers le rêve, l’idéal, le passé, le mythe, l’art pour l’art, etc... ”89(LEFEBVRE, 1971, p.36). Segundo

Lefebvre, o fracasso da Comuna de Paris, em 1871, marca o início de outro período, o qual

permanece até os dias atuais, nas suas formulações de “sociedade urbana” e “direito à cidade”.

As manifestações modernas do romantismo se expressam nos movimentos do Surrealismo

e do Simbolismo, entretanto, Lefebvre os analisa como etapas de degradação do antigo

romantismo. Lefebvre recorre à análise da evolução da imagem e da imaginação para demonstrar

oseu processo de degradação; o romantismo antropológico e democrático (burguês) cria images-

burgueses, é em nome da revolução e da democracia, e porque a sociedade que resulta da revolução não corresponde

nem às aspirações, nem aos valores e ideias (ou ideologias) dos revolucionários, e enfim, porque as ideologias,

justificando a sociedade burguesa, não têm mais ou não tem ainda uma influência profunda”. 87Texto original. Tradução do autor: “O conceito de natureza tem um conteúdo essencialmente antropológico; ele implica

a igualdade entre os homens, a bondade original, a liberdade e a fraternidade possível”. 88Texto original. Tradução do autor: “O conceito de natureza apresenta um sentido cosmológico; ele designa ‘o mundo’,

a profundeza inacessível, o abismo, [...] através da qual é preciso encontrar um ‘medium’. A natureza contém a palavra

do enigma humano, não o inverso”. 89 Texto original. Tradução do autor: “A aceitação da sociedade burguesa como parte do real (após o fracasso da

Revolução) – salvação humana pela fuga em direção ao sonho, ao ideal, ao passado, ao mito, à arte pela arte, etc...”.

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figures, imagens que são seres humanos, como os exemplos de Lorenzaccio, Quasímodo e Jean

Valjean, o romantismo cosmológico cria images-symboles, a mulher noturna, cósmica, Vaso de

tristeza e a grande Taciturna, o barco bêbado, o cristal (LEFEBVRE, 1971, p.37). Para Lefebvre, o

Surrealismo dá continuidade aos desdobramentos do romantismo alemão, ao sobrecarregar de

significações cósmicas as images-choses, tornando-as fascinantes e alucinantes; “[...] parfois les

symboles précédemment utilisés, mais en les accentuant: miroir, nuit, métal, minéral, cristal”90.

Logo, os desdobramentos do romantismo alemão realizados pelos surrealistas são considerados

processos de alienação poética segundo Lefebvre, os quais conduziram o movimento ao ocultismo

reacionário, crítica que está diretamente ligada à posição dos situacionistas em relação ao

surrealismo, “Le surréalisme, après avoir aménagé et exploité l’aliénation poétique dans l’image

‘convulsive et figée’, se termine logiquement dans l’occultisme, comme le romantisme réactionnaire

allemand”91 (LEFEBVRE, 1971, p.37).

Lefebvre propõe o abandono da “thèse du salut humain par la révélation poético-

cosmologique”92, e defende a volta ao significado humano investido na “images-choses”, seguindo

o exemplo de Paul Éluard, no esforço para a desfetichizar (LEFEBVRE, 1971, p.37). Se o romantismo

toma distância em relação ao presente, recorrendo ao passado, Lefebvre pretende dar um novo

sentido para a distância, que ela esteja agora em busca do possível. “L’homme en proie au possible,

telle serait la première définition, la première affirmation de l’attitude romantique

révolutionnaire”93(LEFEBVRE, 1971, p.43).

90Texto original. Tradução do autor: “As vezes símbolos anteriormente utilizados mas acentuando-os: espelho, noite,

metal, mineral, cristal”. Segundo Lefebvre, é Novalis que desenvolve no romantismo alemão uma interpretação

cosmológica e mítica da história, do pensamento, da arte, e mais especificamente uma “pseudo-historicité” irracional, de

revestimento mítico, oposta à dialética Hegeliana. Quem introduz os temas de Novalis na França é Baudelaire ao

reproduzir como símbolos cosmológicos o mineral, a pedra e o metal (LEFEBVRE, 1971, p.34-36). 91 Texto original. Tradução do autor: “O surrealismo, depois de ter organizado e explorado a alienação poética em uma

imagem ‘convulsiva e estática’, acaba, logicamente, no ocultismo, como o romantismo reacionário alemão”. 92 Texto original. Tradução do autor: “tese da salvação humana pela revelação poético-cosmológica”. 93 Texto original. Tradução do autor: “O homem em busca do possível, tal qual a primeira definição, a primeira afirmação

da atitude romântica revolucionária”.

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O Romantismo Revolucionário Lefebvriano, o qual se coloca contra o antigo romantismo,

se define a partir da supressão dos seus temas reacionários e a renovação das suas potências. Adota

como ponto de partida a premissa do “vazio espiritual do momento”, a qual representa os sintomas

sociais, éticos e estéticos, que resultam no “mal da juventude” e no “mal de viver”, juventude esta

que não tem clareza das suas causas e condições. A nova atitude romântica não propõe aumentar

esse vazio, nem o preencher com uma certeza imposta, mas pressioná-lo até o fim, ao invés de

ignorá-lo, para que saia algo de novo do caráter problemático da arte e da vida. Segundo Lefebvre,

o sentimento do “vazio espiritual” envolve efetivamente a “consciência obscura do possível”.

Propõe que somente a possibilidade de uma “plenitude nova”94 responderá a tal “conscience de

vide et d’un tel vide des consciences”95. Reivindica uma “vie plus totale”96 como resposta ao "[...]

sentiment d’insatisfation et d’incomplétude qui assiège littéralment les sensibilités les plus vives et

les plus lucides”97(LEFEBVRE, 1971, p.42).

A Sociedade Burguesa estabelece o indivíduo dentro de suas “conscience et sa vie

privées”98, o sistema capitalista fragmenta o homem a partir da divisão social do trabalho logo, o

indivíduo burguês faz da sua necessidade virtude, se encontra pleno e inteiro na sua “privation”.

Esse indivíduo se afirma enquanto homem dentro ou fora da divisão social do trabalho, indivíduo

“en tant que”, ou seja, enquanto burguês, enquanto político, enquanto pai de família, etc. Da outra

parte, a experiência soviética e o marxismo ortodoxo falharam em querer constituir uma

individualidade nova pela “voie idéologique”99. Portanto, o “mal de viver” ou o “vazio” se trata da

constatação da falência desses dois sistemas, logo “qu’autre chose devient possible”100a angústia

94 Grifo nosso. 95 Texto original. Tradução do autor: “consciência do vazio e um tal vazio das consciências”. 96 Texto original. Tradução do autor: “Vida mais total”. 97 Texto original. Tradução do autor: “Sentimento de insatisfação e de incompletude que bloqueia literalmente as

sensibilidades mais vivas e mais lúcidas”. 98 Texto original. Tradução do autor: “Consciência e de sua vida privadas”. 99 Texto original. Tradução do autor: “Via ideológica”. 100 Texto original. Tradução do autor: “Que outra coisa se torna possível”.

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se faz presente porque nada substituiu até o momento esta “organisation défaillante”101(LEFEBVRE,

1971, p.42-43). Este sentimento do vazio, segundo Lefebvre, serve de fio condutor para organizar,

através da consciência crítica, simultaneamente uma problemática aprofundada do presente e um

tipo virtual de individualidade; pela palavra crítica entende-se que ela designa “[...] le moment de

la crise et du dépassement dans la conscience”102, a qual parte da totalidade concreta dos possíveis,

“[...] c’est n’est pas une totalité idéologique ou théorique, c’est la totalité concrète des possibles

[...]”103(LEFEBVRE, 1971, p.43).

Segundo Lefebvre o antigo romantismo havia consciência da “privation intérieure”, a vida

privada, negava a vida a exaltando e a recusavam através do retorno ao passado. A provocação, o

escândalo, o grande desprezo pela vida burguesa, o frenesi, eram formas utilizadas para opor o

“Eu” ao “não-Eu”(o mundo). A recusa à sociedade burguesa se manifesta como fuga, retorno ao

passado, seja histórico, psicológico ou as origens. A busca pelo primitivo, a simplicidade e a pureza

nativa, tanto da Idade Média quanto da Antiguidade, ou da infância, se manifesta na modernidade

pelo Movimento Surrealista através da fascinação do inconsciente, do mito do passado. Entretanto,

Lefebvre critica o antigo romantismoporque este “[...] transformait le fétichisme et l’aliénation en

critères du vrai et de l’authenticité : la possession, la fascination, le délire”104(LEFEBVRE, 1971, p.44).

O homem do antigo romantismo, definido como “L’homme en proie au passé”105, é contraposto ao

“L’homme en proie au possible”106. “Le romantisme révolutionnaire rejette cette attitude. Au nom

précisément du possíble, il proclame que rien d’humain ne le laisse indifférent”107(LEFEBVRE, 1971,

p.44). O romantismo revolucionário preconiza a compreensão para denunciar as alienações da vida

101 Texto original. Tradução do autor: “Organização deficiente”. 102 Texto original. Tradução do autor: “O momento da crise e da superação na consciência”. 103 Texto original. Tradução do autor: “Não é uma totalidade ideológica ou teórica, é a totalidade concreta dos possíveis” 104 Texto original. Tradução do autor: “Transformava o fetichismo e a alienação em critérios de autenticidade: a

possessão, a fascinação, o delírio”. 105 Texto original. Tradução do autor: “O homem em buscado passado”. 106 Texto original. Tradução do autor: “o homem em busca do possível”. 107 Texto original. Tradução do autor: “O romantismo revolucionário rejeita esta atitude. Precisamente em nome do

possível, ele proclama que nada de origem humana o deixa indiferente”.

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humana, busca determiná-las para expor suas feridas, no entanto, não implica um desdém à vida,

mas uma simpatia vivaz aos seres humanos. “Le romantisme révolutionnaire réconcilie la révolte

romantique avec l’humanisme intégral. Au lieu de l’exaltation voulue, il comporte une froideur –

apparente- corollaire de la fermeté dans l’opposition radicale à l’existant au nom du possible”108

(LEFEBVRE, 1971, p.44).

O romantismo revolucionário propõe uma “calma conveniente”, uma “frieza aparente”,

para compreender os processos de alienação da realidade, pretende ressignificar as mediações do

sonho, da imaginação e da ficção, anteriormente utilizados como fuga ao passado, para utilizá-las

como meios de investigação do possível. “Le nouveau romantisme maintient simultanément la

lucidité critique, l’emploi des concepts – et l’imagination, le rêve, en tant qu’investigation du

possible”109(LEFEBVRE, 1971, p.44).

Entretanto existe uma continuidade essencial entre o antigo romantismo e o romantismo

revolucionário, Lefebvre sintetiza sua análise afirmando que todo romantismo se funda sobre o

desacordo110, sobre o desdobramento e o dilaceramento, entretanto esses desdobramentos

tomam um sentido novo. A distância da realidade, do existente, característica do antigo

romantismo é tomada sob o signo do possível; a imagem e a ficção não serão mais opostas ao real,

108 Texto original. Tradução do autor: “O romantismo revolucionário reconcilia a revolta romântica com o humanismo

integral. No lugar de uma desejada exaltação, ele apresenta uma frieza – aparente – corolária da consistência na oposição

radical ao existente em nome do possível”. 109 Texto original. Tradução do autor: “O novo romantismo mantém simultaneamente a lucidez crítica, o emprego dos

conceitos – e a imaginação, o sonho, enquanto investigação do possível”. 110 Lefebvre aborda com mais cuidado o conceito de desacordo na primeira parte do texto, “I. La Conscience Critique

Radicale”, no subitem “a. Classicisme et néo-classicisme”, ao criticar os limites teóricos do Classicismo e do Neo-

classicismo que constituem “l’homme de l’accord forcé” (LEFEBVRE, 1971, p.33). O desacordo Lefebvriano parte da

afinidade eletiva com a obra de Eugen Berthold Anton Friedrich Brecht, a qual Lefebvre se refere como “l’oeuvre la plus

importante de notre époque”. Para o autor o teatro de Brecht implica “l’éloignement, il implique le désaccord et, par

conséquent, l’appréciation critique” com o presente. O desacordo em Brecht é contraposto ao acordo do Neo-classicismo

defendido por György Lukács (LEFEBVRE, 1971, p.32). Lefebvre já havia feito críticas a Lukács em uma conferência em

1955, ao analisar a obra "A Destruição da Razão", publicada em 1953, na qual Lukács defende que todo romantismo, a

partir do seu irracionalismo, tende a uma atitude reacionária, a qual serviu de base para a ideologia Nazista. Como já

abordamos, segundo os autores Löwy e Sayre, Lukács percorreu um “percurso atormentado e contraditório” em relação

ao romantismo (LÖWY; SAYRE. 2015, p.149).

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nem ao sonho e à ironia, mas serão adotadas como meios de investigação da realidade, do

existente.

Tout romantisme se fonde sur le désaccord, sur le dédoublement et le

déchirement. En ce sens, le romantisme révolutionnaire perpétue et même

approfondit les dédoublements romantiques anciens. Mais ces dédoublements

prennent un sens nouveau. La distance (la mise à bonne distance) par rapport à

l’actuel, au présent, au réel, à l’existant, se prend sous le signe du possible. Et

non au titre du passé, ou de la fuite .

Ce qui doit faire naître des formes nouvelles de l’ironie. On ne peut plus opposer

la fiction au réel accompli, ni le rêve ou l’ironie. La fiction comme l’image se

présentent bien plutôt comme des moyens d’investigation, pénétrant plus

essentiellement que la description dans le réel existant pour le saisir, le dire,

l’exprimer – pour s’en délivrer et le rejeter111(LEFEBVRE, 1971, p.46).

Lefebvre pontua o problema central, o problema pelo qual os outros problemas se situam

e se organizam, o qual traduz a “contradição fundamental”, o desacordo, o qual se realiza como

bloqueio à participação ao poder de transformação do homem sobre a natureza.

Des énormes moyens mis à notre disposition, que faire? et comment faire pour

que le pouvoir (des hommes sur la nature) devienne plus qu’un moyen : une

substance, une puissance partagée, à laquelle chacun puisse participer plus et

autrement que par le rêve et l’imagination ?

La contradiction fondamentale112, sous cet angle, se formule ainsi : l’illimité du

possible, de l’horizon ouvert, vient du pouvoir – et le pouvoir gigantesque des

hommes réunis sur la nature se traduit pour chacun d’eux en impuissance. Ce

pouvoir human se transforme encore – sous nos yeux, autour de nous, avec nous,

111 Texto original. Tradução do autor: “Todo o romantismo se funda sobre o desacordo, sobre o desdobramento e

estilhaçamento. Nesse sentido, o romantismo revolucionário perpetua e até mesmo aprofunda os desdobramentos

românticos antigos. Mas esses desdobramentos tomam um novo sentido. A distância em relação ao atual, ao presente,

ao real, ao existente, se apresenta sobre o signo do possível. E não a título do passado, ou da fuga.O que faz nascer novas

formas de ironia. Não se pode mais opor a ficção ao real consumado, nem o sonho ou a ironia. A ficção tal qual a imagem

se apresenta mais como meios de investigação, penetrando mais essencialmente eu a descrição no real existentes para

captá-lo, dizê-lo e exprimi-lo – para liberá-lo e rejeitá-lo”. 112 Grifo nosso.

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en nous, sur nous – en pouvoir de quelques hommes sur d’autres113(LEFEBVRE,

1971, p.47).

A potência humana de transformação da natureza a qual se realiza como impotência para

cada indivíduo, ganha um novo sentido no romantismo revolucionário, o qual propõe novas

contradições. Se a distância do real no romantismo antigo é apresentada pelos pares “sonho-vigília”

ou “sociedade-indivíduo”, ou “infância-adulto”, ou “o ser e o nada”, ou “convulsivo-fixo”, no

romantismo revolucionário são apresentados novos pares, “presença-distância”, “recusa-

aceitação”, “adaptação-inadaptação”, “desafio-humanidade”, ou ainda “parcial-total” (LEFEBVRE,

1971, p.47). A distância no romantismo revolucionário ganha o sentido da busca pelo possível, a

dialética do possível segundo Lefebvre, traz a consciência do possível-impossível, a qual substitui o

mito do “passado” e o da “fuga”.

Lefebvre défend dans cette optique um art « romantique révolutionnaire » qui

s’occuperaít de « [saisir] cette virtualité comme essentielle au présent ». En

d’autres termes, le nouveau romantisme s’occuperait de mettre au jour le

« possible impossible » (« la plénitude », « la comunication avec un langage

approprié »), son importance en regard du « possible possible » («s’installer dans

la vie bourgeoise », « chercher un job »)114(BRUN, 2014, p.334).

O novo romantismo proposto por Lefebvre “affirme le primat du possible-

impossible”115(LEFEBVRE, 1971, p.49), procura encontrar as contradições radicais no presente,

utiliza o virtual oposto ao real e ao mesmo tempo parte integrante do real para ampliar o horizonte

do possível.Após termos passado pelo movimento do pensamento de Lefebvre no texto analisado,

Vers un romantisme révolutionnaire, demonstraremos as afinidades eletivas entre Lefebvre e a

113 Texto original. Tradução do autor: “Os enormes meios colocados à nossa disposição, o que fazer? E como fazer para

que o poder (dos homens sobre a natureza) torne-se mais que um meio: uma substância, uma potência partilhada, sobre

a qual cada um possa participar mais e de forma diferente do que somente por meio do sonho e da imaginação? A

contradição fundamental, deste ângulo, se formula assim: o ilimitado do possível, do horizonte aberto, vem do poder –

e o gigantesco poder dos homens reunidos sobre a natureza se traduz para cada um deles em impotência. Este poder

humano se transforma ainda – sob nossos olhos, entorno de nós, conosco, dentro de nós, sobre nós – em poder de alguns

homens sobre outros”. 114 Texto original. Tradução do autor: “Lefebvre defende sob certa ótica uma arte “romântica revolucionária que se

ocuparia de “’captar essa virtualidade como essencial ao presente’. Em outros termos, o novo romantismo se ocuparia

de atualizar o ‘possível-impossível’ (‘a plenitude’, ‘a comunicação com uma linguagem apropriada’), sua importância em

torno do ‘possível-possível’ (‘se instala na vida burguesa’, ‘procurar um trabalho’)”. 115 Texto original. Tradução do autor: “Afirma a primazia do possível-impossível”.

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Internacional Situacionista a partir do conceito de “romantismo revolucionário”. Henri Lefebvre em

entrevista concedida à Kristin Ross, afirma:

Foi este texto que me colocou em contato com os situacionistas, porque eles

deram uma certa importância a ele, antes de atacá-lo mais tarde. Eles tiveram

suas críticas a fazer, é claro; nós nunca estávamos completamente de acordo,

mas o artigo foi a base para um certo entendimento que durou por quatro ou

cinco anos, e nós continuamos voltando a ele (ROSS, 1997, p.71)116.

É possível identificamos a referida base de entendimento entre Lefebvre e os situacionistas

ao compararmos as afinidades eletivas presentes nos textos Vers un romantisme révolutionnaire,

escrito em maio de 1957 e publicado em outubro do mesmo ano, e Rapport sur la construction des

situations et sur les conditions de l’organisation et de l’action de latendance situationniste

internationale, texto escrito e apresentado por Debord em julho de 1957, porocasião da

conferência de fundação da Internacional Situacionista em Cosio d’Arroscia. Segundo o autor Éric

Brun “On retrouve dans cette analyse du romantisme révolutionnaire les thèmes qui sont à l’origine

du concept de décomposition culturelle formé par Debord [...]”117(BRUN, 2014, p.334), entretanto

Brun faz referência ao texto Thèses sur la révolution culturelle, publicado um ano depoisna I.S. n°1.,

em 1958, no qual Debord critica o conceito de romantismo revolucionário, abordaremos essa

questão no capítulo dois. Discordamos de Brun, pelo fato do conceito chave de decomposição

cultural já estava presente no Rapport sur la construction des situations et sur les conditions de

l’organisation et de l’action de latendance situationniste internationale, no subitem intitulado “La

décomposition, stade suprême de la pensée bourgeoise”,logo corroboramos com a posição do autor

Patrick Marcolini que defende ter sido impossível o conhecimento prévio de ambos autores devido

à simultaneidade das publicações (MARCOLINI, 2007, p.9), além do fato de Debord ter publicado

dois meses antes de Lefebvre.

116ROSS, Kristin. Lefebvre on the Situationists: an interview. October, Cambridge, Mass., n°79, 1997, p.69-83. 117 Texto original. Tradução do autor: “Encontra-se nessa análise o romantismo revolucionário os temas que estão na

origem do conceito de decomposição cultural formulado por Debord”.

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Debord no Rapport sur la construction des situations [...], identifica os mesmos problemas

abordados por Lefebvre. Como vimos, o que Lefebvre identificaser o“vide actuel”, Debord

denomina de “crise essencial da história”, e complementa “Vivemos uma crise essencial da história,

em que a cada ano aparece mais nítido o problema da dominação racional das novas forças

produtivas, e da formação de uma civilização, em escala mundial” (DEBORD in JACQUES, 2003,

p.43). Afinidade eletiva da constatação da crise do ideal socialista cuja causa se deve aos fracassos

da política de “intelligentsia”, da qual Lefebvre desenvolve com mais propriedade enquanto a

análise de Debord é mais difusa, apontando algumas novas formas de luta do capitalismo

contrapostas aos “parciais sucessos locais” do movimento operário internacional, do qual destaca

o caso da revolução chinesa (DEBORD in JACQUES, 2003, p.43). Na identificada criseno campo da

cultura, as afinidades eletivas são mais evidentes.Lefebvre destaca a “problématique de l’art

moderne”118, como vimos, reflete seu esgotamento formal e a sua incapacidade de formular um

novo sentido. Debord denomina o fenômeno de “decomposição”, que reflete o “estilhaçamento da

cultura moderna” (DEBORD in JACQUES, 2003, p.43), processo pelo qual as sucessivas concepções

de mundo desmoronaram a partir da Segunda Guerra Mundial, resultando na perda de toda

coerência da ideologia da classe dominante; coexistência de ideais antagônicos que dificultam o

simples exercício do espírito crítico, já que qualquer juízo esbarra em outros, e cada um se refere a

restos de sistemas desativados, o que leva Debord a concluir “o objetivo principal da ideologia da

classe dominante é portanto a confusão” (DEBORD inJACQUES, 2003, p.44).

Para formular um novo sentido no campo da cultura Lefebvre e Debord recorrem à revisão

crítica dos movimentos artísticos precedentes, que nos revelam as afinidades e distanciamentos

das análises dos dois autores. A revisão de Debord se delimita ao século XX, enquanto Lefebvre

regressa ao século XVII. A crítica comum a ambos está relacionada ao Realismo Socialista, ao

Existencialismo e ao Surrealismo, a diferença é que Lefebvre estende o movimento da sua crítica

118 Texto original. Tradução do autor: “A problemática da arte moderna”.

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ao Classicismo francês e alemão, ao Neo-classicismo, ao Romantismo e aos gêneros artísticos

(romance, poesia, teatro, música, pintura e cinema). Nesse ponto, gostaríamos de retomar a tese

de Löwy e Sayre ao abordarem a continuidade do romantismo no século XX; os autores e

movimentos do século XX não se intitulam e tampouco são intitulados pelo termo romântico, em

alguns casos se posicionam como antirromânticos, porém, muitas vezes compartilham da visão

romântica de crítica ao capitalismo em nome do passado (LÖWY; SAYRE, 2015, p.191). Adotando-

se a premissa como verdadeira, podemos demonstrar pela amplitude da crítica de Debord que os

situacionistas não se reconhecem como um movimento romântico, nem admitem adotar valores

românticos. No entanto, Lefebvre os identifica como representantes do romantismo

revolucionário, categoria que será recusada pela I.S.. Essa é a primeira causa da recusa à categoria

de romantismo revolucionário lefebvriana que identificamos, a segunda abordaremos no segundo

capítulo.

No texto analisado, Debord concentra a sua crítica ao campo da cultura, à formulação do

conceito de decomposição cultural, o qual identifica o processo de esterilização dos antigos ideários

dos movimentos artísticos revolucionários119 e o início do seu período de repetição. Debord destaca

a progressão entre Futurismo, Dadaísmo e Surrealismo, os quais em seu início, continham a

vontade universalista de mudança. Entretanto, após os seus fracassos recuam para suas posições

doutrinárias. Os principais alvos de Debord serão as manifestações neo-dadaistas e o Movimento

Surrealista pós 1945, crítica que posteriormente servirá de base para formular o projeto

situacionista de supressão e realização da arte, o qual reside em uma nova aliança ente arte-política

revolucionária, que passa pela experimentação de novas maneiras de viver. Abordaremos as críticas

situacionistas à segunda geração do Movimento Surrealista no terceiro capítulo.

119 Os situacionistas denominam de recuperação o processo pelo qual “A ideologia dominante organiza a banalização das

descobertas subversivas e as difunde amplamente, depois de esteriliza-las. Consegue até servir-se dos indivíduos

subversivos: quando mortos, fazendo um uso equívoco de suas obras; quando ainda em vida, graças à confusão ideológica

geral, drogando-os com uma mística que ela mantém.”(DEBORDinJACQUES, 1957, p.44).

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Após termos abordado o conceito de decomposição cultural e o esforço de Lefebvre de

direcionar a função dos intelectuais revolucionários na cultura, podemos concluir que a I.S. se

define com uma autêntica vanguarda moderna, a qual estabelece um projeto estético-político

unitário. Debord no Rapport sur la construction des situations [...], é muito claro ao pontuar o

objetivo final da I.S., “Nossa primeira ideia: é preciso mudar o mundo. Queremos a mais libertadora

mudança da sociedade e da vida em que estamos aprisionados. [...] Nosso intuito é utilizar certos

meios de ação, e descobrir ainda outros, mas facilmente identificáveis na área da cultura e dos

costumes[...]”, define a fundação da I.S. como “a união de várias tendências experimentais a favor

de uma frente revolucionária na cultura, iniciada no congresso realizado em Alba, na Itália, no final

de 1956”. (DEBORD inJACQUES, 2003, p.43, p.53). No entanto, o engajamento pela cultura não

define a I.S. como um movimento pertencente à corrente de pensamento romântica, nos resta

identificar quais são os conteúdos, as afinidades eletivas com o ideário romântico revolucionário

que os vinculam.

Pretendemos demonstrar a nossa hipótese, a qual Henri Lefebvre e a I.S. pertencem à

tipologia do “Romantismo Revolucionário e/ou Utópico”, de tendência “marxista”, a partir do

conceito de desacordo. O conceito de romantismo revolucionário formulado por Lefebvre, como

vimos, pressupõe uma continuidade essencial entre o antigo romantismo e o romantismo novo, de

caráter revolucionário, “Tout romantisme se fonde sur le désaccord, sur le dédoublement et le

déchirement”120, defendemos que o conceito de desacordo carrega dois sentidos, o primeiro pela

experiência do dilaceramento121, o segundo é a reação provocada pela experiência, o sentido que

o indivíduo romântico dá aos seus desdobramentos. Como vimos, Lefebvre formula um novo

romantismo a partir do segundo sentido, dos desdobramentos da experiência de dilaceramento,

120 Texto original. Tradução do autor: “Todo romantismo se funda sobre o desacordo, o desdobramento e o

dilaceramento”. 121 Utilizamos a tradução do termo déchirement, dilaceramento, proposta pela tradutora Nair Fonseca no livro: LÖWY,

Michael; SAYRE, Robert. “Revolta e Melancolia: o romantismo na contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo,

2015.

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propõe que a reação do homem do antigo romantismo não seja mais a do “L’homme en proie au

passé”, mas passe a ser a do “L’homme en proie au possible”. Avançando na análise do antigo

romantismo, Lefebvre coloca o dilaceramento romântico em outros termos “la profonde rupture

entre l’objectif et le subjectif, le premier de ces termes désignant le ‘réel’ social établi, accompli (et

non la société en général), le second désignant la conscience, valorisée par le pressentiment (et non

le moi individuel isolément)”122 (LEFEBVRE, 1971,p.46). Debord formula como “o principal drama

afetivo da vida, após o perpétuo conflito entre o desejo e a realidade hostil ao desejo, parece ser a

sensação de passagem do tempo” (DEBORD inJACQUES, 2003, p.58) e Löwy e Sayre utilizam o termo

“cisão” ao definir o indivíduo romântico “o indivíduo romântico, por outro lado, é uma consciência

infeliz, perturbada pela cisão, procurando restaurar os laços felizes, únicos capazes de realizar seu

ser” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.49).

Löwy e Sayre aprofundam o debate na compreensão da luta romântica entre a

subjetividade criativa e a objetividade hostil capitalista. Retomam a formação do indivíduo

moderno - “indivíduo isolado”, o qual se funda a partir de uma importante contradição, a

modernidade capitalista constitui indivíduos independentes para exercer funções

socioeconômicas, entretanto quando esse reivindica sua individualidade subjetiva, ela se encontra

bloqueada, tolhida pelas relações capitalistas. É importante destacar que o “individualismo”

romântico é radicalmente oposto ao do liberalismo moderno. Löwy e Sayre recorrem às categorias

de “individualismo qualitativo” e “individualismo quantitativo” formuladas por Georg Simmel123

para os distinguir, “o individualismo romântico enfatiza o caráter único e incomparável de cada

personalidade – o que, segundo Simmel, conduz logicamente à complementariedade dos

indivíduos em um todo orgânico” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.48). A relação dialética entre realização

122 Texto original. Tradução do autor: “A profunda ruptura entre o objetivo e o subjetivo, o primeiro deles designando o

real social estabelecido, realizado (e não a sociedade em geral), o segundo designando a consciência, valorizada pelo

pressentimento (e não o eu individual isolado)”. 123 SIMMEL, Georg. O indivíduo e a liberdade. In: SOUZA, JESSÉ; ÖELZE, BERTOLD (Orgs.). Simmel e a modernidade. Brasília:

UnB, 1998. p.109.

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subjetiva individual e a complementar unidade ou a totalidade natural e coletiva, constituem a

riqueza e a complexidade dos valores qualitativos românticos, os quais são contrapostos ao valor

de troca. Para esclarecer a relação desses valores, podemos dizer que eles se organizam a partir de

dois polos opostos, mas não contraditórios. O primeiro como vimos, é moderno, o qual reivindica

a potência da subjetividade do indivíduo, busca a profundeza e a complexidade de sua afetividade,

e o exercício da liberdade de seu imaginário. O segundo é a busca do “eu” com a unidade de duas

totalidades abrangentes, a primeira representa a unidade cosmológica, ou a Natureza, e a segunda

a unidade antropológica, com a coletividade humana orgânica, “[...] se o primeiro é moderno,

embora se considere nostalgia, o segundo é um verdadeiro regresso”(LÖWY; SAYRE, 2015, p.49).

Löwy e Sayre destacam que a exaltação romântica da subjetividade não é a característica essencial

do romantismo, conforme recorrentemente assumido pela historiografia, mas uma das suas formas

de resistência, enquanto a busca pela constituição de uma nova coletividade revela-se o principal

desejo romântico “[...] porque o paraíso perdido é sempre a plenitude do todo – humano e

natural”(LÖWY;SAYRE, 2015, p.48).

O capitalismo suscita indivíduos independentes para cumprir funções

socioeconômicas; mas quando esses indivíduos se transformam em

individualidades subjetivas, explorando e desenvolvendo seu mundo interior,

seus sentimentos particulares, entram em contradição com um universo baseado

na estandardização e na reificação. E quando reivindicam o livre trâmite de sua

faculdade de imaginação, esbarram na extrema platitude mercantil do mundo

engendrado pelas relações capitalistas. Nesse aspecto, o romantismo representa

a revolta da subjetividade e da afetividade reprimidas, canalizadas e deformadas

(LÖWY; SAYRE, 2015, p.47).

Lefebvre e a I.S. pertencem à corrente de pensamento romântica porque vivem o

desacordo engendrado pela sociedade moderna, são sensíveis à experiência do dilaceramento, a

força das suas propostas parte da potência da revolta da subjetividade. Raoul Vaneigem formula

essa potência pelo termo subjetividade radical, a qual define como “[...] subjetividade radical: a

consciência de que todos os homens obedecem a uma mesma vontade de realização autêntica, e

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que a sua subjetividade se reforça com essa vontade subjetiva descoberta nos outros”124(VANEIGEM,

2016, p.247), e a união dos homens reunidos pela solidariedade desse desejo comum se intitula

Internacional Situacionista.

Ninguém pode reforçar a subjetividade sem a ajuda dos outros, sem a ajuda de

um grupo que se tornou ele próprio um centro de subjetividade, um reflexo fiel

da subjetividade dos seus membros. A Internacional Situacionista é até hoje o

único grupo decidido a defender a subjetividade radical (VANEIGEM, 2016,

p.276)125.

Retomando o problema central, do qual Lefebvre pontua ser a “contradição fundamental”,

a qual defendemos ser a questão central para entendermos a especificidade do ideário da I.S., e o

novo sentido que Lefebvre propõe para o romantismo – romantismo revolucionário, é a proposta

de apropriação do poder pela subjetividade radical. Como vimos “[...] l’illimité du possible, de

l’horizon ouvert, vient du pouvoir – et le pouvoir gigantesque des hommes réunis sur la nature se

traduit pour chacun d’eux en impuissance”126(LEFEBVRE, 1971, p.47). Entretanto, qual é a amplitude

do termo “poder” que Lefebvre dá aos homens reunidos sobre a natureza? Delimitando-nos ao

texto analisado, Lefebvre ao tratar da dialética do possível-impossível indica o seu sentido

abrangente, o qual divide em três esferas, da técnica127, do Estado e da riqueza. “Le possible-

impossible (le plus lointain). La participation de l’homme et de la femme quotidiens à la puissance

accumulée dans les sphères de la technique, de l’Etat, de la richesse”128(LEFEBVRE, 1971, p.49). Em

contraposição ao nível “le plus lointain”, quando Lefebvre se refere ao momento presente “le grand

fait nouveau, essentiel, dans le moment présent [...]”129(LEFEBVRE, 1971, p.47), enfatiza a

124 Para esclarecer a definição de subjetividade radical, Vaneigem cita o filósofo dinamarquês Søren Aabye Kierkegaard

(1813-1855), o qual trata sobre o tema da “vida autêntica”. Kierkegaard é considerado o precursor do existencialismo e

está diretamente ligado ao romantismo, para saber mais sobre sua relação como o romantismo ver o artigo: VIALLANEIX,

NELLY. Kierkegaard romantique. In: Romantisme, 1974, n°8. Écriture et désir. p.64-85. (www.persee.fr/doc./roman). 125 VANEIGEM, Raoul. A arte de viver para as novas gerações. São Paulo: Veneta, 2016. 126 Texto original. Tradução do autor: “a infinitude do possível, do horizonte aberto, vem do poder – e o gigantesco poder

dos homens reunidos sobre a natureza se traduz para cada um deles em impotência”. 127 Limitamos as nossas análises à apropriação da esfera da técnica, a qual está diretamente ligada ao ideário da I.S. 128 Texto original. Tradução do autor: “O possível-impossível (o mais distante). A participação do homem e da mulher

cotidiana cotidianos à potência acumulada nas esferas da técnica, do Estado e da riqueza”. 129 Texto original. Tradução do autor: “o grande novo fato, essencial, no momento presente”.

