LIBERDADE, AFETIVIDADE E ATIVIDADE: O TRIPÉ … · meu irmão Juninho, pelo carinho e amizade. Ao...
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PATRÍCIA FONSECA DE OLIVEIRA
LIBERDADE, AFETIVIDADE E ATIVIDADE: O TRIPÉ TERAPÊUTICO DE NISE DA SILVEIRA NO DISCURSO DOS INTEGRANTES DO NÚCLEO DE
CRIAÇÃO E PESQUISA SAPOS E AFOGADOS
São João del-Rei PPGPSI-UFSJ
2012
PATRÍCIA FONSECA DE OLIVEIRA
LIBERDADE, AFETIVIDADE E ATIVIDADE: O TRIPÉ TERAPÊUTICO DE NISE DA SILVEIRA NO DISCURSO DOS INTEGRANTES DO NÚCLEO DE
CRIAÇÃO E PESQUISA SAPOS E AFOGADOS
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Psicologia. Área de Concentração: Psicologia. Linha de Pesquisa: Processos Psicossociais e Socioeducativos. Orientador: Professor Walter Melo Júnior Co-orientadora: Professor Marcos Vieira Silva.
São João del-Rei PPGPSI-UFSJ
2012
Dedico este trabalho aos integrantes do Núcleo
de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados.
Agradecida pelo imenso carinho e acolhida.
AGRADECIMENTO
Agradeço a Deus e a todas as energias positivas que recebi enquanto realizava este trabalho.
Aos meus pais, José Geraldo e Maria Aparecida, pelo amor e apoio incondicionais. Ao meu irmão Juninho, pelo carinho e amizade.
Ao professor Walter, por acreditar em mim e por ter me dado uma grande oportunidade de crescimento profissional. Agradeço também pela liberdade que sempre me proporcionou nos trabalhos que juntos realizamos. Não poderia ter tido melhor orientador, muito obrigada.
À professora Marília, pela generosidade em me ajudar a trilhar os caminhos da análise do discurso. Sem essa ajuda o percurso teria sido muito difícil. E por participar da banca de defesa.
À professora Stella, por gentilmente aceitar o convite para compor a banca de mestrado. Agradecida pelas importantes contribuições.
Ao Professor Marcos Vieira, pela co-orientação.
Aos colegas de mestrado, em especial a Carol, por tudo que partilhamos neste processo em que choramos e rimos e, mais do que isso, muito aprendemos.
Aos funcionários do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSJ (PPG/PSI), pelo carinho e dedicação.
Aos amigos do Laboratório de Pesquisa e intervenção Psicossocial (LAPIP), com os quais convivi desde a graduação, e os amigos do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Intervenção em Saúde (NEPIS) coordenado pelo professor Walter Melo, muito aprendi com vocês e hoje isso se reflete em minhas atividades profissionais.
Aos amigos distantes em espaço, sempre presentes no coração: Nat, Aline Gonçalves, Aline Martins, Sofia, Nuno, Alex (Josh),Vinicius, Igor e Sábatha.
À Renata, Viviane, Wellemy, Fábio, Gastão e Erivelto, pela amizade e companheirismo. A Rê também pela ajuda na tradução do resumo da dissertação para o inglês.
Aos integrantes do Grupo LESMA Poesia, em especial a Wagner e Osmir, com quem aprendi muito sobre a poesia e a vida.
Aos meus colegas de trabalho da APAE de Conselheiro Lafaiete e da Unidade Básica de Saúde de Cristiano Otoni.
A todos os meus amigos e familiares que de alguma forma, em torcida e apoio, estiveram presentes nessa caminhada.
À minha querida tia Rosilene (em memória) que torceu muito por mim e sempre apoiou todos os meus projetos de vida. Tenho certeza que você estaria sentada na primeira fileira no dia da minha defesa, e sinto que de alguma forma você estará.
Em especial meu agradecimento aos integrantes do Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados (Juliana, Viviane, Sílvia, Ludmila, Rogério, Edmundo, Renata, Elon, Vítor, Germana e aos novos membros: Juni, Jaqueline e Lydia) sem vocês este trabalho não existiria. Não tenho palavras suficientes para agradecer tamanha generosidade em partilharem comigo seus pulos e a carinhosa acolhida no brejo, do qual hoje me sinto parte também.
RESUMO
Este trabalho de pesquisa insere-se nos atuais debates acerca da reabilitação psicossocial de cidadãos em sofrimento psíquico, partindo do pressuposto de que a mesma deve ser pensada como um conjunto de práticas que visem a reinserção social desses sujeitos e o trabalho em prol da cidadania dos mesmos. Partindo de reflexões a partir do estudo dos trabalhos de Nise da Silveira que utilizavam a linguagem artística como forma de tratamento e seu tripé terapêutico composto pelas categorias: Afetividade, Liberdade e Atividade, o objetivo desta pesquisa foi investigar como essas categorias aparecem nos discursos dos integrantes de um grupo inserido no campo da saúde mental que utilize a linguagem artística como atividade. O grupo escolhido para a realização desta pesquisa é o Núcleo de Criação Sapos e Afogados da cidade de Belo Horizonte/MG, que trabalha com teatro e cinema. O grupo, formado por usuários da rede de saúde mental, começou no interior de um Centro de Convivência e há oito anos realiza um trabalho independente com apoiadores do meio artístico. Realizamos uma pesquisa de campo que incluiu: observações dos ensaios e trabalhos do grupo, entrevistas individuais semiestruturadas com os integrantes do mesmo e anotações em diário de campo. As entrevistas e reuniões foram filmadas e transcritas para serem posteriormente analisadas. Foram entrevistados seis atores e a diretora do grupo. O procedimento adotado foi a Análise de Discurso, tendo como inspiração as análises arqueológicas e genealógicas de Michel Foucault. Foram analisados dois enunciados de cada categoria. Os resultados encontrados permitiram constatarmos a importância do tripé terapêutico proposto por Nise da Silveira na prática cotidiana do Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados e algumas reflexões em torno do poder disciplinar no campo da saúde mental e o lugar de resistência do Grupo. Foi possível articularmos as categorias analisadas aos conceitos de identidade, cidadania e territorialização, caros às reflexões em torno da reabilitação psicossocial de cidadãos em sofrimento psíquico.
Palavras-chave: Atividade; Afetividade; Liberdade; Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados.
ABSTRACT
This research fits into the current debates about psychosocial rehabilitation of people in psychological distress, assuming that it must be thought of as a set of practices aimed at social reintegration of these individuals and work towards their citizenship. Starting with reflections from the study of the works of Nise da Silveira who used the language of art as a form of therapeutic treatment, composed by categories: Affection, Freedom and activity, the objective of this research was to investigate how these categories appear in the speeches of members of a group entered the mental health field that use the language of art as an activity. The group chosen for this research is the “Núcleo de Criação Sapos e Afogados” (Center for Creation Drowned Frogs) from the city of Belo Horizonte / MG, which works with theater and cinema. The group, made up of users of mental health services, began in a Family Center eight years ago and conducts independent work with artist’s support. We conducted a field survey that included: observations of tests and group work, individual semi-structured interviews with its members and notes about the field survey. Interviews and meetings were recorded and transcribed for later analysis. We interviewed five actors and the director of the group. The procedure adopted was to Discourse Analysis, taking as inspiration the archaeological and genealogical analyzes of Michel Foucault. We analyzed two statements in each category. Results made it possible to verify the importance of therapeutic plan proposed by Nise da Silveira in the everyday practice of the “Núcleo de Criação Sapos e Afogados” (Center for Creation Drowned Frogs) and some reflections on the disciplinary power in the mental health field and the place of the resistance group. It was possible to articulate the categories analyzed the concepts of identity, citizenship and the concept of territory important for reflections on the psychosocial rehabilitation of citizens in distress. Keywords: Activity, Affection, Freedom, Center for Creation Research and Drowned Frogs.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................................11
CAPÍTULO I - RELAÇÃO DA ARTE COM A SAÚDE MENTAL E O TRIPÉ TERAPÊUTICO DE NISE DA SILVEIRA: AFETIVIDADE, LIBERDADE E ATIVIDADE 1.1. Arte e saúde mental: uma parceria que deu certo..........................................................19 1.2. Afetividade, Liberdade e Atividade: O Tripé Terapêutico de Nise da Silveira............25 1.2.1. Afetividade.................................................................................................................25 1.2.2. Atividade .................................................................................................................32 1.2.2.1. Teatro: A atividade no Grupo Sapos e Afogados....................................................35 1.2.3. Liberdade....................................................................................................................38
CAPÍTULO II - PERCURSO METODOLÓGICO...........................................................43 2.1. Fase de exploração........................................................................................................43 2.2. O trabalho de campo.....................................................................................................44 2.3. Tratamento do material empírico e documental............................................................46
CAPÍTULO III - O CONTEXTO DE PRODUÇÃO DE DISCURSOS..........................52 3.1. As Reformas no campo da Saúde Mental e o contexto mineiro .................................52 3.1.1. Os primórdios da Psiquiatria em Minas Gerais........................................................52 3.1.2. A psiquiatria na capital: contexto histórico de Belo Horizonte – Os hospitais psiquiátricos e as mudanças na psiquiatria mineira.......................................................... 55 3.1.3. Informações sobre o período de criação do “Raul Soares”......................................57 3.1.4. Um pouco dos anos 1930-1964 e a criação do Hospital Psiquiátrico Galba Veloso ............................................................................................................................................. 58 3.1.5. Quando a situação ficou insustentável – a verdade dos hospitais psiquiátricos de Minas Gerais vem à tona.................................................................................................... 58
3.1.6. A Saúde Mental em Belo Horizonte - o caminho para a desospitalização............... 64 3.2. Sobre Sapos e Afogados.............................................................................................. 66
CAPÍTULO IV - OS DISCURSOS DOS INTEGRANTES DO NÚCLEO DE CRIAÇÃO E PESQUISA SAPOS E AFOGADOS................................................................................73
4.1. Atividade.......................................................................................................................73
4.1.1. Enunciado 1: Participar do Sapos e Afogados não é fazer terapia mas é terapêutico ..............................................................................................................................................73
4.1.2. Enunciado 2: O Grupo Sapos e Afogados levanta a bandeira da saúde mental e da luta antimanicomial..............................................................................................................78
4.2. Liberdade..................................................................................................................... 79
4.2.1. Enunciado 1: A entrada na cultura se deu de fato com a saída do Centro de Convivência..........................................................................................................................79
4.2.1.1. Algumas reflexões sobre a noção de Território (Espaço) no trabalho do Núcleo de Criação e Pesquisa SAPOS e AFOGADOS e a vivência da cidadania...............................82
4.2.2. Enunciado 2: Participar do Sapos é uma possibilidade de estar integrado à sociedade e vivenciar vários papéis.....................................................................................86
4.2.2.1 A Identidade no Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados...............................................................................................................................88
4.2.2.2. A identidade do Grupo Sapos e Afogados...............................................................90
4.3. Afetividade................................................................................................................... 95 4.3.1. Enunciado 1: O Grupo Sapos e Afogados é um espaço para vivenciar afetos .........95
4.3.2. Enunciado 2: Estar no Sapos é realizar o sonho de ser artista ........................... 101
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................106
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................. 111
APÊNDICES.....................................................................................................................117
Apêndice A- Roteiro de entrevista com os atores ............................................................ 118
Apêndice B - Roteiro de entrevista com a diretora do grupo.............................................119
Apêndice C- Termo de consentimento livre e esclarecido................................................ 120
Apêndice D- Termo de Consentimento..............................................................................121
11
INTRODUÇÃO
O tema do presente trabalho insere-se nos atuais debates do campo da saúde mental
que se propõem a pensar a reabilitação psicossocial, nesse caso através de uma interface
com a atividade artística. O interesse pela temática vem de um percurso acadêmico e
também de experiências pessoais com a arte. Como em qualquer campo de pesquisa, não
podemos nos eximir de apresentar nossas implicações pessoais como pesquisadores. Nesse
sentido, não poderia deixar de falar da linguagem artística como possibilidade de
transformação pessoal, uma vez que em minha vida a poesia foi um mote importante.
Assim, não menos importante que minha trajetória acadêmica para a escolha de
meu objeto de pesquisa, vem meu envolvimento pessoal com a arte. Aos 17 anos pude
entrar num grupo de poesia, mais especificamente uma organização não governamental, a
LESMA Poesia (Liga Ecológica Santa Matilde), grupo ao qual faço parte. A entrada na
LESMA me possibilitou vivenciar a experiência poética em suas inúmeras formas: o
recitar, o escrever, o transmitir dentro de vozes e ritmos. A principal marca da LESMA na
minha história de vida e, principalmente, na minha escolha de atuação como psicóloga,
está na possibilidade de pensar o papel da arte na formação crítica dos indivíduos, bem
como na possibilidade de inserção social através da cultura. Os trabalhos de poesia
realizados, seja através dos recitais seja através das oficinas, me levaram a pensar em
como, através da utilização de uma linguagem artística, torna-se possível tranversalizar as
imposições da sociedade que segmentam e excluem aqueles que, de alguma forma,
questionam suas mazelas. Em síntese, a linguagem artística sempre me seduziu como um
movimento de questionamento.
O entrelace das temáticas arte e das categorias do tripé terapêutico de Nise da
Silveira: Atividade, Liberdade e Afetividade (Melo, 2001; 2005), se deu principalmente
através da prática extensionista, na qual trabalhei com oficinas de teatro para usuários de
um serviço de saúde mental. Esse estágio, orientado pela proposta de Nise da Silveira no
que concerne a utilização da atividade expressiva mediada pela linguagem artística, me
possibilitou questionar, em diversos momentos, como poderia se dar a reabilitação
psicossocial e qual seria o papel dessas categorias nesse processo, uma vez que em nossa
prática, bem como nos trabalhos realizados por Nise da Silveira, a atividade, a liberdade e
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afetividade apareciam com suma importância. A reabilitação psicossocial é entendida aqui
de acordo com o conceito proposto por Pitta (1996), no qual é considerada um processo
que objetiva facilitar aos cidadãos em sofrimento psíquico a reestruturação de sua
autonomia através de ações que os incluam em diversos segmentos sociais. Objetiva
fortalecer e favorecer as ações na comunidade, visando a potencialização de suas
habilidades.
São várias as terminologias que designam as pessoas que possuem algum tipo de
transtorno mental. Neste trabalho optamos por designá-los por cidadãos em sofrimento
psíquico, uma vez que na IV Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 2010, a
mudança para essa nomenclatura foi uma reivindicação dos usuários dos serviços de saúde
mental e por acharmos essa nomenclatura mais pertinente e menos segregadora. A nova
nomenclatura demarca a utilização do termo cidadão, aspecto muito caro a essa pesquisa.
Empiricamente, pude perceber que o contato afetivo entre os participantes, e
também com os monitores, era de fundamental importância para a realização do trabalho
em grupo e, muitas vezes, era o ponto chave para a resignificação de sofrimentos, uma
possibilidade de questionar a doença e reviver outros papéis na sociedade, que não se
restringiam ao de louco ou de doente mental. Em lugares, como é o caso de grande parte
dos serviços de saúde mental, onde ainda pouco se ouve o que o cidadão em sofrimento
psíquico tem a dizer, onde ainda há o predomínio de uma clínica voltada para a melhora
biológica e a adaptação passiva à realidade (Pichon-Rivière, 1991), a atividade expressiva
permite um novo olhar. Possibilita, ainda, um investimento nesses sujeitos, e mesmo uma
possibilidade de escuta para muitos com dificuldades para dizer por palavras.
Os questionamentos acerca dessa temática, aprofundados e intensificados durante a
pesquisa no âmbito da iniciação científica, na qual realizei um levantamento e análise de
trabalhos que relacionam arte e saúde mental na região Sudeste do país, me levaram a
buscar, na pós-graduação, respostas e reflexões relativas a algumas inquietações em
relação ao papel da afetividade, atividade e liberdade, sendo essas as que compõem o
presente projeto.
Antes de adentrar nos pormenores da relação da arte e da saúde mental, ao longo da
história e na contemporaneidade, bem como sua implicação no presente projeto, faz-se
necessário explorar o que aqui chamamos de Reabilitação Psicossocial. A colocação de
Pitta (1996), embora seja importante ao designar de forma simplificada e abrangente esse
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conceito, não nos exime de traçar reflexões sobre essa proposta que se mostra complexa e,
muitas vezes, até mesmo controversa.
A International Association of Psychosocial Rehabilitation Services (IAPRS)
define como reabilitação psicossocial:
(...) processo de facilitar ao indivíduo com limitações, a restauração, no melhor nível possível de autonomia do exercício de suas funções na comunidade (...) o processo de enfatizar as partes mais sadias e a totalidade de potenciais do indivíduo, mediante uma abordagem compreensiva e um suporte vocacional, residencial, educacional, ajustados às demandas singulares de cada indivíduo e cada situação de modo personalizado (IAPRS, 1995, como citado em Pitta, 1996, p. 21).
Essa é uma das definições clássicas do conceito de reabilitação psicossocial. A
Organização Mundial de Saúde (OMS) a define como:
(...) um processo que oferece aos indivíduos que estão desabilitados, incapacitados ou deficientes em virtude de transtorno mental a oportunidade de atingir o seu nível potencial de funcionamento independente na comunidade. Envolve tanto o incremento de competências individuais como a introdução de mudanças ambientais (OMS, 1995) (...) A reabilitação psicossocial é um processo abrangente e não apenas uma técnica (OMS, 2001, p. 94).
No livro Reabilitação Psicossocial no Brasil de 1996, organizado por Ana Pitta,
encontramos contribuições de vários autores no que concerne à problematização acerca das
práticas de reabilitação e as possíveis diretrizes que as orientam, sendo que é a partir desses
autores que propomos aqui uma reflexão acerca desse campo de práticas e saberes que
atualmente norteia as ações em saúde mental.
A Lei 10.216/2001 (conhecida como Lei Paulo Delgado ou Lei da Saúde Mental)
coloca que as práticas em saúde mental devem priorizar tratamentos menos invasivos e que
tenham como finalidade permanente a reinserção social do sujeito em seu meio. A partir
dessa proposição, podemos pensar a reabilitação psicossocial como um conjunto de
práticas que se articulam em torno da oferta, ao paciente, de possibilidades de ser
(re)integrado à sociedade. As discussões que compõem a coletânea organizada por Ana
Pitta são anteriores à aprovação da Lei da Saúde Mental. Entretanto, se fizeram em um
cenário que contribuiu para a reflexão e construção das diretrizes que a compõem.
É preciso, antes de explorarmos o conceito de reabilitação psicossocial, expor nosso
posicionamento a respeito do mesmo. Não acreditamos que essa seja a terminologia mais
14
adequada, concordando com Pitta (1996) que afirma que o termo reabilitação sugere uma
recobrança de crédito, estima ou bom conceito perante a sociedade (p. 23), ou seja,
práticas que podem ser enquadradas em formas normativas de cuidados. Entretanto, tendo
em vista que essa terminologia é utilizada para designar as práticas ampliadas no campo da
saúde mental, a adotamos aqui, com algumas críticas. A começar pelo fato de que, quando
falamos em reabilitação, obviamente nos remetemos a pensar em desabilitação. Se uma
pessoa necessita ser reabilitada é por se encontrar em uma situação de desabilitação. Mas o
que configura essa situação? Para Saraceno (1996) e Tikanori (1996), a desabilitação está
ligada a um processo de perda das trocas sociais, do poder contratual, nas palavras de
Tikanori, e da capacidade de negociação, em Saraceno. Os autores nos propõem a pensar a
desabilitação como um processo que não advém apenas das perdas advindas do
adoecimento, mas principalmente da segregação a que está submetido o cidadão em
sofrimento psíquico desde o início de sua doença. Essa colocação nos provoca a pensar a
reabilitação como uma prática que deve extrapolar a reinserção social, no sentido estrito de
estar novamente em sociedade, e ser pensada como possibilidade de restituição do poder de
realizar trocas sociais de formas efetivas. Sem essa reflexão acerca do poder contratual ou
capacidade de negociação, as práticas de reinserção social correm o risco de autorizar
novas formas de exclusão, uma vez que não basta que os ditos doentes mentais estejam
circulando no meio social, é preciso trabalhar em prol do exercício da cidadania desses
sujeitos.
O conceito de cidadania, como capacidade plena de exercer os direitos sociais é,
para Saraceno (1996), o ponto principal em que devem se fundamentar as práticas de
reabilitação psicossocial. Essa posição é partilhada com outros autores participantes de
Reabilitação Psicossocial no Brasil, como Jairo Goldberg, Maria José Beneton, entre
outros. Numa teia diversa, que reúne múltiplos pontos de vista, a restituição da cidadania
parece ser um ponto em comum e fundante em torno das experiências de reabilitação.
A reabilitação psicossocial configura-se, assim, com um campo de orientação para
a atenção na rede de saúde mental, mas se sabemos que as práticas nesse campo devem ser
orientadas para a restituição da cidadania perdida (ou talvez roubada), nos questionamos a
respeito da técnica para atingir tal objetivo. Saraceno salienta a importância da discussão a
respeito da técnica. Para o autor, a reabilitação psicossocial como uma responsabilidade
ética não deve se restringir a uma técnica específica, mas sim traduzir-se numa estratégia
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global que vise o exercício pleno da cidadania e da contratualidade, nas esferas do habitat,
rede social e trabalho com valor social (Saraceno, 1996, p.16).
Nesse sentido, Nascimento (1990, citado em Benetton, 1996), faz uma crítica à
centralização na técnica:
A intervenção técnica centrada na atividade laboral (a marcenaria, a pintura, etc.) ou na relação terapêutica, opera uma divisão entre o técnico e o político que só beneficia a própria técnica porque a exime de assumir outras responsabilidades. E tranqüiliza artificialmente a nossa consciência (p.146).
A partir dessas reflexões em torno da reabilitação psicossocial, essa pesquisa tem
como ponto de partida pensar a possibilidade do uso da linguagem artística como
intervenção no campo da saúde mental, nos propondo, dessa maneira, a refletir sobre a
potencialidade desse recurso não como finalidade exclusiva de formar artistas, não
excluindo evidentemente essa possibilidade, mas principalmente como modos de se ter
vivências criativas que potencializem os sujeitos em direção à conquista de sua cidadania
através de ações que lhes possibilitem falar de seus sofrimentos e do fortalecimento dos
vínculos afetivos que mediam essas atividades. O vínculo afetivo, a atividade e a liberdade
são tomados como focos de investigação desta pesquisa, pois mantêm uma estreita ligação
com o processo de reabilitação psicossocial.
Sobre o uso de recursos artísticos como forma de intervenção no campo da saúde
mental, podemos afirmar que foram introduzidos no Brasil pelo psiquiatra Osório Cesar na
década de 1920, no Hospital Juquery (em São Paulo). Esta atividade foi ampliada ao longo
dos anos e em 1948 foi implantada uma Seção de Artes Plásticas para os internos (Ferraz,
1998). Nise da Silveira, psiquiatra e estudiosa da obra de Jung, iniciou as atividades
artísticas como método terapêutico a partir de 1946, na Seção de Terapêutica Ocupacional
do Hospital de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. Em 1956, Nise da Silveira
inaugurou, juntamente com artistas e profissionais da saúde mental, a Casa das Palmeiras,
clínica de tratamento em regime de externato, sem fins lucrativos, que tem como princípios
norteadores a liberdade, o afeto e a atividade como possibilidades de reorganização
psíquica e reinserção social (Silveira, 1992). Esses trabalhos destacam-se como
possibilidades de um tratamento humanizado e efetivamente reabilitador.
Atualmente, o uso da linguagem artística como forma de intervenção em
instituições de saúde mental tem o respaldo de políticas públicas, primeiramente através da
16
Lei do SUS (8080/1990) que prevê a saúde como bem estar biopsicossocial, sendo
garantida por melhores condições de vida que incluem: lazer, moradia, trabalho,
saneamento etc. A ampliação do conceito de saúde abre possibilidades para pensar os
vários aspectos que afetam a saúde dos sujeitos. O principal marco no campo das políticas
públicas que permitiu ampliar as formas de tratamento dos cidadãos em sofrimento
psíquico é a aprovação da Lei 10.216/2001, que regulamenta os direitos destes indivíduos e
prevê formas de tratamento que priorizem a reabilitação psicossocial.
Quando afirmamos que as práticas artísticas têm o respaldo das referidas leis, é
pelo fato de que ambas abrem um leque de possibilidades no campo da saúde mental, o que
permite pensar práticas que extrapolam a clínica tradicional, focada no indivíduo, assim
como a emergência de práticas de cunho coletivo e com princípios baseados no conceito
ampliado de saúde. A partir da aprovação da Lei 10.216/2001, foi proposta, no ano de
2002, a regulamentação do funcionamento dos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) I,
II e III através da Portaria GM/MS n.º 336, de 19 de fevereiro de 2002, que prevê o
atendimento em oficinas terapêuticas executadas por profissional de nível superior ou nível
médio.
No ano de 2005, a Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais aprovou a Portaria
nº 396, de 7 de julho, que regulariza o Programa de Centros de Convivência e Cultura na
rede de atenção em saúde mental do SUS. Existem cerca de 60 Centros de Convivência e
Cultura em funcionamento no país, em sua maioria concentrados nos municípios de Belo
Horizonte, Campinas e São Paulo (Brasil, 2007b). Na IV Conferência Nacional de Saúde
Mental Intersetorial, realizada em 2010, foi reivindicada a criação de uma portaria
ministerial para implantação de Centros de Convivência (Brasil, 2010). Salientamos que
as leis que orientam as intervenções no campo da Saúde Mental foram frutos do intenso
movimento de reforma iniciado no Brasil, na década de 1970, através principalmente do
Movimento dos Trabalhadores da Saúde Mental (Amarante, 2007).
Muitos trabalhos que articulam a arte ao campo da saúde mental são realizados em
grupos. O grupo, como processo, configura-se como o campo de expressão de
subjetividades e formação de identidades, através das quais um indivíduo tem a
possibilidade de elaborar seus conflitos, bem como relacionar-se afetivamente (Pagès,
1982). A formação do indivíduo está relacionada à forma como esse se vincula ao outro
através de uma rede de papéis que desempenha (Pichon-Rivière, 1991).
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Atualmente, podemos afirmar que os trabalhos no campo da Saúde Mental
caracterizam-se pela busca intensa de que se faça valer o que durante anos foi buscado
através dos movimentos reformistas da psiquiatria: que os usuários desses serviços tenham
acesso a um tratamento que possibilite a reabilitação psicossocial. A Lei Paulo Delgado
(10.216/2001) assegura os direitos dos cidadãos em sofrimento psíquico. Entretanto, essa
lei não é suficiente para assegurar que haja uma mudança de mentalidade que supere, de
vez, anos de tratamentos voltados para o isolamento e para formas de paternalismo que
excluem os indivíduos de suas possibilidades de autonomia. São muitos os desafios para
que possam ser efetivadas as políticas de saúde mental. A própria consolidação do conceito
de território dos serviços de saúde mental como espaços comunitários e subjetivos de
cuidados, não meramente geográficos, ainda é um grande desafio. A maioria dos
tratamentos em saúde mental ainda se restringe ao contexto clínico e prioritariamente
medicamentoso (Brasil, 2005).
Os Centros de Convivência, bem como os CAPS, são instituições que se propõem a
promover a reabilitação psicossocial, principalmente através de trabalhos em grupo. Os
grupos artísticos formados em instituições de saúde mental figuram, principalmente, como
modos de dar visibilidade a esses sujeitos que ainda são politicamente minoritários e de
propiciar a reabilitação psicossocial, bem como a desconstrução de visões estigmatizantes
da loucura. Esses grupos caracterizam-se como novas maneiras de tratar a loucura que não
se reduzem apenas a diagnósticos e tratamentos medicamentosos que, muitas vezes,
impossibilitam até mesmo o principal objetivo de um tratamento em saúde mental: a
reabilitação psicossocial.
A escolha por um grupo específico a ser estudado nesta dissertação justifica-se,
principalmente, pelos resultados encontrados no mapeamento de trabalhos que utilizam a
linguagem artística no campo da saúde mental na Região Sudeste do Brasil, realizado na
pesquisa feita anteriormente no âmbito da iniciação científica. Foi possível constatar, com
essa pesquisa, que a grande maioria dos trabalhos realizados em instituições de saúde
mental que utilizam recursos artísticos são realizados em grupo Justifica-se, ainda, pelo
fato de que, como já exposto, os Centros de Convivência priorizam o trabalho em grupo
através de oficinas, aspecto previsto também na legislação do CAPS (Oliveira & Melo
Júnior, 2010).
Torna-se importante pensar a formação desses grupos e as bases que lhe dão
sustentabilidade uma vez que se destacam no cenário da saúde mental como possibilidade
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de efetivação do ideal da reabilitação psicossocial e, através de suas práticas, podem
elucidar os problemas referentes às dificuldades encontradas pelos cidadãos em sofrimento
psíquico.
O grupo escolhido para a realização desta pesquisa foi o Núcleo de Criação e
Pesquisa Sapos e Afogados, da cidade de Belo Horizonte/MG, formado por usuários da
rede de saúde mental. Esse grupo, que trabalha de forma independente da rede de saúde
mental há oito anos, atua na produção de curtas-metragens e de peças de teatro.
Assim, pensando a importância das dimensões da afetividade, atividade e liberdade,
ressaltada nos trabalhos de Nise da Silveira, propomos investigar nesta pesquisa como
essas categorias aparecem nos discursos dos integrantes do Núcleo de Criação e Pesquisa
Sapos e Afogados. O procedimento metodológico utilizado para esse fim é a Análise de
Discurso, tendo como inspiração as análises arqueológicas e genealógicas de Michel
Foucault. Propomos investigar, ainda, essas categorias em articulação com os conceitos de
cidadania e territorialização, tão caros às reflexões sobre a reabilitação psicossocial.
Acreditamos que as análises discursivas realizadas contribuirão para a reflexão em torno
das práticas de reabilitação psicossocial.
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CAPÍTULO 1: RELAÇÃO DA ARTE COM A SAÚDE MENTAL E O TRIPÉ TERAPÊUTICO DE NISE DA SILVEIRA: AFETIVIDADE, LIBER DADE E ATIVIDADE
1.1. Arte e saúde mental: uma parceria que deu certo
Como já assinalado, os primeiros trabalhos que empregaram a linguagem artística
como intervenção no campo da saúde mental, no Brasil, foram desenvolvidos por Osório
Cesar no Hospital Juquery (SP) onde, mesmo não havendo espaços propícios às atividades
artísticas, foram implantadas atividades de artes plásticas para os internos da instituição na
década de 1920. Esse trabalho foi sendo ampliado e no ano de 1948 ganhou maior
visibilidade com a implantação da Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery, ano no qual
a atividade passou a ter um espaço apropriado e se pôde consolidar a troca entre os
internos e vários artistas modernistas que passaram a frequentar o ateliê. As atividades
artísticas atendiam ao objetivo de propiciar aos indivíduos da instituição formas
alternativas de expressão, que acabaram por se tornar estratégia clínica para a reinserção
social (Ferraz, 1998).