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apropriação da esfera da técnica porque ela contém a potência para abrir o horizonte do possível.

Entretanto, como vimos, “[...] les techniques posent seulement des problèmes, ouvrent des

possibilités, mais ne déterminent que des formes vides de substance”130(LEFEBVRE, 1971, .30),

Lefebvre propõe disputar um novo sentido para a potência imanente à técnica, a qual deve ser

apropriada para abrir as possibilidades do caráter problemático do vivido, da vida cotidiana.

A ruptura entre a potência imanente à técnica e a ausência de um novo programa

revolucionário na cultura o qual formule novas possibilidades de organização da vida, contém o

próprio conceito de decomposição e o esforço da I.S. para criar um novo programa de ação o qual

possa realizar a revolução da vida cotidiana. A I.S. tem como objetivo criar novos desejos que

estejam de acordo com as possibilidades técnicas do seu tempo.

A revolução não consiste somente em saber a que nível de produção chega a

indústria pesada, nem em quem será o seu dono. Além da exploração do homem,

devem ser extintas as paixões, as compensações e os hábitos dela decorrentes.

Precisam ser definidos novos desejos, de acordo com as possibilidades de hoje.

Já se devem encontrar, no auge da luta entre a atual sociedade e as forças que a

vão destruir, os primeiros elementos de uma construção superior do meio, bem

como novas condições de comportamento (DEBORD inJACQUES, 2003, p.58).

Portanto a I.S. é uma vanguarda que pertence à tipologia do “Romantismo Revolucionário

e/ou Utópico”, porque luta pela abertura do possível a partir da pulsãodo desejo, além das

afinidades eletivas já discorridas, e de tendência “marxista”131, porque disputa o sentido dos meios

modernos de produção para a elaboração e a realização dos novos desejos, em outras palavras a

questão não é colocar o desejo ao serviço da técnica, mas a técnica ao serviço do desejo. Utilizando

os próprios termos situacionistas, a I.S. se define como frente revolucionária na cultura que luta

130 Texto original. Tradução do autor: “as técnicas nos colocam somente problemas, abrem as possibilidades, mas

determinam somente formas vazias de conteúdo, substância”. 131 Como vimos o que distingue o romantismo marxista é a preocupação central com algumas questões essenciais do

marxismo como a luta de classes, o papel do proletariado como classe universal emancipadora e a possibilidade de utilizar

as forças produtivas modernas em uma economia socialista. Defendemos que a principal questão que relaciona a I.S. a

essa tendência, é o seu projeto de revolução cultural ligado às possibilidades das novas forças produtivas.

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pelas formulação e realização de novos desejos, utopia concreta relacionada às possibilidades dos

novos meios superiores de domínio da natureza.

Após termos discorrido sobre as afinidades eletivas entre Lefebvre e a I.S., as quais

estabelecem a “base de entendimento” entre Debord e Lefebvre, presentes nos textos Vers un

romantisme révolutionnaire e Rapport sur la construction des situations [...], podemos avançar para

pontuarmos a importância do termo cultura e do conceito de decomposição, sintetizados pela I.S.

um ano depois no texto Définitions, no qual se apresentam as definições dos termos do seu

programa de ação. Esses estão ao lado de situação construída, psicogeografia, deriva, urbanismo

unitário, desvio, entretanto são raramente discutidos pelos principais autores especialistas no

tema.

Cultura: Reflexo e prefiguração, em cada momento histórico, das possibilidades

de organização da vida cotidiana; complexo da estética, dos sentimentos e dos

costumes, pelo qual uma coletividade reage sobre a vida que lhe é objetivamente

dada pela economia. (Definimos esse termo apenas na perspectiva da criação de

valores, e não na do seu ensino).

Decomposição: Processo pelo qual as formas culturais tradicionais se

autodestruíram, sob o efeito do aparecimento de meios superiores de domínio

da natureza, permitindo e exigindo construções culturais superiores. Faz-se a

distinção entre uma fase ativa da decomposição, demolição efetiva das velhas

superestruturas – que cessa por volta de 1930 – e uma fase de repetição, que

prevalece desde então. O atraso na passagem da decomposição para as

construções novas está ligado ao atraso existente na liquidação revolucionária

do capitalismo (I.S. inJACQUES, 2003, p.66).

A I.S. como frente revolucionária na cultura, carrega o sentido de formular novas

“possibilidades de organização da vida cotidiana” e destacamos o seu carácter de resistência, como

“modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana” o qual “reage

sobre a vida que lhe é objetivamente dada pela economia” (I.S. inJACQUES, 2003, p.65), definições

que se complementam e esclarecem o principal exercício realizado pelos situacionistas, a deriva, o

qual abordaremos no terceiro capítulo.

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Depois de termos demonstrado a nossa primeira hipótese e esclarecido as afinidades

eletivas entre Lefebvre e os situacionistas, nos resta analisarmos suas divergências, em primeiro

lugar pela divergência da própria definição de romantismo revolucionário formulado por Lefebvre

contraposta a de Löwy e Sayre, e em segundo lugar pela recusa da I.S. ao romantismo

revolucionárionos termos lefebvrianos. Como já abordamos, a diferença do conceito de

romantismo revolucionário concebido por Lefebvre está na relação de distância em relação ao

presente que o romantismo estabelece, não mais a título do “passado ou de fuga”, mas sob o signo

do possível-impossível; entretanto Löwy e Sayre defendem que em todo romantismo mesmo o

revolucionário, a nostalgia do passado está presente. Portanto, abordaremos agora no segundo

capítulo, a presença da nostalgia romântica na teoria da I.S. e nas formulações de Lefebvre, depois

trataremos das diferenças entre Lefebvre e a I.S.

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2Cap

As afinidades eletivas entre Henri Lefebvre e a

Internacional Situacionista

2.1 - A nostalgia presente no pensamento de Henri Lefebvre e da

Internacional Situacionista.

2.2 - Henri Lefebvre e a Internacional Situacionista, uma história

de amor que terminou mal.

2.3 - Da crítica à revolução da vida cotidiana: uma análise da

miséria e riqueza da vida cotidiana.

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2Cap

As afinidades eletivas entre Henri Lefebvre e a

Internacional Situacionista

2.1 - A nostalgia presente no pensamento de Henri Lefebvre e da

Internacional Situacionista.

2.2 - Henri Lefebvre e a Internacional Situacionista, uma história

de amor que terminou mal.

2.3 - Da crítica à revolução da vida cotidiana: uma análise da

miséria e riqueza da vida cotidiana.

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2.1 - A nostalgia presente no pensamento de Henri Lefebvre e da

Internacional Situacionista.

Como vimos no primeiro capítulo, Lefebvre e a I.S. são românticos revolucionários, porque

formulam suas críticas à modernidade capitalista industrial a partir de valores românticos,

entretanto a crítica romântica tem um segundo fator fundamental, uma tonalidade particular, a

experiência de uma perda. “[...] No real moderno uma coisa preciosa foi perdida, tanto no nível do

indivíduo quanto no da humanidade” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.43). A partir do conceito de

romantismo revolucionário formulado por Löwy e Sayre, pretendemos verificar a hipótese que

tanto Lefebvre quanto a I.S. compartilham da nostalgia do passado, apesar de a negarem. É irônico

verificar que esse era o único consenso entre Lefebvre e a I.S. em relação ao romantismo

revolucionário, o qual uma oposição consequente ao capitalismo não podia se fazer da retomada

do passado.

Lefebvre em 1961 retoma o debate sobre o romantismo no texto Vers un nouveau

romantisme?, escrito entre setembro de 1959 e maio de 1961 e publicado em 1962 no livro

Introdução à Modernidade132. No texto é possível verificar uma mudança de posição de Lefebvre

em relação às suas formulações no campo da arte, em consequência das críticas realizadas pelos

situacionistas ao seu primeiro texto de 1957 Lefebvre as assimila e decreta “Eu creio pois na morte

da arte” e esclarece “A questão que eu formulo concerne à atividade criadora, e ao ponto em que

nós estamos na história da arte” (LEFEBVRE, 1969, p.403). O texto começa com uma citação do

romancista romântico Stendhal (Marie Henri Beyle) “Il faut du courage pour être romantique, car il

faut hasarder”133, retirada do livro Racine et Shakespeare publicado em 1827, do “Chapitre III - Ce

132LEFEBVRE, Henri. Introdução à Modernidade. Trad. Jehovanira Chrysóstomo de Souza. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra,

1969. 133 Texto original. Tradução do autor: “É preciso coragem para ser romântico, pois é preciso arriscar”.

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que c'est que le Romantisme”134 (STENDHAL, 1827, p.23-24). Lefebvre adota a análise desenvolvida

por Stendhal como ponto de partida para a sua análise crítica da modernidade, se refere ao livro

como “[...] um livro de crítica vital, [...] onde ele julga os hábitos e costumes da Restauração”; o que

particularmente interessa Lefebvre são as “grandes mudanças na literatura e na arte de viver”

(LEFEBVRE, 1969, p.277) que Stendhal anunciou entre 1820 e 1825. Lefebvre propõe estabelecer

uma analogia entre o espírito de contestação do ano de 1961 e o período da restauração

conservadora, no qual Stendhal anunciou um outro movimento, impulsionado pelos indivíduos que

tiveram suas almas sacudidas pela Revolução Francesa. Esses revolucionários enfraquecidos pela

sua derrota se amparavam no romantismo nascente com o desejo de mudar a poesia, a literatura

e a vida inteira (LEFEBVRE, 1969, p.278). “Stendhal não se preocupava com a Arte pela Arte. Ele

ignorava essa teoria que ele considerou pedante. Ele acreditava na Beleza, promessa de felicidade,

e na Arte pelo prazer, preparação ao amor, lembrança dos amores, ficção amorosa trançada com a

vida” (LEFEBVRE, 1969, p.405). São os românticos que propõem aos parisienses e aos franceses o

que Lefebvre julga ser “[...] a coisa mais difícil do mundo: refletir sobre o hábito, discutir o hábito

[...]”(LEFEBVRE, 1969, p.280), assim como são eles que se colocam diante do problema da

verdadeira vida. O que servirá de base para Lefebvre formular a sua crítica da vida cotidiana e suas

vias de superação, que passam no campo da cultura pela possibilidade de uma nova “atitude”, uma

outra vida, uma arte de viver.

Lefebvre no final do texto formula suas questões no formato de um diálogo entre um leitor

denominado senhor A e senhor B, para esclarecer as suas posições, Lefebvre representa o senhor

B. A questão da presença da nostalgia na sua formulação do romantismo revolucionário é

questionada pelo senhor A, o qual Lefebvre agradece a oportunidade de esclarecer suas afinidades

com as ditas sociedades primitivas e confessa “[...] entediam-me um pouco e aborrecem-me

quando me acusam de primitivismo” (LEFEBVRE, 1969, p.421).

134 STENDHAL. Racine et Shakespeare. Paris: Librairie A. Hatier, 1827.

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Senhor A. - [...] Os românticos curvavam-se para a Idade-Média e os clássicos para

a Grécia. Não ireis voltar atrás até as sociedades ditas primitivas? Não vos deixam

elas uma nostalgia, como se elas tivessem podido deter o segredo de uma

felicidade que nós deixamos perder? Não é o sentido de vosso recuo diante do

crescimento econômico, e das questões que fazeis à sociedade técnica e

industrial? Não é o segredo de vosso gosto pelos Símbolos? Pela Utopia? [...]”

(LEFEBVRE, 1969, p.420).

Para responder a questão Lefebvre recorre à leitura do seu curriculum vitae o qual se

intitula “’Curriculum Vitae’ do Senhor B. Utopista, Ex-filósofo (Não, Perdão: Filósofo Crítico da

Filosofia)” (LEFEBVRE, 1969, p.421). Seu currículo inicia com sua data de nascimento, cerca de 1505,

sua origem famíliar era rica mas modesta, sua aldeia natal na França se localizava próxima a ponte

que transpunha o rio Gave, o qual separava “os Bascos de seus irmãos inimigos, os Bearneses”. Faz

elogios à vida social orgânica, comunitária, direta e unitária do período, que não havia conhecido

ainda o “grande rôlo compressor, o Estado” (LEFEBVRE, 1969, p.421).

[...] o Estado, o vosso, o de Paris e dos Franceses, dos Reis e das Repúblicas, não

tinha ainda passado sobre essas regiões; ele ainda não tinha nivelado e

esmagado; a burguesia, com suas manias classificadoras e segregativas, não tinha

ainda separado os países, as idades, os sexos, os ofícios e as artes. Se eu detesto

o Estado, se eu odeio a burguesia, não é unicamente porque eu me lembro desses

tempos comparáveis à Idade de Ouro135, mas é muito em nome dessas

lembranças (LEFEBVRE, 1969, p.421).

Após o final da leitura do currículo, questionado pelo senhor A sobre a sua falta de

objetividade, Lefebvre formula as mesmas ideias na forma de duas teses enumeradas, retoma o

embate entre o classicismo e o romantismo que está na base de sua formulação do romantismo

revolucionário. “Primeiramente, o classicismo liga-se a uma sociedade fortemente estruturada e

fechada, isto é, ao Estado, como a ontologia à burocracia” (LEFEBVRE, 1969, p.427), enquanto o

romantismo nasce como reação a essa base de centralização estatal, no século XVIII, o qual tentou

recuperar alguma coisa da vitalidade e da espontaneidade perdida. “Segunda tese: houve no

135Grifo nosso.

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passado períodos relativamente felizes, no século XIII, talvez, depois na primeira metade do século

XVI. Se é verdade, eu sou numa certa medida um homem do século XVI” (LEFEBVRE, 1969, p.428).

Após se assumir como um homem do século XVI o Senhor A o acusa “Eis-nos! O romantismo do

arcaico!” (LEFEBVRE, 1969, p.428); Lefebvreo contrapõe afirmando “A nostalgia dos Paraísos

perdidos, da Repetição, da pura Natureza, parece-me absurda” (LEFEBVRE, 1969, p.428), não se

trata de uma fuga reacionária ao passado, ou de uma melancolia imobilizadora, mas de reencontrar

a unidade da vida nas civilizações pré-capitalistas perdidas para servir de apoio para a construção

da utopia futura. Lefebvre utiliza como referência o comunismo primitivo preconizado por Marx,

como já discorremos no capítulo 01.

Senhor A. – Assim mesmo, quando vós discorreis sobre o estilo de vida, sobre a

dialética do jogo e do sério, sobre os momentos, sobre o estilo no gozo e no amor,

vós retomais certos traços de certas culturas ou civilizações pré-capitalistas.

Senhor B. – E por que não? Não seria um grande erro de Marx? O comunismo

desenvolvido devia, para ele, retomar, a um nível superior, o comunismo

primitivo, o costume substituindo o direito e a lei, o gozo abolindo a economia

dita política, a sabedoria suplantando a filosofia especulativa, o indivíduo

florescendo, subordinando pouco a pouco o social a seus desejos e

transbordando assim a moralidade (objetiva e subjetiva) como a imoralidade

(LEFEBVRE, 1969, p.430).

A nostalgia em Lefebvre está claramente expressa quando ele retoma a sua experiência no

Vale de Campan.

[...] eu não lamentarei nunca ter conhecido, num canto periférico da província

francesa, formas de vida arcaicas, ou seus últimos traços. Aprendi muito lá.

Compreendi o que podia ser uma ordem humana, na qual o homem não se

separaria do mundo, nem a consciência do ser, unidade fecunda (LEFEBVRE,

1969, p.429).

Ordem humana que não se separa do mundo, ou melhor, que se recusa a aceitar a

separação e a fragmentação da vida imposta pela modernidade capitalista. Segundo Lefebvre na

sua interpretação de Marx, a Filosofia, a Arte, a Política, assim como a Religião, que é o seu exemplo

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mais evidente, são atividades especializadas, separadas da vida cotidiana as quais devem

desaparecer quando ocorrer “[...] ‘a apropriação real’ do homem pelo homem, a apropriação pelo

homem social da natureza e de sua própria natureza [...]” a volta do humano a si mesmo o qual se

apropria de toda “[...] ‘a riqueza do desenvolvimento’, riqueza que viria assim reinvestir-se na

prática cotidiana” (LEFEBVRE, 1969, p.409), esse é o sentido do romantismo revolucionário

formulado por Lefebvre.

O homem individual real, escreveu Marx, absorverá o homem abstrato; na sua

vida e suas relações reais; ele se tornará verdadeiramente humano quanto

‘reconhecer suas próprias forças’ como suas forças sociais, e quando ele parar de

separá-las dele. [...] Marx pensava que os homens um dia viverão praticamente

suas vidas cotidianas encontrando assim o que talvez cumpriram certas

sociedades desaparecidas; eles compreenderão o mundo sensível com os olhos

cultos, amarão com sentidos formados pela arte de viver, em vez de referirem-

se a objetos, as obras de arte. Para que a vida se torne arte de viver, a arte deve-

se perder e encontrar-se na vida (LEFEBVRE, 1969, p.408-409).

Portanto, não se trata de um retorno ao passado, ou de um primitivismo, mas de combater

as fragmentações, as separações, as representações, as mediações, as especializações, para se

restabelecer a unidade das relações humanas diretas entre os homens edestes com a natureza.

“Seguramente, eu não creio que a humanidade reencontrará a felicidade sexual [...] ou o brilho

mitológico da cultura Hopi. Portanto, a ideia de que relações diretas entre natureza e os homens,

uma espontaneidade nova sobre bases novas [...]” (LEFEBVRE, 1969, p.429). Para se estabelecer

essas novas bases é preciso a partir da práxis investigar novos estilos de vida que buscam

reencontrar a potência humana. O Senhor A questiona Lefebvre, “Vós partis pois de uma

antropologia?” (LEFEBVRE, 1969, p.429), ele responde dialeticamente, “sim e não”, sim - porque se

trata de compreender o “fenômeno humano total”, sim - porque o fracasso do romantismo,

segundo Lefebvre, se dá ao dissociar o princípio antropológico do cosmológico. “[...] O estudo do

antigo romantismo mostrou seu erro e a razão – uma razão – dos seus fracassos: a fetichização do

princípio cosmológico, uma vez dissociado do princípio antropológico” (LEFEBVRE, 1969, p.429).

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Não, pelo fato da antropologia ser uma ciência parcelar para Lefebvre a qual tende “[...] a separar

o homem da natureza, em vez de partir de sua unidade dialética, isto é conflitual” (LEFEBVRE, 1969,

p.431).

Em resumo, eu não creio nem no ser, nem na essência, nem na existência do

homem isoladamente. Eu penso que existe apesar dos equívocos ligados a esse

termo uma “natureza humana”, isto é, uma natureza e uma humanidade

inseparáveis mas num tal conflito que a extrema abstração e a extrema

artificialidade e a extrema alienação da natureza reencontra-se sobre o caminho

do homem. Esta “natureza humana” cria-se, praticamente, tateando, a partir da

natureza, ao encontro de uma outra natureza ou melhor uma natureza-outra,

através de muitas necessidades e muitos acasos, frequentemente indiscerníveis

(LEFEBVRE, 1969, p.431).

Práxis e Utopia essas são as palavras de ordem de Lefebvre para constituir uma “natureza-

outra”, não é por acaso que como vimos ele se intitula “utopista, ex-filósofo (não, perdão: filósofo

crítico da filosofia)”, para Lefebvre a utopia deixa de ser uma antecipação, uma profecia, uma ideia

abstrata e passa a ser resignificada como método de investigação do possível-impossível, a práxis

se realiza como estudo da prática social e como tentativa concreta no vivido, eis a importância dada

ao estilo de vida, a uma vida-outra. Lefebvre deixa explícito a sua ligação à corrente de pensamento

do “romantismo revolucionário e/ou utópico”, de tendência do “romantismo marxista”.

Segundo o pensamento mais profundo de Marx, a filosofia resume-se na práxis e

na utopia, quero dizer no estudo da prática social e na dos possíveis, os dois

esclarecendo-se um ao outro. Eis porque, foi dada, nas páginas que bem

quisestes ler, tanta atenção à utopia romântica, ao romantismo como maneira

de viver utopicamente, ao socialismo utópico que acompanhou em surdina o

romantismo literário (LEFEBVRE, 1969, p.409).

Assim como Lefebvre a Internacional Situacionista possui um grande interesse pelos povos

antigos e civilizações primitivas. Segundo a autora Mirella Bandini, Asger Jorn e Pinot Giuseppe

Gallizio eram artistas e arqueólogos. Gallizio havia escavado sistematicamente a área neolítica em

torno de Alba a partir dos anos trinta, encontrando numerosas peças da idade da pedra, do bronze

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e do ferro, atualmente expostas nos Museus arqueológicos de Alba e Turin. Além de arqueólogo,

era um amante de cultura popular, de folclore, de antropologia e povos nômades; como membro

do conselho municipal pelo “groupe de la gauche indépendante”, de 1946 à 1960, Gallizio militou

por um espaço destinado aos acampamentos ciganos o qual foi consagrado pelo município,

atenuando o antigo problema dos ciganos localizados na margem do rio Tanaro (BANDINI, 1998,

p.327). Jorn, além de arqueólogo, era especialista em cultura popular e etnologia, foi o primeiro

dinamarquês a decifrar as “cornes d’or” dinamarquesas cujos documentos ele publica em 1957 no

livro “Guldhorn og Likkehjul”136, acompanhado de uma teorização sobre a universalidade das

culturas populares da Dinamarca e sua sobrevivência em diversos mitos (BANDINI, 1998, p.333).

Jorn, segundo o autor Patrick Marcolini, quando ainda estava ligado à I.S., em 1960, organizou e

trabalhou na publicação de uma significativa obra sobre arte pré-histórica, com ajuda do professor

Peter Vilhelm Glob, arqueólogo e antropólogo dinamarquês, o qual era coordenador chefe do

museu de Antiguidades Nacionais (MARCOLINI, 2013, p.187).

Jorn revela sua nostalgia do tempo original e do homem em simbiose com a natureza

durante o período de sua formação intelectual e engajamento nos movimentos COBRA e

Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista – M.I.B.I. Segundo o autor Nicola Pezolet,

Jorn formula uma interpretação da história da humanidade a partir de duas fontes, marxista e

milenarista, interpretação em que mobilizou leituras não ortodoxas dos autores Friedrich Engels,

do dinamarquês Peter Vilhelm Glob e do historiador Lewis Henry Morgan, o qual como vimos, serviu

de referência para Marx e Engels estudarem as formações pré-capitalistas exemplares, distintas do

sistema feudal, a comunidade primitiva exaltada pelos românticos tradicionalistas. Segundo Jorn, a

história se divide em três períodos polarizada em seus dois extremos, o início, a época pré-histórica

onde procura identificar manifestações de sociedades comunistas primitivas; o fim, a sociedade

comunista futura a ser construída e o meio que a bloqueia, a sociedade moderna dividida em

136 Tradução em francês “La roue de la fortune. Méthodologie des cultes”(BANDINI. 1998, p.333). Tradução livre do autor

“A roda da fortuna. Metodologia dos cultos”.

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classes. Jorn busca encontrar nas sociedades primitivas “l’archétype de la société communiste

future”137 (PEZOLET, 2008, p.65), exemplos de organizações sociais orgânicas, de organização

política direta, sem a mediação do Estado, de organização espacial não sedentária, de produção

econômica não monetária, “[...] à l’époque préhistorique, les humains vivaient dans une société Ur-

socialiste, c’est-à-dire une société primordiale, sans classes sociales, dans laquelle les gens

pouvaient s’épanouir librement et s’adonner aux activités de leur choix sur une base ludique”138

(PEZOLET, 2008, p.65). Entre o comunismo primitivo e o comunismo futuro, duas sociedades

“réellement unitaires”139 e “organiques”140, Jorn propõe combater a sociedade dividida em classes

a qual, no limite, legitima a divisão entre mestres e escravos. Crítica nostálgica do presente

claramente romântica revolucionária, com a qual Jorn entrou em contato através do sindicalista

dinamarquês Christian Christensen, no período em que militaram na resistência comunista,

segundo Pezolet.

A corrente francesa que culminará na formação da I.S., a Internacional Letrista (I.L.),

formada em 1952 a partir da dissidência com o movimento Letrista, a qual se posicionou na sua

formação como a “esquerda letrista”, fundada por Guy Debord, Mohamed Dahou, André-Frank

Conord, Jacques Fillon, Gil J. Wolman, Patrick Straram, revela a sua nostalgia pelo passado ao

intitular de Potlatch o seu boletim de informação141. Potlatch é o nome dado ao ritual indígena

praticado pelas tribos da costa noroeste do Canadá e Alaska, no qual comunidades indígenas

137 Texto original. Tradução do autor: “O arquétipo da sociedade comunista futura”. 138 Texto original. Tradução do autor: “No período pré-histórico, os humanos viviam em uma sociedade Ur-socialista, quer

dizer uma sociedade primordial, sem classes sociais, na qual as pessoas podiam desenvolver-se livremente e se entregar

às atividades de sua escolha sobre uma base lúdica”. 139 Texto original. Tradução do autor: “Realmente unitárias”. 140 Texto original. Tradução do autor: “Orgânicas” 141No início, Potlatch é apresentado como “Boletim de informação do grupo francês da Internacional Letrista”, dos

números um a vinte e um; depois como “Boletim de informação da Internacional Letrista”, dos números vinte e dois a

vinte e nove. Ao longo dos cinco anos de existência da I.L., foram lançados vinte e nove números do boletim, o primeiro

número é publicado em junho de 1954 e o último em novembro de 1957, após a formação da Internacional Situacionista,

em julho do mesmo ano. Entretanto, dois anos depois, em 1959, foi lançado o número trinta de Potlatch, apresentado

como “Boletim de informação da Internacional Situacionista”, o qual foi o primeiro e o último de uma nova série. A

proposta era publicar mais uma série do boletim sob a direção da Internacional Situacionista. Porém, o projeto não foi

levado adiante (DEBORD, 1996, p.7).

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antagônicas se encontram para festejar e se desafiarem. Entretanto, a rivalidade presente na

cerimônia não se manifesta em lutas ou guerras, mas na destruição da própria riqueza acumulada

pelo líder da tribo. Dessa forma, o outro chefe desafiado precisava destruir um número superior de

suas riquezas para superar a posição hierárquica do rival. Durante a cerimônia não apenas ocorria

a destruição de bens, mas também se realizavam iniciações de jovens, sessões xamânicas,

casamentos, comércio rotineiro e cultos religiosos. (PEIRANO, 2003, p.13). O significado da palavra

Potlatch é apresentado pela primeira vez pela I.L. em novembro de 1954, no boletim número

quatorze, sob a forma irônica de uma enquete intitulada “Pequena homenagem ao modo de vida

americano”.

Petit hommage au mode de vie américain

Qui est Potlatch ?

1.Un espion soviétique, principal complice des Rosenberg, découvert en 1952 par

le F.B.I. ?

2.Une pratique du cadeau somptuaire, appelant d’autres cadeaux en retour, qui

aurait été le fondement d’une économie de l’Amerique précolombienne ?

3.Un vocable vide de sens inventé par les lettristes pour nommer une de leurs

publications? 142(DEBORD, 1996, p.7)143.

Segundo Peter Wollen, o ritual é descrito pelo antropólogo Franz Boas e depois por Marcel

Mauss, em seu livro Essai sur le don, publicado em 1924. A ideia de Potlatch fascinou tanto Georges

Bataille, que trata o tema da civilização da dádiva e da gratuidade em seu livro La Part maudite

publicado em 1949, quanto Claude Lefort, membro do grupo Socialismo ou Barbárie, que revisou o

livro de Mauss em Les Temps Modernes. Na análise de Lefort, Potlatch representava a oposição à

economia de mercado e de troca, os objetos eram tratados como presentes sumptuosos ao invés

de mercadorias, generosidade e abundância eram contrapostas ao egoísmo, ao princípio de

142 Texto original. Tradução do autor: “Pequena homenagem ao modo de vida americana.Quem é Potlatch?

1.Um espião soviético, principal cúmplice de Rosemberg, descoberto em 1952 pelo FBI?

2.Uma prática de oferta sumptuosa, que remete à reciprocidade e que foi a fundamento de uma economia na América

Pré-colombina?

3.Um vocábulo vazio de sentido inventado pelos letristas para nomear/intitular uma de suas publicações?” 143 DEBORD, GUY. Guy Debord présente Potlatch (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996.

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acumulação e à economia racionalista de recursos, dentro de um contexto de uma festa popular

(WOLLEN, 1989, p.89). Se na origem do seu significado Potlatch é “[...] d’une forme pré-commerciale

de la circulations des biens, fondée sur la réciprocité de cadeaux somptuaires. Les biens non

vendables qu’un tel bulletin gratuit peut distribuer, ce sont des désirs et des problèmes inédits; et

seul leur approfondissement par d’autres peut constituer un cadeau en retour”144 (DEBORD, 1996,

p.283). O boletim era uma publicação simples a qual jamais foi vendida, distribuída para as pessoas

que a solicitavam e outras escolhidas pela redação para produzir o maior efeito, seja de informação

ou provocação, entre elas estavam Albert Camus e André Breton. Os objetivos eram de propaganda

revolucionária no período de decomposição cultural e de estabelecer novas ligações com grupos

de crítica cultural de vanguarda para reunificar uma nova organização revolucionária de pesquisa

“d’une nouvelle culture, et d’une nouvelle vie”145, base sobre a qual se formará a I.S. (DEBORD, 1996,

p.8). A I.S. carregará o princípio do Potlatch adicionado à ação do “détournement” ao longo de suas

práticas.

Além de Potlatch, Debord tem grande interesse por períodos históricos pré-capitalistas

como o início do século XVI e, principalmentepelo declínio da Idade Média.Segundo Marcolini suas

referências políticas prediletas são Machiavel, Guichardin, La Boétie, e poéticas são François Villon,

Charles d’Orléans e Jorge Manrique (MARCOLINI, 2007, p.8). No documento Géographie Littéraire,

eleborado no início dos anos 1970, Debord lista em um atlas de 1930, os autores que julgava ser os

mais relevantes por país, destaca em caixa alta na Alemanha, Hegel, Marx, Novalis, Clausewitz; na

França, Montaigne, Stendhal, Lautréamont, em caixa baixa Rimbaud, Apollinaire, Proust, Breton;

na Inglaterra em caixa alta, Shakespeare, Swift, em caixa baixa, Th. de Quincey, Lewis Carroll, entre

144Texto original. Tradução do autor : “[...] uma forma pré-comercial de circulação de bens, fundada sobre a reciprocidade

de presentes sumptuosos”, para a I.L., o boletim Potlatch significava “os bens não vendáveis que o boletim gratuito pode

distribuir, são desejos e problemas inéditos; e só o seu aprofundamento por outros pode constituir a retribuição do

presente”. 145Texto original. Tradução do autor: “De uma nova cultura, e de uma nova vida”.

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muitos outros (DEBORD, 2006, p.1290)146. No livro Mémoires, escrito por Debord em parceria e a

convite de Jorn, elaborado em 1958 e publicado em 1959, concebido por Debord como um “anti-

livro” composto apenas de imagens e citações desviadas, também é possível encontrar algumas de

suas referências românticas. Debordem 1986, revela as fontes de quase todos os desvios que o

compõem, divulgando o manuscrito sob o título de “Origines des détournements indiquées, autant

que possible, en mars 1986”147 (DEBORD, 2004)148, nesse podemos encontrar diversas citações de

William Shakespeare, Charles Baudelaire, Edgar Allan Poe, entre outros.

Em 1978, no filme In girum imus nocte et consumimur igni, Debord escolhe a metáfora da

“busca do Graal” para evocar a história da I.S., “[...] cette poursuite d’un autre Graal néfaste [...]

Avions-nous à la fin rencontré l’objet de notre quête? Il faut croire que nous l’avions au moins

fugitivement aperçu; [...] qu’à partir de là nous nous sommes trouvés en état de comprendre la vie

fausse à la lumière de la vraie [...]”149 (Debord, 2006, p.1378- p.1379), e compara a errância dos

Cavaleiros da Távola Redonda como referência simbólica para as experiências de derivas urbanas

situacionistas. No prefácio à quarta edição italiana do livro “A sociedade do espetáculo”, escrito em

1979, Debord ao expor as dificuldades e as árduas tarefas para a revolução constituir e manter uma

sociedade sem classes, evoca as cidades históricas de Atenas e Florença, se apoia na antiguidade

grega e na república italiana da Renascença para indicar a possibilidade de construção da sociedade

revolucionária futura.

Ela pode começar com facilidade onde assembleias proletárias autônomas, que

não reconheçam fora delas nenhuma autoridade ou propriedade de quem quer

que seja, que coloquem sua vontade acima de todas as leis e de todas as

especializações, abolirem a separação dos indivíduos, a economia mercantil, o

Estado. Mas ela só triunfará ao se impor universalmente, sem deixar uma parcela

146 DEBORD, Guy. Oeuvres. Ed. Annotée par Jean-Louis Rançon et Alice Debord, pref. et intr. Vicent Kaufmann. Paris:

Gallimard, 2006. 147 Tradução do autor: “Origens dos desvios indicados, assim que possível, em março de 1986”. 148 DEBORD, Guy; JORN, Asger. Mémoires. Paris: Allia, 2004. Texto original. 149 Texto original. Tradução do autor: “Essa busca de um outro Graal nefasto [...]. Nós tínhamos, ao fim, reencontrado o

objeto de nossa busca? É preciso acreditar que nós o havíamos ao menos brevemente visto; [...] somente a partir daí nós

nos encontramos em um estado de compreensão da vida falsa sob a luz daquela verdadeira”.

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de território a nenhuma forma subsistente de sociedade alienada. Então, será

possível rever uma Atenas ou uma Florença na qual ninguém será rejeitado,

ampliada até os confins do mundo; e que, tendo abatido todos os seus inimigos,

poderá entregar-se com júbilo às verdadeiras dissensões e aos embates sem fim

da vida histórica (DEBORD, 1997, p.162).