Outro trabalho precursor no que se refere à utilização de recursos artísticos como
forma de intervenção em instituições de saúde mental foi, segundo Melo (2001),
desenvolvido por Nise da Silveira, a partir de 1946 na Seção de Terapêutica Ocupacional
do Hospital de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. No ano de 1961 o nome dessa seção
mudou para Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR) demarcando a
importância da reabilitação nesse trabalho. A eminente psiquiatra utilizava recursos
artísticos com o intuito de propiciar meios alternativos de expressão para os cidadãos em
sofrimento psíquico, bem como visava proporcionar a reabilitação psicossocial. Nise da
Silveira considerava fundamentais os pressupostos relativos à reabilitação psicossocial nos
tratamentos e evidencia essa preocupação em algumas falas: A Reabilitação é focalizada
em primeiro lugar e as terapêuticas tornam-se o seu instrumento; O fio condutor do
tratamento ocupacional na nossa seção é a reabilitação; e A meta do tratamento
psiquiátrico não pode mais continuar sendo a remoção de sintomas, porém a recuperação
do indivíduo para a comunidade (Silveira, 1966, p.56). Essas colocações demonstram que
o trabalho de Nise da Silveira priorizava a reintegração do sujeito ao seu meio através da
20
reabilitação psicossocial, ao contrário de alguns críticos que consideravam que sua
intenção era apenas tratar terapeuticamente (Melo, 2005).
Nise da Silveira utilizava como respaldo teórico para seus trabalhos as
contribuições da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, enfatizando a afetividade como
propulsora para a reorganização psíquica. No ano de 1952, em decorrência da expressiva
produção artística dos internos de Engenho de Dentro, Nise da Silveira fundou o Museu de
Imagens do Inconsciente, trabalho que, além de dar visibilidade a essas obras, se constituiu
como um espaço ímpar de produção, visto que o Museu abriga em seu interior um ateliê
onde os artistas expositores executam suas obras, afirmando-se assim como um Museu
Vivo (Melo, 2005)
Os trabalhos produzidos em Engenho de Dentro eram estudados e analisados por
Nise da Silveira como obras em que eram projetados conteúdos advindos do inconsciente.
Silveira salienta que, em relação ao uso da psicologia no entendimento da arte, Jung
recomenda precauções, pois a vida do artista, sua psicologia pessoal, pode explicar apenas
algumas características de sua obra, sem nunca abarcar a totalidade da criação artística. As
vivências pessoais do artista, seus conflitos e desejos não podem ser considerados
decisivos no processo de entendimento da obra. Antes de ser um produto individual, a obra
do artista é a expressão de uma coletividade e da alma inconsciente da humanidade. No ato
da criação, o que está em jogo é o mergulho que o artista faz em seu próprio psiquismo, ou
seja, no seu inconsciente que é também um inconsciente coletivo (Silveira, 1981).
Para além do trabalho de cunho científico empreendido por Nise da Silveira, a
produção dos artistas de Engenho de Dentro começou a ganhar visibilidade pelo caráter
estético que muitas obras apresentavam. Segundo Melo (2005), críticos de arte, como
Mário Pedrosa, teceram várias considerações acerca desses trabalhos. A inserção das obras
dos internos no meio artístico se deu a partir de diversas discussões no campo da estética
modernista. Dentre essas, destaca-se a realizada por Mário Pedrosa e Quirino
Campofiorito. Ambos os críticos de arte concordavam com a importância científica do
trabalho empreendido por Nise da Silveira. Entretanto, discordavam em relação ao caráter
artístico dessas obras. Campofiorito, preso a estética clássica, via nas obras produzidas,
ligadas a estética modernista, certo tipo de arte que chamou primitiva. Mário Pedrosa, por
sua vez, reconhecia nas obras grande valor estético e embasava suas críticas no recente
21
modernismo, que suscitou questionamentos a respeito do conceito de arte que, para ele, era
ainda muito intelectualizada.
Dessa maneira, as obras produzidas no Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro
inseriram-se nos debates da crítica de arte, a partir das semelhanças com as produções da
corrente modernista. O embate entre a crítica dos classicistas e dos modernistas
possibilitou diversas reflexões acerca das concepções a respeito daquilo que poderia ser
considerado arte. Possibilitou, ainda, divulgar os trabalhos artísticos inseridos no campo da
saúde mental.
As críticas de Pedrosa (1995) afirmavam a produção de Engenho de Dentro como
Arte Virgem, uma vez que os artistas que ali produziam não tiveram nenhuma formação
acadêmica e sua produção era espontânea. Em relação ao aspecto afetivo, Mário Pedrosa
afirmava a produção artística como sendo de caráter fundamentalmente emotivo.
Nesse momento, abrimos um parêntese para falar um pouco da atividade artística
como possibilidade de expressão da subjetividade humana. Embora, neste trabalho, nosso
objetivo não é fazer conceituações acerca da estética no campo da arte, faz-se necessário
demarcar o que compreendemos por expressão artística, uma vez que nosso estudo aborda
um grupo que trabalha com essa via e apostamos que a utilização da linguagem artística
pode ser uma maneira de atingir a reabilitação psicossocial e possibilitar a elaboração das
questões que perpassam os sujeitos.
No trabalho desenvolvido por Osório Cesar a obra produzida através da expressão
propiciada pelo acesso a algum tipo de linguagem artística (por exemplo, a música, a
escrita, a pintura etc.) era passível de ser lida através dos subsídios da psicanálise
freudiana. O trabalho de Nise da Silveira (1981; 1992) cunhou um método terapêutico em
que a obra era analisada como expressões do inconsciente a partir da leitura junguiana.
Esses autores nos são caros para pensarmos a inserção da linguagem artística nos
tratamentos no campo da saúde mental. Entretanto, neste trabalho, não pretendemos
explorar a linguagem artística como possibilidade exclusivamente terapêutica, mas também
como possibilidade de amplo acesso ao meio cultural. Assim, não partiremos de definições
psicológicas para falar do impacto da realização de atividades artísticas no sujeito, nem
mesmo de definições do campo da estética que sugiram a valoração desses trabalhos.
O que pretendemos é explicitar, através da fala dos sujeitos envolvidos nesses
trabalhos, como as relações de afeto são vivenciadas no grupo Sapos e Afogados e como a
22
linguagem artística se relaciona com esse aspecto, que constitui nosso foco de pesquisa.
Assim sendo, não nos aventuraremos a tecer considerações exaustivas acerca das
peculiaridades da produção artística, uma vez que não é nosso foco de análise, apenas
pautaremos nossa discussão nas colocações de Pedrosa (1995) que abordam a arte como
linguagem universal, ou seja, qualquer homem é capaz de produzir arte por ser ela uma
necessidade vital. A arte é entendida, assim, como uma necessidade da expressão humana a
partir de uma linguagem emotiva. Dessa maneira, compreendemos por expressão artística a
expressão da subjetividade do homem, conseqüentemente atravessada pelo contexto em
que se insere. Na fala de Pedrosa (1995):
A atividade artística é uma coisa que não depende, pois, de leis estratificadas, frutos da experiência de apenas uma época da história da evolução da arte. Essa atividade se estende a todos os seres humanos, e não é mais ocupação exclusiva de uma confraria especializada que exige diploma para nela ter acesso. A vontade de arte se manifesta em qualquer homem de nossa terra, independente de seu meridiano, seja ele papua ou cafuzo, brasileiro ou russo, negro ou amarelo, letrado ou iletrado, equilibrado ou desequilibrado (p. 46).
Concluindo essas reflexões, ratificamos que neste trabalho não pretendemos
construir uma conceituação de arte, uma vez que nossos objetivos não buscam classificar o
trabalho a ser pesquisado no campo da estética, o que pretendemos, como um dos
objetivos é investigar as articulações do contato com a linguagem artística e o processo de
reabilitação psicossocial, enfocando as relações entre as categorias estudadas: afetividade,
atividade e liberdade.
Fechamos, então, o parêntese aberto à discussão do que aqui chamamos de
expressão artística e voltamos a falar dos trabalhos sobre a relação da arte com a saúde
mental. Esses trabalhos atestam a possibilidade de que se concretize a reabilitação
psicossocial. Alguns projetos, advindos de instituições de saúde mental, evidenciam isso.
Entre eles podemos citar alguns que participaram da pesquisa de iniciação científica
Relação da arte com o campo da Saúde Mental: mapa da Região Sudeste, realizada no ano
de 20091: grupos musicais como Harmonia Enlouquece, Cancioneiros do IPUB, Sistema
1 O Núcleo de Estudo, Pesquisa e Intervenção em Saúde (NEPIS) da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), coordenado por Walter Melo, iniciou essa pesquisa em março de 2009, sendo finalizada em julho de 2011. Nesse período, a pesquisa foi dividida em quatro partes, com os seguintes bolsistas e alunos de iniciação científica: Patrícia Fonseca de Oliveira (PIBIC/FAPEMIG) – Região Sudeste; Joely Andrade (PIBIC/CNPq) e Lisângelo Coimbra (PIIC/CNPq) – Região Sul; Filippe de Mello Lopes (PIBIC/CNPq) – Região Nordeste; e Maria Alice Silveira (PIIC/CNPq) Regiões Centro-Oeste e Norte.
23
Nervoso Alterado (RJ), Coral Ser-Sã, Os Impacientes (MG); companhias teatrais: Ueinzz
(SP), Pirei na Cenna, Os Nômades (RJ), Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados
(MG); artes plásticas: Projeto Maria do Socorro dos Santos (RJ); entre outros (Oliveira &
Melo, 2010). Os trabalhos aqui citados ganharam visibilidade através da circulação no
meio social. Acrescentamos que muitos outros não possuem essa mesma circulação e
representatividade, entretanto produzem modificações das vidas dos sujeitos que os
realizam, podendo impulsioná-los ao exercício de sua cidadania. No entanto, não podemos
ser ingênuos, pois outros trabalhos que estão submetidos e submetem seus integrantes ao
poder disciplinar. Sobre eles tecemos nossas críticas, por acreditarmos que não é a
adaptabilidade que produz mudanças significativas para os cidadãos em sofrimento
psíquico, mas sim as possibilidades de praticarem a cidadania, direito de todos os homens.
Outro resultado encontrado na supracitada pesquisa de iniciação científica e que
permite, de certa forma, justificar esta pesquisa é que, a partir da consolidação do processo
de reforma psiquiátrica, principalmente com a chamada Lei Paulo Delgado, as instituições
de saúde mental têm crescentemente trabalhado com intervenções grupais através de
recursos artísticos (Oliveira & Melo, 2010). Neste projeto, buscaremos entender um pouco
o processo grupal inerente a um desses grupos enfatizando as relações de afetividade nele
presentes, a partir de uma experiência que não é generalizável aos vários grupos que
trabalham nessa direção, mas que pode permitir reflexões acerca de outros trabalhos.
Durante o levantamento bibliográfico realizado, foram encontradas algumas
pesquisas que abordam trabalhos do campo da saúde mental que utilizam a linguagem
artística. Xisto (2009) realizou uma pesquisa, no âmbito do mestrado, junto a um grupo
carnavalesco, o Coletivo Tá pirando, pirado, pirou do Rio de Janeiro/RJ, formado por
usuários de serviços de saúde mental e profissionais de saúde. Nessa pesquisa a autora
buscou investigar como os profissionais de saúde participantes desse grupo se utilizam de
estratégias contra o sofrimento causado pela organização atual do trabalho. Nesse trabalho,
Xisto (2009) cita a dissertação realizada por Callichio (2007) sobre o Grupo Harmonia
Enlouquece (banda formada por usuários de serviços de saúde mental e profissionais de
saúde do Rio de Janeiro/RJ). Essa pesquisa apontou como resultados que a articulação
entre arte e saúde mental assinala novos avanços na constituição de práticas em saúde
mental e possibilitam outras formas de encarar a loucura, com a emergência de valores
como cuidado, solidariedade e amizade.
24
Outra dissertação encontrada foi a realizada por Magela (2010). Nela o autor
analisa o trabalho do Grupo Ueinzz, grupo teatral de São Paulo/SP, através da análise de
um de seus espetáculos, o Finnegans Ueinzz. Nesse estudo a conceituação de profanação
da cena teatral é tomada como fomento à criação de linguagens teatrais alternativas às
formas hegemônicas, configurando um espaço de resistência artístico-política.
Weinreb (2009) realizou a pesquisa, no âmbito do doutorado, intitulada: Trajetórias
da Desrazão. Vidas Silenciosas e Marginais, na qual analisou a produção artística de Luiz
Guedes, cidadão em sofrimento psíquico, num diálogo com a produção de Arthur Bispo do
Rosário. A principal conclusão dessa pesquisa é o fato de que o apelo da criatividade não
desaparece no processo de adoecimento psíquico.
Todas essas pesquisas abordam a temática da linguagem artística inserida no campo
da saúde mental e, embora abordem esse tema sob diferentes olhares (artístico, psicológico
etc.) e com diferentes objetivos, o que depreendemos dessas leituras é que todas
apresentam como denominador comum a importância de se pensar essa relação de campos
de saberes e as políticas de desinstitucionalização na esfera da saúde mental, sendo o
contato com a linguagem artística uma importante via nesse processo.
Antes de finalizarmos essa revisão bibliográfica a respeito do enlace da arte com a
saúde mental, não podemos deixar de falar um pouco de um dos grandes desveladores
dessa relação: Arthur Bispo do Rosário. No ano de 1938, o artista é internado no Hospital
Colônia dos Alinenados, no Rio de Janeiro e, no ano de 1939, é transferido para a Colônia
Juliano Moreira, onde passa 50 anos (não consecutivos) internado. E é na Colônia que ele
produz suas grandes obras de arte. Bispo produziu mais de mil obras que foram de grande
reconhecimento no mercado internacional de arte contemporânea. Entre suas obras estão
bordados, assemblages e estandartes feitos com os materiais que encontrava no próprio
manicômio (Hidalgo, 1996).
A arte de Bispo do Rosário não é em momento algum influenciada por mediações
da terapêutica ocupacional. Entretanto é reveladora de uma possibilidade do sujeito advir
através de seu delírio. O delírio, considerado como uma tentativa em direção à cura, é
expresso por Arthur Bispo do Rosário através de sua vasta criação, na qual representa
todas as coisas que existem na terra. Era um presente para Deus. A Arte foi para Bispo do
Rosário um suporte para seu sofrimento psíquico ao mesmo tempo em que, sendo revelado
como artista, tornou-se um forte mecanismo reabilitador (Hidalgo, 1996).
25
1.2. Afetividade, Liberdade e Atividade: O Tripé Terapêutico de Nise da Silveira
1.2.1 Afetividade
Iniciamos nossas reflexões acerca da afetividade com o pensamento de Descartes
que problematiza a questão das emoções e da racionalidade a partir de uma dicotomia entre
ambas; para o autor as emoções são mecanismos da alma e não do corpo. Nise da Silveira
(1992) dedicou-se ao estudo da afetividade no processo psicótico, e em seus estudos partiu
da obra de Descartes para entender como as ciências atribuem grande importância à
racionalidade em detrimento da afetividade.
Silveira (1992) atribui principalmente ao pensamento de Descartes a persistência da
separação corpo-psique na atual medicina científica. A partir dessa separação, o corpo é
visto como máquina e o médico tem por função atuar por meios físicos e químicos para
mantê-lo em bom funcionamento, menosprezando assim as emoções vivenciadas por ele.
Apesar de as correntes reformistas da psiquiatria questionarem os tratamentos restritos a
aspectos biológicos, essa crença é ainda muito ratificada nesse campo, sendo um dos
desafios de consolidação dos tratamentos voltados para a reabilitação psicossocial.
Concomitante ao desenvolvimento do pensamento racionalista cartesiano, o
filósofo Espinosa, que segundo Brandão (2008) é bastante esquecido no meio acadêmico,
desenvolvia um pensamento revolucionário em relação ao papel da afetividade. Ele rompe
com a divisão cartesiana corpo-mente a partir do conceito de substância, que abrange a
realidade como um todo, não havendo regiões claramente limítrofes entre razão e emoção.
Em relação à conceituação de afetividade, Espinosa apresenta duas terminologias: os afetos
e as afecções, que apresentam significados diferentes. Nas palavras de Gleizer (2005),
citado em Brandão (2008):
Um afeto é uma afecção que faz variar positiva ou negativamente a potência de agir. Dessa forma, uma afecção neutra, isto é, que deixa invariável a potência de agir, não tem dimensão afetiva. Assim se todo afeto é uma afecção, nem toda afecção é um afeto (p. 85).
26
Segundo Brandão (2008), as afecções, que podem ter também uma tradução
aproximada de afetações, são as vivências que produzem os afetos que são positivos ou
negativos, a depender do significado que o sujeito atribui a essas afecções. Sendo assim, é
possível afirmar que o afeto não é bom nem mau, depende de como se processa em nós.
Nise da Silveira teve contato com a obra de Espinosa e escreveu o livro Cartas a
Espinosa, no qual tece considerações acerca de sua obra. As cartas escritas por Nise
discorrem sobre o pensamento de Espinosa e apresentam aspectos pessoais de Nise,
escritos em tom confessional. A obra foi escrita a partir do impacto que a leitura de Ética,
de Espinosa, teve na vida da autora. Nas cartas, Nise trabalha alguns conceitos de Espinosa
em correlação à psicologia analítica e acha em comum entre o pensamento de Espinosa e
Jung a negação da dicotomia corpo e mente. Segundo Melo (2010), a principal noção
apresentada por Espinosa que mais impactou Nise da Silveira foi a idéia de Deus como
totalidade. Presume-se que o pensamento desse filósofo teve grande influência no papel
atribuído à afetividade por Silveira, principalmente no entendimento de que os afetos não
são bons nem maus, mas dependem da significação que atribuímos a eles, idéia
apresentada por Espinosa (Melo, 2010).
Em seus trabalhos no campo da saúde mental, Nise da Silveira ressaltou que, para
se efetuar a reabilitação psicossocial, qualquer intervenção deveria estar pautada no
seguinte tripé: atividade, liberdade e afetividade. Em analogia às reações que acontecem na
esfera química, a dimensão afetiva foi abordada pela psiquiatra através do afeto como
catalisador ou inibidor de relações. Um monitor pode desempenhar junto a um paciente
uma atuação catalisadora, ou seja, propulsora à reorganização do psiquismo, e de forma
inibidora junto a outro indivíduo, uma vez que as vivências afetivas estão ligadas às
projeções inconscientes inerentes às relações. O afeto pode também ser vivenciado através
do espaço afetivo, como aquele que pode possibilitar ao sujeito organizar-se, tendo em
vista que as vivências psicóticas, em geral, subvertem a noção de tempo e espaço. A
presença de monitores nas atividades de terapêutica ocupacional está relacionada ao
conceito de afeto catalisador (Silveira, 1981).
Nos trabalhos realizados por Nise da Silveira, tanto no Museu de Imagens do
Inconsciente quanto na Casa das Palmeiras, encontram-se severas críticas à concepção
clássica de que a vivência psicótica é marcada pelo embotamento afetivo. Seus trabalhos
puderam mostrar o quanto esse conceito está equivocado e não condiz com as vivências
27
descritas por psicóticos, tampouco é evidenciado nos relacionamentos travados com eles
(Silveira,1992).
Na publicação do primeiro Compêndio de Psiquiatria, no ano de 1883, de Emil
Kraepelin, aparecem, como sendo característicos da psicose, os distúrbios afetivos.
Segundo Kraepelin (1883, como citado em Bercherie, 1989, p. 79), a afetividade na
demência precoce (como era chamado o grupo das esquizofrenias na época) é afetada
primária e profundamente. Em relação à terminologia demência Silveira (1992) salienta a
impropriedade do termo referenciando-se, para isso, nas palavras do próprio Kraepelin e de
Bleuler, representantes da psiquiatria clássica. Kraepelin usava, para falar daquilo que
pensava ser um enfraquecimento intelectual na esquizofrenia, o termo alemão Verblodung
que significa tímido, envergonhado, podendo referir-se a um tipo de retardo mental. A
tradução deste termo como demência foi feita por autores franceses. Entretanto, Bleuler
questionava essa terminologia uma vez que observava que os esquizofrênicos não
apresentavam um processo degenerativo das funções intelectuais, como nas demências:
O esquizofrênico pode ser incapaz de somar dois algarismos e daí a momentos extrair uma raiz cúbica. (...). Em certas condições, ele compreende um tratado de filosofia, mas não consegue compreender que terá de comportar-se de acordo com as normas sociais, se desejar sair do hospital. O esquizofrênico não é ‘demenciado’ no sentido de decadência (downright); porém é ‘demenciado’ em certas ocasiões, em relação a certas constelações afetivas, a certos complexos (Bleuler, 1911, p.71 como citado em Silveira, 1992, p. 28).
Outros tratados de psiquiatria foram feitos ao longo da história. Na 9ª edição do
Compêndio de Psiquiatria, de autoria de Sadock & Sadock, publicada em 2007, o
embotamento afetivo ainda é visto e classificado como sintoma negativo da psicose, sendo
esse um dos critérios diagnósticos do DSM-IV-T (Diagnostic and Statistical Manual of
Mental Disorders, 4ª edição) para a esquizofrenia (Sadock & Sadock, 2007).
Por conseguinte à concepção clássica acerca da afetividade, os trabalhos artísticos
realizados por esquizofrênicos foram considerados, por muitos, como sendo de caráter
regressivo. As abstrações e a tendência a geometrismos eram vistas como evidências do
embotamento afetivo (Silveira, 1981). Entretanto, Nise da Silveira observava atentamente
o trabalho desses indivíduos e, em suas observações, notava que, enquanto pintavam,
expressavam diversos afetos. Os gestos ora brandos ora bruscos, evidenciavam que a
atividade despertava vivências afetivas:
28
Mas eu não examinava as pinturas dos doentes que freqüentavam o atelier sentada no meu gabinete. Eu os via pintar. Via suas faces crispadas, via o ímpeto que movia suas mãos. A impressão que eu tinha era estarem eles vivenciando ‘estados do ser inumeráveis e cada vez mais perigosos’ (A. Artaud.). Não me era possível aceitar a opinião estabelecida: pintura não figurativa significaria embotamento da afetividade (...) (Silveira, 1981, p.17).
Estava visto que a afetividade, portanto, encontrava-se presente na expressão de
psicóticos. Nosso posicionamento em relação ao saber psiquiátrico que classifica como
sintoma negativo da psicose o embotamento afetivo é de discordância, por ver nessa
classificação mais uma maneira normatizadora de considerar a afetividade do sujeito. O
que percebemos, concordando com Nise da Silveira, é que o psicótico encontra-se em uma
vivência que lhe causa estranhamento e sofrimento e, portanto, tomado por diversos afetos,
muitas vezes não consegue se relacionar com os outros da forma como socialmente se
espera e, assim, acaba sendo rotulado como embotado.
A afetividade, presente no mundo do psicótico, deve ser percebida através da
sensibilidade, não da racionalidade cientificista. Uma passagem emblemática dessa forma
de olhar esse sujeito é relata por Nise da Silveira, em seu livro Imagens do Inconsciente
(1981). Nesse livro, a autora relata um episódio ocorrido com um dos monitores da oficina
de artes plásticas, Hernani Loback, que convidou um dos pacientes do hospital para
participar dessa oficina por ver no canto de seus olhos o desejo de ir com ele. Loback
observou atentamente que, quando ia buscar os pacientes que participavam da oficina, esse
paciente o seguia com o canto dos olhos. Tratava-se de Emygdio de Barros, considerado
pela crítica um dos maiores artistas brasileiros. Emygdio poderia ser utilizado como o
exemplo clássico do embotado afetivamente, uma vez que pouco falava e permanecia
sozinho a maior parte do tempo. Entretanto, esse monitor percebeu de forma muito
sensível, através do olhar, seu desejo de se expressar.
Embora tenha feito vasto trabalho ressaltando a importância da afetividade para a
reabilitação psicossocial de pacientes psiquiátricos, Nise da Silveira não trabalhou
especificamente esse conceito. Propomos-nos, aqui, a uma breve revisão desse conceito.
Começamos por Espinosa, por esse filósofo ter dado importantes contribuições para a
quebra do pensamento dicotomizante da relação afeto-razão..
Comecemos por dois conceitos propostos por Espinosa: conatos e potência. Por
conatos entende-se o esforço positivo que impulsiona os seres vivos para sua conservação,
para a manutenção da vida. A conatividade pode ser entendida, assim, como o ponto de
29
partida para o entendimento da afetividade espinosana, uma vez que nesse esforço de
manter a vida é que os homens buscam se relacionar. Já a potência seria o poder de afetar e
de ser afetado pelos corpos que, em suas relações de afetar e serem afetados, guardam
modificações que aparecem sob a forma de sentimentos e emoções, que podem fortalecer
ou diminuir a sua própria vitalidade. Quando um corpo é afetado de modo a aumentar sua
potência ele experimenta a alegria, pois fica mais fortalecido, do contrário experimenta a
tristeza. Assim, como já foi assinalado, os afetos não bons nem ruins, depende de como são
vividos pelos sujeitos (Brandão, 2008).
Continuando nosso percurso pelas conceituações de afetividade, partimos em busca
de autores que tematizaram a afetividade também em grupo. Entre eles citamos Pagès
(1982), para quem a afetividade está expressa em fenômenos subjacentes a vivências
grupais. Para o autor, a afetividade está presente no processo grupal, principalmente como
um sentimento dominante comum, em geral inconsciente. Em relação aos afetos presentes
na vivência em grupo, Pagès afirma que A unidade afetiva do grupo supõe a consciência
individualizada de si mesmo e do outro como seres diferentes. É a unidade de uma relação
com os outros, sentida coletivamente na consciência e na separação (p. 273).
Para Pagès (1982), o grupo configura-se como a sede dos fenômenos de relação, o
lócus onde histórias individuais, relações culturais e interpessoais vividas anteriormente
por um grupo de pessoas que, em razão dessas vivências, compartilham um conflito afetivo
comum. A afetividade é, dessa maneira, premissa para a relação com o outro.
O grupo é definido por Pichon-Rivière (1991) como o processo no qual os
indivíduos são vistos como o resultante da dinâmica estabelecida entre sujeito e objetos,
através de uma interação dialética denominada vínculo. O conceito de vínculo remete a um
modo particular de relação do sujeito com os objetos, no qual ambos cumprem uma
determinada função: o sujeito em relação aos objetos e vice-versa. Para Pichon-Rivière
(1988), a expressão afetiva se dá entres os indivíduos, dentro e fora de grupos, através do
vínculo.
O vínculo é expresso através de dois campos psicológicos distintos, embora
complementares: o interno (objeto de investigação da Psicanálise) e o externo (objeto de
investigação da Psicologia Social). Ambos funcionam em uma espiral dialética através da
qual se estrutura uma determinada conduta, ou seja, uma determinada maneira de se
relacionar com os objetos que tende a se repetir, uma vez que os vínculos são construções
30
sócio-históricas. Sendo os vínculos formados no decorrer da história do indivíduo, pode-se
afirmar que o campo do inconsciente é constituído por condutas acumuladas, relacionadas
aos vínculos e ao conjunto de papéis que um sujeito desempenha (Pichon-Rivière, 1988).
Para Pichon-Rivière (1988; 1991), o conceito de papel relaciona-se ao de vínculo,
pois o mesmo é desempenhado de acordo com condutas modeladas por determinadas
formas de se vincular ao objeto. Assim, papel designa um modo de relação guiado por um
determinado modo de vínculo. Dessa maneira, podemos dizer que um mesmo vínculo pode
estruturar diversos papéis.
Os papéis são significados e qualificados através da afetividade, eles expressam as
lógicas afetivas de conduta dos sujeitos, seus modos de relacionar-se com o outro. Essas
lógicas afetivas de conduta resultam de algum aprendizado emocional derivado de várias
experiências vinculares (Nery, 2003, p. 25). As lógicas afetivas de conduta fornecem
direcionalidade, intencionalidade e causalidade aos papéis. (Nery, 2003, p.25).
No mesmo sentido em que Pichon-Rivière (1988; 1991) aponta o caráter sócio-
histórico do vínculo, Nery (2003) aponta a formação de lógicas afetivas de conduta através
das modalidades vinculares construídas ao longo da história de vida do sujeito. Podemos
afirmar então que, nessa perspectiva, os papéis que desempenhamos se estruturam a partir
da construção de vínculos, bem como são uma expressão destes.
Nery (2003) traz importantes contribuições à teoria dos vínculos ao enfocar a
questão da afetividade. Para ela, o processo de aprendizagem emocional conjuga diversas
lógicas afetivas no processo de internalização dos vínculos. (p. 25). As relações de
afetividade ganham, nessa concepção, um caráter de abrangência na vida dos indivíduos,
uma vez que determinam diretamente sua forma de conduta através dos diversos papéis
que pode desempenhar. Nessa forma de ver, são as marcas da afetividade que dão sentido
às ações e vínculos do homem. Nas palavras da autora: Só existimos nas relações. Existir é
co-existir (Nery, 2003, p.17).
Nery (2003) define afetividade da seguinte maneira:
A afetividade é o conjunto de respostas subjetivas e definidas, expressas sob a forma de sentimentos, sensações, estados emocionais, desejos, necessidades e humores. Quando um indivíduo desempenha um papel, sua afetividade é vivida como a expressão e a conseqüência da busca da manutenção da homeostase biopsíquica-social (p. 38).
31
Assim como na constituição dos vínculos o sujeito pode desenvolver sua
capacidade criativa, ele pode ter essa capacidade bloqueada. Para Nery (2003), que tem sua
perspectiva baseada no Psicodrama, o que pode ocorrer é o sujeito internalizar aspectos
conflitivos dos vínculos e ter um papel complementar interno patológico. Patológico, nesse
caso, faz referência à inibição da capacidade criativa e espontaneidade para lidar com as
situações do cotidiano desenvolvida através de relações em que uma pessoa exerce sobre
outra um tipo de poder. O desenvolvimento de novos tipos de vínculos pode ser uma
estratégia para esse fim, que pode resultar no fortalecimento de uma identidade autônoma.