Para compreendermos a nostalgia presente no ideário situacionista, os ciganos são uma

referência chave, porque eles foram os mediadores imaginários em relação aos povos antigos que

os fascinavam e inspiravam. Os ciganos são adotados como um exemplo concreto da presença

anacrônica de uma organização social pré-capitalista presente na sociedade industrial burguesa, os

quais demonstram que uma outra vida, ainda que marginal, ainda era possível (MARCOLINI, 2013,

p.188). A corrente romântica da crítica social situacionista, se destaca ao procurar na organização

social cigana uma de suas referências, utilizando os termos de Lefebvre, os resíduos da

modernidade, a demonstração concreta que um modo de vida situacionista era praticável, ou seja,

nômade, comunitário, sem estado, resistente à civilização do trabalho e do capital. O estilo de vida

cigano apresenta características inversas à organização social capitalista, a vida comunitária é

contraposta ao individualismo burguês, sua economia de subsistência é contraposta à economia de

acumulação, a vida está ligada ao presente contraposta ao princípio de previsão e planejamento,

seu nomadismo, mobilidade e dispersão são contrapostos ao sedentarismo e concentração, a sua

diversidade cultural decorrente da capacidade de adaptação local é contraposta á uniformidade, a

unidade social a partir da solidariedade entre os seus membros é contraposta ao princípio de

competição (LIÉGEOIS, 2009, p.86)150.

Apesar da sociedade moderna ter forçado os ciganos a uma certa sedentarização,

tornando-se inviável a sua subsistência como povos coletores, eles resistem a se disciplinarem pela

cultura do trabalho própria à sociedade burguesa. Para os situacionistas o nomadismo cigano

representa a recusa a se submeter ao estado-nação, às suas fronteiras e à propriedade privada,

150 LIÉGEOIS, Jean-pierre. Roms et Tsiganes. Paris: La Découverte, 2009.

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esses preferem deslizar e escapar à sua normatização, se misturando temporariamente aos

cidadãos submetidos ao estado. A vida comunitária absorve grande parte do seu tempo e o espírito

de poupança e de racionalização dos recursos é contraposto ao espírito da festa, do gozo e da

abundância. “Dès qu’il a de l’argent en poche, il cesse d’en chercher” 151(MARCOLINI, 2013, p.189).

Como vimos, Galizio conviveu diretamente com os ciganos em Alba, situação que

proporcionou a oportunidade para Constant estabelecer contato com os ciganos e apreender o seu

modo de vida. Sensibilizado com a precariedade das instalações do acampamento e de sua

condição, em algumas situações, insalubre, Constant passou a refletir sobre um projeto de

habitação para eles que respeitasse o estilo de vida cigano, uma arquitetura que correspondesse à

sua organização social, ou seja, temporária, que tira partido de estruturas, mínima, composta de

elementos móveis os quais podem ser montados e desmontados, facilitando o seu transporte. O

projeto de uma cidade situacionista, denominada de Nova Babilônia, concebido por Constant em

1956, a qual ele trabalhará até 1974, é a retomada dessa inovação formal e conceitual para um

acampamento cigano, porém transposta ao fenômeno urbano e à humanidade inteira, viabilizada

pela potência de apropriação da técnica e da tecnologia que possibilita o funcionalismo, entretanto

direcionada ao seu uso libertador.

Constant elabora a ideia de uma cidade suspensa sobre pilares, a qual deve ser concebida

como uma construção espacial contínua cuja extensão pode variar do tamanho equivalente a um

bairro ou até uma metrópole, na qual são empregados todos os recursos técnicos e tecnológicos

que a humanidades dispõe, a imagem de um acampamento nômade em escala planetária. Ela

cresceria de maneira rizomática de acordo com a vontade e criatividade de seus habitantes,

tomando a forma de uma gigantesca rede metálica. Nova Babilônia se constituiria de várias

camadas: subsolo, térreo, múltiplos andares e terraços, assim como no sentido da arquitetura

funcional, a circulação de veículos e transporte passariam por baixo, no subsolo, no térreo ou pelos

151 Texto original. Tradução do autor: “A partir do momento em que há dinheiro no bolso, ele pára de procurá-lo”.

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terraços. Os andares suspensos seriam destinados à habitação, aos lazeres e espaços públicos

móveis, “permitindo modificações de uso segundo as necessidades do momento”. Todos os

andares seriam interconectados por escadas e elevadores de fácil acesso, facilitando as futuras

derivas e os frequentes encontros não programados dos seus moradores. Os terraços seriam

destinados aos espaços ao ar livre propícios à prática de esporte, ao cultivo da vegetação e áreas

de aterrissagem para o transporte aéreo. Logo, a organização espacial de Nova Babilônia maximiza

os desejados espaços sociais e os possíveis relacionamentos humanos. (I.S. n°3 In JACQUES, 2OO3,

p.115)

Portanto, Nova Babilônia é um exemplo paradigmático da especificidade do ideário

situacionista, porque converge seu inquestionável desejo de apropriação do progresso técnico-

científico e o seu interesse pelos povos primitivos, na análise de Marcolini “[...] fascination pour le

progrès technique et une nostalgie souterraine pour les sociétés nomades traditionnelles, dont les

gitans étaient le symbole [...]”152(MARCOLINI, 2013, p.176). Como já vimos no capítulo um, a disputa

pela potência técnica da modernidade reflete a afinidade eletiva situacionista com o conceito de

romantismo revolucionário lefebvriano o qual destaca “[...] les techniques posent seulement des

problèmes, ouvrent des possibilités, mais ne déterminent que des formes vides de

substance”153(LEFEBVRE, 1971, P.30). A disputa pelo sentido do progresso técnico-científico

presente no projeto de Nova Babilônia é descrito pelo autor Mark Wigley como uma “hiper-

arquitetura do desejo”, na qual a automatização integral da produção industrial é adotada como o

suporte material da vida dos seus futuros habitantes, liberando a energia humana para a realização

de novos desejos (WIGLEY, 1998)154.

152 Texto original. Tradução do autor: “Fascínio pelo progresso técnico e uma nostalgia profunda pelas sociedades

nômades tradicionais, nas quais os ciganos eram símbolo”. 153 Texto original. Tradução do autor: “As técnicas trazem somente problemas, abrem possibilidades mas determinam

apenas formas vazias de conteúdo” 154 WIGLEY, Mark. Constant's New Babylon: The hyper-architecture of desire. Rotterdam: 1998.

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Lefebvre no livro Metaphilosophie, publicado em 1965, no capítulo três “Abertura do

Testamento – Inventário da herança”, retoma as fontes da ideia da superação da divisão do

trabalho da corrente de pensamento marxista. O socialista utópico Charles Fourier é o ponto de

partida para pensar a superação da divisão do trabalho, a qual Lefebvre considera “[...] tão

importante quanto a descoberta, na práxis capitalista, da mais-valia [...]” (LEFEBVRE, 1967,

p.165)155. Segundo Lefebvre, Fourier imaginava essa superação em função do trabalho agrícola,

concebido como trabalho por excelência. A vida nos falanstérios era organizada em função do

original e do retorno às origens naturais do homem, cuja superação da divisão do trabalho se

apresentava como a futura reconciliação entre homem e natureza (LEFEBVRE, 1967, p.166).

Entretanto, Fourier não formulou sobre a superação no trabalho industrial. “A imagem do passado

projeta-se na direção do futuro; a memória do que foi o homem antes da divisão do trabalho

transforma-se em projeto de superação. Resta mostrar a possibilidade dessa superação no trabalho

industrial, pensa-lo, leva-lo ao conceito. É o que fez Marx” (LEFEBVRE, 1967, p.166). Segundo

Lefebvre, Marx enquanto economista e historiador, deu maior amplitude à teoria da divisão do

trabalho, o qual dividindo-se torna-se técnico e social ampliando as suas contradições. As

separações do trabalho se multiplicam entre os sexos, entre a cidade e o campo, entre o trabalho

manual e o trabalho intelectual, entre as exigências técnicas dos instrumentos e as exigências

sociais da produção organizada, entre os grupos e as classes (LEFEBVRE, 1967, p.166). Lefebvre e

os situacionistas, a partir da crítica da superação da divisão do trabalho em Fourier, apostarão na

automação do trabalho industrial como possibilidade de superação do trabalho tecnicamente

dividido e lutarão por um estilo de vida que supere a divisão social do trabalho.

Quanto à superação da divisão do trabalho na produção industrial, supõe

primeiramente que as máquinas assumam o trabalho tecnicamente dividido, e,

em segundo lugar, uma cultura, um estilo de vida que supere a divisão social do

trabalho. O que pressupõe a supressão de classes na sociedade, deixando

155 LEFEBVRE, Henri. Metafilosofia. Trad. e introdução Roland Corbisier. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

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subsistir apenas as desigualdades provenientes de diferenças irredutíveis entre

os indivíduos e os grupos (LEFEBVRE, 1967, p.166).

Raoul Vaneigem, dois anos após a dissolução da I.S. em 1974, sob o pseudônimo de

Ratgeb156 escreveu o livro “Da greve selvagem à autogestão generalizada”157, o qual tem como

objetivo responder aos problemas práticos que mobilizam a passagem da sociedade de classes a

uma sociedade de autogestão generalizada. De forma panfletária e direta, Vaneigem direciona suas

análises aos operários revolucionários os quais, segundo ele, devem combater as alienações para

que tudo o que é produzido na vida cotidiana a ela possa retornar, desviada para enriquecê-la

permanentemente. No capítulo um, formula questões que visam as recusas mais vulgares,

conscientes ou não dos operários, para ampliar os seus sentidos. Na quarta pergunta deixa claro o

sentido do desvio situacionista dos meios de produção industrial.

4. Já alguma vez teve a intenção de se servir da máquina com que trabalha, para

fabricar um objeto, do qual fará uso fora da fábrica?

Nesse caso, compreendeu que:

b) O princípio do desvio consiste em virar contra o inimigo as técnicas e as armas

que ele emprega contra nós.

d) A paixão da criatividade quer ser tudo. Como destruição do sistema mercantil

e como construção da vida quotidiana ela é a paixão que contém todas as outras.

O desvio das técnicas, em proveito da criação feita por todos é, portanto, a única

maneira de acabar com o trabalho e com as separações que a todos os níveis ele

reflete (manual-intelectual; trabalho-lazer; teoria-prática; indivíduo-sociedade;

ser-parecer...) (RATGEB, 1974, p.18).

156 Vaneigem escolhe o pseudônimo de Ratgeb, inspirado pelo pintor alemão Jörg Ratgeb (1480 - 1526), o qual foi líder

do movimento camponês radical Bundschuh, responsável pela revolta de Rustauds em 1525. Ratgeb era conselheiro do

príncipe alemão e após ter lutado ao lado dos camponeses foi acusado de traição e esquartejado em Pforzheim

(VANEIGEM; BERRÉBY, 2014, P.362). 157 RATGEB. Da greve selvagem à autogestão generalizada. Lisboa: Assírio & Alvim, 1974.

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No texto “Os Situacionistas e a Automatização”, Asger Jorn destaca que a I.S. está

consciente dos problemas ocasionados pela produção industrial na alienação do trabalho,

entretanto expõe as suas contradições.

A automatização possui assim duas perspectivas opostas: retira do indivíduo

qualquer possibilidade de acrescentar algo de pessoal à produção automatizada

que é uma fixação do progresso, e ao mesmo tempo economiza energias

humanas maciçamente liberadas das atividades reprodutivas e não ‘criativas’. O

valor da automatização depende, portanto, dos projetos que a ultrapassam e que

liberam novas energias humanas num plano superior (I.S. n°1 In JACQUES, 2OO3,

p.75).

Asger Jorn reflete, “A ideia de padronização é um esforço para reduzir e simplificar, de

modo mais equitativo, o maior número de necessidades humanas”; o problema não é inerente à

técnica e à tecnologia, mas qual será a sua apropriação. “Conforme o resultado, pode-se chegar ao

total embrutecimento da vida humana ou à descoberta permanente de novos desejos” (I.S. n°1 In

JACQUES, 2OO3, p.77). Na perspectiva situacionista a automatização da produção e a socialização

dos bens vitais vão diminuir gradativamente a necessidade do trabalho e darão enfim completa

liberdade ao homem. Logo, liberado de toda responsabilidade econômica, a nova perspectiva do

homem será o “homo ludens”158, conceito elaborado pelo historiador e linguista holandês Johan

Huizinga, adotado pelos situacionistas por representar a libertação do homem pela prática do jogo.

Conforme a interpretação da I.S., “A libertação pelo jogo é sua autonomia criativa, que supera a

antiga divisão entre o trabalho imposto e os lazeres passivos” (I.S. n°4 In JACQUES, 2OO3, p.126).

Huizinga também é reconhecido por seus estudos e interesse por organizações sociais pré-

capitalistas e pela crítica à cultura da civilização moderna. Inicalmente, tornou-se conhecido em

1919 com a publicação do livroO Outono da Idade Média: estudo sobre as formas de vida e de

158Conceito cunhado por Johan Huizinga o qual reconhece o jogo como algo inato à natureza do homem. “O jogo é uma

atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo

regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um

sentido de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da vida cotidiana” (HUIZINGA, 1993, p.33).

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pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos, e mais tarde, já em 1938, pela

publicação da obraHomo Ludens: o jogo como elemento da cultura.

Segundo Jorn, conforme for gradativamente diminuindo o trabalho necessário à produção

pela ampliação da automatização, irão surgir novas necessidades de lazer e uma diversidade de

novos comportamentos, os quais levarão a uma mudança de natureza desses comportamentos que

forçosamente constituirá uma nova noção de habitar. Constant complementa a análise de Jorn ao

destacar que o simples aumento do tempo livre dos indivíduos, proporcionado pela automatização,

não levará à revolução dos lazeres e aos “jogos superiores”, é necessário à subversão do

condicionamento, a apropriação e o uso experimental dos meios técnicos, caso contrário apenas

se ampliarão as técnicas da sociedade do espetáculo para multiplicar “os pseudo-jogos da

passividade e do estilhaçamento social (televisão)”, alienando o trabalhador desocupado (I.S. n°3

In JACQUES, 2OO3, p.116).

Retomando as afinidades entre os situacionistas e os ciganos, além de Gallizio e Constant,

Guy Debord e Alice Becker-ho, sua segunda esposa, mantiveram contato estreito com os ciganos.

Debord, em um episódio em 1971, participa de um ritual medieval no qual misturou seu sangue ao

de um cigano, este marcava a fidelidade absoluta a um companheiro de armas. No início dos anos

80, Debord manteve amizade com o cineasta do povo cigano Tony Gatlif o qual homenageou

Debord em alguns de seus filmes. Alice Becker-ho, estudou a origem histórica dos ciganos na europa

no livro Les Princes du jargon159, publicado em 1990, no qual identifica a Idade Média como o

período no qual os ciganos pela primeira vez na europa se misturam com as classes ditas

perigosas.Desse encontro se desenvolverá o dialeto argot, o qual permanecerá como gíria comum

entre os subversivos europeus no século XX (MARCOLINI, 2013, p.187). Raoul Vaneigem também

realiza estudos sobre a Idade Média e a Renascença, no seu livro Le Mouvement du Libre-esprit.

Généralites et témoignages sur les affleurements de la vie à la surface du Moyen Âge, de la

159 BECKER-HO, Alice. Les Princes du jargon. Paris: Éditions Gérard Lebovici, 1990.

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Renaissance et, incidemment, de notre époque, publicado em 1986, no qual identifica um conjunto

de manifestações de heresias entre os séculos XIII e XVI. Vaneigem destaca, sobretudo, o

movimento dos Frères du Libre-Esprit, os quais propunham uma unidade entre o mundo e o homem

tal como Deus encarna nele. Logo, como representantes diretos de Deus esses propõe revogar a

autoridade da igreja recusando toda forma de culpa e de pecado, os quais devem direcionar suas

vidas à livre realização dos seus desejos (VANEIGEM, 2005)160. Vaneigem em entrevista concedida

à Gérard Berréby, afirma que o situacionista Attila Kotányi foi quem o apresentou aos textos dos

frères et soeurs du Libre-Esprit, o que chamou sua atenção por ser um movimento antireligioso em

uma época tradicionalmente vista como profundamente religiosa (VANEIGEM, 2014, p.99)161.

Kotányi também compartilhava do interesse pelas heresias, tema que influenciou diretamente

Vaneigem que ainda publicou entre 1993 e 1996 os livrosLa Resistance Au Christianisme e Les

Heresies, des origines au XVIII siecle.

Como pudemos demonstrar, Lefebvre e os situacionistas apesar de negarem a sua nostalgia

romântica pelo passado, compartilham da nostalgia pelas sociedades pré-capitalistas que contém

os valores contrários às alienações modernas. Eles não propunham reproduzir em uma sociedade

comunista futura o modo de vida dos ciganos, dos cavaleiros medievais ou dos homens do

paleolítico, mas se apoiam nesses exemplos para formular um futuro e novo estilo de vida

desalienado. Posição que se alinha à visão de mundo romântica revolucionária formulada por Löwy

e Sayre, “A visão romântica toma um momento do passado real, no qual as características funestas

da modernidade ainda não existiam e os valores humanos sufocados por ela ainda existiam, e

transformam-no em utopia, moldam-no como encarnação das aspirações românticas” (LÖWY;

SAYRE, 2015, p.44). A afinidade eletiva entre Lefebvre e os situacionistas em pensar as

possibilidades as quais a unidade do homem anterior à divisão do trabalho possa ser formulada, a

160VANEIGEM, Raoul. Le Mouvement du Libre-esprit. Généralites et témoignages sur les affleurements de la vie à la surface

du Moyen Âge, de la Renaissance et, incidemment, de notre époque. Toulouse: L’or des fous, 2005. 161VANEIGEM, Raoul; BERRÉBY, Gérard. Rien n’est fini, tout commence. Paris: Allia, 2014.

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partir da apropriação do progresso técnico-científico, encobre a sua busca em encontrar a poesia

da revolução no passado da humanidade, a qual Marcolini chama de “[...] une tendance plus

secrète, plus effective [...]”162(MARCOLINI, 2013, p.191). Logo, a nostalgia não pode ser mais

interpretada “[...]au titre du passé, ou de la fuite”163(LEFEBVRE, 1971, p.46), ter o gosto pelo

passado torna-se condição fundamental para a construção da utopia romântica revolucionária

futura.

2.2 - Henri Lefebvre e a Internacional Situacionista, uma história

de amor que terminou mal.

A partir dos doze boletins da Internacional Situacionistas, publicados de 1958 a 1969,

identificamos os textos que estabelecem um diálogo com o filósofo e sociólogo Henri Lefebvre,

inclusive nos trechos em que o mencionam, mesmo que rapidamente. Nosso objetivo é identificar

nesse conjunto de textos os momentos históricos nos quais Lefebvre e os situacionistas

estabeleceram uma aproximação teórica e pessoal, na tentativa de mapear as suas relações e

afinidades eletivas. Além 12 boletins, utilizamos principalmente as análises dos autores Remi Hess,

no livro Henri Lefebvre et l’aventure du siècle(1988), Éric Brun, no livro Les Situationnistes, une

avant-garde totale(2014), e Patrick Marcolini, no livro Le mouvement situationniste : une histoire

intellectuelle (2013), os quais tratam dessa relação de forma mais extensa e criteriosa. Com base

nas declarações de Henri Lefebvre, corroboradas por Remi Hess, identificamos que o livro Critique

de la vie quotidienne. Tome I, Introduction, publicado no ano de 1947, o artigo Vers un romantisme

révolutionnaire, publicado no ano de 1957, e o artigo Vers un nouveau romantisme?o qual ele

162 Texto original. Tradução do autor: “Uma tendência mais concreta, mais efetiva”. 163 Texto original. Traduçãod do autor: “A título do passado, ou da fuga”

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retoma a análise do tema, publicado em 1962, são as principais obras que ressoaram no ideário do

movimento da Internacional Situacionista, fundado no ano de 1957 e dissolvido em 1972.

Henri Lefebvre em entrevista concedida à Kristin Ross164, no ano de 1983, na Universidade

da Califórnia em Santa Cruz, comenta que a sua relação com os situacionistas começou antes da

formação do movimento. Já no período do Grupo COBRA, 1948-1951, manteve relações com os

pintores Asger Jorn e Constant Nieuwenhuys, e afirma que “[...] um dos livros que inspirou a

fundação do grupo foi o meu Crítica da Vida Cotidiana. Por isso, estive envolvido com eles desde

muito cedo” (ROSS, 1997, p.70). O autor Remi Hess também cita a relação próxima que Lefebvre

mantinha com o pintor Constant (HESS, 1988, p.220), e segundo o autor Éric Brun, o interesse de

Lefebvre pela Internacional Situacionista se dá de início pela crítica situacionista ao funcionalismo

na arquitetura (BRUN, 2014, p.335). No entanto, segundo Lefebvre, será a partir da publicação do

seu artigo Vers un romantisme révolutionnaire, publicado na La Nouvelle Revue Française, em

outubro de 1957, que entrará em contato diretamente com Debord.

Segundo Éric Brun, o livro Critique de la vie quotidienne. Tome I, Introduction, publicado em

1947, é um esforço de situar o marxismo na superação das utopias das vanguardas literárias da

primeira metade do século XX. Este já antecipa grandes temas situacionistas. Este esforço de

Lefebvre não é surpreendente pelo fato de antes de se converter ao marxismo, ter mantido contato

direto com o Movimento Surrealista entre as duas grandes guerras, época na qual animava a revista

Philosophies. Lefebvre estabelece uma continuidade entre essas duas tradições, romantismo e

marxismo.

Lefebvre explique ainsi que la finalité du marxisme n’est pas une intensification

de la production économique (cette intensification serait plutôt un moyen), mais

de « recréer lucidement la vie quotidienne ». Comme Guy Debord après lui, il

pense le progrès comme l’élaboration par l’Homme de certaines techniques lui

164ROSS, Kristin.Lefebvre on the Situationists: an interview. October, Cambridge, Mass., n°79, 1997, p.69-83.

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permettat 'de se comprendre, d’orienter ses passions, de diriger sa

vie »165(BRUN, 2014, p.333).

Segundo Remi Hess, Debord ao se aproximar de Lefebvre o influenciará a “[...] sair da teoria

para entrar em uma prática de um tipo novo”, enquanto Lefebvre influenciará Debord ao ponto de

Hess afirmar que a Internacional Situacionista é fundada a partir do ideário crítico de Lefebvre

(HESS, 1988, p.211).

No primeiro boletim da Internacional Situacionista, junho de 1958, Debord publica o texto

Thèses sur la révolution culturelle, as quais são construídas em referência às teorias de Lefebvre,

entretanto é o primeiro momento no qual Debord critica e recusa o conceito de romantismo

revolucionário lefebvriano. Como vimos no capítulo um, ao compararmos os textos Vers un

romantisme révolutionnaire e Rapport sur la construction des situations [...]”, constatamos que a

I.S. recusa o conceito de romantismo revolucionário lefebriano ou mesmo a se identificar à

categoria de movimento romântico, pela sua crítica da decomposição cultural estar limitada as

vanguardas do século XX. A crítica específica ao conceito de romantismo revolucionário lefebvriano,

que podemos identificar como a segunda causa, é formulada explicitamente na tese cinco, a qual

Debord acusa Lefebvre de “[...] faire de la simple expression du désaccord le critère suffisant d’une

action révolutionnaire dans la culture” 166(I.S., n°1, 1958, p.21). Os situacionistas reconhecem a

importância do conceito de desacordo, o qual como vimos é uma das suas afinidades eletivas com

a própria definição de romantismo “tout romantisme se fonde sur le désaccord”167(LEFEBVRE, 1971,

p.46), entretanto os situacionistas reivindicam um programa de ação, nos seus próprios termos “la

découverte de moyen d’action culturels”168(I.S., n°3, 1959, p.4), o qual Lefebvre não formula em

165 Texto original. Tradução do autor: “Lefebvre explica como a finalidade do marxismo não é uma intensificação da

produção econômica (essa intensificação seria sobretudo um meio) mas uma finalidade de “recriar lucidamente a vida

cotidiana”. Lefebvre, assim como Guy Debord quando por ele inspirado, acredita no progresso como elaboração do

homem de certas técnicas que o permitiu “se compreender, orientar suas paixões e conduzir sua vida”. 166 Texto original. Tradução do autor: “[...]fazer da simples expressão do desacordo o critério suficiente de uma ação

revolucionária na cultura”. 167 Texto original. Tradução do autor: “Todo romantismo se funda sobre o desacordo”. 168 Texto original. Tradução do autor: “A descoberta de meios de ação culturais”.

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seus textos. Debord critica Lefebvre por apenas proclamar a expressão do desacordo nas formas

artísticas já existentes, enquanto os situacionistas propõem um possível novo campo de ação

cultural fora das expressões artísticas propriamente ditas, as quais devem construir situações a

partir do emprego libertador dos meios técnicos modernos.

Tese 5 :

Nous sommes séparés pratiquement de la domination réelle des pouvoirs

matériels accumulés par notre temps. La révolution communiste n’est pas faite

et nous sommes encore dans le cadre de la décomposition des vieilles

superstructures culturelles. Henri Lefebvre voit justement que cette

contradiction est au centre d’un désaccord spécifiquement moderne entre

l’individu progressiste et le monde, et appelle romantique-révolutionnaire la

tendance culturelle qui se fonde sur ce désaccord. L’insuffisance de la conception

de Lefebvre est de faire de la simple expression du désaccord le critère suffisant

d’une action révolutionnaire dans la culture. Lefebvre renonce par avance à toute

expérience de modification culturelle profonde en se satisfaisant d’un contenu :

la conscience du possible-impossible (encore trop lointain), qui peut être

exprimée sous n’importe quelle forme prise dans le cadre de la

décomposition169(I.S., n°1, 1958, p.21).

A crítica de Debord à expressão da consciência do possível-impossível a partir das formas

culturais existentes dirigida a Lefebvre é a mesma posição que levou Debord a romper com o

movimento Letrista (1946). Isidore Isou formulou uma crítica de oposição completa a todo

movimento estético conhecido dentro da literatura, entretanto “[...] ao admitir que as disciplinas

estéticas podiam ter novo alento num contexto semelhante ao antigo, cometeu um erro idealista

que limitou suas produções a algumas experiências medíocres” (Debord In JACQUES, 2OO3, p.51).

Ruptura que funda a Internacional Letrista (1952-1957), organizada pelo grupo discidente o qual

169 Texto original. Tradução do autor: “Nós somos praticamente separados da dominação real dos poderes materiais

acumulados em nosso tempo. A revolução comunista não foi feita e nós ainda nos enquadramos na decomposição das

velhas superestruturas culturais. Henri Lefebvre vê justamente que essa contradição está no centro de um desacordo

especificamente moderno entre o indivíduo progressista e o mundo, e chama de romântico-revolucionária a tendência

cultural que se funda sobre o desacordo. A insuficiência da concepção de Lefebvre é fazer da simples expressão do

desacordo o critério suficiente de uma ação revolucionária na cultura. Lefebvre renuncia antes a toda experiência de

modificação cultural profunda satisfazendo-se com um conteúdo: a consciência do possível-impossível (ainda muito

distante), que pode ser expressa sobre qualquer forma tomada no âmbito da decomposição”.

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anunciava ser a esquerda letrista, para prosseguir “[...] entre vivas lutas das diferentes tendências,

a busca de novos procedimentos de intervenção na vida cotidiana” (Debord In JACQUES, 2OO3,

p.52). Na tese 7, Debord retoma a crítica enfatizando que os situacionistas só serão românticos

revolucionários no sentido de Lefebvre se falharem em realizar um programa de intervenção na

vida cotidiana.

Tese 7:

Dans le monde de la décomposition nous pouvons faire l’essai mais non l’emploi

de nos forces. La tâche pratique de surmonter notre désaccord avec le monde,

c’est-a-dire de surmonter la décomposition par quelques constructions

supérieures, n’est pas romantique. Nous serons des ‘romantiques-

révolutionnaires’, au sens de Lefebvre, exactement dans la mesure de notre

échec170 (I.S., n°1, 1958, p.21).

No Boletim n°3, dezembro de 1959, no texto Le sens du dépérissement de l’art, a I.S. se

posiciona em relação aos autores, Lucien Goldmann, Dionys Mascolo e Henri Lefebvre, que

formulam análises sobre o campo da cultura a partir do materialismo dialético171. Apesar de

reconhecerem nas análises desses autores posições progressitas no momento histórico onde a

“ideologia da esquerda se perde no confucionismo”, os situacionistas indicam sua insuficiência ou

a sua ausência em duas questões principais: “[...] l’organisation d’une force politique, la découverte

de moyens d’action culturels” 172(I.S., n°3, 1959, p.4), as quais para o autor Remi Hess, são questões

essenciais para a teoria situacionista (HESS, 1988, p.214). Ao longo do texto, os situacionistas

também criticam o artigo Justice et vérité e o livro La somme et le reste, publicados no mesmo ano,

ambos de autoria de Lefebvre. No artigo Justice et vérité, publicado na revista Arguments173,

Lefebvre considera a história humana como a passagem e a abolição sucessiva de diversas esferas:

170 Texto original. Tradução do autor: “No mundo da decomposição nós podemos testar mas não empregar nossas forças.

A função prática de sobrepor nosso desacordo com o mundo, quer dizer de sobrepor a decomposição através de algumas

construções superiores, não é romântica. Nó seremos românticos -revolucionários, no sentido de Lefebvre, exatamente

na medida de nosso fracasso”. 171 Éric Brun destaca a presença da crítica de Lucien Goldmann no ideário situacionista a partir do texto Le matérialisme

dialectique est-il une philosophie?, redigido em 1947 e publicado em Recherches Dialectiques, em 1959. p.337. 172 Texto original. Tradução do autor: “Organização de uma força política, a descoberta dos meios de ação culturais”. 173 Arguments, “Justice et vérité”, 1959, III, n°15.

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o cósmico, o materno, o divino, mas também a filosofia, a economia, a política e enfim a arte. A I.S.

acusa a revista Arguments de pregar uma “Science-fiction de la pensée révolutionnaire” 174. Debord

cita como exemplo os poemas de Lefebvre em La somme et le reste, que não apresentam nenhuma

novidade formal e seguem um modelo histórico de 1925 (HESS, 1988, p.214). Se a crítica é ampla e

ambiciosa, as proposições de Lefebvre para a arte atualmente não correspondem às exigências

situacionistas. “Et quand il propose une conception de l’art moderne (le romantisme-

révolutionnaire), il conseille aux artistes de revenir à ce genre d’expression – ou à d’autres plus

anciens encore – pour exprimer la sensation profonde de la vie, et les contradictions des hommes

avancés de leur temps [...]”175, segundo os situacionistas essa sensação e suas contradições já foram

expressadas até La destruction de l’expression ele-même (I.S., n°3, 1959, p.5-6).

A partir do texto de Goldmann, Le matérialisme dialectique est-il une philosophie? (1947),

os situacionistas apoiam a análise do autor ao indicar que após o fim da sociedade de classes, pós-

revolucionária, não haverá mais fenômenos autônomos como o direito, a economia, a religião, a

arte, separados dos outros domínios da vida social, esses estarão diretamente ligados à vida. No

entanto, criticam Goldmann por posicionar essa perspectiva em um horizonte muito distante e por

não verificar na expressão artística de seu tempo as evidências do esgotamento da arte como esfera

separada da vida. Para os situacionistas, o processo de destruição da linguagem iniciado no

romantismo depois de um século de poesia, tem um aspecto progressivo de destruição na literatura

e nas artes plásticas, o qual culminará no movimento Dadá, processo histórico que testemunha a

insuficiência da expressão artística, sua pseudo-comunicação (I.S., n°3, 1959, p.5). “C’est d’avoir été

la destruction pratique des instruments de cette pseudo-communication, posant la question de

l’invention d’intruments supérieurs”176(I.S., n°3, 1959, p.5). Logo, o mundo da expressão qualquer

174 Texto original. Tradução do autor: “Ficção científica do pensamento revolucionário”. 175 Texto original. Tradução do autor: “E quando ele propõe uma concepção de arte moderna (o romantismo-

revolucionário”, ele recomenda aos artistas a retomada a esse tipo de expressão – ou as outras ainda mais antigas – para

expressar a profunda sensação da vida, e as contradições dos homens a frente de seu tempo”. 176 Texto original. Tradução do autor: “É por ter havido a destruição prática dos instrumentos dessa pseudo-comunicação,

colocando a questão da invenção dos instrumentos superiores”.

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que seja o seu conteúdo, já foi ultrapassado; os esforços da vanguarda cultural devem ser

direcionados para a criação de situações, “Les créations de l’avenir devront modeler directement la

vie, créant et banalisant les ‘instants exceptionnels’. [...] La situation est conçue comme le contraire

de l’oeuvre d’art, qui est un essai de valorisation absolue, et de conservation, de l’instant

présent”177(I.S., n°3, 1959, p.6-7). Como vimos, Lefebvre irá absorver as críticas situacionistas sobre

o fim da expressão artística no texto Vers un nouveau romantisme?,no qual retoma o debate sobre

o romantismo e afirma “Eu creio pois na morte da arte” (LEFEBVRE, 1969, p.403).

Apesar das críticas, é a partir do livro La Somme et le reste178, publicado no ano de 1959,

que Henri Lefebvre se aproxima diretamente do ideário situacionista, formulando a sua “teoria dos

momentos”. Debord demonstra grande interesse nas análises de Lefebvre e publica no Boletim n°4,

junho de 1960, o texto “Teoria dos momentos e construção de situações”, para distinguir as

aproximações e distanciamentos entre uma situação no sentido da I.S. e um momento no sentido

de Lefebvre. Inicia o texto com uma citação da definição dos momentoslefrebvrianos.

Cette intervention se traduirait, au niveau de la vie quotidienne, par une

meilleure répartition de ses éléments et de ses instants dans les “moments”, de

manière à intensifier le rendement vital de la quotidienneté, sa capacité de

communication, d’information, et aussi et surtout de jouissance de la vie

naturelle et sociale. La théorie des moments ne se situe donc pas hors de la

quotidienneté, mais s’articulerait avec elle en s’unissant à la critique pour

introduire en elle ce qui manque à sa richesse. Elle tendrait ainsi à dépasser, au

sein du quotidien, dans une forme nouvelle de jouissance particulière unie au

total, les vieilles oppositions de la légèreté et de la lourdeur, du sérieux et de

l’absence de sérieux179(I.S., n°4, 1960, p.10).

177 Texto original. Tradução do autor: “As criações futuras deverão modelar diretamente a vida, criando e banalisando os

‘instantes excepcionais’. [...] A situação é concebida como o contrário da obra de arte, que é um teste de valorização

absoluta, e de conservação, do instante presente”. 178 No livro La Somme et le reste, Lefebvre trata sobe o tema dos momentos na Troisième Partie, Chapitre I – Moments,

Chapitre VII- Encore sur les moments: l’Amour, le Rêve, Le Jeu ; Cinquième Partie, Chapitre VII- Théorie des moments. 179 Texto original. Tradução do autor: “Essa intervenção se traduziria, no nível da vida cotidiana, por uma melhor

repartição desses elementos e desses instantes nos ‘momentos’, de maneira a intensificar o rendimento vital da

cotidianidade, sua capacidade de comunicação, de informação, e também, sobretudo, de gozo da vida natural e social. A

teoria dos momentos não se situa então fora da cotidianidade mas se articularia com ele unindo-se à crítica para

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Os situacionistas defendem que o momento é principalmente temporal, faz parte de uma

zona de temporalidade, não pura, mas dominante, enquanto a situação está articulada com o lugar,

é completamente espaço-temporal. Segundo o autor Remi Hess, a “teoria dos momentos” de

Lefebvre é o ponto de partida da definição que os situacionistas constroem, por oposição, da noção

de situação (HESS, 1988, p.215). Discordamos da posição de Hess, pelo fato da noção de situação

construída ter sido concebida durante o período da Internacional Letrista (1954-1957), ou seja, é

anterior à “teoria dos momentos”. No número 14 de Potlatch, publicado em novembro de 1954,

no texto La Ligne Générale, já podemos encontrar a utilização do termo “situations attirantes”180;

no ano seguinte no número 16, no texto Le Grand Sommeil et Ses Clients, Debord utiliza os termos

“construction consciente de nouveaux états affectifs”181 (DEBORD, 1996, p.106); no mesmo ano, em

maio de 1955, no número 20, no informe Rédaction de Nuit, o termo construção de situações

aparece em um folheto intitulado “Construisez vous-mêmes une petite situation sans avenir”182. Os

situacionistas criticam principalmente o caráter abstrato do momento lefebvriano.

L’Internationale Lettriste se propose d’établir une structure passionnante de la

vie. Nous expérimentons des comportements, des formes de décoration,

d’architecture, d’urbanisme et de communication propres à provoquer des

situations attirantes183 (DEBORD, 1996, p.86).

Le tract ‘Construisez vous-mêmes une petite situation sans avenir’ est

actuellement apposé sur les murs de Paris, principalement dans les lieux

psychogéographiquement favorables184 (DEBORD, 1996, p.155).

introduzir nela aquilo que falta à ua riqueza. Ela tenderia assim a superar, no seio do cotidiano, em uma nova forma de

gozo particular ligado ao total, as velhas oposições da leveza e do peso, do sério e da ausência da seriedade” 180 Texto original. Tradução do autor: “Situações atraentes”. 181 Texto original. Tradução do autor: “construção consciente de novos estados afetivos”. 182 Texto original. Tradução do autor: “Construa você mesmo uma pequena situação sem futuro”. 183 Texto original. Tradução do autor: “A Internacional Letrista se propõe a estabelecer uma estrutura apaixonante da

vida. Nós experimentamos comportamentos, formas de decoração, de arquitetura, de urbanismo e de comunicação

próprias a provocar situações atraentes “. 184 Texto original. Tradução do autor: “O folheto ‘Construa você mesmo uma pequena situação sem futuro’ encontra-se

actualmente colado nas paredes de Paris, principalmente nos lugares psicogeograficamente favoráveis.

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O frágil equilíbrio existente entre Lefebvre e os situacionistas começa a ser abalado no ano

de 1962, período em queo autor publica os livros Introduction à la modernité e Critique de la vie

quotidienne. Tome II : Fondements ďune sociologie de la quotidiennetéobras nas quais há

referências aos situacionistas. No livro Introduction à la modernité, como vimos, no décimo

segundo prelúdio Vers un nouveau romantisme?, são retomadas as questões do romantismo

revolucionário sob a luz das críticas realizadas por Guy Debord e assimiladas por Lefebvre. Apesar

de Debord já ter recusado o conceito de romantismo revolucionário lefebvriano, Lefebvre identifica

a I.S. como uma tendência desse novo romantismo, a qual reprova a modernidade no seu conjunto.

Segundo Lefebvre, os situacionistas propõem:

Seu programa? Eles não propõem aos homens “nenhuma razão de viver senão a

construção de suas próprias vidas”, de maneira que esses homens, liberados das

necessidades elementares, começam a ter desejos, necessidades

metamorfoseadas, reconhecidas como tais através da recusa das condutas

ditadas pelos outros, e reiventando sem cessar suas realizações em situações

criadas nas suas medidas. [...] Se os “situacionistas” pensam na obra, é na cidade

que eles pensam, como lugar de uma maneira de viver que exige participação e

que, englobando o espetáculo, sabe-se irredutível ao espetáculo. Uma cidade

criada das situações; é no quadro e no meio urbanos que se pode exercer a

atividade criadoura de situações, logo de um estilo e de uma maneira de viver185.

Esse grupo concentrou, pois, sua atenção na descrição das cidades, no espaço

urbano e seu uso lúdico, em todas as formas de participação que derivam delas.

Em resumo, os mais brilhantes representantes desse grupo exploram uma

espécie de utopia vivida, a título experimental, procurando uma consciência e

uma atividade construtora desalienantes em oposição às estruturas alienadas e

situações alienantes que pululam na “modernidade” (LEFEBVRE, 1969, p.398-

399).

A divergência entre Lefebvre e os situacionistas não se dá mais pela crítica ao fim da

expressão artística, mas por Lefebvre posicionar os situacionistas junto à juventude revoltada.

Lefebvre ao fazer um balanço da junventude e dos pequenos grupos comunistas de oposição à

185 Grifo nosso.

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ideologia oficial do Partico Comunista Francês (PCF), afiliados ao partido ou não, analisa a posição

da I.S. e faz um paralelo com o grupo de oposição da junventude do PCF, a qual se intitulava La ligne

générale (LEFEBVRE, 1969, p.399). Esse grupo, segundo Lefebvre, calava-se esperando a sua hora

diante da hierarquia do PCF e guardava a sua convicção no futuro do socialismo e da URSS; “[...]

segundo eles a URSS recuperará inevitavelmente seu atraso cultural em relação ao seu crescimento

econômico; [...] ela retomará a revolução cultural interrompida no período stalinista e reduzida a

‘liquidação do analfabetismo’, à cultura técnica” (LEFEBVRE, 1969, p.400). A I.S. se manifesta

contrariamente às colocações de Lefebvre, “Premièrement, nous refusons d’être assimilés à la

jeunesse. C’est une manière élégante de neutraliser les problèmes en leur donnant quelque chose

de la force irrésistible des saisons ou de capricieuses mutations sociologiques dont il faut suivre le

développement”186(I.S., n°8, 1963, p.61) ; acusam Lefebvre de propor um paralelo inaceitável entre

“[...] l’I.S. et un groupe de jeunesse oppositionnelle du parti communiste, si clandestin qu’il n’aurait

jamais rien fait ni rien publié”187(I.S., n°8, 1963, p.62). O autor Éric Brun corrobora a posição da I.S.,

alegando que Lefebvre introduz mais precisamente o pensamento situacionista, porém não discute

verdadeiramente o conteúdo de suas teses, assimilando os situacionistas “[...] maladroitement à la

révolte de la jeunesse”188(BRUN, 2014, p.339).

O estopim da crise entre Lefebvre e os situacionistas se dá no final do mesmo ano, com a

publicação do texto La signification de la Commune. Nesse período, Lefebvre trabalhava no

desenvolvimento do seu livro La proclamation de la Commune, e solicitou aos situacionistas

Debord, Vaneigem e Kotányi, que elaborassem um texto abordando suas interpretações sobre a

Comuna de Paris. A convite da publicação do último número da revista Arguments, Lefebvre decide

publicar as conclusões de seu trabalho, o qual será acusado de plágio pelos situacionistas,

186 Texto original. Tradução do autor: “Primeiramente, nós nos recusamos de ser assimilados à juventude. É uma maneira

elegante de neutralizar os problemas atribuindos a eles alguma força irresistível das estações ou de caprichosas mutações

sociológicas as quais é preciso seguir o desenvolvimento”. 187 Texto orinal. Tradução do autor: “A IS é um grupo de jovens oposição ao partido comunista, tão clandestino que ele

não teria jamais feito ou publicado nada”. 188 Texto original. Tradução do autor: “de maneira desajeitada à revolta da juventude”.

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entretanto o seu livro só será publicado três anos depois, em 1965. Segundo o autor Éric Brun, que

defende a posição dos situacionistas, o artigo publicado é uma retomada das teses situacionistas

sobre o mesmo tema, as quais foram apenas ligeiramente modificadas. No boletim da I.S. n°10, no

texto L’historien Lefebvre, os situacionistas pontuam os trechos publicados por Lefebvre com os

trechos de autoria da própria I.S.

Nos termos do autor Remi Hess, a crise se tornará uma guerra, a qual segundo Hess, se

iniciou com uma provocação de Lefebvre. No texto constam catorze teses situacionistas, das quais

Lefebvre se apropriou sem citar seus autores, entretanto os situacionistas defendiam essa prática

a qual é uma das aplicações do termo détournement”.Além disso, no verso de seus boletins consta

a seguinte indicação, “Tous les textes publiés dans Internationale Situationniste peuvent être

librement reproduits, traduits ou adaptés, même sans indication d’origine”189. No entanto, a

provocação de Lefebvre não foi bem recebida pela I.S., que interpretou a referida publicação como

uma dupla ofensa, pelo fato dos situacionistas já terem proclamado o boicote à revista

Arguments190, a qual se tornou o alvo preferido das críticas situacionistas (HESS, 1988, p.222-223).

A interpretação de Hess é favorável à posição de Lefebvre, entretanto nós propomos a hipótese

que a I.S. o tenha acusado de plágio por não ter seguido a prática do Potlatch, ou seja, por não ter

retribuído com um presente mais extremo, aprofundando teoricamente as quatorze teses

formuladas inicialmente pela I.S., apesar de Hess apontar a dificuldade que os situacionistas

tiveram em justificar o fato de Lefebvre ter escrito um livro de quatrocentos e noventa páginas, a

partir de quatorze teses sucintas.

Entretanto, sobre o episódio do plágio, Remi Hess e Éric Brun não citam a entrevista de

Henri Lefebvre concedida a Kristin Ross, já citada, na qual ele dá a sua versão dos fatos. Na versão

189 Texto original. Traduçãod do autor: “Todos os textos publicados na IS podem ser livremente reproduzidos, traduzidos

u adaptados, mesmo sem indicação da origem”. 190 O boicote aparece publicado no Boletim n°5, Renseignements situationnistes, dezembro de 1960, p.13, e reaparece

menção ao boicote no Boletim n°8, L’I.S. vous l’avait bien dit, janeiro de 1963, p.18.

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relatada por Lefebvre, o texto, que contém as catorze teses sobre a Comuna de Paris, foi elaborado

coletivamente, realizado em parceria com os situacionistas. Inclusive Lefebvre reclama a autoria da

principal tese defendida no documento, da Comuna de Paris ter ocorrido como uma festa popular.

Lefebvre explica que na ocasião os situacionistas foram para sua casa nos Pirineus, fizeram uma

viagem partindo todos juntos de Paris e ao longo do trajeto fizeram algumas paradas para conhecer

a região. Chegando à sua casa, eles passaram vários dias bebendo e escrevendo coletivamente um

texto programático, que posteriormente Lefebvre usou para escrever o seu livro sobre a Comuna

de Paris. Nas palavras de Lefebvre, ter sido acusado de plágio “foi má fé completa” (LEFEBVRE in

ROSS, 1997, p.77). Lefebvre argumenta que a sua ideia de escrever sobre a Comuna de Paris como

uma festa popular, partiu de documentação inédita que havia encontrado sobre a Comuna na

Fundação Feltrinelli, em Milão. O principal documento encontrado foi um diário de uma pessoa que

foi deportada no período e trouxe o documento para a Itália. Nele consta um relato sobre o episódio

dos canhões da Comuna que estavam em Montmartre e nas colinas de Belleville, no qual a tomada

dos canhões não foi uma situação de combate heróico armado, mas uma festa popular, com o povo

na rua que envolveu e persuadiu os soldados. Lefebvre frisa que o diário é uma exceção, o qual

representa apenas um testemunho, mas isso não o impediu de realizar a sua pesquisa no Instituto

Fratelli e concluir o seu livro. Logo, Lefebvre afirma que era “completamente o meu direito” de

utilizar o texto e se sentiu caluniado pelos situacionistas (LEFEBVRE in ROSS, 1997, p.78).

No entanto, segundo Lefebvre, a ruptura definitiva com os situacionistas ocorre a partir do

desentendimento que tiveram em relação à revista Arguments. Durante o período, Kostas Axelos,

que era um dos editores da revista, havia comunicado a Lefebvre o desejo de encerrar as

publicações de Arguments, pois julgara que o papel da revista havia acabado. Lefebvre comentou

sobre essas discussões com Debord, que demonstrou interesse em substituí-la pela publicação do

Boletim da Internacional Situacionista, e por intermediação de Lefebvre, a maioria dos editores

daArguments concordaram com essa possibilidade. Porém, segundo Lefebvre, “[...] tudo dependia

de um certo homem, extremamente poderoso[...] Herval”, que era um dos editores e também

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estava ligado às revistas L’Express, Nouvelle Revue Française e Éditions de Minuit” (LEFEBVRE in

ROSS, 1997, p.79). Na ocasião, Lefebvre comenta que havia acabado de se separar amargamente

de sua ex-mulher, Eveline, a qual levou a sua agenda pessoal, eque não tinha mais o contato nem

o endereço de Herval, porém estava disposto a continuar intermediando as negociações. Guy

Debord se enfureceu com a história e acusou Lefebvre de ser um traidor. Lefebvre relata que

chegou até a escrever um artigo intitulado You Will All Be Situationists 191, para ajudar na

substituição de Arguments pela Internacional Situacionista, mas nunca foi publicado. “Guy Debord

me acusou de não ter feito nada para conseguir essa publicação. [...] Sorte minha que não apareceu,

porque depois eles teriam me reprovado por isso” (LEFEBVRE in ROSS, 1997, p.79). Nas palavras de

Lefebvre, “[...] minhas relações com eles sempre foram muito difíceis. Eles ficavam furiosos por

nada” (LEFEBVRE in ROSS, 1997, p.74).

Durante o período, após a acusação de plágio, a I.S. exigiu que Lefebvre se retratasse

publicamente, solicitando a publicação de um novo artigo, em um grande periódico, no qual

Lefebvre se posicione em relação a I.S e sobre o fim da revista Arguments. Segundo o autor Remi

Hess, em 14 de fevereiro de 1963, Lefebvre anunciou aos situacionistas um texto, o qual ele

propunha publicar na revista L’Express, mas que nunca apareceu. Devido a demora de Lefebvre

para publicar a sua retratação, os situacionistas publicam no final de fevereiro de 1963, o panfleto

Aux poubelles de l’histoire192, no qual criticam duramente a revista Arguments e tornam pública a

sua ruptura com o filósofo.

Além disso, também ocorreram desentendimentos em âmbito pessoal. Lefebvre relata que

Eveline era amiga pessoal de Michele Berstein, esposa de Debord, quando terminou o seu

relacionamento com Eveline, iniciou uma nova relação com Nicole, que ficou grávida na ocasião.

Segundo Lefebvre, Debord enviou Denise a Navarrenx, que era namorada do situacionista René

191 Éric Brun e Remi Hess não citam a existência desse documento, nem mencionam a entrevista de Kristin Ross. 192 O texto Aux poubelles de l’histoire, será republicado apenas no ano de 1969, com um comparativo em relação ao texto

La signification de la commune, apresentando as semelhanças conceituais entre eles (I.S. n°12, Documentos, p.108).

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Viénet, para convencer Nicole a fazer um aborto e abandonar Lefebvre. Lefebvre ficou

extremamente indignado com a situação e encerrou definitivamente sua relação com os

situacionistas (LEFEBVRE in ROSS, 1997).

Éric Brun e Remi Hess compartilham a interpretação da qual a ruptura entre Henri Lefebvre

e a Internacional Situacionista, no ano de 1963, não é necessariamente uma ruptura teórica, mas

uma ruptura de posicionamento em relação à crítica radical defendida pela I.S., a qual não permite

concessões nem aproximações com os intelectuais ou artistas rejeitados pelos situacionistas. “Nul

besoin donc, pour expliquer la rupture entre l’I.S. et Lefebvre en 1963, d’invoquer une quelconque

divergence théorique . [...] Pour eux, la menace se situe notammentdans une possible confusion avec

des regroupements intellectuels ou artistiques rejetés”193(BRUN, 2014, p.339) ; nos termos de Hess

“Ce que semble mettre en cause les situationnistes , c’est le ‘réformisme’ de Lefebvre”194(HESS, 1988,

p.216). No texto Critique de l’urbanisme, I.S. n°6, os situacionistas criticam a posição de Lefebvre

ao publicar na Revue française de sociologie, n°3 (jul.-set. 1961), o artigo Utopie expérimentale:

pour un nouvel urbanisme195, no qual Lefebvre critica as insuficiências de um projeto de uma equipe

de arquitetos e sociólogos que acabam de publicar em Zurique, Die neue Stadt, eine Studie für das

Fürttal. Para os situacionistas, Lefebvre dá muito destaque aos projetos que contém certa utilidade

e méritos, mas cuja perspectiva é “radicalmente inimiga”, “[...] pour n’avoir pas mis clairement en

cause le rôle même de cette équipe de spécialistes dans un cadre social dont elle admet sans

discussion les impératifs absurdes”196(I.S., n°6, 1961, p.7). No boletim n°8, em Renseignements

Situationnistes, a I.S rebate os comentários de Lefebvre, feitos em Vers un nouveau romantisme”,

como já mencionado, e reafirmam a exigência situacionista de uma “radicalité sans

193 Texto original. Tradução do autor: “Nenhuma necessidade então, para explicar a ruptura entre a IS e Lefebvre em

1963, de evocar uma qualquer divergência teórica. [...] Para eles, a ameaça situa-se principalmente em uma possível

confusão relacionada aos reagrupamentos intelectuais ou artísticos rejeitados”. 194 Texto original. Tradução do autor: “O que parece questionar os situacionistas, é o ‘reformismo’ de Lefebvre”. 195 Artigo republicado no livro Du rural à l’urban. Paris, Anthropos, 1970; cap. VII. 196 Texto original. Tradução do autor: “Por não ter claramente questionado o papel dessa equipe de especialistas nos

limites sociais os quais ela admite, sem questionar, os imperativos absurdos”.

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compromis”197(HESS, 1988, p.222), a qual recusa toda forma de “fausses réconciliations”198(I.S., n°8,

1963, p.61).

Segundo o autor Éric Brun, após a ruptura oficial com Lefebvre, “[...] toute la différence de

position sociale qui déjà en pointillé entre Lefebvre et les situationistes fonctionne désormais comme

principe d’opposition irréductible”199(BRUN, 2014, p.340). A última referência positiva a Lefebvre

aparece no texto L’etage suivante, de abril de 1962, I.S. n°7, no qual Attila Kotanyi comenta sobre

a teoria da alienação. Os situacionistas, a partir de então, se referem a Lefebvre e seus apoiadores

como representantes da falsa contestação, enquanto Lefebvre adotará uma posição crítica em

relação à I.S..

No Boletim n°9, no texto Les mois les plus longs, os situacionistas satirizam Lefebvre por

participar de uma conferência que tinha como tema L’inadaptation, un phénomène social, realizada

no Centro Católico dos Intelectuais Franceses. “Après sa longue série de mésaventurespolitiques et

históriques, H. Lefebvre a trouvé les secours de la religion [...] Il n’ose pas démentir les pronostics de

l’I.S. : la pire des poubelles de l’histoire est encore à Rome”200(I.S., n°9, 1964, p.30). O tema do plágio

sobre a Comuna é retomado no Boletim n°10, no texto De l’aliénation: examen de plusieurs aspects

concrets, no tópico L’historien Lefebvre, o qual frisa a receptividade da imprensa em relação ao livro

de Lefebvre, destacando-se as ideias do Estilo e da Festa. Nele os situacionistas recusam os elogios

de Lefebvre a Guy Debord e defendem que o autor degradou a concepção da festa. Tentam explicar

como Lefebvre a partir de três páginas de anotações situacionistas escreveu um livro, nas palavras

de Hess “Avec une certaine mauvaise foi, L’I.S. explique qu’il ne s’agit pas de délayage, mais d’un

colage”201 (HESS, 1988, p.227). No Boletim n°11, no texto Nos buts et nos méthodes dans le scandale

197 Texto original. Tradução do autor: “Radicalidade sem compromisso”. 198 Texto original. Tradução do autor: “Falsas reconciliações”. 199 Texto original. Traduçãodo autor: “Toda a diferença de posição social já marcada entre Lefebvre e os situacionistas

funciona agora como princípio de oposição irredutível”. 200 Texto original Tradução d autor: “Após sua longa série de desventuras políticas e históricas, H. Lefebvre encontrou a

salvação da religião [...] Ele não ousa desmentir as previsões da IS: o pior dos lixos da história ainda está em Roma”. 201 Texto original. Tradução do autor: “Com certa má fé, a IS explica que não se tratava de uma exposição prolixa, mas de

uma colagem”.

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de Strasbourg, Lefebvre é rapidamente citado ironicamente como o “loyal Lefebvre”202. No último

Boletim da I.S., n°12, no texto La pratique de la théorie, Lefebvre é retratado como um modelo de

recuperador que faz carreira sobre as ideias dos outros, é novamente ironizado como

“l’honnête”203, e finalmente rebatem as críticas de Lefebvre em relação à I.S., escritas no livro

Positions Contre les Technocrates, de 1967. No final do Boletim, são anexados uma reedição do

panfleto Aux poubelles de l’histoire junto com uma reedição do documento situacionista sobre a

Comuna, contendo suas quatorze teses.

Éric Brun defende a tese a qual, para além das diferenças ou a própria ruptura entre

Lefebvre e os situacionistas, a legitimidade intelectual que Lefebvre dá à I.S. e, principalmente, a

Debord, foi fundamental para situar a I.S. como protagonista no campo da teoria revolucionária;

no início da década de 1960, Lefebvre se esforçou em reconhecer a I.S. como legítima vanguarda

da cultura, inserindo os situacionistas nos círculos oficiais e de debates acadêmicos. Além disso,

Lefebvre abre um campo teórico para a I.S. se reposicionar no campo da arte e da política, sem no

entanto, se tornar invisível no universo da cultura. Em 1948, Lefebvre é convidado a integrar o

Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), no qual se tornou diretor em outubro de 1960,

fundando no mesmo ano o primeiro laboratório do Centre d'études sociologiques (HESS, 1988,

p.12). Debord é convidado por Lefebvre, em 17 de maio de 1961, para participar de uma

comunicação junto ao Groupe de Recherches sur la vie quotidienne, sediado no Centre d'études

sociologiques, o qual apresenta por meio de um gravador, o texto Perspectives de modification

consciente de la vie quotidienne, posteriormente publicado no boletim da I.S. n°6. É através de

Lefebvre que novos colaboradores, os quais não são do campo das artes, ingressam na I.S., como o

seu ex-aluno de Strasbourg, Mustapha Khayati e o filósofo belga Raoul Vaneigem (LEFEBVRE, 1975,

p.158). Lefebvre também lecionou na Universidade de Strasbourg, onde foi professor de sociologia

em 1961, e na Faculdade de Letras e Ciências Humanas de Nanterre, na qual ingressou a partir de

202 Texto original. Tradução do autor: “Leal Lefebvre”. 203 Texto original. Tradução do autor: “O honesto”.

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1965, logo depois da sua fundação. Em suas aulas, evocava as teorias situacionistas as quais

estabeleceram diálogo com as reflexões de seus ex-alunos René Lourau e Jean Baudrillard (BRUN,

2014, p.341).

Segundo o autor Remi Hess, o papel de Lefebvre na emergência do movimento da I.S. e da

formação do seu ideário é inegável, certifica que os dois pensamentos, tanto de Lefebvre quanto

de Debord, tiveram desde o início uma grande afinidade. A diferença entre Lefebvre e os

situacionistas está no esforço de uma prática radical de intervenção na vida cotidiana, na realização

efetiva do ideário teórico de Lefebvre.

Il n’y a guère d’idées situes qui n’aient eu son point de départ dans la pensée

lefèvrienne. Mais en même temps, entre ce qu’écrit Lefebvre sur l’aliénation et

ce qu’écrit Debord sur la ‘société du spectacle’, il y a une radicalisation, une

volonté pratique d’intervention qui fait sortir définitivement l’idée de sa gangue

philosophique et lui donne une ‘force de frappe’ interventionniste tout à fait

spécifique204(HESS, 1988, p.226).

Conforme visto, Hess superestima a influência de Lefebvre no ideário situacionista ao

afirmar “Il n’ya guère d’idées situes qui n’aient eu son point de départ dans la pensée lefèvrienne”205,

entretanto podemos certamente afirmar que a I.S. tem como ponto de partida a sua afinidade

eletiva com a crítica da vida cotidiana, a qual despertou o interesse das vanguardas do pós-guerra

que fundaram o movimento, principalmente o Cobra e a Internacional Letrista. Como vimos na

entrevista concedida à Kristin Ross, Lefebvre reiteraque esteve muito próximo dos situacionistas

desde o período de sua formação, informação verificada na entrevista concedida à Claude Glayman,

em Le temps des méprises. Ainda afirma “[...]je voudrais encore ouvrir uma parenthèse et parler

d’um mouvement qui fut à l’origine du situacionnisme, et dont on a dit que le premier volume de la

204 Texto original. Tradução do autor: “Não há quaisquer idéias situacionistas que não tiveram o seu ponto de partida o

pensamento lefebriano. Mas ao mesmo tempo, entre o que foi escrito por Lefebvre sobre a alienação e o que foi escrito

por Debord sobre a ‘sociedade do espetáculo’, há uma radicalização, uma vontade prática de intervenção que faz sair

definitivamente da ideia de sua gangue fisolófica e dá a ela um choque intervencionista bastante específico”. 205 Texto original. Tradução do autor: [...] “Não há quaisquer idéias situacionistas que não tiveram o seu ponto de partida

o pensamento lefebvriano”.

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Critique de la vie quotidienne, paru en 1946, l’avait inspiré, c’est ‘Cobra’”206(LEFEBVRE, 1975,

p.156)207. Vaneigem em entrevista concedida a Gérard Berréby, ao ser questionado como descobriu

a obra de Lefebvre e quais foram os ecos das teses formuladas no livro Critique de la vie quotidienne,

afirma que o que despertou seu interesse foi o fato de Lefebvre abordar temas que jamais eram

relacionados pelas ideologias políticas do período, estabeleceu relações entre a existência

cotidiana, as ideologias e a análise do mundo. “J’ai donc lu avec beaucoup de passion ces livres qui

ont ouvert pas mal de portes et que j’estime essentiels”208(VANEIGEM; BERRÉBY, 2014, p.92).

Entretanto, a crítica de Vaneigem, a qual é a mesma posição da I.S., é que Lefebvre não delineou

um horizonte programático de intervenção na vida cotidiana, os situacionistas pretendiam ir mais

longe.

Je retrouvais là ce qui m’avait intéressé dans le livre de Lefebvre avec une

occasion d’aller plus avant ! Lefebvre avait produit un travail intéressant,

sociologique... une analyse... certes, mais insatisfaisante en ce sens que’elle se

bornait à un constat. Le propos n’abordait pas la question : ‘Comment faire pour

aller au-delà du constat ?’ Chez Debord, il y avait, au contraire, cette volonté de

changer le monde!209(VANEIGEM; BERRÉBY, 2014, p.110-111).

Lefebvre abriu as portas da crítica da vida cotidiana, a qual serviu de base teórica para a

formulação situacionista da revolução da vida cotidiana, mas sua intenção inicial era abrir uma via

de reflexão aos grandes grupos sociais como as mulheres, os estudantes, a juventude que

desejassem “changer la vie”. Nunca imaginou que seu livro pudesse servir à constituição de um

grupo fechado, Lefebvre tinha “horreur de l’esprit de chapelle”210(LEFEBVRE, 1975, p.162), um dos

206 Texto original. Tradução do autor: “Eu gostaria ainda de abrir um patênteses e falar de um movimento que foi a origem

do situicionismo, e como doi dito o primeiro volume da Critique de la vie quotidienne, apareceu em 1946, o havia

inspirado, é o movimento Cobra”. 207 LEFEBVRE, Henri. Le temps des méprises. Editions Stock, 1975. 208 Texto original. Trdução do autor: “Eu li com muita paixão esses livros que abriram muitas portas e que eu considero

essenciais”. 209 Texto original. Tradução do autor: “Eu encontrava assim o que havia me interessado no livro de Lefebvre com o

interesse de ir além! Lefebvre havia produzido um trbalho interessante, sociológico...uma análise...certas, mas

insatisfatória no sentido de que ela e delimitava à uma constatação. A proposta não abordava a questão: ‘Como fazer

para ultrapassar a constatação?’. Em Debord, existia, ao contrário, essa vontade de mudar o mundo!”. 210 Texto original. Tradução do autor: “horror ao espírito exclusivista”. Espirit de chapelle: expressão que delimita uma

espécie de cooperativismo de grupo, de um grupo de pessoas em torno de um ideal (com certo sentido pejorativo).

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motivos que nunca aderiu à I.S. e posteriormente rompeu com o grupo. “Si j’ai rompu avec les

situationistes, c’est qu’ils tendaient à devenir un groupe clos. Je ne pense pas que la Critique de la

vie quotidiennepuisse servir à la constitution d’un groupe”211(LEFEBVRE, 1975, p.162). Como

pudemos verificar se as afinidades eletivas entre a I.S. e Lefebvre são de origem teórica e o esforço

situacionista busca estabelecer “a organização de uma força politica e a descoberta de meios de

ação culturais”, o qual o segundo não está presente na obra de Lefebvre; quais foram as referências

adotada pela I.S. que serviram de base para formular as suas práticas? Qual foi o movimento teórico

e prático que precedeu a sua formação e militou arduamente contra a modernidade capitalista no

esforço de “‘Transformer le monde’, a dit Marx; ‘Changer la vie’, a dit Rimbaud: ces deux mots

d’ordre pour nous n’en font qu’un”212(BRETON, 1992, p.459)213. O Movimento Surrealista.

Pretendemos verificar no terceiro capítulo a hipótese do Movimento Surrealista ser a segunda

fonte de referências da I.S. para formular o seu programa de ações na vida cotidiana.

Concentraremos a nossa análise no estudo da psicogeografia e no seu exercício, a prática da deriva.

211 Texto original. Tradução do autor: “Se eu rompi com os situacionistas, foi porque eles tendiam a tornar-se um grupo

fechado. Eu não acho que a crítica da vida cotidiana possa servir à constituição de um grupo”. 212 Texto original. Tradução do autor: “’Tranformar o mundo’, disse Marx, ‘Mudar a vida’, disse Rimbaud: essas duas

palavras de ordem para nós são apenas uma”. 213 BRETON, André. Discours au Congrès des écrivains. In: Oeuvres Complètes, v.II. Ed. Marguerite Bonnet et al. Paris:

Gallimard, 1992.

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2.3 - Da crítica à revolução da vida cotidiana: uma análise da

miséria e riqueza da vida cotidiana.

O Movimento da Internacional Situacionista como vimos, a partir da análise de Lefebvre

sobre a vida cotidiana, se propõe a elaborar um programa de ações para o que eles denominam de

revolução da vida cotidiana, através das propostas de Construção de situações, Urbanismo Unitário,

Comportamento experimental, Psicogeografia, Deriva, Jogo permanente, Desvio e Arquitetura

situacionista. No primeiro volume do livro “Crítica da vida cotidiana”, Lefebvre cunha o conceito de

cotidianidade, que nesse primeiro momento, carrega a esperança de transformação do cotidiano

vista como possível através da filosofia. Fica então aberto apenas um caminho: descrever e analisar

o cotidiano a partir da filosofia, para mostrar sua dualidade, sua decadência e fecundidade, sua

miséria e riqueza. Isso implica o projeto revolucionário de um parto que tirasse do cotidiano a

atividade criadora inerente, a obra inacabada (LEFEBVRE, 1991, p.18-19). Em busca da atividade

criadora, Lefebvre retoma a reflexão sobre o conceito de produção em Marx e Engels, enfatizando

a dialética do termo, a ambiguidade que faz a sua riqueza.

Na acepção ampla do termo, os homens enquanto seres sociais produzem sua

vida, sua história, sua consciência, seu mundo; formas jurídicas, políticas,

religiosas, artísticas, filosóficas e ideológicas. Enquanto, na acepção restrita do

termo, o conceito se restringe à produção de coisas: produtos, ligados à ideologia

produtivista. Quanto mais a acepção se precisa, adotada pelo economismo,

menos se trata de uma questão da capacidade criadora, da invenção, da

imaginação, mas somente do trabalho (LEFEBVRE, 2006, p.62).

Lefebvre esclarece melhor o estudo da vida cotidiana como:

[...] o lugar no qual se formulam os problemas concretos da produção em sentido

amplo: a maneira como é produzida a existência social dos seres humanos, e sua

análise crítica visa a virar do avesso esse mundo em que os determinismos e as

opressões passam por racionais, ao passo que a razão sempre teve como sentido

e fim o domínio dos determinismos (LEFEBVRE, 1991, p.30).

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Lefebvre situa o momento histórico no qual a primeira edição da Critique de la vie

quotidienne foi escrita (1946), no segundo pós-guerra, período no qual se reconstituía na França a

vida econômica e social, se acreditava na possibilidade de reconstruir uma outra sociedade. Nesse

momento histórico, o “homem” francês se definia ainda pela atividade produtora e criadora

(LEFEBVRE, 1991, p.40). A ênfase no sentido amplo de produção, defendido por Lefebvre, se

atribuía geralmente ao trabalho um valor tanto ético quanto prático, e acrescenta a isso o projeto

político, elaborado pelas organizações competentes, de uma reorganização da sociedade de acordo

com os “valores” do trabalho e dos trabalhadores (LEFEBVRE, 1991, p.40).

Segundo Lefebvre na obra Critique de la vie quotidienne - Introduction, o retorno às fontes,

às obras do jovem Marx, entretanto sem ignorar “O Capital”, para recuperar o conceito de produção

em seu sentido amplo; se dá pelo esforço de não admitir reduzir o pensamento de Marx a um

sistema filosófico (do materialismo dialético) ou a uma teoria da economia política.

A produção não se reduz à fabricação de produtos. O termo designa, de uma

parte, a criação de obras (incluindo o tempo e o espaço sociais), em resumo, a

produção “espiritual”, e de outra parte, a produção material, a fabricação de

coisas. Ele designa também a produção do “ser humano” por si mesmo, no

decorrer do seu desenvolvimento histórico. Isso implica a produção de relações

sociais. Enfim, tomado em toda a sua amplitude, o termo envolve a reprodução.

Não há apenas reprodução biológica (e consequente aumento demográfico), mas

também reprodução material dos utensílios necessários à produção,

instrumentos técnicos e, ainda, reprodução das relações sociais

(LEFEBVRE,1991,p.37).