Essas reflexões se fazem importantes neste estudo uma vez que, no campo da saúde
mental, podemos pensar a doença mental como um adoecimento do sujeito que tem
repercussão nos seus modos de vincular-se ao outro.
Pensando a questão do grupo e complementando os conceitos de grupo formulados
por Pichon-Rivière e Pagès, Martín-Baró (1983) aponta como grupo: uma estrutura de
vínculos e relações entre pessoas que canaliza em cada circunstância suas necessidades
individuais e/ou interesses coletivos. (p. 206). Martín-Baró chama a atenção, nessa
definição, para a importância da afetividade na vida grupal. Para o autor é importante
compreendermos os grupos através de três categorias básicas: identidade grupal, poder e
atividade grupal.
Sendo o vínculo o modo de expressão afetiva, tanto individual quanto grupal,
assinalamos que as expressões afetivas dos sujeitos são evidenciadas a partir da forma
como se vinculam aos objetos e como esses objetos produzem nele transformações. Assim,
para Pagès (1982), as relações estabelecidas entre o sujeito e seus objetos, ou simplesmente
as relações humanas, são caracterizadas por um caráter afetivo intrínseco, através do qual
há uma sensibilidade em relação ao outro, um modo de preocupar-se com ele que, para o
autor, configura a base das emoções.
A relação afetiva para Pagès (1982) está fundamentalmente embasada no
sentimento de angústia de separação, no qual os indivíduos, ao reconhecerem que não
existe complementaridade de subjetividades, mas antes solidão compartilhada, encontram-
se unidos pelo conceito de solidariedade. Quando se aceita a angústia de separação, a
solidariedade é vivenciada como forma de amor autêntico, que se refere a um modo de
compaixão pelo ser humano como ser cindido e se manifesta como a partilha do sofrimento
de separação e o desejo de ajudar a suportar essa angústia:
32
A angústia de separação faz nascer o amor do mesmo modo que o amor torna as pessoas mais conscientes da separação e é acompanhado de angústia. Essa unidade implica, pois uma espécie de conflito, o desejo de estabelecer um elo é combatido pelo sentimento de ser inútil ou impossível; o sentimento de separação é combatido pela compaixão e a consciência de uma afeição comum. (...) Ao se aprofundar, a angústia de separação revela-se como amor e como elo; o amor tropeçando no fracasso, revela-se angustiado, a angústia limita o amor, mas ao mesmo tempo o reforça e o faz reviver (Pagès, 1982, p. 353).
Pensando as contribuições anteriormente expostas, depreendemos que a dimensão
afetiva configura-se no processo grupal como propulsora do desenvolvimento de laços
amorosos, bem como pode manifestar-se como obstáculo a vivência grupal. Entender o
movimento afetivo do indivíduo para com o grupo pode permitir entender como se dão as
formas de vinculação e como essas relações interferem na vida dos indivíduos.
Neste trabalho, embora procuremos dialogar constantemente com diversos autores
que tratam o tema da afetividade, nos pautaremos em nossas reflexões principalmente nas
contribuições de Nise da Silveira, sobre a afetividade, e Pichon-Rivière, sobre o vínculo,
por vermos nesses autores complementaridade de pensamento.
1.2.2. Atividade
Como já falado anteriormente, a dimensão da atividade é extremamente importante
para a reabilitação psicossocial dos cidadãos em sofrimento psíquico, como assinalado
principalmente a partir dos trabalhos de Osório Cesar e Nise da Silveira. Entretanto, é
importante saber qual a dimensão da atividade que pode efetivamente contribuir para este
propósito. Com esse intuito, propomos nesta pesquisa entender como essa dimensão
aparece nos discursos dos integrantes do Grupo Sapos e Afogados. Antes de falarmos a
respeito da atividade teatral por eles praticada, faremos algumas reflexões sobre a
articulação do trabalho com a saúde mental.
O trabalho como função terapêutica não surgiu no campo da psiquiatria. Segundo
Santiago e Yassuí (2011), na Idade Média já existia na sociedade uma condenação ao ócio
e a improdutividade e o trabalho como possibilidade de evitar o risco e a desordem que era
diretamente ligada à ociosidade da população. Com o advento da Psiquiatria, o trabalho é
33
colocado como prática curativa a partir da proposta de tratamento moral preconizada por
Phillipe Pinel.
Phillipe Pinel é considerado revolucionário no tratamento dado aos loucos e foi o
primeiro médico a propor uma classificação das doenças mentais. Ao libertar os internos
das correntes, inaugura uma nova forma de tratá-los através de dados científicos obtidos
com a observação clínica. Por entender que o adoecimento da mente decorria de alterações
patológicas do cérebro, Pinel baniu tratamentos como sangrias, vômitos, purgações e
ventosas, entre outros, e postulou como possibilidade de tratamento a inserção de
atividades ocupacionais para os loucos. Inaugurando o trabalho como modalidade de
tratamento psiquiátrico propõe as atividades tendo como principal função a disciplina. O
tratamento de Pinel é prioritariamente moral, uma vez que considerava que as principais
causas do adoecimento mental eram devidas ao tipo de educação recebida, modo de vida e
excessiva religiosidade (Cherubini, 2006).
O tratamento moral, iniciado por Pinel, teve impacto na Psiquiatria Moderna que
chegou ao Brasil no final do século XIX e início do século XX, período em que foram
construídos os primeiros hospitais psiquiátricos brasileiros. Em sua estrutura, os hospitais
já contavam com terrenos para cultivo da terra, espaços para trabalhos com barro, madeira
ou couro para os homens, e bordado e costura para as mulheres. Tais práticas ficaram
conhecidas por alguns nomes: laborterapia, ergoterapia, praxiterapia. Franco da Rocha, em
1900, defendia que o a ocupação laboral era capaz de afastar o que chamava de fantasias
mórbidas (Santiago e Yassuí, 2011). Vemos como a atividade foi inserida no campo da
saúde mental, principalmente como forma de distração da mente, diferentemente do que
propuseram Nise da Silveira e Osório Cesar ao pensarem as possibilidades de elaboração
do sofrimento mental através de atividades expressivas.
Magro Filho (1992), ao contar a história do Hospital Psiquiátrico de Barbacena,
discute como o trabalho dentro da referida instituição era mais que uma prática terapêutica
para evitar o ócio e os delírios dos pacientes. O trabalho dentro do hospício era também
uma forma de assegurar economicamente a manutenção das despesas do hospital. Curioso
o fato de que a terapêutica laboral realizada nas colônias era aplicada apenas aos pacientes
indigentes, não sendo aplicada aos contribuintes:
a colônia, subordinada à mesma direção técnica do Asilo central, é destinada a receber enfermos indigentes transferidos deste e capazes de entregar-se à
34
exploração agrícola e a outras pequenas indústrias. (Minas Gerais, 1913 como citado em Magro Filho, p. 40, 1992)
Além das lavouras agrícolas e da produção alimentícia, os internos do hospício de
Barbacena trabalharam na construção de uma estrada de rodagem para ligar a Colônia ao
Hospital Geral, alguns trabalharam na fabricação de tijolos para a construção do
Manicômio Judiciário e Hospital Central. Dessa forma, foram os próprios internos que
tiveram que construir o acesso ao local onde estavam reclusos, produzir a própria comida e
os tijolos para seus abrigos, um lucrativo negócio para o Estado (Magro Filho, 1992).
Pode-se dizer, então, que o trabalho no Hospital Colônia de Barbacena atendia a duas
principais finalidades, a saber: ‘suavizar’, por meio do trabalho, os sofrimentos dos
paciente; ‘suavizar’, por meio do trabalho dos pacientes, os sofrimentos econômicos do
Estado, na Assistência aos Alienados (Minas Gerais, 1928 como citado em Magro Filho, p.
42, 1992).
Em contraponto ao trabalho meramente ocupacional ou com fins econômicos, as
propostas de Nise da Silveira e de Osório César contemplam outro tipo de objetivo: a
elaboração e expressão do sofrimento psíquico. Daí a grande importância da atividade
como expressão subjetiva do homem, assunto discutido no presente trabalho a partir do
Grupo Sapos e Afogados, que trabalha com o teatro. Por terapêutica ocupacional Nise da
Silveira entendia a possibilidade de expressão de vivências não verbalizáveis por aqueles
que, segundo a autora, se encontram mergulhados nas profundezas do inconsciente
(Silveira, 1981). Outro objetivo no trabalho de Nise da Silveira, e que já fora mencionado,
é a reabilitação dos cidadãos em sofrimento psíquico. Por acreditar na possibilidade das
atividades realizadas atenderem a uma forma de elaboração do sofrimento, bem como
contemplar a busca pela ressocialização é que Nise da Silveira se dedicou à Casa das
Palmeiras, onde, em regime de externato, ou seja, com as pessoas morando em suas
comunidades, eram trabalhadas diversas atividades com foco na expressividade. Práticas
estas que bateram de frente com o modelo clássico da Psiquiatria que via no trabalho uma
simples forma de ocupar a mente (Silveira, 1986).
Partindo dessas reflexões e pensando as atividades expressivas no atual contexto da
saúde mental, salienta-se a regulamentação dos Centros de Convivência e as oficinas
previstas na portaria dos CAPS com o propósito principal de tornarem-se espaços de
criação e novas formas de relacionar-se. As oficinas terapêuticas são definidas pelo
35
Ministério da Saúde, em sua atual Política Nacional de Saúde Mental, como: (...)
atividades grupais de socialização, expressão e inserção social (Brasil, 2002, p. 51).
No que concerne ao trabalho como geração de renda, destaca-se também a Oficina
de Experiências de Geração de Renda e Trabalho, realizada em 2004 numa parceria entre
os Ministérios do Trabalho e Emprego e o Ministério da Saúde. O objetivo da oficina foi
fortalecer a aliança entre a Saúde Mental e Economia Solidária através de três propostas
básicas: criação e consolidação da Rede Nacional de Experiências de Geração de Renda e
Trabalho em Saúde Mental; articulação entre a Área Técnica de Saúde Mental e a
Secretaria Nacional de Economia Solidária; e criação e manutenção de incubadoras de
apoio (Santiago e Yassuí, 2011).
Como pode ser observado, tanto a proposta das oficinas como espaços de
elaboração e interação social, bem como as propostas mais voltadas para reinserção no
mercado de trabalho contrapõem-se à lógica do trabalho como mera ocupação mental.
Sendo que este é um grande desafio para os trabalhadores em saúde mental. Outra questão
a ser pensada é a inserção dessas pessoas num mercado de trabalho que tem por
característica o fato de ser exclusivo, no atual modelo capitalista. É preciso estar atento à
reflexão de que o trabalho na saúde mental não deve nunca trocar a exclusão da loucura
pela marginalização do capitalismo (Santiago e Yassuí, 2011).
1.2.2.1. Teatro: A atividade no Grupo Sapos e Afogados
No grupo pesquisado, Sapos e Afogados, a atividade realizada é o teatro. Uma
proposta de trabalho que começou no interior do Centro de Convivência e que extrapolou o
campo da saúde mental para invadir o da arte. O Grupo também trabalha com cinema com
trabalhos de destaque nacional.
Para falarmos a respeito da proposta de trabalho realizada pelo Grupo Sapos e
Afogados recorremos a algumas contribuições de Constatin Stanislavski. Stanislavski deu
uma grande contribuição ao teatro ao pensar o trabalho de construção de personagem a
partir da memória emotiva do ator. Para o autor, são os sentimentos, tirados das
experiências reais e transferidos ao papel, que dão vida à peça teatral (Stanislavski, 1992).
Nessa concepção não se trata de reviver um momento passado, mas buscar na memória os
36
sentimentos experienciados a partir de uma determinada vivência. Essa evocação de uma
memória afetiva é o que possibilita o investimento emocional do ator no personagem, uma
forma de lhe dar vida.
Cabe ressaltar que o trabalho teatral realizado pelo Sapos e Afogados difere-se do
Psicodrama, modalidade bastante utilizada no campo da saúde mental. A diferença é
claramente evidenciada na fala do ator do Sapos, Elon Rabin: Tem alguma semelhança
porque você usa o teatro realidade, no psicodrama você usa o aspecto teatral. Então tinha
algumas semelhanças, mas o fio do psicodrama é terapêutico e na arte não é o fim
terapêutico.
No Psicodrama busca-se a elaboração de algumas vivências através da teatralização
das mesmas, com o objetivo terapêutico, como assinalado por Elon. No trabalho do Sapos
e Afogados esse aspecto não é o objetivo do trabalho, embora a atividade funcione como
forma de elaboração de sofrimentos e tenha resultados terapêuticos, como poderá ser
observado na análise dos discursos dos atores.
Sobre a utilização da memória afetiva Stanislavski afirma que:
(...) um artista não constrói seu papel com a primeira coisa que lhe está à mão. Seleciona, com o máximo cuidado, dentre as suas lembranças e elege das suas experiências vivas as mais sedutoras. Para tecer a alma da pessoa que vai retratar, utiliza emoções que lhe são mais caras do que as suas sensações quotidianas. Podem imaginar campo mais fértil para a inspiração? O artista toma o que de melhor existe nele e leva-o para o palco. A forma há de variar, conforma as necessidades da peça, mas as emoções humanas do artista permanecerão vivas e estas não podem ser substituídas por nenhuma outra coisa (Stanislavski, 1992, p. 195).
Como pode ser observado na fala de Stanislaviski acima transcrita, essas memórias
afetivas é que inspiram o artista na construção de seu personagem. Além dessas memórias
afetivas, o trabalho de personalização inclui a utilização de elementos cênicos.
Juliana fala, em entrevista cedida à pesquisa, um pouco do método de trabalho com
o Sapos e Afogados:
Hoje, como a gente tem um grupo que é fixo, e que já ta comigo há muito tempo. E aí rola uma afinidade, tem toda uma afetividade também assim, né? Tem um carinho muito grande, uma amizade até que se constrói igual em qualquer outro grupo de teatro. A gente consegue criar um roteiro que cada um tem o seu personagem. Mas o que mudou? Além do meu jeito de dirigir agora eu poder ir um pouquinho mais fundo, de eu poder dar uma cutucada um pouco maior às vezes.
37
De cobrar deles coisas com um pouco mais de incisão mesmo, de pedir, de falar ‘não, espera aí’, sabe? De ter essa liberdade de fazer isso, o que a gente conseguiu também foi criar um roteiro e uma dramaturgia, por exemplo, no Caixa Preta a gente montou uma estrutura de espetáculos onde existiam pequenos pontos. Eu brincava que eram pinos, pontos mesmo onde eles tinham que passar, como um circuito. E entre um pino e outro, entre um ponto e outro, entre uma marca e outra existia ali no meio um espaço onde eles podiam improvisar. Então eles sabiam que tinham que chegar nesse ponto aqui, ou colocar esse objeto aqui, porque um outro ia vir daqui e fazer aquilo virar outra coisa. Então eles conseguiam repetir isso, mas isso aqui no meio era livre inclusive pra improvisação assim. As intensidades dos movimentos, do texto, eles também tinham essa liberdade de mudar.
Nessa forma de trabalhar cada personagem tem um roteiro a seguir, mas nesse roteiro
é possível improvisar de forma que cada ator pode exercer, de forma peculiar, sua
criatividade e emotividade em cena.