Lefebvre defende que as relações sociais são (re)produzidas em um movimento complexo

que não se desenvolve nas altas esferas da sociedade, no Estado, na ciência, na “cultura”. “É na

vida cotidiana que se situa o núcleo racional, o centro real da práxis. É essa a afirmação

fundamental, o postulado teórico desta Introdução” (LEFEBVRE,1991,p.38). Lefebvre aborda por

outra perspectiva a questão e indaga, “O que é uma sociedade?”. Sob a análise marxista é, antes

de tudo, uma base econômica, uma estrutura (relações sociais ao mesmo tempo estruturadas e

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estruturantes, determinadas pela base), e superestruturas (ideologias, estado e elaborações

jurídicas). Segundo o materialismo considerado dogmático a relação entre os níveis é simplesmente

um reflexo de sua base econômica. Lefebvre se contrapõe a essa perspectiva defendendo que

alterações na superestrutura provocam mudanças na base econômica, as inovações científicas e

tecnológicas intervêm na produção material. Entende que a cultura não é uma “vã efervescência”,

mas é ativa e específica, ligada a um “modo de vida”, passível de engajamento para promover

transformações sociais. (LEFEBVRE,1991,p.38).

Mas o que é uma cultura? É também uma práxis. É um modo de repartir os

recursos da sociedade e, por conseguinte, de orientar a produção. [...] Além

disso, o consumo reaparece no esquema, dependendo da produção, mas com

mediações específicas: a ideologia, a cultura, as instituições e organizações

(LEFEBVRE,1991,p.38).

Para Lefebvre existe um equilíbrio momentâneo, provisório, o qual ele denomina de

feedback, entre produção e consumo, entre estruturas e superestruturas, entre conhecimento e

ideologia. Além disso, afirma que “os interesses de classe (ligados estruturalmente às relações de

produção e de consumo) não são suficientes para manter o funcionamento da sociedade em sua

globalidade durante o tempo em que ela funcionar.” (LEFEBVRE,1991,p.39). Lefebvre compreende

a vida cotidiana como lugar social desse feedback, lugar que aparece sob um duplo aspecto, é

resíduo e o produto do conjunto social, riqueza e miséria, em outras palavras: “Lugar de equilíbrio,

é também o lugar em que se manifestam os desequilíbrios ameaçadores” (LEFEBVRE, 1991, p.39).

A partir da análise das pressões e dos determinismos do cotidiano, do esclarecimento das suas

alienações, então começará uma revolução. Porém, “enquanto puderem viver o cotidiano, as

antigas relações se reconstituem” (LEFEBVRE, 1991, p.39), ou seja, se reproduzem.

Lefebvre esclarece que o livro Critique de la vie quotidianne, além do seu conteúdo

sociológico presente na sua introdução, que aborda as diferenças entre grupos e classes (classe

média e burguesa contrapostas aos camponeses), buscou uma análise global – a totalidade, que

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resulta no exame da polarização entre a miséria e a riqueza do cotidiano. A miséria do cotidiano

está presente nos trabalhos enfadonhos, nas humilhações, na vida da classe operária sobre a qual

pesa a cotidianidade. As relações elementares com as necessidades e o dinheiro, o reino do

número. A sobrevivência da penúria, o domínio da economia, da abstinência, da repressão dos

desejos, o repetitivo. A riqueza do cotidiano está na “[...] prática incompreendida: a apropriação do

corpo, do espaço e do tempo, do desejo” (LEFEBVRE,1991,p.42). O drama, que não se pode reduzir

ao número. O trágico latente do cotidiano. “A criação de um mundo prático-sensível a partir dos

gestos repetitivos [...]. A obra e as obras (a capacidade de criar uma obra a partir do cotidiano, dos

seus altos e baixos – a possibilidade de fazer da vida cotidiana uma obra, para os indivíduos, os

grupos, as classes)” (LEFEBVRE,1991,p.43).

Imbuído nesta busca por romper o prosaísmo da vida cotidiana, propõe dois termos: o

festivo e o lúdico. A experiência lúdica é um caso do festivo, remete-se a um rompimento dos

determinismos socialmente enraizados e da racionalidade pretensamente “séria”, unilateral e

fragmentária do cientificismo operativo e do produtivismo. A experiência do festivo, cuja origem

remonta ao mundo camponês, traz em si a prodigalidade, a superação da escassez e a celebração

da abundância, o rompimento com a racionalidade utilitarista, a reconstituição entre prosa do

mundo e alguma poesia, ou se quisermos, a restituição entre trabalho e lazer (os domínios

separados pelo cotidiano moderno). E este não é um programa meramente de re-estetização da

vida, pois para Lefebvre a ruptura do cotidiano fazia parte da atividade revolucionária

(LEFEBVRE,1991,p.44). No entanto, lembra que em seguida a própria revolução traiu esta

esperança, tornando-se instituição, burocracia, organização da economia, racionalidade

produtivista. Para Lefebvre, este momento histórico de descobrir a profundeza na trivialidade,

atingir o extraordinário do ordinário, passou. Somente tinha sentido quando apostava na

capacidade criadora da classe trabalhadora. De lá pra cá, mudanças ocorreram. Afirma que havia

uma “ingenuidade” no projeto, ligada a um certo populismo ou trabalhismo, que exaltou a vida do

povo, daqueles que querem se arriscar e aventurar (LEFEBVRE,1991,p.44).

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Lefebvre reflete sobre as mudanças ocorridas desde a primeira publicação da Critique de la

vie quotidianne. Lembra que, com tais mudanças, houve uma mudança de racionalidade. Mostra,

neste sentido, como mudanças sociais engendram e são engendradas por mudanças da razão. As

mudanças elencadas são: a) a introdução do “neocapitalismo”, com mudanças institucionais em

relação aos anteriores (concorrencial e de monopólio) sem transformação das relações de

produção; b) desvio da capacidade criadora, que tendia à transformação revolucionária e à

produção de obras, para a produção em sentido reduzido, de produtos mercantis. ; c) liquidação de

um passado, dos traços da história. Nesse período de reviravolta da história a alienação adquire um

sentido profundo. Segundo Lefebvre, ela afasta o cotidiano de sua riqueza, dissimula esse lugar da

produção e da criação humilhando-o e recobrindo-o com o falso esplendor das ideologias. “Uma

alienação específica transforma a pobreza material em pobreza espiritual, impedindo que a riqueza

seja liberada das relações constitutivas do trabalho criador conectadas diretamente com a matéria

e com a natureza” (LEFEBVRE,1991,p.40). A alienação social transforma a consciência criadora

(incluindo os filões da criação artística latentes na “realidade”) numa consciência passiva e infeliz.

Diante de tais mudanças Lefebvre revê o conceito e o estudo empreendido sobre a vida

cotidiana. Justifica, em nota de rodapé, o intervalo de dezesseis anos entre a publicação do primeiro

e do segundo volume de Critique de la vie quotidienne214, alegando que entre 1950-1960, cogitou

abandonar o conceito. No entanto, observa que as modificações da prática social na França não

afastaram a noção de cotidianidade.

O conceito de cotidiano se modifica, mas essa modificação o confirma e reforça.

É preciso abandonar uma parte do seu conteúdo, notadamente o contraste

pungente entre miséria e riqueza, entre o ordinário e o extraordinário. Feitas

essas reservas, não apenas o conceito persiste, mas ainda passa para o primeiro

plano. O cotidiano, no mundo moderno, deixou de ser “sujeito” (rico de

subjetividade possível) para se tornar “objeto” (objeto da organização social).

Enquanto objeto da reflexão, longe de desaparecer (o que poderia ter acontecido

214Critique de la vie quotidienne. Tome II : Fondements d'une sociologie de la quotidienneté (1962).

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se o movimento revolucionário tivesse obtido sucesso), ele, ao contrário, se

reafirmou e se consolidou (LEFEBVRE, 1991, p.68).

A partir desse segundo momento da revisão do estudo do cotidiano, o qual este passa de

sujeito a objeto da organização social, Lefebvre se dedicará à análise crítica do urbanismo,

compreendido como equipamento de alienação do poder, como técnica de dominação da vida que

se dá através do controle, planejamento, dos espaços, que para Lefebvre é o espaço social215. Os

situacionistas compartilham dessa análise, porém a cidade é instrumentalizada e vivenciada, como

base da mudança social, a base material que deve sustentar a revolução cultural. A dialética entre

o status do espaço urbano como objeto de críticas e seu status de objeto revolucionário é colocada.

Os situacionistas jogam com essa dialética, tentam superar essa oposição, a transformando em

base teórica de suas concepções artísticas e revolucionárias. A vida está alienada na cidade, mas a

sua libertação se dá a partir da cidade. Ela torna-se então a causa e o instrumento prático da

revolução, é um espaço em disputa, cujos membros da I.S. instrumentalizarão para subverter a

cotidianidade.

A partir do texto Perspectivas de Modificações Conscientes na Vida Cotidiana, escrito por

Guy Debord e publicado no Boletim número 6 da Internacional Situacionista, em agosto de 1961,

podemos compreender algumas aproximações da teoria de Lefebvre com o ideário situacionista. O

texto foi elaborado para uma palestra no Groupe de Recherches sur la vie quotidianne, como já

citamos, reunido por Henri Lefebvre no Centre d’études sociologiquesdo CNRS (DEBORD

inJACQUES, 1961, p.143).

Ao longo do texto Debord retoma as análises da Critique de la vie quotidianne, na qual a

sociedade moderna se constitui de fragmentos especializados, praticamente intransmissíveis, e a

vida cotidiana, na qual quase todas as questões surgem de modo unitário, torna-se naturalmente

o reino da ignorância. Essa sociedade tem tendência a atomizar os homens em consumidores

215 Para saber maissobre a teoria do espaço social ver: LEFEBVRE, Henri. La production de l'espace. Paris: Anthropos, 1974.

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isolados, a proibir a comunicação. A vida cotidiana torna-se assim vida privada, domínio da

separação e do espetáculo. No entanto, segundo Debord, não se deve caracterizar o

subdesenvolvimento da vida cotidiana apenas por sua relativa incapacidade de integrar técnicas.

“Esse aspecto é um produto importante, mas ainda parcial, do conjunto da alienação diária, que

pode ser definida como a incapacidade de inventar uma técnica de libertação do cotidiano”

(DEBORD inJACQUES,1961,p.146). Debord observa que a vida cotidiana não criticada significa o

prolongamento das formas atuais da cultura e da política, ou seja, sua reprodução, portanto o

estudo da vida cotidiana seria uma tarefa ridícula e condenada ao fracasso se seu objetivo não fosse

de transformá-la. Logo, é necessário empreender pela crítica radical e por atos na vida cotidiana

existente uma ação que possa levar a uma “[...] superação da cultura e da política no sentido

tradicional, isto é, a um nível superior de participação na vida.” (DEBORDinJACQUES, 1961, p.145).

Ao revisar Lefebvre, Debord assume tom propositivo e retoma os termos riqueza e pobreza

da vida cotidiana. O conhecimento da riqueza profunda, da energia perdida da vida cotidiana, é

inseparável do conhecimento da miséria da organização dominante dessa vida, “só a existência

perceptível dessa riqueza inexplorada leva a definir por contraste a vida cotidiana como miséria e

como prisão [...]” (DEBORDinJACQUES, 1961, p.147). Indaga-se “‘A vida privada está privada de

quê?’ Da vida, que dela está cruelmente ausente” (DEBORD inJACQUES,1961,p.148). As pessoas

também estão privadas ao máximo de comunicação, e de realização pessoal. Segundo Debord, os

esforços devem ser direcionados “[...] sob a forma de enriquecimentos: projetos de outro estilo de

vida, ou seja de um estilo [...]” (DEBORD inJACQUES, 1961, p.148), ou então se a vida cotidiana é

considerada a fronteira entre o setor dominado e o setor não dominado da vida “[...] será preciso

substituir o presente gueto por uma fronteira sempre deslocável; trabalhar sem esmorecer para

organizar novas oportunidades” (DEBORD inJACQUES, 1961, p.148).

Debord defende que é a planificação da miséria operada pela esfera reacionária dos

dirigentes especializados que deve ser combatida, não se trata de uma fatalidade obscura da vida

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cotidiana condenada a permanecer reacionária, na realidade é uma fatalidade imposta

exteriormente à vida cotidiana, o que faz com que a vida das pessoas não mude efetivamente de

sentido (DEBORD inJACQUES, 1961, p.150). Propõe que a próxima tentativa do movimento

revolucionário, revisado e radicalizado pelas lições dos anteriores fracassos deverá:

[...] enriquecer-se na proporção dos poderes práticos da sociedade moderna –

poderes que desde já constituem virtualmente a base material que faltava às

correntes chamadas utópicas -, essa próxima tentativa de total contestação do

capitalismo saberá inventar e propor um outro uso da vida cotidiana, e logo se

apoiará em novas práticas cotidianas, em novos tipos de relações humanas. [...]

A revolução da vida cotidiana, quebrando sua atual resistência ao histórico (e a

todo tipo de mudança), criará condições tais que o presente consiga dominar o

passado, e que a parte da criatividade ganhe da repetitividade (DEBORD in

JACQUES, 1961, p.151).

Ao final do texto Debord remete aos esforços situacionistas, citando algumas de suas

propostas para a recriação de toda a vida cotidiana, o urbanismo unitário e o esboço de um

comportamento experimental, as derivas. “A produção central de um trabalho industrial

inteiramente reconvertido provocará o arranjo de novas configurações da vida cotidiana, a criação

livre de acontecimentos” (DEBORD inJACQUES, 1961, p.152), ou seja, de situações construídas. O

esforço situacionista, no seu primeiro período, como vimos, se dá pela transformação da vida

cotidiana pela revisão crítica do campo da cultura. É a partir do primeiro volume da obraCritique de

la vie quotidianne, no qual Lefebvre marca a dialética da miséria e da pobreza contidas na vida

cotidiana, que os situacionistas concentrarão seus esforços para propor meios de potencializar os

momentos apaixonantes da vida e despertar os indivíduos para a riqueza da vida cotidiana. No texto

Teses Sobre a Revolução Cultural, Debord explicita o objetivo situacionista.

Objetivo dos situacionistas é a participação imediata numa abundância passional

da vida, através da mudança de momentos perecíveis que são deliberadamente

preparados. O êxito desses momentos só pode ser seu efeito passageiro. Os

situacionistas pensam a atividade cultural, sob o aspecto de totalidade, como

método de construção experimental da vida cotidiana, a ser permanentemente

desenvolvido com a extensão dos lazeres e o desaparecimento da divisão do

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trabalho (a começar pela divisão do trabalho artístico)” (DEBORDin JACQUES,

1958, p.72).

A construção de situações é definida pela, “[...] construção concreta de ambiências

momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade passional superior.”(DEBORD in

JACQUES,1957,p.54), ou seja, a situação construída é a tentativa de propor experiências de

investimentos afetivos que reforçam o imaginário, que potencializam a capacidade criadora do

indivíduo, é uma proposta de despertar a riqueza da vida cotidiana. Os situacionistas acreditavam

que através dessa ação os próprios autores da situação construída deixariam de ser meros

figurantes urbanos passando gradualmente de espetadores para participadores, promovendo uma

transformação revolucionária da vida cotidiana. Além disso, a situação construída pretendia “[...]

elaborar uma intervenção ordenada sobre os fatores complexos dos dois grandes componentes

que interagem continuamente: o cenário material da vida; e os comportamentos que ele provoca

e que o alteram” (DEBORD inJACQUES,1957p.54).

Os situacionistas também propunham o Urbanismo Unitário (U.U.), desdobramento da

situação construída, o qual é formado por uma multiplicidade de situações construídas, que

utilizariam todos os recursos técnicos e artísticos possíveis para a libertação do indivíduo. Segundo

os situacionistas, as situações construídas levariam a transformação da vida cotidiana a uma

qualidade passional sem precedentes, porém, para promover a desejada transformação, será

necessário compreender a interação do ambiente construído com os comportamentos que ele

provoca. Interação que os conduzirão às primeiras formulações do estudo da psicogeografia, da

qual trataremos de forma mais extensa no capítulo três.

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3Cap

A crítica situacionista ao Movimento Surrealista

3.1 - Um breve histórico do Movimento Surrealista, da sua

fundação à atividade contemporânea.

3.2 - Um desvio racional: das deambulações à psicogeografia.

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3Cap

A crítica situacionista ao Movimento Surrealista

3.1 - Um breve histórico do Movimento Surrealista, da sua

fundação à atividade contemporânea.

3.2 - Um desvio racional: das deambulações à psicogeografia.

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3.1 - Um breve histórico do Movimento Surrealista, da sua

fundação à atividade contemporânea.

Pretendemos apresentar um breve histórico do Movimento Surrealista a partir da

cronologia das publicações de suas principais revistas, marcando os seus distintos períodos até a

manifestação das atividades e grupos surrealistas internacionais contemporâneos. Questionamos

a interpretação oficial, adotada por grande parte dos autores que tratam sobre a historiografia do

surrealismo, que data o fim do movimento com a morte do seu principal representante André

Breton, no ano de 1966 e a declaração oficial da dissolução do surrealismo proclamada no artigo Le

QuatrièmeChant, no ano de 1969, publicado pelos principais discípulos da segunda geração do

Movimento Surrealista.

André Breton (1896-1966) inicia o primeiro Manifesto do Surrealismo de 1924 criticando a

tirania das necessidades práticas, o espírito utilitarista da sociedade burguesa e a progressiva

limitação e encarceramento do espírito do homem. Para combater o processo de embrutecimento

do indivíduo, ele recorre à defesa da liberdade a qual é conquistada e potencializada através da

imaginação (GOMES, 1994, p.58).

A simples palavra liberdade é tudo o que me exalta ainda. Julgo-a apta para

alimentar indefinidamente o velho fanatismo humano. Ela responde sem dúvida

à minha única aspiração legítima. [...] Só a imaginação me traduz o que pode ser

[...] (BRETON, 1976, p.27).

À imaginação que não admite limitações, Breton remete a infância do homem na qual o

indivíduo goza da liberdade e vive as mais incríveis fantasias na ausência de qualquer rigor

conhecido. Porém, ao longo do tempo sofrendo, as “solicitudes dos domadores”, ele perde sua

capacidade de imaginação e libertação, encontrando-se em idade adulta sem “[...] as razões de

viver, tornado incapaz de se achar à altura de uma situação excepcional como o amor [...]”(BRETON,

1976, p.26), limitado apenas em exercer seu pensamento lógico e utilitário. Em defesa da

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imaginação, o poeta francês aborda a questão da loucura, apontando que os loucos de certa

maneira são “vítimas de sua imaginação”, pelo fato de ignorarem certas regras de conduta as quais

os levam a cometerem alguns atos legalmente repreensíveis, sendo penalizados com o seu

internamento. Apesar de ser retirada a sua liberdade – “aquilo que se vê da sua liberdade”, das

constantes críticas e corretivos que lhe são infligidos, eles permanecem presos à sua fantasia;

condição esta que leva Breton a supor que os loucos, em seus delírios, gozam de grande conforto

e prazer, “[...] de fato, as alucinações, as ilusões, etc., não são uma fonte de prazer a desprezar”

(BRETON, 1976, p.27).

A causa da limitação imaginativa da sociedade burguesa, segundo o poeta francês, é de

“vivermos ainda no reino da lógica” que promove o racionalismo absoluto que se limita a

“considerar os fatos estritamente pertencentes à nossa experiência” (BRETON, 1976, p.31), a

realidade, a qual se fecha dentro dela mesma ao apoiar-se na “utilidade imediata” (GOMES, 1994,

p.59). Deste modo negamos qualquer tentativa de “procura da verdade” que não esteja de acordo

com os critérios racionais, do “bom senso”, e “sob o pretexto do progresso”, abolimos do espírito

tudo o que “qualificamos de superstição, de quimera”. No entanto, afirma o poeta: “A imaginação

está talvez prestes a retomar os seus direitos”(BRETON, 1976, p.31),se referindo às descobertas

deSigmund Freud, as quais abrem novos horizontes às investigações do homem, que não se

limitarão mais apenas às “realidades sumárias”. Exaltando a obra de Freud, A Interpretação dos

Sonhos, publicada em 1899, Breton reflete: “Se as profundidades do nosso espírito contêm

estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou lutar vitoriosamente contra elas [...]”, ou

seja, forças do inconsciente são capazes de influenciar e alterar ações no consciente, “[...] há todo

interesse em captá-las, em captá-las primeiro para depois as submeter, se para tal houver motivos,

ao domínio da nossa razão” (BRETON, 1976, p.32).

Interessado no poder dos sonhos, Breton tenta refutar a ideia de que os momentos de

vigília, de realidade, na quantidade de horas, são superiores ao do sono, o que lhes confere maior

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importância. Afirma que o homem em seu estado de vigília é vítima de sua memória, a qual se

coloca o direito de fazer cortes no estado de sono contínuo, nos apresentando apenas uma série

de sonhos fragmentados, omitindo sua continuidade, transições e conexões, sua unidade. Conclui

que a soma dos momentos do sonho não é inferior à soma dos momentos de realidade, portanto

eles teriam a mesma importância de transformação da vida. Avançando nesse raciocínio ele

defende quatro aspectos do sonho.

Primeiro, levanta a hipótese de que ao contrário do que se pensa “[...] o sonho é contínuo

e tem o sinal da organização” (BRETON, 1976, p.33), se existe a inter-relação entre forças do

consciente e inconsciente, “como não está de modo nenhum provado”, por que a realidade não

pode existir no estado do sonho? Sendo assim, “[...] por que não heide esperar do índice do sonho

mais do que espero de um grau de consciência cada vez mais elevado? Não poderá também o sonho

ser aplicado à resolução dos problemas fundamentais da vida?”(BRETON, 1976, p.34). Segundo, o

estado de vigília seria uma interferência do sonho e não o contrário, pelo fato de, nesse estado, a

mente dar provas de “uma estranha tendência à desorientação”.Além disso, durante a vigília, o

indivíduo obedece às exigências do mundo dos sonhos a tal ponto que “ele só poderia explicar os

efeitos que determinados objetos lhe causassem através do sonho” (GOMES, 1994, p.60). Terceiro,

obedecendo às exigências do mundo dos sonhos, “o espírito do homem que sonha satisfaz-se

plenamente com o que lhe acontece” (BRETON, 1976, p.35); pode realizar todas as suas fantasias,

não existem limites opressores, “mata, voa mais depressa, ama tanto quanto quiseres”(BRETON,

1976, p.35), assim pode ser verdadeiramente livre.

Na quarta hipótese, Breton conclui seu raciocínio e determina o objetivo surrealista. Como

vimos, se existe uma conexão entre realidade e sonho, se a realidade permanece presente no

sonho, os surrealistas nos levam a crer que essa hipótese possa ser inversamente proporcional, que

o sonho permaneça na realidade.Assim sendo, o seu potencial de emancipação e libertação,que o

homem goza no seu estado onírico, pode penetrar e revolucionar a realidade. A partir do estudo

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sistemático dos mecanismos dos sonhos será possível compreende-los e utilizá-los na luta contra a

sociedade burguesa. Portanto, no momento em que forem resolvidas as contradições entre

realidade e sonho, se alcançará a surrealidade. Porém, Breton afirma que a desejada fusão entre

realidade e sonho será conquistada “por meios a determinar”, ainda desconhecidos dos

surrealistas.

Creio na resolução futura destes dois estados, aparentemente tão contraditórios,

que são o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de

surrealidade, se assim se pode dizer. É a conquista dela que eu caminho, certo de

não conseguir, mas suficientemente despreocupado com a minha morte para

não calcular um pouco as alegrias de tal posse (BRETON, 1976, p.36).

Álvaro Cardoso Gomes destaca que o objetivo surrealista, de fato, tenta resolver a principal

falha do modo de pensar do homem ocidental, que despreza um tipo de realidade a favor de outra,

gerando um indivíduo dividido “[...] incapaz de conciliar os contrários: o corpo e a alma, a matéria

e o espírito, o mundo exterior e o mundo interior” (GOMES, 1994, p.117). Os surrealistas atribuem

a essa incapacidade a causa da infelicidade humana. No texto Realidade Interior e Realidade

Exterior, escrito em 1934, dez anos após o primeiro manifesto, Breton retoma o conceito de

surrealismo iluminando o processo de fusão entre os polos opostos, realidade interior e exterior.

Para ele a ação sobre as duas realidades não pode ocorrer simultaneamente, “[...] pois isso suporia

que elas estão menos afastadas (e creio que aqueles que pretendem agir simultaneamente sobre

elas ou estão nos enganando ou são objetos de uma inquietante ilusão) [...]” (BRETON, 1992,

p.225)216. A ação sobre elas deve ocorrer paulatinamente, de forma sistemática para captar “[...] o

jogo de sua atração e de sua interpenetração recíprocas e de dar a esse jogo toda a extensão

desejável para que as duas realidades em contato tenham a tendência de se fundir uma na outra”

(BRETON, 1992, p.225).

216 BRETON, André. Qu’est-ce que le surréalisme?In: Oeuvres Complètes, v.II. Ed. Marguerite Bonnet, et al. Paris:

Gallimard, 1992.

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Na tentativa de encontrar uma nova expressão poética que estivesse, além do pensamento

racional e da lógica, coerente ao conceito de surrealidade, Breton se apoia no pensamento de Pierre

Reverdy para fundamentar o conceito de imagem e do processo de criação poética surrealista.

A imagem é uma criação do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação,

mas da aproximação de duas realidades mais ou menos distantes. Quanto mais

as relações das duas realidades aproximadas forem longínquas e corretas, mais

a imagem será forte – mais poder emotivo e realidade poética ela terá [...]

(REVERDY, 1918 apud BRETON, 1976, p.42)217.

O autor Álvaro Cardoso Gomes destaca que no fragmento de Pierre Reverdy estão

presentes dois princípios fundamentais do surrealismo. Primeiro, ele nega a comparação a qual

refere-se ao pensamento analítico, racional, por identificar previamente as realidades que devem

ser aproximadas, fundidas. Já no segundo o poder da imagem é proporcional à distância entre as

duas imagens a serem fundidas. Nesse processo o princípio da gratuidade é responsável pela

surpresa, pelo estranho, o qual é alcançado se o poeta não adotar nenhuma imagem a priori, só a

arbitrariedade leva ao Maravilhoso. Refletindo sobre as palavras de Reverdy, uma noite antes de

adormecer, Breton descreve que percebeu uma frase que surgia do seu pensamento, como se

ouvisse a uma voz interior, se repetindo insistentemente. A frase que o atormentava, ele não se

recordou exatamente, mas era alguma coisa como: “Há um homem cortado ao meio pela janela”

(BRETON, 1976, p.42), a qual não remetia a uma representação visual nítida, porém formava uma

imagem bastante rara que o convenceu a incorporá-la ao seu material de construção poética. A

partir do momento que ele deu crédito a esse tipo de manifestação do pensamento outras frases

como aquelas começaram a surgir e a gratuidade com que elas apareciam, pareceu para Breton,

ilusória a influência que elas exerciam sobre ele, decidindo finalizar o exercício. Na mesma época,

Breton se ocupava com as leituras de Freud, com as quais entrara em contato através da teoria da

psicanálise durante sua atividade como médico do exército francês, nos combates da Primeira

217REVERDY, Pierre. Nord – Sud, março de 1918.

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Guerra Mundial218. No conflito, Breton teve a oportunidade de aplicar o método de exame

psicanalítico em doentes traumatizados durante a guerra, que consistia em “[...] um monólogo de

fluência tão rápida quanto possível, sobre o qual o espírito crítico do indivíduo não faça incidir

qualquer juízo, que não se embarace, portanto, sem quaisquer reticências, e que seja tão

exatamente quanto possível o pensamento falado” (BRETON, 1976, p.44). Diante dessas

experiências o próprio poeta decidiu se submeter a esse tipo de exame e convidou seu amigo e

também poeta Philippe Soupault para acompanhá-lo nessa aventura.

Rapidamente os dois poetas começaram a preencher o papel com todas as palavras que

vinham no seu pensamento “[...] com um louvável desprezo pelo que dali poderia sair

literariamente”, ao final do dia se deparam com um material que se apresentou com uma

surpreendente analogia entre os dois poetas e uma substancial seleção de imagens poéticas de

elevada qualidade, que não teriam sido capazes de produzir com todos os tradicionais cuidados.

Depois a técnica veio a ser consagrada como escrita automática. Em homenagem a Guillaume

Apollinaire, que tinha morrido recentemente, Breton nomeia de Surrealismo o novo modo de

expressão, pelo fato de Apollinaire parecer ter sido tomado diversas vezes por um arrebatamento

desse gênero. Apollinaire também é responsável por ter utilizado pela primeira vez a palavra

surrealista para designar o seu drama Les mamelles de Tiresias219, de 1918 (GOMES, 1994, p.19).

Além da referência de Apollinaire, Breton cita Gérard de Nerval por ter utilizado na dedicatória das

Filles de feua palavra supernaturalismo, que possui o espírito desejado do surrealismo, enquanto

Apollinaire estaria apenas próximo da letra, ainda imperfeita para definir a teoria surrealista.

Portanto, Breton conclui definindo o surrealismo no primeiro manifesto como:

SURREALISMO, s. m. Automatismo psíquico puro, pelo qual se pretende exprimir,

verbalmente ou por escrito, ou de qualquer outra maneira, o funcionamento real

218 André Breton, por exigência da família, inicia seus estudos de Medicina no ano de 1913. Com o início da Primeira

Guerra Mundial, já é considerado apto ao trabalho em 1915 e enviado ao hospital da unidade de artilharia de Pontivy.

Depois é enviado para o hospital de Nantes e após a sua descoberta dos estudos deFreud é transferido, a seu pedido,

para o Centro de Neurologia em Saint Dizier. No final do ano de 1916, Breton é enviado à frente de batalha. 219 Texto original. Tradução do autor: “As mamas de Tirésias”

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do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de qualquer vigilância

exercida pela razão, para além de qualquer preocupação estética ou moral.

ENCICL. Filos. O Surrealismo assenta na crença na realidade superior de certas

formas de associação até aqui desprezadas, na onipotência do sonho, no

mecanismo desinteressado do pensamento. Tende a arruinar definitivamente

todos os outros mecanismos psíquicos e a substituir-se a eles na resolução dos

principais problemas da vida. Fizeram profissão de SURREALISMO ABSOLUTO os

Srs. Aragon, Baron, Boiffard, Breton, Carrive, Crevel, Delteil, Desnos, Éluard,

Gérard, Limbour, Malkine, Morise, Naville, Noll, Péret, Picon, Soupault, Vitrac

(BRETON, 1976, p.47).

Em Segredos da Arte Mágica Surrealista / Composição surrealista escrita, ou primeiro e

último jato, o qual compõe o primeiro manifesto surrealista, Breton sistematiza as condições

necessárias para produção da escrita automática. Escolha um lugar que favoreça a “concentração

do seu espírito sobre si mesmo”, entregue-se ao estado “passivo ou receptivo”, abstração do

talento individual, desprezo ao status de arte ou literatura do que será produzido, entregue-seà

vida passiva da inteligência (ritmo natural do pensamento) anotando seus pensamentos

rapidamente para não ter a tentação de relê-los. A primeira compilação dos materiais fruto da

escrita automática é o livro Les Champs magnétiques, de André Breton e Philippe Soupault, escrito

em 1919 e publicado em 1920. A composição das imagens surrealistas passa pelo mesmo princípio

da fusão de dois polos opostos. O poeta francês utiliza a metáfora da “Luz da imagem” para indicar

a conquista do maravilhoso, da surrealidade, indicando que se a diferença entre esses dois polos

não for significativa “a faísca não se produz”. Portanto, “não está no poder do homem consertar a

aproximação de duas realidades tão distantes”(BRETON, 1976, p.59), como ocorre no processo de

comparação mediado pela razão. O verdadeiro processo se opõe a isso, “os dois termos da imagem

não são deduzidos um do outro pelo espírito tendo em vista a faísca a produzir”, eles são

simultaneamente produzidos na atividade chamada surrealista, “limitando-se a razão a verificar e

a apreciar o fenômeno luminoso” (BRETON, 1976, p.59).

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144

Após definir os conceitos do movimento no primeiro Manifesto Surrealista, no ano de 1924,

o primeiro período de desenvolvimento do surrealismo foi marcado pela publicação da revista La

Révolution surréaliste, contando com doze números publicados. Os seus primeiros editores foram

os escritores Pierre Naville e Benjamin Péret, os quais direcionaram os primeiros números da revista

para explorar uma série de questões relacionadas aos lados mais obscuros e subversivos da psique

do homem, com temas focados no suicídio, na morte e na violência. Preocupado com o início de

algumas desavenças no grupo, Breton assume o cargo de editor da revista em 1925, durante a sua

quarta edição e, logo no ano seguinte, inicia o direcionamento da revista para um engajamento

político, publicando artigos pró-comunismo. Breton entra para o Partido Comunista Francês – PCF

em 1927, entretanto, apenas publicará o Segundo Manifesto do Surrealismo em dezembro de 1929,

no décimo segundo número de La Révolution surréaliste. O segundo manifesto marca uma ruptura

dentro do grupo e o início da segunda fase de desenvolvimento do movimento, no qual o

engajamento político e a revolução social são as principais preocupações de Breton. La Révolution

surréaliste, seguindo a nova orientação do movimento, muda seu título para Le Surréalisme au

Service de La Révolution (Le S.A.S.D.L.R.), no ano de 1930, e são publicadas seis edições até maio de

1933, mesmo ano no qual Breton é expulso do PCF (HOFMANN, 2001, p.17).

A adesão do Movimento Surrealista ao PCF não teve o apoio de todos os surrealistas, os

quais eram contrários à estrutura centralizadora do partido, como Soupault e Artaud. O grupo

dissidente dos surrealistas passou a organizar o periódico Documents, o qual teve como seu editor

o poeta Georges Bataille, e seu principal colaborador o poeta Michel Leiris. Documents também

tinha um conselho editorial composto por professores universitários e outros estudiosos vinculados

à academia, seu principal objetivo era tentar definir novas diretrizes para o futuro do movimento e

procurar minar as afirmações de Breton. A sua primeira edição foi publicada em abril de 1929,

seguida de outros quatorze números publicados até o final de 1930, quando foi encerrada

(HOFMANN, 2001, p.19).

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Breton utiliza o segundo manifesto para exaltar os seus apoiadores, atacar os seus traidores

e defender o engajamento político do movimento em sua nova fase. O Maravilhoso que o

surrealismo busca realizar nos homens deve compartilhar do mesmo princípio de subversão social,

logo, aqueles que acreditam nele como resolução dos problemas da vida, não podem ser tolerantes

“com uma máquina de conservação social”. Quando a verdade surrealista proclamada em seus

livros se tornarem atos na vida cotidiana, “Então será preciso que uma moral nova substitua a moral

corrente, causa de todos os nossos males” (BRETON, 1976, p.67).

[...] concebe-se que o surrealismo não tema arvorar em dogma a revolta

absoluta, a total insubmissão, a sabotagem em regra, e ainda que nada tenha a

esperar senão da violência. [...] A legitimação desse ato não é, na minha opinião,

de modo nenhum incompatível com a crença naquele clarão que o surrealismo

procura revelar no fundo de nós. Apenas quis aqui reintegrar o desespero

humano, para aquém do qual nada poderia justificar esta crença. É impossível

concordar com uma sem concordar com o outro(BRETON, 1976, p.153).

O poeta francês comenta que a posição revolucionária do surrealismo já é suficientemente

conhecida, mas faz questão de enfatizá-la de maneira categórica, proclamando que “tudo está por

fazer”, todos os novos meios devem ser válidos para destruir “[...] as ideias de família, de pátria, de

religião” (BRETON, 1976, p.156). Os surrealistas não se cansam de gozar do prazer iconoclástico

diante dos símbolos positivistas da ordem social estabelecida e condenam tanto os homens que

defendem a ordem estabelecida, quanto os intelectuais e artistas que se propõem apenas a

especular no plano das ideias, afastados da ação efetiva de transformação da realidade.

[...] a necessidade que não os abandona de se divertirem como selvagens diante

da bandeira francesa, de vomitarem o seu nojo à cara de todos os padres e de

apontar contra a cambada dos ‘deveres fundamentais’ a arma de longo alcance

do cinismo sexual. Nós combatemos sob todas as suas formas a indiferença

poética, a distração de arte, a investigação erudita, a especulação pura, nada

queremos ter de comum nem com os pequenos nem com os grandes poupadores

do espírito (BRETON, 1976, p.157).

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Em defesa do engajamento do surrealismo e da entrada de seus membros no Partido

Comunista Francês, Breton recorre à dialética hegeliana para se contrapor àqueles que discordam

da atuação social do surrealismo. No segundo manifesto do surrealismo, Breton afirma que “[...] o

princípio de uma vontade que não age senão por sua própria conta e inteiramente inclinada a

refletir-se sobre si mesma” (BRETON, 1976, p.165), é um absurdo, e cita Hegel, o qual mostra que

a “moralidade”, entendida como “convicção formal”, “só se produz em primeiro lugar na vida

social” (BRETON, 1976, p.166). Logo Breton invoca ao surrealismo outro objetivo além “[...] da

resolução de um problema psicológico [...]”, a imperiosa necessidade da questão “[...] do regime

social sob o qual vivemos, isto é, a da aceitação ou não aceitação desse regime” (GOMES, 1994,

p.101).

Breton prossegue no manifesto buscandodemonstrar a estreita relação estabelecida entre

o método surrealista e a dialética hegeliana e esclarece que o surrealismo sempre buscou “[...]

empreender o processo das noções de realidade e imaginação, de razão e desrazão, de reflexão e

impulso, de saber e ignorância ‘fatal’, de utilidade e inutilidade, etc.[...]”, assim ele opera no mesmo

método do materialismo histórico o qual Breton se refere como o “‘aborto colossal’ do sistema

hegeliano”220 (BRETON, 1976, p.166). Portanto para Breton, o pensamento surrealista está

completamente adaptado “[...] à negação, e à negação da negação”, logo ao materialismo dialético.

A partir dessa reflexão, Breton vai questionar porque os princípios hegelianos só poderiam ser

aplicados à “resolução dos problemas sociais” ou estarem limitados ao “enquadramento

econômico”. O poeta francês afirma: “Toda a ambição do surrealismo é fornecer-lhe possibilidades

de aplicação, de modo algum concorrentes no campo do consciente mais imediato” (BRETON, 1976,

p.166), o surrealismo apenas deseja contribuir e ampliar os questionamentos revolucionários em

220“Por lógica de identidade deve-se entender a de Aristóteles, em cujas categorias de pensamento a nossa linguagem

corrente ainda se move. Por lógica de contradição entenda-se a de Hegel, que inverte um dos postulados fundamentais

de Aristóteles, ao estabelecer que uma coisa é e não é ao mesmo tempo.” (SENA in BRETON, 1976, p.14).

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relação aos problemas “[...] do amor, do sonho, da loucura, da arte e da religião”, desde que

encarados da mesma perspectiva do comunismo. Breton denuncia tanto as forças conservadoras

como o sectarismo revolucionário, os quais acusam o surrealismo de ser um movimento idealista.

Em defesa do movimento, ele afirma: “Ora, eu não temo dizer que antes do surrealismo nada de

sistemático fora feito nesse sentido (do amor, do sonho, etc.) e que no ponto em que o

encontramos também para nós o método dialético era, sob sua forma hegeliana, inaplicável”

(BRETON, 1976, p.167).

Após demonstrar que o surrealismo está plenamente apto aos princípios do materialismo

histórico e não se constitui como um pensamento idealista, Breton expressa o seu

descontentamento com o Partido Comunista Francês ao acusá-lo de tratar os surrealistas “[...]

apenas como animais curiosos destinados a exercitar nas suas fileiras a parvoíce e a desconfiança

[...]”(BRETON, 1976, p.169); relata que foi interrogado três vezes na sede do PCF acusado do

surrealismo ser “[...] um movimento político de orientação nitidamente anticomunista e contra-

revolucionária”, alegavam: “Se o senhor é marxista, [...] não tem necessidade de ser surrealista”

(BRETON, 1976, p.169). O poeta francês ironiza como poderia existir tamanho enfraquecimento do

nível ideológico do pensamento original de Marx e Engels, aos quais ele se refere como “[...] duas

das mais fortes cabeças do século XIX!”, e a aplicação prática desses mesmos princípios pelo PCF;

cita que seus partidários estão mais preocupados com “[...] a ideia de que ‘o homem é aquilo que

come’ e que uma revolução futura teria mais possibilidades de êxito se o povo recebesse melhor

alimentação, neste caso, ervilhas ao invés de batatas” (BRETON, 1976, p.168).

Ao longo de todo o período de engajamento de Breton no PCF, de 1927 a 1933, ele nunca

foi bem recebido, chegando a se considerar um dos intelectuais mais indesejados no partido. As

constantes críticas que fazia aos frustrantes rumos da revolução russa, os elogios ao pensamento

de Trotsky e o agravamento dos atritos, devido ao aumento da burocratização e ao dirigismo

artístico sob orientação do Realismo Socialista, finalmente levam à sua expulsão. O fim do período

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de engajamento de Breton no PCF coincide com o fim das publicações da Le S.A.S.D.L.R., talvez

devido à orientação militante da revista unida ao desencantamento de Breton com o PCF, que

possivelmente levou as vendas a caírem significativamente. Sem apoio financeiro ela foi encerrada.

Na história da conflituosa relação dos surrealistas com o PCF, é importante destacar a drástica

passagem do poeta René Crevel, o qual se empenhou de todas as formas em aproximar surrealistas

e comunistas. Em 1935 organiza o primeiro Congresso Internacional dos Escritores para a Defesa

da Cultura, proposta da A.E.A.R sob o controle do PCF. Durante o congresso, após uma série de

discussões e agressões os surrealistas não puderam se pronunciar com liberdade, o PCF retirara a

palavra de Breton afastando os demais surrealistas do congresso. Depois de tantos esforços e

incessantes discussões para que se devolvesse a palavra a Breton, no dia 18 de junho, Crevel se

suicida. Em um pedaço de papel escreve “Prière de m’incinérer”221. Somente após o ato de

desespero do poeta, no dia 25 de junho, com um auditório vazio, o texto de André Breton foi lido

pelo poeta Paul Éluard.

Em seguida às dificuldades financeiras de Breton, o editor Albert Skira o procura para lhe

apresentar uma proposta de uma nova revista surrealista, uma versão luxuosa com ilustrações

coloridas e um formato liso. Skira garantiu a Breton que a futura revista cobriria todos os interesses

surrealistas: filosofia, artes, arqueologia, psicanálise e cinema; sua única restrição era não poder

tratar as posições surrealistas em relação às questões sociais e políticas. Diante da sua

desesperadora condição financeira, Breton consente em colaborar temporariamente com Skira e,

em junho de 1933, saem as duas primeiras edições de Minotaure, com capa ilustrada por Pablo

Picasso e Gaston Louis Roux (HOFMANN, 2001, p.20).

A terceira fase do Surrealismo se inicia com a edição de Minotaure, na qual o movimento

perde o seu vigor inicial e abre mão de suas transformações sociais, porém, em contrapartida,

ganha grande repercussão com o público não especializado, consagrando o surrealismo como

221Texto original. Tradução do autor: “Por favor, incinere-me”.

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movimento catalisador das artes modernas e consequentemente exercendo uma hegemonia no

mundo das artes até a Segunda Guerra Mundial. Albert Skira consegue realizar os seus sonhos

durante esse período fazendo com que Minotaure seja considerada uma autoridade “no espírito

do movimento moderno”, reunindo diferentes artistas de vanguarda sob uma reorientação de

caráter enciclopédico, voltados para o público de arte “mainstream”. A revista foi o veículo mais

eficaz para a promoção do imaginário surrealista, foi a primeira a reproduzir uma escultura de

Picasso, bem como algumas das mais provocantes imagens de Salvador Dalí e serviu para projetar

mundialmente artistas surrealistas ainda desconhecidos. Foram publicados doze números de

Minotaure, no entanto, com a Europa em uma recessão econômica profunda e à beira da Segunda

Guerra Mundial, Skira já não conseguia mais manter suas luxuosas revistas e, em fevereiro de 1939,

foi lançada a última edição de Minotaure (HOFMANN, 2001, p.23).

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, os surrealistas se refugiam em Nova York. Por

volta de 1940, Breton, Dalí, Man Ray, Yves Tanguy e outros, chegam à cidade. Logo em seguida, os

surrealistas se organizam para promoverem novas publicações que abordassem os interesses do

grupo. Em setembro de 1940, a primeira edição da revista View, editada por Charles Henri Ford, foi

publicada. Viewtinha uma ampla abrangência dentro do campo das artes, abordando diferentes

manifestações artísticas que continham um caráter moderno. Entre os anos de 1940 e 1947 foram

publicadas trinta e uma edições. Apesar do âmbito da revista ser amplo, às vezes Viewdava um

espaço especial ao surrealismo, dedicando os números sete e oito, de outubro e novembro de 1941,

exclusivamente aos artistas surrealistas. Em outubro de 1942, outra revista que representava o

surrealismo foi lançada, a VVV, publicada pelo jovem escultor americano David Hare e contava com

a participação de Breton, Ernst e Duchamp no seu conselho editorial. VVV partia do modelo de

Minotaure e era mais substancial do que View, abrangendo temas da poesia, das artes plásticas, da

antropologia, da sociologia e da psicologia. A revista deu grande exposição para os artistas

surrealistas exilados nos Estados Unidos da América e contribuiu para estabelecer as influências do

movimento na comunidade artística de Nova York, contando com contribuições do artista Robert

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Motherwell e do crítico Harold Rosenberg. Foram publicadas apenas quatro edições de VVV, tendo

sua última edição saído em fevereiro de 1944. As revistas nova-iorquinas do surrealismo

influenciaram de maneira efetiva e libertadora a nova geração de artistas norte-americanos, os

quais mais tarde fariam parte do movimento expressionista abstrato (HOFMANN, 2001, p.23).

Após o fim da guerra Breton retorna à Paris em 1946 e retoma as atividades do grupo

surrealista de Paris apoiando e legitimando a sua nova geração de artistas, a qual se destacou

principalmente o poeta e escritor francês Jean Schuster (1929-1995). Os novos e jovens surrealistas

do grupo de Paris organizavam as publicações Néon (1948-1949), Médium (1953-1954), Le

Surréalisme Même (1958-1959), La Brèche (1961), Bief, L’Archibras e Coupure (1969-1972), as quais

foram alvo da crítica dos situacionistas. O período de formação da nova geração francesa do

surrealismo é o mesmo de formação das vanguardas que deram origem à I.S., as quais tentaram

superar o ideário surrealista, logo as principais críticas realizadas contra o Movimento Surrealista

presente nos boletins da I.S. são direcionadas a essa nova geração do pós-guerra.

A morte da figura aglutinadora que representara André Breton no ano de 1966, seguida da

explosão de Maio de 1968, pareceu abalar as bases que sustentavam a atividade comum do

Movimento Surrealista, principalmente o grupo francês que se organizava em Paris. Marcada por

discordâncias internas reveladas nas diferentes posturas assumidas pelos seus membros, a forma

de compreender e dar continuidade à atividade do grupo parecia divergir. Enquanto alguns

preferiam refletir os eventos recentes e seus desdobramentos, outros estavam mais interessados

na produção criativa e em poesia, o que inevitavelmente acabou conduzindo a uma crise e ao

desgaste interno.

Foram meses de desentendimentos entre seus membros, até que em 4 de outubro de 1969,

três anos após a morte de Breton, foi publicado no jornal Le Monde, o artigo intitulado Le Quatrième

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Chant, em que Jean Schuster222, José Pierre e Gérard Legrand declaramoficialmente a dissolução do

movimento na sua manifestação histórica, coletiva e organizada (GIRARD et al., 2010, p.13)223.

Apoiado por alguns, e justificando o seu fim com base em uma falta de coesão interna constatada

por eles e outros membros do grupo desde fevereiro daquele ano, Schuster afirma que parte do

movimento, o qual ele se inclui, em contraposição aos membros que pareciam prontos a perseguir

indefinidamente uma atividade conjunta, renuncia manter uma atividade “[...] sem qualidade,

esvaziada de sentido” (LE MONDE apud GIRARD et al., 2010, p.14)224. Grande parte dos

historiadores e estudiosos acadêmicos adotam a publicação do artigo Le Quatrième Chant, como

marco do fim das atividades oficiais do Movimento Surrealista. Entretanto, esses estudiosos

resistem a reconhecer ou simplesmente ignoram a legitimidade dos grupos surrealistas

internacionais, os quais se organizaram e reagiram contrariamente ao documento, se mantendo

atuantes até a presente data. Hoje os grupos surrealistas ativos se encontram nas cidades de Paris,

Praga, Estocolmo, Leeds, Madrid, Chicago, Buenos Aires e São Paulo. Na década de noventa

assistiram ao florescimento de suas revistas S.U.R.R.(Paris), Analogon(Praga), Salamandra(Madrid),

Stora saltet(Estocolmo), Arsenal(Chicago) e Manticore(Leeds). Situação que confere ao Movimento

Surrealista atual um lugar muitas vezes marginal, alhures dos meios de comunicação e da crítica

acadêmica (LÖWY, 2002, p.103)225.

Considerada por muitos uma manifestação incoerente às determinações conjuntas deste

movimento internacional, que prezava pela ausência de hierarquia e de sobreposições individuais

ou entre os grupos, a autoritária e fracassada tentativa de sabotar o movimento recebeu diversas

reações pelo mundo. Dentre as quais destaca-se aquela do grupo surrealista tchecoslovaco, que na

222 Enquanto executor testamentário de tudo que concerne aos arquivos do movimento surrealista, ele organiza junto a

José Pierre (1927-1999) e Gérard Legrand (1927-2001), a revista Coupure, publicada entre 1969 e 1972. 223GIRARD, Guy. et al. Insoumission poétique: trats, affiches et déclarations du groupe de Paris du mouvement surréaliste,

1970-2010. Paris: Le temps des cerises, 2010. 224Tradução do autor. Texto original: “[...] sous label, vidée de toute signification” (LE MONDE, 1969). 225 LÖWY, Michael. A estrela da manhã: surrealismo e marxismo; trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2002.

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totalidade de seus membros, questionou a determinação de Schuster, apontando, inclusive, para a

“Plate-forme de Prague”, recém assinada entre os membros dos dois países,“[...] la Plate-forme

dePrague qui ouvrait grand les champs de l’investigation et témoignait de la qualité des affinités

électives, si importantes dans le mouvement”226 (GIRARD et al, 2010, p.14). Em comum, esses

grupos resistentes conservavam a vontade de dar prosseguimento às práticas subversivas do

surrealismo, unidos pela revolta e o desejo de um mundo transformado.

Tal vontade de perseguir, sobre novas bases, a atividade coletiva ficou evidente após as

diversas discussões e a realização do texto seguido de uma enquete intitulada Rien ou quoi?227,

concebida por Vicent Bounoure (1928- 1996). Endereçada a alguns membros do movimento de

diversos países, mas respondida por apenas 44 dos 100 solicitados228, a enquete, seguida de seus

retornos, foi publicada em 1970 sob o título Pour communication (LÖWY, 2002, p.100) e marca,

para aqueles que expressaram a vontade de continuidade, uma retomada da atividade coletiva

(GIRARD et al., 2010, p.14).

Para os parisienses, no lugar de ocupar espetacularmente o lugar público e de se aproximar

de um mundo em esfacelamento, o grupo deveria centrar a retomada das atividades sobre

pesquisas e investigações internas reencontrando assim, o gosto de agir conjuntamente (GIRARD

et al, 2010, p.14-15). Tal posição foi reforçada pelo grupo tchecoslovaco, que naquele período havia

tido sua revista, Analagon, interditada após a instauração da “normalização”229 do governo

soviético, que lhes proibia igualmente, de se expressarem publicamente.

Nesse contexto, foi lançada em 1970 a primeira edição do Bulletin de liaison surréaliste

(BLS), que incorporou produções de diversos membros do grupo francês, além de um texto

226 Texto original. Tradução do autor : “[...] que abria os campos de investigação e testemunhava a qualidade das

afinidades eletivas, tão importante ao movimento”. 227Texto original. Tradução do autor: “nada ou o que?”. 228 O grupo de Praga emitiu uma única resposta, em nome do grupo, afim de marcar a unidade da posição assumida. 229 Período subsequente à primavera de Praga (1968), instaurado pelo governo soviético, que durou até 1989, com a

Revolução de Veludo. O referido período foi marcado pela censura e supressão dos direitos individuais.

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denunciando a situação dos surrealistas tchecoslovacos naquele período, escrito pelo poeta e

artista eslovaco, Albert Marencin. Publicado entre 1970 e 1976, o Bulletin de liaison surréaliste,

contou com dez volumes de textos e imagens desse intercâmbio entre os grupos.

Devido a essa aproximação entre os grupos parisiense e tchecoslovaco, diversas

publicações, dentre as quais a obra coletiva La Civilization surréaliste230, coordenada pelos poetas

Vincent Bounoure e Vratislav Effenberger, e após a última edição do BLS, as duas edições da então

nova revista Surréalisme231, são publicadas em cooperação na segunda metade dos anos 1970. Este

período também marca a colaboração mútua entre os grupos parisiense e de Chicago e a denúncia

da prisão do cineasta surrealista brasileiro Paulo Antônio de Paranaguá e da sua esposa cineasta

Maria Regina Pilla, encarcerados durante a ditadura militar argentina, ampliando assim, tanto a

cooperação internacional, quanto a manifestação pública do grupo. No ano de 1977, o poeta e

pintor surrealista português Mário Cesariny lança o livro Textos de Afirmação e de Combate do

Movimento Surrealista Mundial232, o qual traz uma rica documentação sobre os grupos surrealistas

latinos americanos e europeus. Nesse sentido, a década de 1970 é marcada pela intensa atividade

dos grupos, que apesar do distanciamento de diversos de seus membros mantêm uma cooperação.

Durante o período, o Grupo de Paris ganha força com a chegada de novos membros tais como

Michel Lequenne e o sociólogo brasileiro Michael Löwy.

Os anos 1980, ao contrário, são difíceis para o grupo de Paris que, abalado pela morte das

poetisas e artistas, Micheline Bounoure e Marianne Van Hirtum, acaba reduzindo suas atividades.

Apesar disso, a ponte estabelecida entre os grupos tchecoslovacos e parisiense é mantida, e uma

produção sobre as lembranças da pequena infância e seu papel na constituição de uma “morfologia

mental”, conduzida por Vratislav Effenberger em 1977, é retomada em 1982 pelo grupo parisiense.

230Coordenado pelos poetas Vincent Bounoure e Vratislav Effenberger, publicado em 1976. BOUNOURE, Vincent. La

civilisation surréaliste. Paris: Payot, 1976. 231 As suas duas edições foram publicadas em 1976 e 1977, pelo editor Savalli. 232CESARINY, Mário.Textos de afirmação e de combate do movimento surrealista mundial. Lisboa: Editora Perspectivas

e Realidades, 1977.

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Também nessa década, em 1987, Michael Löwy publica o texto Hermetic Bird233em resposta à

crítica do filósofo Jürgen Habermas a uma suposta tentativa surrealista “[...] de forçar uma

reconciliação entre a arte e a vida”234 (GIRARD et al, 2010, p.17).

Diferente da década anterior, a entrada dos anos 1990 é marcada por uma aceleração das

atividades do grupo parisiense, principalmente nos primeiros anos, período no qual novos

componentes passam a integrar o grupo, dentre os quais o artista Guy Girard. Logo após o fim da

Guerra Fria, e consequente dissolução da Cortina de Ferro, o grupo parisiense manifesta-se contra

os preparativos da Guerra do Golfo com a publicação na imprensa do folhetim intitulado À la

mémoire des cadavres futurs235, posição que rendeu a chegada de novos membros ao grupo e a

publicação de um segundo folhetim coletivo, Mirages236, em fevereiro de 1991. Essa chegada de

membros mais jovens, atraídos pelo mesmo desejo, rendeu o aumento das discussões, das práticas

de jogos e das trocas que vieram permear essa primeira metade dos anos 1990.

No mesmo período, junto aos membros de Praga, foi comemorada a reaparição da revista

tchecoslovaca Analagon, que havia sido interditada durante dez anos em decorrência da

“normalização”. Para tal celebração, foi realizada na associação Hourglass, em Paris, uma exposição

intitulada Analagon, à travers des couleurs du temps237 em que também participou o jovem Grupo

de Estocolmo do movimento surrealista. Na ocasião, animados com a possibilidade de encontro e

também devido à retomada das atividades públicas do grupo tchecoslovaco, nasce o projeto da

publicação do primeiro número do Bulletin Surréaliste International, que coordenado pelo grupo

sueco, foi publicado em junho de 1991, com a participação dos grupos de Paris, Madrid, Praga,

Chicago e Buenos Aires.

233 O texto foi publicado em Londres, no Praxis International, e assinado pelos grupos tcheco e parisiense. Também foi

apoiado por vários surrealistas de Buenos Aires e pelo músico Peter Wood (GIRARD, 2010, p.17). 234Tradução do autor. Texto original: “[...] de forcer une réconciliation entre l’art et la vie” (HABERMAS in GIRARD et al,

2010, p.17). 235Texto original. Tradução do autor: “À memória dos cadáveres futuros”. 236Texto original. Tradução do autor: “Miragens”. 237Texto original. Tradução do autor: “Analagon, pelas cores do tempo”.

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Nesse sentido, os anos seguintes são marcados por uma intensa articulação dos diversos

grupos surrealistas, evidenciada pela publicação do segundo Bulletin Surréaliste International,

lançado em Paris, mas assinado pelo conjunto dos grupos que compôs o boletim anterior, somado

aos novos de São Paulo, Austrália, Grã-Bretanha, Dinamarca e Holanda. Este boletim, publicado em

1992, surge no contexto da comemoração do quinto centenário do “descobrimento” das Américas

e denuncia, através do texto Tant que les Voyeurs parviendront à substituer aux voyants238, o

etnocentrismo da civilização ocidental, bem como a “[...] la destruction orchestrée et rationnelle

des peuples et des culturel indigènes”239 (GIRARD et al, 2010, p.18). A efervecencia surrealista

retomada na década de noventa se manifesta internacionalmente pela articulação de seus diversos

grupos.

Segundo cronologia proposta pelo poeta e escritor surrealista brasileiro Sergio Lima, no

texto Notas acerca do movimento surrealista no Brasil (da década de 1920 aos dias de hoje), a

atividade surrealista no Brasil se dá sobretudo no eixo Rio de Janeiro – São Paulo, a qual é dividida

em quatro períodos distintos. O primeiro período (1921-1959) começa com a visita do poeta francês

e cofundador do Movimento Surrealista Benjamin Péret no Brasil, o qual permanecerá de fevereiro

de 1929 a dezembro de 1931 e vai até o começo dos anos sessenta. Esse período é marcado por

uma presença difusa do ideário surrealista que não chega a formar um grupo surrealista no Brasil.

O segundo período (1961-1984) se inicia com a articulação entre o grupo surrealista de paris e a

futura formação do primeiro grupo surrealista de São Paulo. Articulação promovida por Sergio Lima

que começa com sua estadia em Paris ao longo de um ano, de 1961- 1962, período no qual André

Breton convida-o oficialmente a participar das atividades do grupo de Paris. Retornando ao Brasil,

Sergio Lima dá início as discussões acerca do surrealismo em São Paulo em fins de 1962, o qual

contará com a colaboração dos artistas Roberto Piva e Cláudio Willer. Dentro das atividades

promovidas, destaca-se o início da pesquisa documental sobre as estadas de Benjamin Péret no

238 Texto original. Tradução do autor : “Enquanto os observadores consigam substituir os videntes”. 239Texto original. Tradução do autor : “Destruição orquestrada e racional dos povos e das culturas indígenas”.

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Brasil, a qual resulta na publicação que dá início à Association des Amis de Benjamin Péret, em 1963;

e na organização da I Exposição Surealista no Brasil, realizada em agosto de 1967, a qual obteve o

aval por escrito de André Breton e de todo o grupo de Paris, sendo considerada a décima terceira

exposição internacional do movimento. É importante destacar que a exposição se desdobra no

primeiro número de seu catálogo-revista A Phala, organizada por Sergio Lima, a qual foi a primeira

participação dos grupos surrealistas de Lisboa, Buenos Aires e São Paulo numa mostra internacional

do movimento. Nesse interim, o primeiro grupo surrealista de São Paulo é oficialmente formado

em 1965, mantendo atividades até 1969. Esse organizou-se pela iniciativa dos artistas Sergio Lima,

Roberto Piva e Cláudio Willer, contando posteriormente com a contribuição de Antônio Fernando

de Franceschi, Décio Bar, Raul Fiker, Leila Ferraz e Maninha. O terceiro período (1985-1999) se

organiza a partir da fundação do segundo grupo surrealista São Paulo-Fortaleza, formado em 1991

com produção significativa até 1999, com a participação de Sergio Lima, Heloísa Pessoa, Laila Aiach,

Lya Paes de Barros, Zoca Barros, Ivanir de Oliveira, Josifa Aharony, Nicole Evelyne Reiss, Nelson de

Paula, Juan Hernández, Floriano Martins, Hilton Seallwright, Zuca Saldanha (Hamburgo) e Michael

Löwy (Paris). O quarto período que se inicia nos anos 2000, ou período atual, marca um novo

momento do movimento surrealista no Brasil e no quadro internacional caracterizado pela ênfase

editorial, eventos e exposições (LIMA in LÖWY, 2018, p.121)240.

O período atual no Brasil se destaca a fundação do grupo DeCollage, fundado pelo poeta e

colagista Alex Januário e pelo poeta e ensaísta Marcus Salgado, o qual é um dos pioneiros na

divulgação não acadêmica das obras situacionistas no Brasil através da organização do site

Rizoma.net241; os quais passam a colaborar no cenário local e internacional do movimento

surrealista através de intervenções, práticas de derivas e a organização da exposição realizada em

2004, a qual contou com a participação de membros do surrealismo internacional. Soma-se à

240 LÖWY, Michael. A estrela da manhã: surrealismo e marxismo; trad. Eliana Aguiar. 2.ed. São Paulo: Boitempo, 2018. 241O Rizoma.net foi um importante site no cenário nacional que abrigou rico acervo de artigos sobre ativismo, cibercultura e intervenção urbana, sob edição de Ricardo Rosas e Marcus Salgado. O site saiu do ar no ano de 2009, entretanto é possível encontrar atualmente na rede pdf dos conjuntos dos textos publicados.

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atividade editorail da Loplop Livros e Edições, criado por Alex Januário, espécie de um “bureau de

recherche surréalistes”, e as mostras da Fundação Cupertino Miranda, em Vila Nova de Famalicão,

em Portugal, além da publicação dos números 2 e 3 da revista-almanaque A Phala, organizadas por

Sergio Lima.

A referida efervecencia das atividades surrealistas presentes na década de noventa é

antecedida em cinco anos pelo grupo surrealista de São Paulo. O seu terceiro período no qual é

fundado o segundo grupo surrealista São Paulo-Fortaleza, em 1991, se inicia seis anos antes com a

organização da Semana Surrealista de São Paulo, realizada no ano de 1985, na qual foi aticulado

importante corpo crítico das primeiras traduções para o português de poemas e livros de Benjamin

Péret, André Breton e Julien Gracq. O evento organizado em parceria com a Aliança Francesa e pelo

Consulado Geral da França em São Paulo, trouxe José Pierre e Jean Schuster, e contou com a

participação dos surrealistas paulistas e do grupo surrealista de Buenos Aires. Os surrealistas

portenhos publicaram durante o evento um manifesto criticando a “morte do movimento em 1969”

defendida por Schuster e Pierre, posição que aproximou os dois grupos que passaram a ter

atividades conjuntas (LIMA in LÖWY, 2018, p.142). A postura crítica à “morte do movimento em

1969” também se manisfesta, no final de 1992, no grupo parisiense, o qual se posiciona

publicamente contra a solicitação conduzida por Jean-Claude Silbermann e Jean Schuster ao

presidente da república da França. Nela ambos solicitavam a recuperação e organização oficial dos

documentos e arquivos surrealistas, o que foi considerado incoerente pelo grupo devido à “[...] son

refus de toute compromission avec le pouvoir et son irréductibilité à la notion de patrimoine242

(GIRARD, 2010, p.18). Ainda em discordância com a dupla, no ano seguinte, em uma homenagem

oficial à Benjamin Péret243, os membros do grupo de Paris, acompanhados de vários amigos,

organizam um imprevisto e alegre piquenique por ocasião da homenagem exatamente no

242Texto original. Tradução do autor : “[...] recusa de qualquer compromisso (movimento surrealista) com o poder e a sua

irredutibilidade à noção de patrimônio. 243 Ocorrida no Centro George-Pompidou, em Paris.

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momento em que seria passado o filme L'invention du Monde, do qual Michel Zimbacca é coautor.

Tal intervenção resultou na suspensão da passagem do filme e no acionamento da polícia para a

expulsão dos supostos “baderneiros” (GIRARD, 2010, p.19).

A aproximação da revolta surrealista àquela anarquista, também é um ponto explorado

durante essa década por André Bernard, que retomando algumas reflexões de André Breton e de

Arturo Schwarz, propõe o prosseguimento do debate entre os movimentos, o que resultou além da

aproximação, na participação do grupo parisiense em diversas manifestações sociais, dentre as

quais a greve contra o desemprego (1995) e as manifestações dos “sans-papier”244 (1996).

Nos anos seguintes desta década, as atividades do grupo parisiense, sejam elas internas ou

públicas, nos atos e movimentos políticos vários ocorridos naquele período, continuam intensas e

marcadas pela realização de exposições, jogos, derivas pela cidade, publicações de textos, revistas

e boletins até os dias atuais. Além disso, remarca-se a atenção dada ao grupo de Paris “[...] à la

création plastique comme mode d’expression poètique fondamental”245 (GIRARD, 2010, p.21), o que

pode ser constatado nas publicações da sua revista S.U.R.R. (Surréalisme, Útopie, Rêve, Révolte)

publicada entre 1996 e 2005.

244Texto original. Tradução do autor: “sem-documento”, referente aos estrangeiros em situação de permanência irregular

no país. 245Texto original. Tradução do autor : “[...] à criação plástica como modo de expressão poético fundamental”.

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3.2 - Um desvio racional: das deambulações à psicogeografia.

No capítulo dois tratamos das afinidades eletivas entre Lefebvre e a Internacional

Situacionista, pudemos verificar que elas são de ordem teórica o que nos levou a questionar sobre

a origem das referências de ordem prática da I.S.. Pretendemos verificar agora as afinidades eletivas

entre o Movimento Surrealista e a I.S. com o objetivo de esclarecer a origem das formulações do

estudo da psicogeografia e da prática da deriva. Como vimos, a crítica ao Movimento Surrealista

presente no conceito de romantismo revolucionário formulado por Lefebvre, apresenta as mesmas

afinidades eletivas críticas da posição assumida pela I.S. em relação ao surrealismo, em outras

palavras os situacionistas acompanham a crítica formulada por Lefebvre. Constatação que nos leva

a formular a hipótese de que os situacionistas reveem as práticas surrealistas com o objetivo de

racionalizar seus meios poéticos, a deambulação poética urbana surrealista é racionalizada e

transformada em meio de investigação, em estudo dos efeitos psicogeográficos.

A Internacional Situacionista inicia o seu primeiro boletim, publicado em 1958, marcando a

sua posição crítica em relação ao Movimento Surrealista com o texto Amère Victoire du Surrealisme,

o que indica a importância do ideário surrealista para a teoria e prática situacionista. Debord, em

carta enviada para Constant de 8 de agosto de 1958, justifica o fato salientando que a intenção não

foi superestimar a importância do movimento em relação aos outros tipos de investigações

artísticas, nem destacar a estética surrealista que se consolidou, a qual para os situacionistas não

era a mais sofisticada. A atenção dada ao surrealismo deve-se ao seu mais avançado paradigma de

apresentar um “[...] total project, concerning a whole way of living”246 (DEBORD, 2009, p.149)247,

obrigando a I.S. a se posicionar diante do surrealismo como “[…] the passage from a utopian

246 Texto original. Tradução do autor: “[...] projeto total, sobre todo um modo de vida”. 247 DEBORD, Guy. Correspondence: the foundation of the situationist international (june 1957-august 1960). Translated

by Stuart Kendal; John McHale. Los Angeles: Semiotext(e), 2009.

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revolutionary art to an experimental revolutionary art”248 (Ibid., p.149). Entretanto Debord assume

que esta passagem ainda estava longe de ser concretizada pelos situacionistas. Apesar do lugar de

destaque dado ao surrealismo, os situacionistas não o poupam de críticas ácidas, indicando suas

limitações.

O erro que está na raiz do surrealismo é a ideia da riqueza infinita da imaginação

inconsciente. A causa do fracasso ideológico do surrealismo é ter acreditado que

o inconsciente era a grande força, enfim descoberta, da vida. É ter revisto a

história das ideias de acordo com isso, e ter parado nesse ponto. Sabemos afinal

que a imaginação inconsciente é pobre, que a escrita automática é monótona, e

que um tipo de “insólito” que ostenta de longe a imutável aparência surrealista

nada tem de surpreendente. A fidelidade formal a esse estilo de imaginação

acaba por provocar o retrocesso às condições nada modernas do imaginário: ao

ocultismo tradicional. [...] De fato, a descoberta do papel do inconsciente foi uma

surpresa, uma novidade, e não a lei das surpresas e das novidades futuras. Freud

tinha descoberto isso quando escreveu: “Tudo o que é consciente se desgasta. O

que é inconsciente permanece inalterável. Mas, depois de liberado, não cai ele,

por sua vez, em ruínas?”(DEBORD In JACQUES, 2OO3, p.46).