No trabalho de direção de Juliana destaca-se a leitura psicanalítica utilizada pela
diretora no entendimento da psicose e como a utilização dos delírios, de alguns atores, são
trabalhados de forma artística e coletiva:
Às vezes até um caso de outro usuário, por exemplo, eu conheci um usuário que criava almas em caixinhas de fósforo. E é lindo isso, e aí eu criava, propunha uma cena, a partir disso, de uma caixinha de fósforo cheia de vozes, cheia de almas. Isso não é da Sílvia, por exemplo. Essa história não é da Sílvia, eu trouxe pra ela como objeto e ela vai criar aquilo ali. Mas na hora que ela ta fazendo aquilo ali ela fala comigo ‘Juliana, eu tenho um sonho que aparece com umas meias no meu vestido e depois eu risco uma tela e aí...’ Ela traz isso, já existe. É normal também que eles cheguem trazendo coisas ‘Ah eu quero cantar essa música’, ‘Ah, eu tenho esse caso pra contar’. Então, às vezes os ensaios da gente são vários casos assim, são grandes rodas de conversa que eles vão falando né? Assim, então às vezes um conta um caso e ‘gente isso dá uma cena maravilhosa’. Não repetir o que ele contou, mas como que eu posso fazer aquilo virar uma cena? Então é um pouco assim e a gente sabe também que às vezes eles trazem algumas coisas que eles não querem que vá pra cena e que isso é respeitado. Então, por exemplo, tem ‘ah aconteceu isso e isso comigo’ ou então ‘Ah eu escuto a voz me dizendo isso e isso’ mas isso é meu, eu socializo aqui no grupo, mas eu não quero que isso vire cena, isso vai ficar aqui. Mas tem coisas que eu quero que vire cena, né assim. Então eu quero que isso aqui, como que a gente pode fazer, eles vão trazendo.
Para a diretora, esse modo de trabalhar o sofrimento psíquico possibilita certa forma
de alívio, um espaço onde podem falar de seus sofrimentos e até mesmo elaborá-los. Outra
38
contribuição ressaltada por Juliana sobre o método de trabalho no Sapos e Afogados é a
grande contribuição da loucura para a arte:
A loucura faz bem demais pro teatro, sabe? Faz muito bem pro cinema, porque a gente às vezes é muito quadrado, porque a gente é muito fechado, porque a gente tem.... a gente vai emburrecendo sabe? E que eles chegam e falam umas coisas que gente, assim, sabe? É muito bom também às vezes, é... dentro da minha lógica lá, toda, toda arrumadinha, toda assim certinha: Vamos pensar numa ficha técnica. Ah, na ficha técnica fulano faz isso, fulano faz aquilo, de nomear essas coisas dentro do meu jeito de pensar. Aí você pensa em agradecer ‘ah vou agradecer fulano, fulano, fulano’. Aí chega um do Sapos e fala assim ‘Eu quero agradecer ao desconhecido’ ou um outro que fala assim ‘Eu quero agradecer ao soberano’. E eu acho isso muito bom assim sabe? Porque não colocar isso, olha que beleza, eu vou agradecer ao desconhecido né? Porque foi o desconhecido que me fez criar esse tanto de coisa que ta em cena, porque o desconhecido que vai vim assistir. E assim, você fala ‘Gente como eu não tinha pensado nisso antes?’, sabe? Eu estou dando um exemplo, mas assim, criar com eles todo dia é ótimo. É ótimo porque subverte a lógica, e eu acho que o lugar da arte também é esse.
1.2.3. Liberdade
A partir do momento em que a loucura passa a ser vista como doença e, portanto,
passível de tratamento médico, começa também a ser enclausurada. O louco deve estar
preso, mantido sob controle e, assim, foi por um longo tempo, em que o único tratamento
oferecido à loucura era a hospitalização.
O trabalho de Nise da Silveira na Casa das Palmeiras, nos anos 1950, foi
vanguardista na colocação de que o tratamento do cidadão em sofrimento psíquico deve ser
realizado em liberdade. A Casa das Palmeiras marcou fortemente essa dimensão ao propor
tratamentos para indivíduos em liberdade, numa tentativa de evitar as reinternações, tão
freqüentes devidos a fragilidade das terapêuticas do hospício. Isso significa um grande
passo rumo ao reconhecimento da cidadania do indivíduo considerado louco (Silveira,
1992). No âmbito das instituições de saúde salienta-se que o primeiro Centro de Atenção
Psicossocial brasileiro é o CAPS Luiz da Rocha Cerqueira, na cidade de São Paulo, cuja
inauguração foi no ano de 1987, marco de uma nova forma de tratamento do adoecimento
psíquico tendo como prioridade a liberdade e a preservação dos vínculos sociais (Devera &
Costa-Rosa, 2007).
39
A portaria que dispõe sobre normas e regras para o funcionamento dos CAPS e
NAPS foi aprovada no ano de 1992, Portaria SAS/MS n° 224, de 29 de janeiro. Os CAPS
I, CAPS II, CAPS III, CAPS i e CAPS ad são regulamentados pela Portaria nº 336 de 19
de fevereiro de 2002. O tratamento em liberdade passa a ser validado a partir da aprovação
da portaria ministerial que regulamenta os tratamentos em Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS) e com a Lei Paulo Delgado.
Quando falamos em liberdade no tratamento em saúde mental usualmente nos
referimos à possibilidade de estar em sociedade, ou seja, em convívio social, isso implica
ponderar que a liberdade do cidadão em sofrimento psíquico requer a existência de duas
dimensões importantes: território e cidadania.
A cidadania dos sujeitos tidos como loucos requer algumas reflexões. Comecemos
pelo fato de que a reabilitação psicossocial está fundamentada principalmente nessa
dimensão, mas de que cidadania estamos falando? Joel Birman (1992) faz importantes
colocações em seu texto Cidadania Tresloucada. A primeira questão a se pensar é que não
se trata da restituição de uma cidadania roubada. De fato, os cidadãos em sofrimento
psíquico nunca tiveram antes um lugar assegurado no direito comum. A reivindicação da
cidadania do louco só começa a circular nos discursos, principalmente do campo da saúde
mental, a partir dos anos 1980, quando o Estado se vê forçado a repensar o tratamento de
isolamento social dado ao louco durante décadas.
Joel Birman (1992) coloca como questionamento o grande paradoxo da cidadania
instaurado pelo surgimento da medicina psiquiátrica no século XIX, pois no momento em
que a loucura passa do campo da marginalidade e da vadiagem para o campo da saúde, ao
ser reconhecida como enfermidade, é também quando o louco é excluído do direito pelo
fato de não possuir a premissa básica para o contrato social: a racionalidade.
Foram esse modelo assistencial e essa racionalidade naturalista da medicina moderna, tributários do discurso do iluminismo, que caucionaram a retirada provisória ou definitiva dos denominados direitos sociais do campo da loucura, com a única exceção de que, como enfermos mentais, os loucos teriam o direito de ser cuidados medicamente e ser protegidos consequentemente pelo Estado (Birman, 1992, p. 74).
O desafio imposto à saúde mental, no território das práticas que visam assegurar a
condição de cidadania do cidadão em sofrimento psíquico, refere-se ao rompimento desse
paradoxo instaurado principalmente pela medicina que, ao propor uma cidadania baseada
40
na racionalidade, exclui a loucura como possibilidade do sujeito. Aceitar que a loucura é
uma forma de produção da verdade sujeito:
Anuncia-se, por isso mesmo, uma nova ressacralização do mundo, uma nova forma de encantamento do real, como forma de colocar limites à razão científica e suas utopias. Nesse outro contexto a experiência da loucura, com suas obras singulares, talvez possa ser novamente a fonte de uma outra forma de dizer, de sentir e de fazer, que foram certamente silenciados pela cultura fundada na razão tecnológica. Enfim, nesse outro mundo a loucura talvez possa ser inserida novamente no espaço social, sendo reconhecida plenamente em sua cidadania e não tendo mais uma cidadania tresloucada como no nosso mundo presente (Birman, 1992, p. 88).
Assim, a reabilitação psicossocial deve ser pensada para além de sua conceituação.
Trata-se de questionar se de fato as práticas que se apresentam sob esse nome promovem a
cidadania de sujeitos em sofrimento psíquico ou se apenas estão substituindo a violência
física por um tipo de violência simbólica. Veiga-Neto (2001) alerta para o cuidado em não
cair no que chama de incluir para excluir, uma forma de inclusão que se opera apenas no
campo das idéias sem resultados concretos na vida das pessoas.
Veiga-Neto (2001) apresenta importantes reflexões em torno da inclusão social dos
ditos anormais. Para tanto, parte de estudos acerca da obra de Michel Foucault para
entender a dificuldade da inclusão em decorrência da construção moderna do conceito de
normalidade. A partir de Foucault, o autor esclarece que, em seus estudos, chama de
anormais os mais variados e numerosos grupos que a Modernidade vem incansável e
incessantemente inventando e multiplicando: os sindrômicos, os deficientes, monstros e
psicopatas (em todas as suas variadas tipologias), os surdos, os cegos, os aleijados, os
rebeldes, os pouco inteligentes, os estranhos, os GLS, os ‘outros’, os miseráveis, o refugo
enfim (Veiga- Neto, 2011, p. 105). Nomeações que se apresentam sob a forma de diversas
identidades e que são sempre perpassadas por relações de poder.
Veiga-Neto (2001) afirma que, frente ao incômodo causado pelo binômio
normalidade-anormalidade, as pessoas encontram quatro saídas: a primeira refere-se à
negação simples e abstrata dos anormais. Trata-se de práticas que rejeitam o diferente, bem
como desenvolvem uma obsessão pela diferença como aquela que pode contaminar,
interferir na presumida perfeição do mundo (p. 107). Um segundo modo de lidar com o
diferente é o uso de uma proteção lingüística. Trata-se do uso de eufemismos como, por
exemplo, aqueles que necessitam de cuidados especiais. Essa forma de lidar com a
diferença está incluída no campo do politicamente correto, tende a se fixar apenas no plano
41
técnico e mascarar os problemas reais das práticas de inclusão. Uma terceira forma e que,
de certa maneira, é compatível com a anterior, é aquela que naturaliza a relação normal-
anormal, como se a diferença aí estivesse pronta para ser entendida e administrada por
especialistas. Por fim, uma quarta maneira consiste em:
problematizar essas questões, submetê-las ao crivo de uma hipercrítica e expô-las sem ter medo da força que as palavras têm. No plano conceitual e teórico isso envolve riscos e exige cuidadosas análises acerca da genealogia não propriamente do grupo "os anormais", mas de cada um dos muitos tipos que a Modernidade agrupou sob essa denominação (Veiga-Neto, 2001, p. 108).
Nesse sentido, nos propomos, na presente pesquisa, buscar entender como a
cidadania aparece nos discursos dos integrantes do Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e
Afogados e como este conceito é por eles vivenciado na condição de se identificarem como
cidadãos em sofrimento psíquico.
A segunda dimensão a que nos referimos para pensarmos a liberdade é a
territorialização. Para falar desse aspecto recorremos a alguns conceitos da nova geografia,
propostos por Milton Santos. Utilizaremos os conceitos paisagem, espaço e espacialização.
Por paisagem, o autor nos dá a seguinte definição: Tudo aquilo que nós vemos, o que nossa
visão alcança, é a paisagem. Esta pode ser definida como o domínio do visível, aquilo que
a vista abarca. Não é formada apenas de volumes, mas também de cores, movimentos,
odores, sons, etc. (Santos, 1988, p. 21)
A dimensão da paisagem corresponde à materialidade, salientando que ela é
formada por objetos materiais e não-materiais. É preciso entender que este conceito não se
refere a uma imobilidade, pois a paisagem está em constante transformação, nela é possível
ver o passado e o presente que passam por mudanças tanto estruturais quanto funcionais e
pode ser captada pelos sentidos (Santos, 1988).
O espaço resulta do casamento da sociedade com a paisagem (Santos, 1988, p.25).
O espaço sugere movimento:
O espaço é o resultado da soma e da síntese, sempre referida, da paisagem com a sociedade através da espacialidade. A paisagem tem permanência e a espacialidade é um momento. A paisagem é coisa relativamente permanente, enquanto a espacialização é mutável, circunstancial, produto de uma mudança estrutural e funcional. (...) O espaço é igual à paisagem mais a vida nela existente; é a sociedade encaixada na paisagem, a vida que palpita juntamente com a materialidade. (Santos, 1988, p.26)
42
Pensando os conceitos expostos, buscaremos investigar na categoria liberdade
como os integrantes do Grupo Sapos e Afogados vivenciam as dimensões da paisagem e
do espaço, sobretudo na cidade de Belo Horizonte, onde se concentra seu trabalho.
Buscaremos investigar se a participação no Grupo propicia a ocupação de novos espaços e
como isto acontece. A questão da espacialização, também chamada de territorialização, se
reveste de importância principalmente pelo fato de o Grupo ter um trabalho independente
da rede de saúde mental e por esse motivo estar inserido em espaços fundamentalmente
artísticos, como por exemplo, o local de ensaio e criação que é no Galpão Cine Horto.
43
CAPÍTULO 2: PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A realização da presente pesquisa requer uma metodologia de cunho qualitativo
uma vez que o objeto eleito para esta investigação encontra-se definido dentro dos critérios
das ciências sociais, que apresentam seu objeto como essencialmente qualitativo. As
pesquisas sociais, segundo Minayo (2007), buscam apreender aspectos da realidade social
a partir das construções humanas acerca dessa realidade, buscando a apreensão de seus
sentidos e significados. A metodologia, como definida por Minayo, compreende todo o
processo de investigação de uma pesquisa, começando pelo caminho do pensamento (p.
44), a partir dos pressupostos epistemológicos que o tema ou objeto da pesquisa requer,
seguindo pela escolha do método e das técnicas que buscarão responder às indagações do
pesquisador. Esse processo compreende, ainda, a criatividade do pesquisador, ou seja, sua
capacidade de percorrer o caminho da pesquisa imprimindo sua marca pessoal na forma de
articular teoria, métodos e achados empíricos.
Descreveremos nosso método de pesquisa a partir da proposição do Ciclo de
Pesquisa de Minayo (2007), no qual a pesquisa qualitativa passa por três fases principais: a
primeira, que se constitui como uma fase de exploração, na qual se busca delinear o objeto
de pesquisa e a preparação para a entrada em campo; a segunda seria o trabalho de campo,
no qual o pesquisador, a partir do referencial teórico elaborado na primeira etapa, vai à
prática empírica; e a terceira, e última etapa, que seria a análise e tratamento do material
empírico e documental.
2.1. Fase de Exploração
Para o desenvolvimento desse estudo, nessa primeira fase, foi realizado um
levantamento bibliográfico acerca das temáticas em questão, a saber, a arte em articulação
com a saúde mental e os conceitos de afetividade, liberdade e atividade. Esse levantamento
teve início durante a graduação, a partir de uma pesquisa realizada no âmbito da iniciação
científica, através também da prática extensionista, e foi ampliado no decorrer do
mestrado. A partir dessa revisão foi possível verificar o quanto é importante investigar a
utilização da linguagem artística no campo da saúde mental em articulação às categorias
44
terapêuticas de Nise da Silveira, uma vez que essas práticas perpassam, ao menos
idealmente, a busca pela reabilitação psicossocial de cidadãos em sofrimento psíquico.