Antes da publicação do primeiro boletim, a I.S. já revia criticamente o surrealismo,

apresentando o seu posicionamento em relação ao movimento no já citado Relatório sobre a

construção de situações e sobre as condições de organização e de ação da tendência Internacional

Situacionista, o qual é considerado, pela autora Mirella Bandini, a carta magna do movimento. Nele

os situacionistas identificam duas fases distintas do Movimento Surrealista, nas quais o período de

progresso é determinado pela “[...] extinção do idealismo e por um momento de adesão ao

materialismo dialético, que cessou logo depois de 1930 [...]” (DEBORD In JACQUES, 2OO3, p.46) e

sua decomposição posterior é expressa no final da Segunda Guerra Mundial, quando a nova

geração dos jovens surrealistas direcionam seus esforços para o ocultismo, que estava presente no

ideário surrealista desde o início do movimento. Para a I.S. o programa surrealista era avançado:

248 Texto original. Tradução do autor: “[...] a passagem de uma arte revolucionária utópica para uma arte revolucionária

experimental”.

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O programa surrealista, ao afirmar a soberania do desejo e da surpresa, ao

propor um novo uso da vida, é muito mais rico de possibilidades construtivas do

que em geral se pensa. É certo que a falta de meios materiais de realização

limitou gravemente a amplitude do surrealismo. [...] O Surrealismo – ao se opor

a uma sociedade aparentemente irracional, em que a ruptura era levada ao

absurdo entre a realidade e os valores ainda fortemente proclamados – serviu-

se contra ela do irracional pra destruir seus valores lógicos superficiais. (DEBORD

In JACQUES, 2OO3, p.46).

O próprio texto, Amère Victoire du Surrealisme, começa com uma citação do “Relatório

sobre a construção de situações [...]” a qual aponta o início do processo de recuperação do

surrealismo pela sociedade burguesa.

O próprio êxito do surrealismo está muito no fato de a ideologia dessa sociedade,

em sua face mais moderna, ter desistido de uma estrita hierarquia de valores

fictícios, mas servindo-se por outro lado abertamente do irracional e, por isso,

dos resquícios surrealistas. (Ibid., p.46).

A intenção é atacar o sucesso conquistado pelo surrealismo na sociedade burguesa o qual

se voltou contra o próprio movimento “[...] qui n’attendait rien que du renversement de l’ordre

social dominant”249 (I.S. n°1, 1975, p.3)250. Segundo os situacionistas, todo o esforço surrealista,

seus processos e instrumentos de libertação das repressões burguesas, inclusive seu apelo ao

irracional, foram recuperados pelo seu próprio inimigo. Um indício dessa recuperação é apontado

pelo fato das novas formas e técnicas das descobertas científicas terem tomado a aparência

surrealista, chegando a ser noticiado, em 1955, que um robô, da Universidade de Manchester,

escreveu uma carta de amor a qual poderia se passar por uma poesia automática. No entanto, a

recuperação mais impressionante das descobertas subversivas surrealistas é a apropriação da

escrita automática e dos jogos coletivos para o método de exploração das ideias, chamado nos

Estados Unidos da América de “Brainstorming”. A regra do jogo recupera o automatismo psíquico

surrealista, o inconsciente, o ilógico, o absurdo, agora trabalham a favor da quantidade e não mais

249Texto original. Tradução do autor: “[...] que não esperavam nada mais que a inversão da ordem social dominante”. 250 SITUATIONNISTE, Internationale. Internationale Situationniste 1958-69. Paris: Champ Livre, 1975.

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da qualidade. Além disso, alertam os situacionistas, a técnica permitiu descobrir que todo mundo

tem alguma coisa a dizer e a partir do momento que elas se expressam e são ouvidas no seu local

de trabalho, elas reivindicam menos. Portanto,“La technique est devenue une thérapeutique contre

le virus révolutionnaire”251 (I.S. n°1, 1975, p.4).

Os embates entre surrealistas e situacionistas torna-se tema do encontro organizado pelo

surrealista belga Noël Arnaud, realizado em 18 de novembro de 1958, no Cercle ouvert cujo tema

a ser debatido era Le surréalisme est-il mort ou vivant?252. No texto, Suprême Levée dês défenseurs

Du surréalisme à Paris et révélation de leur valeur effective253(I.S. n°2, 1975, p.32), os situacionistas

relatam o encontro no qual Arnaud convidou situacionistas e surrealistas para o debate público,

Debord e Lefebvre foram elencados como os representantes da I.S., enquanto os representantes

oficiais do Movimento Surrealista foram Amadou, Sternberg e Tzara. Entretanto, Lefebvre não

compareceu porque ficou doente no dia do debate e todos os surrealistas da primeira geração

também não compareceram, alegaram, segundo a I.S., que o evento favorecia os situacionistas.

Apenas os jovens integrantes da nova geração surrealista compareceram, representados por

Schuster, diretor da revista Médium, redator chefe da revista Surréalisme même e co-diretor da 14-

Juillet.

Durante o debate surgiu a principal questão: “[...] quel est le rôle du surréalisme

aujourd’hui?”254 (I.S. n°2, 1975, p.32). Para a Internacional Situacionista, o surrealismo teve a sua

importância, o seu aspecto progressista no início foi ter reivindicado uma total liberdade e ter

iniciado as primeiras tentativas de intervenções na vida cotidiana. Entretanto, o aspecto retrógrado

do surrealismo foi ter se limitado a sobrevalorizar o potencial revolucionário do inconsciente,

posicionando-se de forma idealista dualista que tende a compreender “[...] l’histoire comme une

251 Texto original. Tradução do autor : “A técnica se tornou um remédio contra o vírus revolucionário”. 252Texto original. Tradução do autor : “O surrealismo está morto ou vivo?”. 253 Texto original. Tradução do autor : “O Auge dos Defensores do Surrealismo em Paris e a Revelação do Seu Valor

Efetivo”. 254Texto original. Tradução do autor : “Qual é o papel do surrealismo hoje em dia?”.

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simple opposition entre lês précurseurs de l’irrationel surréaliste et la tyrannie des conceptions

logiques Greco-latines[...]”255 (I.S. n°2, 1975, p.33). Segundo a I.S., a partir de então, o movimento

inicia seu processo de degradação e repetição de uma monótona exploração artística recuperada

pela propaganda burguesa que apresenta “[...] l’amour comme la seule aventure possible dans les

conditions modernes d’existence [...]”256 (Ibid., p.33). O que os levam a concluir que o surrealismo

se tornou enfadonho e irritante, seus sonhos agora são apenas um reflexo da impotência burguesa.

A I.S. acusa que desde a origem há no surrealismo um antagonismo nas suas tentativas de afirmação

de um novo uso da vida e uma fuga reacionária fora do real. A lealdade ao estilo de imaginação

estritamente inconsciente “[...] acaba por provocar o retrocesso às condições nada modernas do

imaginário: ao ocultismo tradicional”257 (DEBORD In JACQUES, 2OO3, p.46).

A principal acusação que os situacionistas fazem aos jovens surrealistas, militantes da

segunda geração do pós-segunda guerra, é que eles ignoram o sentido e a magnitude do primeiro

período do Movimento Surrealista, abrindo mão do seu projeto de transformação da sociedade, da

sua esperança revolucionária. O textoLe Bruit et La Fureur aborda essa questão destacando a

incapacidade dos jovens surrealistas em rever o ideário do movimento. Os situacionistas

reconhecem a importância do surrealismo, chegam a afirmar que “[...] la continuation du

surréalisme serait l’attitude la plus conséquente, si rien de nouveau ne parvenait à la remplacer”258

(I.S. n°1, 1975, p.5), o problema está no “sucesso” alcançado pelo surrealismo, na recuperação de

seu ideário pela sociedade burguesa, a qual a juventude surrealista não consegue superar. Eles se

encontram diante dessa contradição porque conhecem bem “[...] l’exigence profunde du

255Texto original. Tradução do autor : “[...] a história como uma simples oposição entre os precursores do irracional

surrealista e a tirania das concepções lógicas Greco-Latinas [...]”. 256Texto original.Tradução do autor : “[...] o amor como a única aventura possível nas condições modernas de existência

[...]”. 257 Para saber mais sobre a posição crítica da I.S. em relação ao Movimento Surrealista ver o livro: DEPUIS, Jules-françois.

História desenvolta do Surrealismo. Trad. Torcato Sepúlveda, 2°ed. Lisboa: Antígona, 2000. Raoul Vaneigem publicou o

livro em 1988, utilizando o pseudônimo de Jules-François Depuis. 258 Texto original. Tradução do autor: "[...] a continuação do surrealismo seria a atitude a mais consequente, se nada de

novo conseguisse substituí-lo".

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surréalisme [...]”259 contraposta ao sucesso burguês responsável por sua deformação, cuja resposta

é se refugiar nos aspectos mais reacionários do movimento, como a magia, o ocultismo e a crença

em uma idade de ouro (I.S. n°1, 1975, p.5). Segundo os situacionistas “un mouvement plus

libérateur que le surréalisme de 1924 [...]”260 depende “[...] de sa mainmise sur les moyens matériels

supérieurs du monde moderne”261 (I.S. n°1, 1975, p.5). Perspectiva que torna a segunda geração do

surrealismo incapaz de se unir à I.S..

A disputa por novas formas e funções da imaginação, a qual os situacionistas tentam

superar o ideário surrealista, apresenta a sua afinidade eletiva com a crítica de Lefebvre ao

Movimento Surrealista. Retomando a análise do conceito de romantismo revolucionário

lefebvriano, como vimos no capítulo um, Lefebvre distingue a formação do romantismo alemão do

francês cujas diferentes formas de interpretar a natureza e de utilizá-la como meio de investigação

e expressão revelam as suas diferenças. Segundo Lefebvre, no romantismo francês o conceito de

natureza guarda um sentido antropológico, o qual formulou “images-figures”, imagens que são

seres humanos, enquanto no romantismo alemão o conceito de natureza guarda um sentido

cosmológico, o qual formulou “images-symboles”, o cristal, a mulher noturna, etc. O Surrealismo

dá continuidade aos desdobramentos do romantismo alemão ao sobrecarregar de significações

cósmicas as “images-choses”, tornando-as fascinantes e alucinantes, procedimento poético que

Lefebvre considera uma alienação poética, o qual conduziu o movimento ao ocultismo reacionário.

Retomando a citação, “Le surréalisme, après avoir aménagé et exploité l’aliénation poétique dans

l’image ‘convulsive et figée’, se termine logiquement dans l’occultisme, comme le romantisme

réactionnaire allemand” (LEFEBVRE, 1971, p.37). No livro Metafilosofia, publicado em 1965, no

capítulo quatro A Procura dos Herdeiros, Lefebvre retoma a crítica ao surrealismo apontando a

insuficiência da “revolução poética”.Segundo o autor “a palavra poética e o julgamento proferido

259 Texto original. Tradução do autor: “[...] a exigência profunda do surrealismo [...]”. 260 Texto original. Tradução do autor: “um movimento mais libertador que o surrealismo de 1924”. 261 Texto original. Tradução do autor: “da sua apropriação sobre os meios materiais superiores do mundo moderno”.

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sobre o cotidiano perderam logo a sua autenticidade. A criação do estilo teve êxito até certo ponto

na literatura; malogrou na vida, isto é, na práxis” (LEFEBVRE, 1967, p.186)262.

Lefebvre propõe o abandono da “thèse du salut humain par la révélation poético-

cosmologique”, e defende a volta ao significado humano investido na “images-choses”, seguindo o

exemplo de Paul Éluard, no esforço para o desfetichizar (LEFEBVRE, 1971, p.37). A superação da

oposição entre o antropológico e o cósmico, segundo Lefebvre se faz necessária e se impõe pela

apropriação das “[...] techniques et les sciences comme par la philosophie et l’art” (LEFEBVRE, 1971,

p.47). Como vimos, o romantismo revolucionário lefebvriano pretende ressignificar as mediações

do sonho, da imaginação e da ficção, anteriormente utilizados como fuga ao passado, para utilizá-

las como meios de investigação do possível para compreender os processos de alienação da

realidade. “Le nouveau romantisme maintient simultanément la lucidité critique, l’emploi des

concepts – et l’imagination, le rêve, en tant qu’investigation du possible” (LEFEBVRE, 1971, p.44).

La fin du divorce entre le cosmique et l’humain (le cosmologique et

l’anthropologique) supprime les limites des anciens romantismes; elle libère de

nouvelles formes. Elle permet une nouvelle définition de l’image et de

l’imagination, de leurs fonctions [...] (LEFEBVRE, 1971, p.48).

Se Lefebvre a partir do romantismo revolucionário propõe ressignificar a imaginação como

meio de investigação do possível-impossível, propomos a hipótese que a I.S. no esforço de criar

meios de intervenção na vida cotidiana, revê as práticas surrealistas com o intuito de racionalizar

seus meios poéticos, se apropriando principalmente da deambulação urbana, a transformando em

meio de investigação psicogeográfica. Além da crítica de Lefebvre ao Movimento Surrealista,

contida na formulação do conceito de romantismo revolucionário, a qual os situacionistas se

262 LEFEBVRE, Henri. Metafilosofia, prolegômenos. Trad. e intr. Roland Corbisier. Rio de janeiro: Ed. Civilização Brasileira,

1967. Para saber mais sobre a crítica de Lefebvre ao Movimento Surrealista, ver o livro Critique de la Vie Quotidienne v.I,

capítulo um “Notes brèves sur quelques lieux devenus comuns”.

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alinham, encontramos algumas pistas do período da Internacional Letrista e de formação da I.S.

que reforçam a nossa hipótese.

No vigésimo terceiro número do boletim Potlatch, publicado em 1955, encontramos o texto

Projet D’Embellissements Rationnels de La Ville de Paris, o qual foi escrito em contraposição ao

texto surrealista Sur certaines possibilités d’embellissement irrationnel d’une ville, publicado na

sexta e última edição da revista “S.A.S.D.L.R.”, em 1933. A crítica ao automatismo psíquico

surrealista e aos procedimentos irracionais está muito clara no título, quando os futuros

situacionistas operam o desvio ao substituir “embellissement irrationnel”263 por “embellissement

rationnel”264.O texto surrealista é apresentado dentro de um conjunto de temas que são

organizados sob o título de Pesquisas Experimentais, os quais consistem em uma série de cinco

tópicos enumerados em ordem alfabética, com o objetivo de levantar hipóteses irracionais

relacionadas aos temas. Cada tópico possui seu respectivo questionário, abrangendo em média de

vinte a trinta perguntas as quais foram respondidos por sete surrealistas, Breton, Paul Éluard,

Arthur Harfaux, Maurice Henry, Benjamin Peret, Tristan Tzara e Georges Wenstein. (S.A.S.D.L.R. n

°6, 1933, p.10). Os temas elencados foram:

A - Sur la connaissance irrationnelle de l’objet boule de cristal des voyantes. B -

Sur la connaissance irrationnelle de l’objet un morceau de velours rose. C -Sur les

possibilités irrationnelles de pénétration et d’orientation dans un tableau de

Georgio de Chirico : l’énigme d’une journée. D - Sur les possibilités irrationnelles

de vie à une date quelconque. E - Sur certaines possibilités d’embellissement

irrationnel d’une ville (S.A.S.D.L.R. n °6, 1933, p.10)265.

263 Texto original. Tradução do autor: “Embelezamento irracional”. 264 Texto original. Tradução do autor: “embelezamento racional”. 265Texto original. Tradução do autor : “A - Sobre o conhecimento irracional do objeto bola de cristal dos videntes; B -

Sobre o conhecimento irracional do objeto um pedaço de veludo rosa; C- Sobre as possibilidades irracionais de

penetração e orientação em um quadro de Giorgio De Chirico: O Enigma de um dia; D - Sobre as possibilidades irracionais

de vida sobre uma data qualquer; E - Sobre determinadas possibilidades de embelezamento irracional de uma cidade”.

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No tema E, Sur certaines possibilités d’embellissement irrationnel d’une ville, são eleitos

edifícios, monumentos, estátuas, praças e espaços públicos icônicos de Paris, a fim de sofrerem

intervenções. São listados trinta e um itens da cidade, estão entre eles, o Arco do Triunfo, O

Obelisco, a Torre Eiffel, a Torre Saint Jacques, a estátua de Jeanne D’Arc (rua de Rivoli), La Défense

de Paris en 1870, a coluna Vendôme, O Panthéon de Paris, a estátua de Henri IV, a estátua de Louis

XIV, etc. Entre as melhores respostas eleitas que poderiam ser “[...] données en exemple aux

architectes et aux statutaires de bonne volonté”266 (S.A.S.D.L.R. n °6, 1933, p.23), estão as propostas

de: Breton, em substituir a coluna Vendôme “[...] par une cheminée d’usine à laquelle grimpe une

femme nue.”267; na estátua de Henri IV, “Peindre le cheval en noir. Reconstruire Henri IV en houppe

à poudre”268; Maurice Henry, na estátua de Louis XIV, “Laisser le socle en place, vide. Représenter

Louis XIV courant derrière son cheval qui s’enfuit par la rue Etienne-Marcel”269; Benjamin Peret, no

Palácio da Justiça, “À détruire mettre à la place une piscine où ne seraient admises que de très belles

femmes nues”270; Tristan Tzara, no Panthéon, “Le trancher verticalement et éloigner les deux moitiés

de 50 centimètres”271, na estátua de Camille Desmoulins, “Ajouter sur le socle agrandi, tout le

mobilier d’une chambre. Tous les jours, on allumerait le feu dans le poêle”272; e Georges Wenstein,

na estátua de Jeanne D’Arc, “Le cheval piétinant furieusement la fille”273(S.A.S.D.L.R. n °6, 1933,

p.18).

266Texto original. Tradução do autor: “[...] dados como um exemplo aos arquitetos e aos agentes do Estado de boa

vontade”. 267Texto original. Tradução do autor: “[...] por uma chaminé de fábrica na qual escala uma mulher nua”. 268Texto original. Tradução do autor: “Pintar o cavalo de preto. Reconstruir Henri IV em tufos de pó”. 269Texto original. Tradução do autor: “Deixar a base no lugar, vazia. Representar Louis XIV correndo atrás de seu cavalo

que foge pela rua Etienne-Marcel”. 270Texto original. Tradução do autor : “Para destruir, colocar no lugar uma piscina onde seriam admitidas apenas lindas

mulheres nuas”. 271Texto original. Tradução do autor: “O cortar verticalmente e separar as duas metades em 50 centímetros”. 272Texto original. Tradução do autor: “Adicionar a base alargada, todos os móveis de uma sala. Todos os dias, a gente

acenderia o fogo no fogão”. 273Texto original. Tradução do autor: “O cavalo pisoteando furiosamente a filha”.

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Em contraposição, a Internacional Letrista propõe o Projet d’Embellissements Rationnels de

la Ville de Paris274, elaborado por Debord, Gil J. Wolman, Michèle Bernstein e Jacques Fillon. Muitas

das intervenções propostas na cidade de Paris antecipam algumas práticas situacionistas. Elas vão

desde adaptar as escadas de incêndio externas dos edifícios para se obter acesso aos seus telhados,

até “Faire cesser la crétinisation du public par les actuels noms des rues. Effacer les conseillers

municipaux, les résistants, les Émile et les Édouard (55 rues dans Paris), les Bugeaud, les Gallifet, et

plus généralement tous les noms sales (rue de l'Évangile)” (DEBORD, 1996, p.207)275.

Par un certain aménagement des échelles de secours, et la création de

passerelles là où il en faut, ouvrir les toits de Paris à la promenade.[...]Munir les

réverbères de toutes les rues d'interrupteurs ; l'éclairage étant à la disposition du

public (DEBORD, 1996, p.203)276.

As Intervenções de cunho explicitamente psicogeográficas como a deriva e a abolição das

artes individuais, também são apresentadas:

Garder les gares telles qu'elles sont. [...] Gil J Wolman réclame que l'on supprime

ou que l'on fausse arbitrairement toutes les indications concernant les départs

(destinations, horaires, etc.). Ceci pour favoriser la dérive. [...]Abolition des

musées, et répartition des chefs-d'oeuvre artistiques dans les bars (l'oeuvre de

Philippe de Champaigne dans les cafés arabes de la rue Xavier-Privas ; le Sacre de

David, au Tonneau de la Montagne-Geneviève) (DEBORD, 1996, p.205)277.

Apesar das possíveis aproximações entre as propostas surrealistas e da Internacional

Letrista, os situacionistas se diferenciam pela sua abordagem racional da cidade como tentativa de

“estudo dos efeitos exatos do meio geográfico”. “A recusa da alienação na sociedade de moral

274Texto original. Tradução do autor: “Projeto de Embelezamentos Racionais da Cidade de Paris”. 275Texto original. Tradução do autor: “Pôr fim à cretinização do público operada pelos atuais nomes das ruas. Apagar os

conselheiros municipais, os residentes, [...] e mais geralmente todos os nomes porcos (rua do Evangelho)”. 276Texto original. Tradução do autor: “Através de certa adaptação das escadas de socorro e da criação, quando necessário,

de passadiços tornando possível passear pelos telhados de Paris. [...] Munir de interruptores os candeeiros de todas as

ruas, deixando a iluminação à disposição do público”. 277 Texto original. Tradução do autor: “Manter as gares como estão. [...] Gil J. Wolman reclama que se suprimam ou

falsifiquem arbitrariamente todas as indicações referentes às partidas (destinos, horários, etc.). Isso para favorecer a

deriva. Abolição dos museus, e repartição das obras primas artísticas pelos bares (a obra de Philippe de Champaigne para

os cafés árabes da rua Xavier Privas; a Sagração, de David, para o Tonneau da Montagne Geneviève)”.

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cristã levou alguns homens ao respeito da alienação plenamente irracional das sociedades

primitivas. É preciso avançar e racionalizar mais o mundo, primeira condição para torná-lo

apaixonado” (DEBORD In JACQUES, 2OO3, p.47). Afirmação paradoxal da I.S., no surrealismo o

amor e a paixão são adotados como emoção pura, impulso espontâneo irredutível a qualquer

cálculo racional; como racionalizar práticas que por definição são contrárias à lógica positivista?

Contradição que está presente na gênese do conceito de psicogeografia e de deriva.

No documento Sur le Hasard278, escrito por Debord em 23 de maio de 1957, dois meses

antes da fundação da I.S., Debord faz críticas ao conceito de acaso o qual é um dos princípios

fundamentais dos jogos surrealistas, destaca que nas condições conhecidas o acaso é conservador

limitado à análise estatística, logo não deixa nenhum espaço para novas descobertas. Nesse

documento, Debord ensaia atacar o acaso como conceito chave surrealista deixando claro a sua

intenção de estudar e conhecer as forças que o compõem para que possa futuramente tirar partido.

O documento foi publicado pela primeira vez no ano de 2006, no livro Guy Debord. Oeuvres, cuja

nota indica que são anotações inéditas. Na pesquisa por nós realizada, no segundo semestre de

2017, no Fonds Guy Debord, localizado na Bibliothèque Nationale de France – BNF - Richelieu,

pudemos consultar o manuscrito original cujas rasuras ajudam a esclarecer o sentido original das

formulações de Debord. As referidas rasuras não foram publicadas. Analisaremos a seguir a

transcrição do manuscrito original.

278Texto original. Tradução do autor: “Sobre o Acaso”.

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Figura 1 – Documento Sur Le Hasard publicado em 2006.

Fonte: DEBORD, 2006, p.296.

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Transcrição do manuscrito original:

SUR LE HASARD279

1. On ne peut pas réduire le hasard. On peut connaître , dans certainspour des280conditions

précises existantes, toutes les possibilités limitées du hasard (statistiques).

2. Dans des conditions connues, le rôle du hasard est conservateur. Aussi, les jeux de

hasard ne offrent/ permettent281, laissent place à aucune possibilité de nouveauté. De

même, les tireuses de cartes jouent se servent dejouent sur le très petit nombre de hasards

qui peuvent arriver l se manifester dans la vie personnelle. De le Elles « prévoient » souvent

les événements, dans la mesure où une vie individuelle moyenne est d'une aussi grande

pauvreté que les variantes/ de leurs282/ classiques/ prédictions283.

3.Tout progrès, toute création est l'organisation de un xxx284 nouveau champ du nouvelles

conditions du hasard.

4.À ce niveau supérieur, le hasard est réellement imprévisible – amusant -pendant un

certain temps : mais le nouveau champ du hasard étant connue étudié et connue, les

limites de l’actionfixe à son action du hasard sont de nouveau connues fixées, d'autres

limites , qui seront, après un ce finalement xxx285viendront à être étudiées et connues

précisément.

5.L'homme ne désire jamais le hasard en tant que tel. Il désire plus; et compte sur leattend

du hasard pourla rencontre de ce qu’il désire. C'est une situation passive et

réactionnaire(échec du surréalisme) (la mystification surréaliste). Si elle n’est pas corrigée

par une invention de nouveaux champs, désirede conditions concrètes, pourdéterminant

le mouvement de hasards désirables.

23.05.57

279 O manuscrito encontra-se no arquivo Fonds Guy Debord, NAF 28603, Bibliothèque nationale de France– BNF, sede

Richelieu. DEBORD, Guy. Sur le hasard. 1957. Número do documento: CV, 80; 23 Mai 1957; 1 f.270 x 210 mm. O Fonds

Guy Debord proíbe digitalização e cópia fotográfica de todos os documentos pertencentes ao seu acervo, é permitido

apena a transcrição manual dos originais. 280 As palavras grafadas em vermelho substituem as palavras rasuradas. 281 Esta palavra está escrita abaixo de offrent. 282 Esta palavra está escrita abaixo de variantes. 283 Esta palavra está escrita abaixo de classiques. 284 Rasura ilegível no documento. 285 Rasura ilegível no documento.

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Comparação manuscrito - publicado:SUR LE HASARD

1) Manuscrito: 1. On ne peut pas réduire le hasard. On peut connaître , dans certainspour des

conditions précises existantes, toutes les possibilités limitées du hasard (statistiques).

Publicado: 1. On ne peut pas réduire le hasard. On peut connaître , pour des conditions

existantes, toutes les possibilités limitées du hasard (statistiques).

Tradução nossa: 1. Não podemos reduzir o acaso. Podemos conhecer, em condições

existentes, todas as possibilidades limitadas do acaso (estatísticas).

2) Manuscrito: 2. Dans des conditions connues, le rôle du hasard est conservateur. Aussi, les

jeux de hasard ne offrent/ permettent, laissent place à aucune possibilité de nouveauté.

De même, les tireuses de cartes jouent se servent dejouent sur le très petit nombre de

hasards qui peuvent arriver l se manifester dans la vie personnelle. De le Elles « prévoient »

souvent les événements, dans la mesure où une vie individuelle moyenne est d'une aussi

grande pauvreté que les variantes/ de leurs/ classiques/ prédictions.

Publicado: 2. Dans des conditions connues, le rôle du hasard est conservateur. Ainsi, les

jeux de hasard ne laissent place à aucune nouveauté. De même, les tireuses de cartes

jouent sur le très petit nombre de hasards qui peuvent se manifester dans la vie

personnelle. Elles « prévoient » souvent les événements, dans la mesure où une vie

individuelle moyenne est d'une aussi grande pauvreté que les quelques variantes classiques

de leurs prédictions.

Tradução nossa: 2. Nas condições conhecidas, o papel do acaso é conservador. Assim, os

jogos de acaso não deixam espaço à nenhuma novidade. Do mesmo modo, as cartomantes

jogam com un número muito pequeno de acasos que podem se manifestar na vida pessoal.

Elas “preveem” frequentemente os acontecimentos, na medida em que uma vida individual

média é de uma tão grande pobreza quanto as poucas variantes clássicas de suas previsões.

3) Manuscrito: 3.Tout progrès, toute création est l'organisation de un xxx nouveau champ du

nouvelles conditions du hasard.

Publicado: 3. Tout progrès, toute création est l'organisation de nouvelles conditions du

hasard.

Tradução nossa: 3. Todo progresso, toda criação é a organização de novas condições do

acaso.

4) Manuscrito: 4.À ce niveau supérieur, le hasard est réellement imprévisible – amusant -

pendant un certain temps : mais le nouveau champ du hasard étant connue étudié et

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connue, les limites de l’actionfixe à son action du hasard sont de nouveau connues fixées,

d'autres limites , qui seront, après un ce finalement xxxviendront à être étudiées et connues

précisément.

Publicado: 4. À ce niveau supérieur, le hasard est réellement imprévisible – amusant -

pendant un certain temps : mais le nouveau champ du hasard fixe à son action d'autres

limites , qui en viendront à être étudiées et connues précisément.

Tradução nossa: 4. Nesse nível superior, o acaso é realmente imprevisível - divertido - por

um tempo:mas o novo campo do acaso fixa à sua ação outros limites, que virão a ser

estudadas e conhecidas precisamente.

5) Manuscrito: 5.L'homme ne désire jamais le hasard en tant que tel. Il désire plus; et compte

sur leattend du hasard pourla rencontre de ce qu’il désire. C'est une situation passive et

réactionnaire(échec du surréalisme) (la mystification surréaliste). Si elle n’est pas corrigée

par une invention de nouveaux champs, désirede conditions concrètes, pourdéterminant

le mouvement de hasards désirables.

Publicado: 5. L'homme ne désire jamais le hasard en tant que tel. Il désire plus ; et attend

du hasard la rencontre de ce qu’il désire. C'est une situation passive et réactionnaire (la

mystification surréaliste) si elle n’est pas corrigée par une invention de conditions concrètes

déterminant le mouvement de hasards désirables.

Tradução nossa: 5. O homem nunca deseja o acaso em si. Ele deseja mais ; e espera do

acaso o encontro do que ele deseja. É uma situação passiva e reacionária (a mistificação

surrealista) se não é corrigida por uma invenção de condições concretas que determinam

o movimento dos acasos desejáveis.

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No item três, Debord defende a superação da indeterminação do acaso no surrealismo, o

seu progresso deve partir para uma análise operatória da organização de “nouvelles conditions du

hasard”286, se no primeiro momento ele utiliza o termo “novo campo”, o substitui por “condições”,

o qual é mais preciso. No item cinco, faz críticas ao conceito de acaso ligado à realização do desejo

do homem, referência direta ao acaso objetivo287, o acusa que se trata de uma situação passiva e

reacionária porque não domina as causas que o determinam. Logo esse seria o fracasso do

surrealismo, o qual é rasurado e substituído por mistificação. A nova abordagem em relação ao

acaso proposta por Debord é de inventar as condições concretas que possam ser compreendidas e

posteriormente operadas para desencadear acasos desejáveis. Análise que ajuda na compreensão

do principal objetivo da I.S., construir situações, o próprio sentido do verbo construir implica numa

operação racionalizada de elementos que compõem um terceiro, resultado da articulação entres

eles. No texto L’Architecture et Le Jeu, publicado no boletim Potlatch n°20, Debord comenta a

coincidência de um bar que se chama No Fim do Mundo, estar localizado exatamente no limite de

uma das unidades de ambiências mais fortes de Paris, área localizada entre as ruas Mouffetard,

Tournefort, Lhomond, essa coincidência poderia ser interpretada pelo acaso objetivo, entretanto

Debord enfatiza o carácter analítico da deriva.

Les événements n’appartiennent au hasard que tant que l’on ne connaît pas les

lois générales de leur catégorie. Il faut travailler à la prise de conscience la plus

étendue des éléments qui déterminent une situation, en dehors des impératifs

utilitaires dont le pouvoir diminuera toujours. Ce que l’on veut faire d’une

architecture est une ordonnance assez proche de ce que l’on voudrait faire de sa

vie (DEBORD, 1996, p.156)288.

286 Texto original. Tradução do autor: “Novas condições do acaso”. 287 O termo acaso objetivo é utilizado por André Breton principalmente nas obras Nadja (1928), Les Vases communicants

(1932) e L'Amour fou (1938), cuja relação formam uma tríade. 288 Texto original. Tradução do autor: “Os acontecimentos só pertencem ao acaso enquanto não conhecemos as leis gerais

da sua categoria. É preciso trabalharmos pela máxima tomada de consciência possível dos elementos que determinam

uma situação, fora dos imperativos utilitários cujo poder diminuirá cada vez. O que queremos fazer com uma arquitetura

é um ordenamento bastante próximo daquele que gostaríamos de fazer da sua vida”.

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Debord relata a origem da palavra psicogeografia no texto Introduction à une critique de la

géographieurbaine, publicado em 1955 na revista surrealista belga Les Lèvres nues n°6, cujo termo

foi proposto por um “caliba analfabeto” para designar o conjunto dos fenômenos urbanos

observados durante as derivas da Internacional Letrista, realizadas no verão de 1953. Determina

que as áreas provisórias de observação nas ruas foram “[...] certos processos do acaso e do

previsível” e define “a psicogeografia seria o estudo das leis exatas e dos efeitos precisos do meio

geográfico, planejado conscientemente ou não, que agem diretamente sobre o comportamento

afetivo dos indivíduos” (DEBORD In JACQUES, 2OO3, p.39). Definição que será reproduzida

posteriormente, em 1958, no primeiro boletim da I.S., a qual foi suprimido apenas os termos leis

exatas, permanecendo “estudo dos efeitos precisos no meio geográfico” (I.S. n°1, 1975, p.13). O

caráter analítico das derivas contraposto ao carácter poético das deambulações surrealistas, se

torna claro quando os futuros situacionistas percorreram a cidade de Paris com o objetivo de

identificar as causas que estabelecem uma “[...] mudança de ambiência numa rua, numa distância

de poucos metros; [...] o aspecto atraente ou repulsivo de certos lugares [...]” (DEBORD In JACQUES,

2OO3, p.41), os limites entre unidades de ambiências, divisões entre possíveis zonas de climas

psíquicos, áreas de placas giratórias. Era necessário estar atento ao que “pelo menos, nunca é

percebido como dependente de causas que podem ser esclarecidas por uma análise mais profunda,

e das quais se pode tirar partido” (DEBORD In JACQUES, 2OO3, p.41). Logo, a revisão das

deambulações surrealistas leva a I.S. à conquista racional do espaço urbano, a criticada

indeterminação do acaso ironicamente permanece na deriva, entretanto ela perde o seu

protagonismo e passa a ter um papel auxiliar.

A primeira experiência de deambulação surrealista ocorre em maio de 1924, quando Breton

na companhia de Louis Aragon, Max Morise e Roger Vitrac, decide sair da cidade de Paris de trem

em direção à cidade de Blois, a qual escolheu ao acaso no mapa, e prosseguir a pé pelas cidades de

Sologne, Salbris, Gien e Cour-Chevigny até chegar à cidade de Romorantin. Nessa experiência os

surrealistas saem do ambiente urbano em direção ao campo, deambulando por bosques, campos

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e vilarejos. Entretanto, posteriormente os surrealistas nunca mais voltaram a realizar

deambulações no campo, tornando a atividade estritamente urbana, concentrada na cidade de

Paris. No texto Teoria da Deriva, publicado no segundo boletim da I.S., em 1958, Debord se refere

a essa primeira experiência como “deprimente”, atribui o seu fracasso aos surrealistas “Por pouco

desconfiar do acaso e de seu uso ideológico sempre reacionário [...]” (DEBORD In JACQUES, 2OO3,

p.88), e observa que são raríssimas as intervenções do acaso ao se caminhar por áreas

descampadas. Segue criticando Pierre Vendryes, surrealista da segunda geração, o qual publicou

na revista Médium, ser possível comparar a primeira tentativa de deambulação com algumas

experiências probabilísticas, nas quais sugeria separar aleatoriamente girinos de rã em um

cristalizador circular para observar os seus comportamentos. A justificativa era que “[...] tudo faria

parte de uma mesma libertação antideterminista [...]”. Debord ironiza: “Em tais condições, a vitória

será dos girinos que têm a vantagem de serem ‘inteiramente desprovidos de inteligência, de

sociabilidade e de sexualidade’ e, por conseguinte, ‘verdadeiramente independentes uns dos

outros’” (DEBORD In JACQUES, 2OO3, p.88).

Segundo a autora Mirella Bandini, as deambulações realizadas sem objetivos e fins

racionais têm como finalidade alcançar a surrealidade através do caminhar sem direção, de chegar

aos limites da percepção inconsciente e consciente do espaço; ao longo do percurso o espaço da

cidade proporciona uma multiplicidade de encontros e desencontros ocorridos ao sabor do acaso,

vivenciando acontecimentos não planejados e descobrindo as paisagens ilógicas que satisfazem os

desejos inconscientes (BANDINI in ANDREOTTI, 1996, p.41). Nós propomos a interpretação que a

deambulação pode ser entendida como um desdobramento da escrita automática, enquanto essa

opera no campo da literatura para alcançar o maravilhoso, a deambulação opera no campo urbano.

A escrita automática é a entrega à vida passiva da inteligência, o “automatismo psíquico puro”, o

qual conduz o indivíduo a captar as imagens que emergem das profundezas do seu inconsciente e

automaticamente registrá-las. Na deambulação ocorre o mesmo estado de entrega passivo do

espírito, de hipnose ou vigília, o qual é alcançado através do andar no espaço sem destino,

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praticando as errâncias na cidade, desorientado, enfim entregue aos desejos inconscientes que

serão atraídos ou repelidos pelas atmosferas da cidade. Na escrita automática o indivíduo

permanece estático, são as imagens que “caminham” em sua direção para se alcançar o

maravilhoso, enquanto na deambulação é o indivíduo que caminha em direção às imagens da

cidade, à paisagem inconsciente, para descobrir o maravilhoso.

Em contraposição à deambulação, para os situacionistas “[...] a ação do acaso é

naturalmente conservadora e tende, num novo contexto, a reduzir tudo à alternância de um

número limitado de variantes e ao hábito” (DEBORD In JACQUES, 2OO3, p.88). Destacam que é

preciso estar atento aos seus perigos, “[...] os primeiros atrativos psicogeográficos descobertos

correm o risco de fixar o sujeito ou o grupo derivante em torno de novos eixos habituais, para os

quais tudo os leva constantemente” (Ibid., p.88). A I.S. reconhece que “o acaso ainda tem

importante papel na deriva porque a observação psicogeográfica não está de todo consolidada”

(Ibid., p.88), o que indica que sua origem provem da deambulação. Para entendermos melhor o

conceito de deriva e sua relação com o acaso, podemos partir de sua definição oficial apresentada

no primeiro boletim do grupo, em 1958, porém é no texto “Teoria da Deriva” que Debord se

estende mais profundamente sobre o tema.

Deriva: Modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade

urbana: técnica da passagem rápida por ambiências variadas. Diz-se também,

mais particularmente, para designar a duração de um exercício contínuo dessa

experiência. (I.S. n°1 In JACQUES, 2OO3, p.65).

No texto Teoria da Deriva, Debord esclarece que a deriva é composta por duas ações

indissociáveis, a de “[...] reconhecimento de efeitos de natureza psicogeográfica e à afirmação de

um comportamento lúdico-construtivo” (DEBORD In JACQUES, 2OO3, p.87). A referida “passagem

rápida por ambiências variadas” é radicalmente oposta às “tradicionais noções de viagem e de

passeio”. Segundo a I.S., a proposta surrealista positiva de um novo uso da vida é incorporada na

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“afirmação de um comportamento lúdico construtivo”, entretanto, a libertação do indivíduo na

vida cotidiana não é mais conquistada pelo potencial poético na vida, mas pela libertação do jogo,

pelo Homo Ludens. Na deriva, a conquista do espaço deve ser racional e não mais subjetiva como

nas deambulações, porque ela também exerce a ação objetiva de “reconhecimento de efeitos de

natureza psicogeográfica” (I.S. n°1 In JACQUES, 2OO3, p.65), o que a torna o exercício prático desse

estudo. Consequentemente, o aleatório exercido pelo acaso é abandonado, o fato de escolher

bairros e áreas não familiares ou jamais percorridos, não faz diferença alguma, devido ao seu

aspecto subjetivo e limitador. Após o primeiro contato com o espaço ele não permitiria novas

incursões. Para os situacionistas a deriva reconhece que:

[...] existe um relevo psicogeográfico das cidades, com correntes constantes,

pontos fixos e turbilhões que tornam muito inóspitas a entrada ou saída de certas

zonas. [...] A exploração de um campo espacial marcado supõe portanto o

estabelecimento de bases, e o cálculo das direções de penetração. (DEBORD In

JACQUES, 2OO3, p.87-90).

No “cálculo” situacionista são utilizados mapas, “sejam oficiais, sejam ecológicos ou

psicogeográficos”, fotos aéreas e registros de derivas, os quais contribuem para o aperfeiçoamento

e criação de “[...] uma cartografia influencial que falta até o momento [...]” (DEBORD In JACQUES,

2OO3, p.91). A I.S. chega a citar e utilizar no seu primeiro boletim, no texto Veneza Venceu Ralph

Rumney, os estudos do sociólogo Paul-Henry Chombart de Lauwe, reproduzindo um mapa que

mostra o levantamento de todos os trajetos efetuados durante um ano por uma estudante que

mora no XVIèmearrondissement de Paris, apresentado por Lauwe em seu livro Paris et

l'agglomération parisienne: L'espace social dans une grande cité, publicado em 1952. Segundo o

autor Anthony Vidler, no texto Unknown Lands: Guy Debord and the Cartographies of a Landscape

to be Invented, apesar de Chombart de Lauwe poder ser um “perfeito inimigo dos situacionistas”,

pelo fato de apoiar as teorias de Le Corbusier e acreditar em uma visão idealista da ciência social,

a qual conduziria a uma harmonia social; seus estudos são reconhecidos por Debord por mostrarem

que “[...] um bairro urbano não é determinado apenas pelos fatores geográficos e econômicos, mas

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pela representação que seus moradores e os de outros bairros têm dele [...]”(DEBORD In JACQUES,

2OO3, p.87). Entretanto, os gráficos de Chombart de Lauwe apenas são utilizados para mostrar a

reação potencial contida na “[...] indignação de constatar que alguém pode viver desse modo [...]”

(DEBORD In JACQUES, 2OO3, p.88), limitado aos percursos revelados no gráfico (VIDLER, 2011,

p.339).

Apesar dos instrumentos e aspectos objetivos da deriva, Debord reconhece que “em sua

unidade” ela contém simultaneamente a ação do “deixar-se levar”, da indeterminação do perder-

se, e “[...] sua contradição necessária: o domínio das variações psicogeográficas exercido por meio

do conhecimento e do cálculo de suas possibilidades” (DEBORD In JACQUES, 2OO3, p.87). Logo é

possível realizar derivas enfatizando, ora a busca por resultados afetivos desnorteantes, ora o seu

aspecto objetivo como estudo do terreno. Porém, “Não convém esquecer que esses dois aspectos

da deriva apresentam múltiplas interferências e que é impossível isolar um deles perfeitamente”

(DEBORD In JACQUES, 2OO3, p.89). Debord esclarece dando possíveis exemplos:

[...] se durante uma deriva toma-se um taxi, seja para um destino certo, seja para

um trajeto de vinte minutos na direção oeste, é sinal de que a busca é de uma

desambientação pessoal. Se o que importa é a exploração direta de um terreno,

aciona-se a pesquisa de urbanismo psicogeográfico. (DEBORD In JACQUES, 2OO3,

p.89).

Logo, como pudemos analisar a deriva se constitui pela tensão entre essas duas forças, que

implica na permanência de um fator indeterminado, o qual escapa ao pretendido controle racional;

primeiro pela ação do perder-se que constitui a base da afirmação de um “modo de

comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana”, e segundo do estudo

racional de reconhecimento dos comportamentos afetivos dos indivíduos relacionados ao espaço

urbano como:

[...] reconhecimento de unidades de ambiência, de seus comportamentos

fundamentais e de sua localização espacial, percebem-se os principais eixos de

passagem, as saídas e defesas. Chega-se à hipótese central de plaques

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tournantespsicogeográficas. Medem-se as distâncias que separam de fato duas

regiões de uma cidade, distâncias bem diferentes da visão aproximativa que um

mapa pode oferecer (DEBORD In JACQUES, 2OO3, p.90).

A pretendida busca pelos espaços sociais priorizava os ambientes propícios às trocas

culturais, áreas onde ocorressem aculturação, degradação social, miscigenação, comércio e

aglomerações populares. Uma de suas áreas preferidas eram os pavilhões do mercado central de

Paris Les Halles, cujo bairro onde se localizava tinha o mesmo nome. Les Halles proporcionava uma

área de grande efervescência popular, atendendo as condições ambientais que os situacionistas

buscavam, “Para que exista uma relação estreita entre ambiente e comportamento, a aglomeração

é indispensável” (I.S. n°3 In JACQUES, 2OO3, p.115).

Apesar das críticas, o acaso, o indeterminado, como vimos permanece na prática da deriva.

No exemplo situacionista do “encontro possível”(DEBORD In JACQUES, 2OO3, p.90), que poderia

ser perfeitamente um jogo surrealista, identificamos uma ação passiva na qual o indivíduo se dirige

a um determinado lugar e hora marcada, e começa a observar as adjacências. Pode acontecer que

ele tenha “marcado” no mesmo local outro “encontro possível” com alguém cuja identidade ele

conheça ou não. Isso fará com que ele se dirija a vários passantes promovendo acontecimentos

imprevistos. Nesse exemplo, a parte de exploração objetiva é mínima e o acaso é utilizado para

potencializar os comportamentos errantes.

Como demonstramos, os situacionistas se esforçaram para racionalizar os meios poéticos

da deambulação com o objetivo de tornar consciente os elementos que determinam uma situação.

“Pour nous, le surréalisme a été seulement un début d’expérience révolutionnaire dans la culture,

expérience qui a presque immédiatement tourné court pratiquement et théoriquement. Il s’agit

d’aller plus loin”289 (I.S. n°1, 1975, p.6). Superação que exigia a conquista experimental racional do

espaço e o emprego libertador dos meios técnicos superiores, “[...] l’expérimentation collective,

289 Texto original. Tradução do autor: “Para nós, o surrealismo foi somente um começo da experiência revolucionária na

cultura, experiência que foi quase imediatamente paralisada, praticamente e teoricamente. Trata-se de ir mais longe”.

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concrete, d’enviroments et de comportements nouveaux correspond au début d’une révolution

culturelle en dehors de laquelle Il n’est pas de culture revolutionnaire authentique”290 (I.S. n°2, 1975,

p.33). Superação situacionista que não escapou às suas contradições.

290 Texto original. Tradução do autor : “[...] a experimentação coletiva, concreta, de ambiências e de comportamentos

novos correspondem o começo de uma revolução cultural fora da qual não há cultura revolucionária autêntica”.

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Pudemos analisar ao longo da tese a partir da tipologia do Romantismo Revolucionário e/ou

Utópica de tendência marxista, que o Movimento Surrealista, Lefebvre e a I.S. pertencem à corrente

de pensamento romântica porque compartilham do protesto cultural contra a civilização capitalista

moderna, a qual se inspira em certos valores do passado pré-capitalista. Nos termos de Lefebvre,

eles pertencem ao romantismo porque vivem o desacordo engendrado pela sociedade moderna,

são sensíveis à experiência do dilaceramento, e a força das suas propostas partem da potência da

revolta da subjetividade. Os três objetos aspiram a uma utopia revolucionária nova apoiada em

valores humanos qualitativos presentes em sociedades pré-capitalistas, entretanto suas diferentes

posições tomadas em relação à experiência do dilaceramento é o que os difere.

Os autores românticos do século XX criticam à modernidade em suas diversas formas,

soviética, capitalista e fascista, porque essas apresentam as constantes manifestações da

hiperindustrialização e tecnicização, racionalidade utilitária, produtivismo, alienação do trabalho,

instrumentalização do homem e dominação-exploração da natureza. Como vimos, os românticos

reagem a um certo número de características da modernidade que são identificadas como

intoleráveis. Estas são o desencantamento, a quantificação e a mecanização do mundo, assim como

a abstração racionalista e a dissolução dos vínculos sociais, características que segundo Max Weber

são inseparáveis do aparecimento do ‘espírito do capitalismo’.

Dos três objetos de nossa pesquisa o Movimento Surrealista é o que se manteve mais fiel

ao conjunto das críticas românticas à modernidade. André Breton no Segundo Manifesto do

Surrealismo, publicado em dezembro de 1929, posiciona o movimento como a “cauda do cometa

do romantismo” (BRETON, 1988, p.806)291, cujas atividades buscavam principalmente restabelecer

o encantamento do mundo. Não mais pelas vias religiosas tradicionais, mas pelo recurso ao mito

profano, via não religiosa para encontrar o sagrado, a qual também pode ser buscada na poesia,

291 BRETON, André. Second Manifeste du Surréalisme . In: Oeuvres Complètes, v.I. Ed. Marguerite Bonnet et al. Paris:

Gallimard, 1988.

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nas artes esotéricas, na alquimia, na astrologia etc. Enfim, a aventura da dimensão oculta dos

sonhos e do fantástico. Os surrealistas também desejavam reencantar a natureza, o que os alinham

a crítica romântica às ciências da natureza moderna, que estabelece uma relação estritamente

racional e instrumental com o meio ambiente. Posição que embasa a crítica da hiperindustrialização

e tecnicização, da racionalidade utilitária e do produtivismo, em que a natureza é reduzida às

matérias-primas da indústria. Um dos pontos cruciais da divergência entre surrealistas e

situacionistas, se dá pela visão positiva da técnica que tanto Lefebvre quanto os situacionistas

defendem.

Como vimos no conceito de romantismo revolucionário lefebvriano, a “contradiction

fondamentale” presente no desacordo romântico é a disputa do sentido do poder dos homens

sobre a natureza. Retomando a citação, “Des énormes moyens mis à notre disposition, que faire?

et comment faire pour que le pouvoir (des hommes sur la nature) devienne plus qu’un moyen : une

substance, une puissance partagée, à laquelle chacun puisse participer plus et autrement que par le

rêve et l’imagination ?”292(LEFEBVRE, 1971, p.47). A disputa do sentido da potência humana de

transformação da natureza se dá em Lefebvre por uma base material, cuja a técnica pode abrir o

horizonte do possível se direcionado para a realização do desejo e a emancipação da vida cotidiana.

A distância romântica crítica do real estabelecido não se dá mais pela busca do passado, mas pela

busca do possível-impossível. Passagem da emancipação mito-poética para uma utopia

experimental de base material. Lefebvre propõe deslocar a potência da imaginação do campo

mitológico e fantástico para o campo da imaginação moderna, cuja a ficção científica se torna fonte

de referência. Revisão crítica do romantismo, assim como do surrealismo, que os situacionistas

acompanham. Questão que caracteriza uma das especificidades do ideário situacionista, a qual

como vimos, é representada nos estudos e saios da Nova Babilônia elaborados por Constant. Na

292 Texto original. Tradução do autor: “Os enormes meios colocados à nossa disposição, o que fazer? E como fazer para

que o poder (dos homens sobre a natureza) torne-se mais que um meio: uma substância, uma potência partilhada, sobre

a qual cada um possa participar mais e de forma diferente do que somente por meio do sonho e da imaginação?”.

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tentativa de expressar uma classificação utilizando as categorias emprestadas da arte moderna, o

autor Marcolini afirma que o ideário da I.S. é “[...] simultanément romantique et futuriste [...]”293

(MARCOLINI, 2013, p.180), posição singular do romantismo revolucionário presente na I.S..

Posição a qual segundo o autor surrealista Emilio Santiago Muiño, membro do grupo

Surrealista de Madrid, é acusada de “otimismo técnico” da I.S.. No livro Sentir Madrid como si

existiera un todo294, publicado em 2016, Muiño critica a perspectiva situacionista de superação da

divisão do trabalho pela automatização integral da produção industrial, a qual era colocada como

o suporte material da vida em uma sociedade pós-revolucionária futura. Décadas depois da

experiência teórico-prática situacionista, o autor a avalia partindo da catástrofe ecológica e do

colapso social neoliberal. Acusa que o “[...] trofeo de la victoria humana en la conquista de la

naturaleza [...]”295 se tratava “[...] de un sueño envenenado” (MUIÑO, 2016, p.23). Alinhado a crítica

romântica em relação à técnica, os surrealistas sempre viram com desconfiança as possibilidades

da hiperindustrialização. Os transgênicos, a energia termo nuclear, a nanotecnologia, os

dispositivos das redes sociais, enfim, todos os desdobramentos da técnica e da tecnologia

desenvolvidas pelo capitalismo são instrumentos para ampliar e sofisticar sua dominação, para

Muiño “[...] la máquina nunca será nuestro siervo”296 (MUIÑO, 2016, p.24). Além disso, Muiño faz

um comentário da importância do ideário da I.S. para as lutas sociais contemporâneas e propõe

rever a abstração teórica dos situacionistas para ampliar o seu alcance, e afirma que é necessário

desintelectualizar as suas práticas.

Segundo vimos, os situacionistas direcionam suas críticas principalmente a segunda

geração do Movimento Surrealista, e apontam que o aspecto retrógrado do surrealismo foi ter se

limitado a sobrevalorizar o potencial revolucionário do inconsciente. Retomando a citação, os

293 Texto original. Tradução do autor: “[...] simultaneamente romântico e futurista [...]”. 294 MUIÑO, Emilio Santiago. Sentir Madrid como si existiera un todo. Madrid: La Torre Magnética, 2016. 295 Texto original. Tradução do autor: “[...] troféu da vitória humana na conquista da natureza [...]” “[...] se tratava de um

sonho envenenado”. 296 Texto original. Tradução do autor: “[...] a máquina nunca será o nosso servo”.

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acusam de terem se posicionado de forma idealista dualista que tende a compreender “[...]

l’histoire comme une simple opposition entre lês précurseurs de l’irrationel surréaliste et la tyrannie

des conceptions logiques Greco-latines[...]”297 (I.S. n°2, 1975, p.33). Com base nas entrevistas que

realizamos com os membros dos grupos surrealistas de Paris e Madrid, e na análise de Löwy e Sayre,

podemos fazer um contraponto esclarecendo a posição defendida pelos surrealistas. As categorias

filosóficas de racionalismo-irracionalismo são insuficientes para analisar a questão, Löwy e Sayre

propõem estabelecer a distinção entre o “irracional” e o “não racional”. Diferenciação fundamental

para compreender os equívocos da apologia ao irracionalismo, na qual o “irracional” é

compreendido como a “negação programática da racionalidade”, enquanto o “não racional” é a

“delimitação das esferas psíquicas não redutíveis à razão”. O poeta Eugênio Castro, decano do

grupo surrealista de Madrid, comenta que o surrealismo não propõe o culto ao irracionalismo, mas

a crítica à racionalidade instrumental. Löwy e Sayre destacam os perigos do culto ao irracionalismo,

o qual leva a formas de ódio à razão como “[...] fanatismo religioso, intolerância, culto irracional do

“chefe” carismático, da nação, da raça etc” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.65).

Portanto, como pudemos percorrer ao longo da tese na articulação dos nossos três objetos,

a crítica de Lefebvre e da I.S. em relação ao Movimento Surrealista predominou em nossa análise.

Observamos que a posição crítica do Movimento Surrealista em relação a Lefebvre e a I.S., com

base nas revistas publicadas pela segunda geração do movimento, é um campo novo de pesquisa

que se abre, fundamentalmente no Brasil, ainda a ser explorado. Para a análise da abordagem

pouco frequente da relação entre situacionistas e surrealistas, destacamos os trabalhos dos autores

Jérôme Duwa no livro Surréalistes et Situationnistes Vies Parallèles298, e Louis Janover no livro

Surréalisme et situationnistes au rendez-vous des avant-gardes299.

297Texto original. Tradução do autor : “[...] a história como uma simples oposição entre os precursores do irracional

surrealista e a tirania das concepções lógicas Greco-Latinas [...]”. 298DUWA, Jérôme. Surréalistes et Situationnistes Vies Parallèles. Paris : Éditions Dilecta, 2008. 299 JANOVER, Louis. Surréalisme et situationnistes au rendez-vous des avant-gardes. Paris: Sens&Tonka, 2013.

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O próprio debate sobre as experiências de deambulação poética urbana, assim como os

seus reflexos na atividade surrealista contemporânea, se delineia como uma nova possibilidade de

investigação. A deambulação surrealista está diretamente ligada ao conceito de acaso objetivo, o

que conduz ao estudo do interesse dos surrealistas pela ideia de acaso. Logo se faz necessário

articular, como um desdobramento, a análise da peça de teatro S’il Vous Plait300, escrita por André

Breton e Philippe Soupault em 1920, publicada na revista Littérature n°16;do texto L’Esprit

Nouveau, o qual relata uma das primeiras experiências eróticas vividas com a cidade de Paris,

publicado na revista Littérature Nouvelle Série n°1, em 1922; do livro de Louis Aragon Le Paysan de

paris, publicado em 1926; dos livros de André Breton Nadja, Les Vases communicants e L'Amour

fou, publicados na sequência dos anos de 1928, 1932 e 1938; e do texto de André Breton Pont-

Neuf, escrito em 1950 e publicado no livro La Clé des champs em 1953. Para a abordagem das

práticas das deambulações poéticas contemporâneas devemos analisar o conceito de géographie

passionnelle301 cunhado pelo poeta surrealista Guy Girard, e o conceito de geografia poética302

cunhado pelo poeta surrealista Emilio Santiago Muiño. Nos dois casos a ideia de geografia está

presente, o que remete ao termo situacionista da psicogeografia, porém retornado ao seu sentido

poético. Se trata de uma resposta às críticas lefebvrianas e situacionistas ao limite da poesia? Será

necessário verificar essa hipótese em outro momento.

Os estudos que abordam a relação entre Lefebvre e os surrealistas são praticamente

inexistentes, apenas Rémi Hess ensaia sistematizar alguns relatos históricos do período em que

Lefebvre se vinculou ao Movimento Surrealista. Fato que abre um possível desdobramento da

pesquisa. A relação entre Lefebvre e a I.S. é mais difundida, entretanto ela pode ser aprofundada

300 Segundo André Breton, em uma série de dezesseis entrevistas radiofônicas concedidas a André Parinaud, no ano de

1952, afirma que seu interesse pelo acaso é anterior ao nascimento do surrealismo o qual se inicia com a peça de teatro

“S’il Vous Plait” (Breton, 1952, p.139). BRETON, André. Entretiens 1913-1952: avec André Parinaud. Paris: Gallimard 1952. 301 O número três da revista Surréalisme Utopie Rêve Revolte – S.U.R.R., publicada pelo grupo surrealista de Paris, no ano

de 1999, é um volume dedicado ao tema. 302 O autor cunha o conceito no livro: MUIÑO, Emilio Santiago. Sentir Madrid como si existiera un todo. Madrid: La Torre

Magnética, 2016.

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para os desdobramentos da análise do romantismo revolucionário que desenvolvemos. Como

vimos, o conceito de romantismo revolucionário lefebvriano marca o início de uma nova

“démarche” na reflexão de Lefebvre que culmina na sua ruptura com o PCF. Segundo Hess, os livros

que apresentam desdobramentos dessa reflexão são Critique de la vie quotidianne, v.I (1947); La

Somme et le reste (1959); Critique de la vie quotidianne, v.II (1962); Metaphilosophie (1965); La

Présence et l’absence (1980)e Critique de la vie quotidianne, v.III (1981). Período no qual Lefebvre

estabeleceu um diálogo direto com a I.S..

Além disso, indicamos que seja possível estabelecer uma relação entre os conceitos

desenvolvidos no livro La production de l’espace, publicado em 1974, com a prática da

deriva.Propomos a hipótese que a prática da deriva possa ser interpretada como uma intervenção

imediata nos espaços sociais disciplinados para tentar constituir um novo espaço social,

reivindicando a abolição das relações sociais de produção a partir do encontro dos corpos humanos

no espaço. Essa se fundamenta na tese de Lefebvrede que a cidade e o urbano são projeções ativas

das relações sociais sobre o território, portanto a deriva psicogeográfica teria o papel capital de

ligar a descoberta do espaço social com a tentativa de constituir uma ruptura das relações sociais

estabelecidas pela organização material do espaço. Hipótese cuja validade poderá ser verificada

também em outro momento.

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APÊN

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203

Levantamento por lavavra chave :

Fonte : SITUATIONNISTE, INTERNATIONALE. Internationale Situationniste 1958-69. Paris: Champ Livre, 1975. Palavras-chave : Henri Lefebvre ; Vida cotidiana ; Surrealismo ; Dadá.

Internacional Situacionista – n°1 Junho de 1958

Textos

Palavras Chave Henri

Lefebvre Vida

cotidiana Surrealismo Dadá

Amere victoire du surrealisme. x x

Le bruit et la fureur. x x

La liberte pour quoi lire? Des betises.

La lutte pour le controle des nouvelles techniques de conditionnement.

x

Avec et contre le cinema.

Contribution a une definition situationniste du jeu.

Problemes preliminaires a la construction d’une situation.

Définitions. x

Formulaire pour un urbanisme Nouveau. x x

Thèses sur la révolution culturelle. x x

Les situationnistes et l’automation. x

Pas d’indulgences inutiles. x x

Editions pour l’agitation situationniste.

Deuxieme conference de L’I.S.

Venise a vaincu Ralph Rumney.

Action en Belgique contre l’assemblee des critiques d’art internationaux.

Une guerre civile en France.

Internacional Situacionista – n°2 Dezembro de 1958

Textos

Palavras Chave Henri

Lefebvre Vida

cotidiana Surrealismo Dadá

Les souvenirs au-dessous de tout. x x x

Ce que sont les amis de ‘COBRA’ et ce qu’ils representent.

x

L’absence et ses habilleurs. x x

L’effondrement des intellectuels revolutionnaires.

x

Le tournant obscur. x

Renseignements situationnistes.

Essai de description psychogéographique des halles.

Questionnaire.

Théorie de la dérive. x

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204

Sur nos moyens et nos perspectives. x x x

L’activité de la section italienne. x

Les situationnistes em amérique.

La déclaration d’amsterdam.

Suprême levée des défenseurs du surréalisme a paris et révélation de leur valeur effective.

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Internacional Situacionista – n°3 dezembro de 1959

Textos

Palavras Chave Henri

Lefebvre Vida

cotidiana Surrealismo Dadá

Le sens du deperissement de l’art. x x

Le cinema après Alain resnais.

Le detournement comme negation et comme prelude.

x

L’urbanisme unitaire a la fin des anness 50.

Renseignements situationnistes. x

La troisième conférence de L’I.S. a Münich.

Documents. Discussion sur un appel aux intellectuels et artistes revolutionnaires.

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Plate-forme pour une revolution culturelle. x

Rapport inaugural de la conference de Munich.

Corrections pour l’adoption des onze points d’amsterdam.

Première proclamation de la section hollandaise de l’I.S.

Discours sur la peinture industrielle et sur un art unitaire applicable.

Positions situationnistes sur la circulation.

Une autre ville pour une autre vie. x

Internacional Situacionista – n°4 junho de 1960

Textos

Palavras Chave Henri

Lefebvre Vida

cotidiana Surrealismo Dadá

Sur L’emploi du temps libre. x x

Die Welt Als Labyrinth.

La chute de Paris.

Theorie des moments et construction des situations.

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Renseignements situationnistes.

Esquisses programmatiques.

La fin de l’économie et la réalisation de l’art. x

Signal pour commencer une culture révolutionnaire em israel.

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Description de la zone jaune.

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205

Originalité et grandeur (sur le système d’Isou).

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A propos de quelques erreurs d’interprétation.

Gangland et philosophie.

Manifeste.

Internacional Situacionista – n°5 dezembro de 1960

Textos

Palavras Chave Henri

Lefebvre Vida

cotidiana Surrealismo Dadá

L’Aventure.

La minute de Verite.

La frontiere situationniste. x

Renseignements situationnistes. x

Resolution of the Fourth Conference of the Situationist International Concerning the Imprisonment of Alexander Trocchi. 27 septembre 1960

L’opinion commune sur l’I.S., cette année (revue de presse).

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La quatrième conference de l’I.S. a Londres.

Documents: -Rapport sur le terrain de l’I.S. -Intervention de J. Nash (suede). -Resolution sur le bureau d’urbanisme unitaire. -Declaration faite au nom de la IV conference de l’I.S. devant l’intitute of contemporary arts.

Préface a l’unité scénique “personne et les autres”.

La création ouverte et ses ennemis. x x

Réponse a Schweicher.

Internacional Situacionista – n°6 agosto de 1961

Textos

Palavras Chave Henri

Lefebvre Vida

cotidiana Surrealismo Dadá

Instructions pour une prise d’armes. x

Critique de l’urbanisme. x x

Encore une fois, sur la décomposition. x

Défense inconditionnelle. x

Programme élémentaire du Bureau d’urbanisme unitaire.

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Perspectives de modifications conscientes dans la vie quotidienne.

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Sur la répression sociale dans la culture.

Ceux dont on parle volontiers…

Page 207: LIMA, Rodrigo Nogueira - USP · 2020. 8. 3. · 3 RODRIGO NOGUEIRA LIMA O Romantismo Revolucionário através das afinidades eletivas entre o Movimento Surrealista, Henri Lefebvre

206

La pataphysique, une religion en formation. x

Commentaires contre l’urbanisme. x

Renseignements situationnistes. x

Internacional Situacionista – n°7 Abril de 1962

Textos

Palavras Chave Henri

Lefebvre Vida

cotidiana Surrealismo Dadá

Géopolitique de l’hibernation.

Les mauvais jours finiront. x

Du rôle de l’I.S.

Communication prioritaire. x x

La Cinquième Conférence de l’I.S. à Göteborg.

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Banalités de base (première partie). x

Sunset Boulevard. x x x

L’étage suivant. x x

Renseignements situationnistes. x x

Internacional Situacionista – n°8 janeiro de 1963

Textos

Palavras Chave Henri

Lefebvre Vida

cotidiana Surrealismo Dadá

Domination de la nature, idéologies et classes.

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L’avant-garde de la présence. x x x

L’I.S. vous l’avait bien dit. x

L’opération contre-situationniste dans divers pays.

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All the King’s Men. x x x

Banalités de base (seconde partie). x x

Technique du coup du monde. x

Répétition et nouveauté dans la situation construite.

Anti-public relations.

Rumeurs choisies. x x

Renseignements situationnistes. x

Internacional Situacionista – n°9 agosto de 1964

Textos

Palavras Chave Henri

Lefebvre Vida

cotidiana Surrealismo Dadá

Maintenant, l'I.S. x

Le monde dont nous parlons.

L'I.S. vous l'avait bien dit.

Le questionnaire. x

Mousse controlee.

Page 208: LIMA, Rodrigo Nogueira - USP · 2020. 8. 3. · 3 RODRIGO NOGUEIRA LIMA O Romantismo Revolucionário através das afinidades eletivas entre o Movimento Surrealista, Henri Lefebvre

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Les mois les plus longs (février 1963-juillet 1964).

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Lettres de loin.

Réponse à une enquête du Centre d'art socio-expérimental.

Correspondance avec un cybernéticien. x x x

Internacional Situacionista – n°10 Março de 1966

Textos

Palavras Chave Henri

Lefebvre Vida

cotidiana Surrealismo Dadá

Le déclin et la chute de l'économie spectaculaire-marchande.

Les luttes de classes en Algérie.

L'I.S. et les incidents de Randers.

Contribution au programme des conseils ouvriers en Espagne.

Perspectives pour une generation.

Les structures élémentaires de la reification.

De quelques questions théoriques sans questionnement ni problématique.

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Adresse aux révolutionnaires d'Algérie et de tous les pays.

Les mots captifs. Préface à un dictionnaire situationniste.

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De l'aliénation. Examen de plusieurs aspects concrets.

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Sur des publications de l'I.S.

Internacional Situacionista – n°11 outubro de 1967

Textos

Palavras Chave Henri

Lefebvre Vida

cotidiana Surrealismo Dadá

Le point d'explosion de l'idéologie en Chine.

Deux guerres locales.

Nos buts et nos méthodes dans le scandale de Strasbourg.

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Les situationnistes et les nouvelles formes d'action contre la politique et l'art.

Avoir pour but la vérité pratique. x

Contribution servant à rectifier l'opinion du public sur la révolution dans les pays sous-développés.

La séparation achevée.

Jugements choisis avancés récemment à propos de l'I.S.

La pratique de la théorie.

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Internacional Situacionista – n°12 setembro de 1969

Textos

Palavras Chave Henri

Lefebvre Vida

cotidiana Surrealismo Dadá

Le commencement d'une époque. x x x

Réforme et contre-réforme dans le pouvoir bureaucratique.

Comment on ne comprend pas des livres situationnistes.

Jugements choisis concernant l'I.S. et classés selon leur motivation dominante.

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Préliminaires sur les conseils et l'organisation conseilliste.

Avis aux civilisés relativement à l'autogestion généralisée.

La conquête de l'espace dans le temps du pouvoir.

La pratique de la théorie. x

Raisons d'une réédition.

Aux poubelles de l'histoire. x

La question de l'organisation pour l'I.S.

Correspondance avec un éditeur. x