A partir desse trabalho de elaboração teórica foi possível chegar à delimitação do
objeto de pesquisa: um grupo que esteja ligado à saúde mental e que utilize a linguagem
artística em seus trabalhos com o objetivo de promover a reinserção social. A escolha do
grupo foi realizada a partir dos seguintes critérios: ser um grupo que possua como
integrantes cidadãos em sofrimento psíquico, que apresente como um dos objetivos a
reinserção social desses indivíduos com o uso de alguma linguagem artística e que tivesse
pelo menos um ano de trabalho, para que fosse possível a investigação da constituição dos
vínculos sociais de seus participantes. A partir desses critérios foi escolhido o Núcleo de
Criação e Pesquisa Sapos e Afogados, da cidade de Belo Horizonte/MG.
A partir da escolha pelo grupo, ainda na fase de exploração, foi realizado um
primeiro contato com a diretora do mesmo para apresentar a proposta de pesquisa e avaliar
a possibilidade de participação do Sapos e Afogados. Após esse contato, a diretora do
grupo apresentou a proposta aos demais participantes e, a partir da aceitação dos mesmos,
foram realizadas algumas observações preliminares. Essas observações tiveram por
objetivo conhecer melhor o grupo e as possibilidades de trabalho com o mesmo.
Após as observações preliminares foi feita a escolha definitiva pela investigação
desse grupo, foi feito um contrato com o mesmo, a partir de um termo de consentimento
livre e esclarecido (anexo A), que explica como será a participação na pesquisa e os
direitos dos participantes. A utilização desse termo justifica-se por assegurar as questões
éticas que perpassam as pesquisas com seres humanos, nele está explicitado qual é a forma
de participação na pesquisa, as implicações dessa participação e a liberdade de desistir de
participar a qualquer momento, caso assim o deseje. A elaboração do termo de
consentimento foi baseada na Resolução n. 196 de 10 de outubro de 1996, que aprova as
diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos.
2.2. O trabalho de campo
Assim, entramos na segunda fase da pesquisa, o trabalho de campo. No trabalho de
campo foram realizadas observações do grupo utilizando o recurso de filmagens. As
filmagens foram utilizadas para obter mais dados a respeito do cotidiano do grupo e por ser
45
possível, através desse recurso, captar as faces do processo grupal nele vivenciado. Em
relação ao uso de filmagens, Pinheiro, Kakehashi, e Angelo (2005) colocam em questão
algumas das vantagens de se fazer uso de imagens em pesquisas qualitativas, uma delas é a
de que o registro pode ser revisto várias vezes, o que permite observar aspectos que
poderiam ter passados despercebidos durante a observação; e outra vantagem refere-se à
possibilidade de auxiliar o pesquisador a reconhecer seus valores que conferem
subjetividade a seu olhar e que poderiam influenciar as notas de campo tomadas durante a
observação. Foram registrados em vídeo, nessa fase da pesquisa, ensaios do grupo
referentes ao espetáculo Caixa Preta, que foi estreado em outubro de 2010; a estréia do
referido espetáculo; e uma reunião posterior à estréia, que teve como foco a discussão em
torno da possibilidade de permitir a entrada de pessoas no grupo que não sejam
consideradas cidadãs em sofrimento psíquico e as entrevistas individuais realizadas com
cada participante.
Além das observações, nessa fase foram utilizados diários de campo que têm como
finalidade registrar e descrever o contexto da pesquisa através de um relato implicado do
pesquisador, criando assim um registro que permita uma reflexividade sobre a ação no
campo. Os diários de campo podem ser usados como inscrições subjetivas do processo de
envolvimento com o campo (Diehl; Maraschin e Tittoni, 2006). Eles permitem, ainda, ter
acesso aos dados que escapam às filmagens, como por exemplo, aqueles obtidos durante
conversas informais com os participantes do grupo. Os procedimentos de filmagens e de
anotações em diários de campo foram utilizados no desenvolvimento dessa pesquisa não
em contraposição, mas de forma complementar, buscando assim melhor registrar as
atividades do grupo.
O terceiro procedimento realizado na fase do trabalho de campo foram as
entrevistas semi-estruturadas com os participantes do Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos
e Afogados. A entrevista semi-estruturada é, segundo Lüdke e André (1986), uma técnica
que possibilita uma relação de interação entre o sujeito e o pesquisador, sendo
desenvolvida dentro de um esquema básico que possibilita ao entrevistador fazer as
adaptações que julgar necessárias. As entrevistas objetivam investigar os sentidos dados à
participação no grupo, bem como buscam elucidar os fenômenos de afetividade e as
relações com a liberdade e a atividade. Os roteiros de entrevista (apêndice A) foram
elaborados com base nos objetivos propostos por esta pesquisa, tendo também como
embasamento as observações preliminares e conversas informais com os integrantes do
46
grupo. Foram realizadas entrevistas com sete integrantes do grupo, incluindo a diretora.
São utilizados, ainda, como procedimento para acesso ao trabalho do grupo, documentos
que falam a respeito desse trabalho, como artigos de crítica de arte publicados e registros
de trabalhos anteriores que foram fornecidos pela diretora do grupo.
2.3. Tratamento do material empírico e documental
Após a realização dos procedimentos do trabalho de campo, entramos na terceira
fase de execução desta pesquisa: análise do material obtido. As filmagens e diários de
campo foram utilizados para entender principalmente o processo grupal e permitiram,
também, contextualizar as informações colhidas nas entrevistas. Para análise das
entrevistas, bem como das filmagens, que foram transcritas, nos baseamos no método de
Análise do Discurso.
A Análise do Discurso (AD), como método de pesquisa no campo das ciências
sociais, surgiu no final da década de 1960 como uma resposta crítica as análises que se
embasavam em visões conteudistas. A Análise do Discurso leva em conta a superfície
textual e considera o contexto de produção do discurso (Rocha & Deusdará, 2005).
Gill (2007) enfatiza a existência de uma pluralidade de análises de discurso que se
embasam em tradições teóricas amplas. Embora haja essa diversidade de formas de
análises discursivas, elas apresentam como temas comuns: uma preocupação com o
discurso em si mesmo; uma visão da linguagem como construtiva (criadora) e construída;
uma ênfase no discurso como uma forma de ação e uma convicção na organização
retórica do discurso (Gill, 2007, p. 247).
Nogueira (2008), baseada em uma classificação de Wetherell e cols. (2001), propõe
a existência de quatro abordagens principais em Análise do Discurso no campo da
Psicologia Social, a saber: a abordagem sociolinguística, com ênfase na variação da
linguagem em uso, relacionado-a a contextos e situações sociais; a análise conversacional,
com foco na análise do uso da linguagem em si mesma e utilizando-se de interações entre
pessoas para as análises; a psicologia discursiva, que entende a linguagem como situada
em um contexto social e cultural, não se restringindo às interações; e, por fim, uma análise
crítica do discurso, que se preocupa, numa perspectiva macro, com o papel do discurso em
47
processos sociais mais amplos de legitimação de poder. Esta perspectiva tem influência do
trabalho de Michel Foucault e da Teoria Crítica.
A forma de análise discursiva escolhida para este trabalho é enraizada nas análises
críticas do discurso e, principalmente, baseada nas análises arqueológica e genealógica de
Michel Foucault, abordada por alguns autores como arquegenealogia, uma vez que uma
forma complementa a outra e nunca se separam por completo (Araújo, 2007).
A respeito do método arqueológico, podemos afirmar que o objetivo desse tipo de
análise foi primeiramente estabelecer relações entre os saberes, a partir daquilo que foi
dito, para que, dessas relações, surgissem compatibilidades e incompatibilidades que não
sancionassem ou invalidassem, mas estabelecessem regularidades, permitindo
individualizar formações discursivas (Machado, 1979, p. 4). O discurso é tomado por
Foucault como um conjunto de enunciados que se apóiem na mesma formação discursiva
(Foucault, 1987a, p. 135). Por enunciados Foucault apresenta um conceito mais amplo do
que a estrutura de um texto. Assim, para ele, os enunciados não são apenas estruturas, mas
função de existência. Essa função se define pelo fato de que uma seqüência de signos só se
torna enunciado uma vez que estabelece relações com as coisas as quais se refere. Dois
enunciados podem apresentar a mesma estrutura lingüística. Entretanto, sua significação
dependerá das relações estabelecidas e do contexto no qual se insere, ou seja, da formação
discursiva a qual pertence. Uma formação discursiva é constituída a partir de regras de
formação que são as condições que possibilitam a emergência de um determinado discurso.
A análise arqueológica dos enunciados, proposta por Foucault (1987a), corresponde
a uma descrição que se ocupa, principalmente, em definir as condições que permitiram a
existência de um determinado enunciado: não há investigação por um sentido oculto ou
latente, parte-se daquilo que foi dito para buscar a maneira como foi dito, quem o pôde
dizer, em quais circunstâncias e por que foi esse o dito e não qualquer outro. Trata-se de
analisar os discursos em sua superfície, no nível da existência das palavras. Para a análise
dos enunciados é preciso que se leve em consideração seus quatro elementos básicos: 1.
um referente (uma referência a algo que identificamos). Nesse caso o referente é o discurso
dos participantes do Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados; 2. o fato de ter um
sujeito, no sentido de uma posição a ser ocupada. Os sujeitos dessa pesquisa ocupam a
posição de cidadãos em sofrimento psíquico, além da diretora que é atriz e pedagoga; 3. a
associação e a correlação com outros enunciados, do mesmo discurso ou de outros
discursos; 4. a materialidade, uma vez que trata-se de coisas ditas que podem ser
48
reproduzidas e ativadas através de práticas, técnicas e relações sociais. A materialidade
dos discursos da presente pesquisa são as entrevistas e reuniões do grupo, filmadas e
transcritas.
A Genealogia emerge nos estudos de Michel Foucault marcando o fim da pesquisa
pela origem das coisas, isto é, marca a renúncia a buscar uma identidade primeira, a
essência exata de uma determinada coisa, a origem como lugar da verdade. Fazer
genealogia não será, portanto, partir em busca de sua ‘origem’, negligenciando como
inacessíveis todos os episódios da história; será, ao contrário, se demorar nas
meticulosidades e nos acasos dos começos (Foucault, 1979, p. 19). Os livros que marcam a
introdução da genealogia de forma mais trabalhada são: Vigiar e Punir (Foucault, 1975) e
A Vontade de Saber (Foucault, 1976).
Segundo Machado (2007), a questão central que aparece nas formas genealógicas
de pesquisa é o poder e sua importância para a constituição dos saberes. A genealogia é
uma análise histórica das condições políticas de possibilidades dos discursos (Machado,
2007, p 167). As análises genealógicas produzem um deslocamento na forma de pesquisar
o poder, sobretudo em relação à ciência e às filosofias políticas que privilegiam em suas
investigações sobre o poder a questão do Estado. A novidade trazida por Foucault nessas
investigações é a abordagem de micropoderes: uma atenção às formas locais nas quais o
poder se desenvolve e produz novos mecanismos de controle dos gestos, do corpo,
atitudes, discursos.
Foucault quer insurgir contra a idéia de que o Estado é o único órgão de poder e a rede de poderes das sociedades modernas seria uma extensão dos efeitos do Estado, um simples prolongamento de seu modo de ação. Ele propõe um procedimento inverso: partir da especificidade da questão colocada – a dos mecanismos e técnicas infinitesimais de poder que estão intimamente ligados à produção de determinados saberes sobre o criminoso, a sexualidade, a doença, a loucura, etc. – e analisar como esses micropoderes, que possuem tecnologia e história específicas, se relacionam com o nível mais geral do poder constituído pelo aparelho do estado (Machado, 2007, p. 170).
A questão do poder surgiu nas análises de Foucault quando o autor realizava a
pesquisa sobre a história da penalidade (que deu origem ao livro Vigiar e Punir). Foucault
percebeu que havia uma relação específica de poder agindo sobre os indivíduos presos.
Essa relação é marcada pelo uso de uma tecnologia própria de controle sobre os corpos.
Foucault observou que essa tecnologia de controle era encontrada em outras instituições
49
como a escola, o hospital, a fábrica. A esse poder Foucault chamou disciplinar. Essa
técnica de controle atua sobre os corpos lhe impondo uma relação de docilidade-utilidade.
O poder disciplinar apresenta como características básicas: uma forma de organização do
espaço que, ao delimitar locais específicos para os sujeitos, circunscreve sua ação,
controlando assim sua atividade, refreando sua potência e mantendo a docilidade; um
controle do tempo que exige rapidez e eficácia nas ações; a vigilância como principal
instrumento de controle; e, por fim, a produção de saberes, pois o olhar que controla é o
mesmo que produz informações e as repassa aos mais altos níveis hierárquicos de poder
(Foucault, 1987c; Machado, 2007).
Os métodos disciplinares para Foucault (1987b) permitem:
o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade- utilidade, são o que podemos chamar as ‘disciplinas’. Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação (Foucault, 1987c, p. 164).
Nesse sentido, Foucault afirma a dualidade do poder disciplinar, pois ao mesmo
tempo em que ele tem por objetivo o aumento das capacidades dos corpos visando sua
potencialização para eficácia na sua utilidade, ele diminui essas mesmas forças ao sujeitá-
las à obediência que implica a docilidade. O poder disciplinar visa, dessa maneira, a
adestração dos corpos através do aumento da força econômica em contraponto a
diminuição dos perigos políticos (Foucault, 1987c).
Além dos estudos sobre o poder disciplinar, Foucault publicou, em 1976, o
primeiro volume da História da Sexualidade intitulado A vontade de saber, no qual
complementa os estudos sobre o poder ao identificar que agindo sobre a sexualidade do
homem existe uma outra forma de poder. Esse poder age sobre os corpos no sentido de
assegurar sua existência e regulá-la. Foucault deu a esse tipo de poder nome de biopoder
(Machado, 2009). No presente estudo, abordaremos o poder do tipo disciplinar, por uma
questão de delimitação da pesquisa e pelo fato de que no campo da saúde mental, e
principalmente no processo de transformação da loucura em doença e sua consequente
hospitalização, esse tipo de poder sempre se fez muito presente.
50
Sobre a relação entre saber e poder nos métodos de pesquisa foucaultiano, Machado
(1979) afirma que, enquanto a análise arqueológica busca responder a como os saberes
aparecem e são transformados a partir das inter-relações entre discursos e instituições, a
análise genealógica tem como ponto de partida responder ao por quê desses saberes,
situando-os como peças de relações de poder. O foco da genealogia são as relações que se
estabelecem entre as práticas discursivas com outras práticas sociais, econômicas, culturais
(Araújo, 2007). A genealogia complementa, dessa maneira, as análises arqueológicas.
No texto A Ordem do Discurso (2001), Foucault elucida como se articulam na
análise discursiva as perspectivas arqueológicas (chamada nessa citação de ‘crítica’) e
genealógica:
Ao seguir estes princípios e ao ater-me a este horizonte, as análises que me proponho fazer dispõem-se em duas perspectivas. De um lado, a perspectiva "crítica", que põe em ação o princípio de inversão: procurar distinguir as formas de exclusão, de limitação e de apropriação a que me referi atrás; mostrar como é que se formaram, a que necessidades vieram responder, como é que se modificaram e deslocaram, qual o constrangimento que exerceram efetivamente, em que medida é que foram modificadas. De outro lado, a perspectiva "genealógica", que põe em ação os outros três princípios: como é que se formaram as séries de discurso, se por intermédio, ou com o apoio, ou apesar dos sistemas de exclusão, qual foi a norma específica de cada série e quais foram as suas condições de aparecimento, de crescimento, de variação (p. 35).
Ainda sobre como a genealogia pode contribuir para a análise discursiva, Foucault
afirma que se preocupou em estudar como se forma o saber:
(...) o que fez a genealogia foi considerar o saber – compreendido como materialidade, prática, acontecimento – como peça de um dispositivo político que, como tal, se articula com a estrutura econômica. Ou, mais especificamente, a questão da genealogia foi a de como se formaram domínios de saber a partir de práticas políticas disciplinares (Machado, 2007, p. 177).
O saber, como postulado por Foucault, não se refere apenas ao conhecimento do
campo científico. Ele amplia este conceito para englobar os saberes produzidos
popularmente. Segundo Machado (2009), é no livro As palavras e as coisas, no qual
realiza uma arqueologia das ciências humanas, que Foucault desenvolve a idéia de que o
saber é o nível específico da análise arqueológica. Isso porque o saber constitui uma
positividade mais elementar do que a ciência, possuindo critérios internos de ordenação
51
independentes dos dela e a ela anteriores (p.75). Tendo em vista que Foucault correlaciona
saber e poder, nesta pesquisa os saberes sobre o quais nos debruçaremos são os discursos
produzidos pelos participantes do grupo Sapos e Afogados. A partir do já exposto sobre a
metodologia adotada neste trabalho, partiremos de uma análise que tenha como inspiração
a análise arqueológica foucaultiana que, a partir da descrição dos discursos, busque numa
perspectiva de inspiração genealógica investigar quais os micropoderes que os atravessam
e quais são os possíveis poderes que esses discursos podem exercer. Lembrando que, como
afirma Vanderesen (2008): O discurso é instrumento de poder quando possibilita seu
exercício e é seu efeito quando é produzido por ele (p. 94).
Na presente pesquisa, a análise de cunho genealógico reveste-se de importância,
uma vez que por muito tempo a palavra do dito louco foi calada pelo enclausuramento nos
hospitais psiquiátricos e menosprezada, no sentido de estar à margem de uma suposta
racionalidade. E, hoje, no contexto recente da Reforma Psiquiátrica, que instituiu
parâmetros para os tratamentos na rede de saúde mental que idealmente visam a reinserção
em seu meio e o exercício da cidadania, nos questionamos se esse sujeito tem espaço para
dizer sua verdade ou se lhe ainda é imposto um lugar de refreamento. Desse modo,
buscaremos investigar nos discursos dos integrantes do Grupo Sapos e Afogados como
aparecem as limitações dos poderes nesses discursos. Pretendemos, ainda, verificar em
quais pontos esses discursos figuram como micropoderes de resistência, uma vez que em
todo exercício de poder há uma forma de resistência (Foucault, 1979). O estudo sobre a
resistência no Grupo Sapos e Afogados é uma aposta que se faz a partir da reflexão sobre a
própria história do grupo e sua escolha por um trabalho independente da rede de saúde
mental, uma vez que começaram no interior de um Centro de Convivência da cidade de
Belo Horizonte/MG e hoje contam com apoiadores do meio artístico. O que sabemos sobre
a positividade do saber no campo da saúde mental é que as ações nesse campo tendem,
historicamente, a docilizar os indivíduos, uma vez que ainda se prioriza o tratamento
medicamentoso como foco (muitas vezes com medicalização excessiva). E sabemos
também que muitas práticas conhecidas sob rótulos, como: arterapia, oficinas artísticas,
oficinas terapêuticas etc, ao invés de se afirmarem como estratégicas de reabilitação
psicossocial, promovem atividades de cunho ocupacional que contribuem para que essas
pessoas, cidadãos em sofrimento psíquico, se docilizem e não insurjam contra os poderes
que as excluem.
52
CAPÍTULO 3: O CONTEXTO DA PRODUÇÃO DOS DISCURSOS INVESTIGADOS
Neste capítulo são discutidas as condições de formação de discurso em acordo com
a proposta foucaultiana de análise arqueológica do discurso. Desse modo, torna-se
importante abordarmos o contexto sócio-histórico no qual são produzidos os discursos
analisados nesta pesquisa. Primeiramente faz-se uma revisão teórica da saúde mental em
Minas Gerais, sobretudo da cidade de Belo Horizonte, cidade na qual o Grupo Sapos e
Afogados desenvolve seu trabalho. Após essa apresentação descrevo um pouco da história
do Grupo Sapos e Afogados, baseada em informações colhidas em entrevistas com os
integrantes e em documentos do Grupo.
3.1. As Reformas no campo da Saúde Mental e o contexto mineiro
3.1.1. Os primórdios da Psiquiatria em Minas Gerais
Sendo o Grupo pesquisado, Sapos e Afogados, da cidade de Belo Horizonte, Minas
Gerais, faz-se importante falarmos a respeito da Reforma da Psiquiatria em Minas Gerais.
A reforma mineira teve um destacado papel no movimento brasileiro como um todo. Dessa
forma, contribuiu para mudar os rumos dos tratamentos no campo da saúde mental. Falar
da reforma mineira atende, ainda, ao objetivo de fornecer dados do contexto sócio-
histórico no qual se insere o grupo pesquisado, informações relevantes para a metodologia
adotada, a saber a Análise do Discurso de inspiração foucaultiana. Antes de adentrar no
processo reformatório mineiro abordaremos um pouco da história da psiquiatria no Brasil
com foco em Minas Gerais.
Segundo Magro Filho (1992), até o século XVIII não havia no Brasil qualquer
referência a uma patologização da loucura e, consequentemente, sua medicalização.
Quando existiam casos de crise em que o sujeito perturbava a ordem social, o mesmo era
preso como qualquer indivíduo que tivesse cometido alguma infração. A história da
psiquiatria como ciência médica, passível de intervir nos casos de loucura numa instituição
específica, começa com a solicitação da criação de um Hospício no ano de 1830 pela
53
Sociedade Médica do Rio de Janeiro, que protestava contra a situação dos loucos
internados na Santa Casa de Misericórdia (Moretzsonh, 1989).
Ressalta-se que antes da criação dos hospitais psiquiátricos, os ditos alienados eram
internados em Santas Casas de Misericórdia. Os dados históricos apontam que a primeira
internação psiquiátrica brasileira data de 24 de janeiro de 1817, na cidade mineira de São
João Del Rey. Embora este seja o primeiro registro de paciente, constam que na Santa Casa
da Bahia, já no século XVIII, existiam as chamadas ‘casinhas de doudos’, construções
anexas ao prédio do hospital geral. Ainda que Minas Gerais não seja pioneira nas
internações psiquiátricas, foi em São João Del Rey que se iniciaram as primeiras tentativas
de ofertar atendimento adequado ao doente mental dentro do próprio hospital (Magro
Filho, 1992).
No Brasil, o primeiro hospital psiquiátrico foi criado no ano de 1852 no Rio de
Janeiro por decreto do imperador Dom Pedro II, o Hospital de Pedro II, construção
suntuosa de inspiração francesa. (Moretzshon, 1989; Magro Filho, 1992; Amarante 1996).
Nesse mesmo ano foi instalado, em São Paulo, o Hospício Provisório de São Paulo
(Moretzshon, 1992).
Em Minas Gerais, a primeira lei que faz referência aos alienados é a Lei nº 50 de 30
de junho de 1893, que dispunha sobre a concessão de auxílio às administrações das Santas
Casas de Misericórdia de Diamantina e de São João Del Rey. (Magro Filho, 1992). A
Santa Casa de São João Del Rey chegou a acolher 88 alienados (Moretzshon, 1989).
Até a construção do primeiro hospício em Minas Gerais o estado mantinha um
convênio com o Hospital Pedro II no qual haviam 25 leitos destinados a alienados enviados
de Minas, número que não atendia as reais necessidades do estado. No ano de 1900, a
Comissão de Saúde Pública propõe a criação da Assistência aos Alienados de Minas
Gerais, através do Projeto nº 49. No projeto, defendido por João Velloso, é possível
vermos como a loucura era, naquela época, considerada uma doença, não uma doença
comum, mas uma doença que surgia no meio familiar e considerava-se que esse mesmo
meio contribuía para sua gênese. Portanto, a terapêutica principal era o afastamento do
convívio familiar, como pode ser exemplificado na argumentação abaixo:
isolar o alienado, afastá-lo dos seus, interromper completamente todos os habitos de sua vida anterior , arranca-lo ao meio onde se originou sua loucura, pois a sua permanência nesse meio habitual, essas mesmas impressões quem em principio trabalharam com a sua moléstia, avigoram-na dia a dia, fortificam o erro em que
54
elle elabora, agravam sua loucura; e esses cuidados minuciosos da familia o cançam, essa vigilancia constante, por parte dos que lhe eram mais caros, o embaraçam, as contradições o exasperam e as complacencias agravam seu delírio (Minas Gerais, 1900 como citado em Magro Filho, 1992).
Como é possível ver nessa fala, João Veloso deixa clara a importância da
terapêutica dos alienados basear-se principalmente no isolamento do doente mental da
sociedade. Essa preocupação não é apenas com o louco, mas também com a periculosidade
que pode oferecer aos seus pares estando em convívio social. Essa possível periculosidade
também foi argumento para a construção do primeiro hospício em Minas Gerais (Magro
Filho, 1992).
Em 21 de fevereiro de 1903, o Presidente Francisco Antônio de Salles expediu o
decreto que organiza a Assistência aos Alienados e aprova a construção do hospício na
cidade de Barbacena, aproveitando um prédio já existente, o Sanatório de Barbacena,
instituição fundada em 1870 para tratamentos de tuberculosos. A criação do hospital
representou dois movimentos em certo sentido contrários, uma vez que significou
centralizar os recursos do estado de Minas Gerais em um só hospital ao mesmo tempo em
que, assumindo a responsabilidade sobre seus alienados, o estado atende à proposta
descentralizadora do governo republicano (Magro Filho, 1992).
A escolha pela cidade de Barbacena para abrigar o primeiro hospital psiquiátrico de
Minas foi, segundo Duarte (1996) como citado em Passos (2009), uma manobra puramente
política por influência de políticos locais que tinham prestígio nacional. Para Magro Filho
(1992), a escolha por Barbacena foi uma espécie de prêmio de consolação, uma vez que a
cidade foi preterida para ser a capital do estado quando se deu a escolha por Belo
Horizonte.
A Assistência aos Alienados mineiros é instalada no Hospício de Barbacena tendo
como única modalidade assistencial a internação, tal situação obviamente levou, em pouco
tempo, a uma superlotação do hospital e a inúmeras falhas que deram início à sua
decadência como instituição de saúde. Em decorrência das diversas dificuldades
encontradas o hospital passa por muitas reformas ao longo dos anos, na tentativa de
solucionar o principal problema: a superlotação. Entretanto, o que se percebe é que as
várias reformas aprovadas nunca beneficiaram de fato os loucos. As principais alternativas
sempre foram a ampliação do hospital, para oferta de mais vagas, ou mesmo a construção
de novos asilos (Magro Filho, 1992).
55
Após a criação do primeiro hospício, na tentativa de atender a demanda crescente
por internação, outras instituições foram criadas. Em 1922, em Belo Horizonte, foi criado o
Instituto Raul Soares. Em 1927, na cidade de Oliveira, é criado o Hospício Colônia de
Oliveira, com o objetivo de abrigar mulheres e crianças alienadas. E, em Barbacena, no
ano de 1929, é criado o Manicômio Judiciário do estado, o Jorge Vaz (Passos, 2009).
3.1.2. A psiquiatria na capital: contexto histórico de Belo Horizonte - Os hospitais
psiquiátricos e as mudanças na psiquiatria mineira
Optamos por abordar brevemente um pouco da história dos dois principais hospitais
psiquiátricos da cidade de Belo Horizonte, o Instituto de Neuropsiquiatria Raul Soares e o
Hospital Galba Veloso. Os dois hospitais foram concebidos em períodos diferentes e aqui
nos valemos de alguns dados históricos para entendermos um pouco do processo que
culminou nas suas respectivas criações, ao passo em que refletimos as mudanças
estruturais da saúde mental mineira.
Como assinalado no parágrafo anterior, no ano de 1922, Belo Horizonte ganha sua
primeira instituição psiquiátrica pública, o Instituto de Neuropsiquiatria Raul Soares.
Criado a partir do Decreto 6.169 de 31 de agosto de 1922, baixado pelo então Presidente
do Estado, Arthur Bernardes. O Instituto tinha como objetivo inicial atender,
prioritariamente, casos neurológicos. Entretanto, devido à grande procura, em pouco tempo
de criação passou a atender, em sua maioria, clientela psiquiátrica. Este fato assinala o que
por diversas vezes ocorreu na história da psiquiatria no Brasil: quando havia problemas
relativos aos manicômios, mais asilos eram abertos como solução. O Instituto oferecia,
para tratamento dos pacientes, o que havia de mais moderno na medicina psiquiátrica:
banhos de 4 celas, duchas pereniciais, aparelhos eletrostáticos, camisas de força,
Ionoterapia, Malarioterapia, Eletroconvulsoterapia, Insulinoterapia, barbitúricos, e
cardiazol, para os casos de esquizofrenia e síndromes depressivas (Magro Filho, 1992).
Entretanto, como assinala Moretzshon (1989), a criação do Instituto Raul Soares
marca também um importante acontecimento na história da psiquiatria mineira
compreendendo a tentativa de reformar os serviços de assistência aos alienados, como
mostra um trecho da mensagem do Presidente Mello Vianna a respeito da inauguração:
56
O Serviço de Assistência a alienados em Minas Gerais era até há pouco incompleto reduzindo-se apenas à segregação dos loucos do convívio social, pois quase que era essa a funcção exclusiva das Assistencia estadoal existente em Barbacena. Hoje, Minas pode com orgulho mostrar o Instituto Raul Soares, cujas instalacções so deixarão de ser chamadas de confortáveis por aquelles que entenderem de as classificar de aparatosas e que é um estabelecimento esplendidamente construído para o tratamento dos casos agudos de moléstias mentaes, para o ensino de psychiatria e para formação de um corpo de enfermeiros experimentados (...) (Mello Vianna, 1922, como citado em Moretzshon, 1989).
A abertura do Instituto tinha como objetivo ser mais do que mais um hospício. No
regulamento que aprovava sua construção constam, dentre outras propostas: a
regionalização da assistência aos alienados do Estado; setorização da Assistência; uma
seção para a profilaxia da doença mental; regulamentação da assistência aos alienados
criminosos; regulamentação dos estabelecimentos particulares destinados ao tratamento
dos alienados; e a regularização da utilização de cadáveres de indigentes para estudo
(Magro-Filho, 1992).
Apesar das propostas de melhoria nos atendimentos, em pouco tempo de
funcionamento o Raul Soares se deparava com as mesmas dificuldades dos outros asilos:
ineficácia das terapêuticas e consequente superlotação. Um episódio interessante ocorreu
nessa instituição no ano de 1929, narrado por Magro-Filho (1992) como episódio Lopes
Rodrigues. Dr. Lopes Rodrigues, diretor do Instituto, resolve, num gesto que lembra o de
Pinel, na França, soltar os loucos. Essa atitude o leva a prestar esclarecimentos ao
Presidente do Estado Antônio Carlos Ribeiro de Andrada. Segue um trecho transcrito desse
diálogo com o presidente:
A razão ali é que põe a loucura em estado permanente de ameaça e não a loucura a razão. Os ameaçados são os inconscientes e indefesos. Eu estou apenas invertendo os lugares. Quem trata dos doentes da mente, tem que passar de ameaçador a ameaçado. O contrário disso é a subversão da dignidade humana. -E os loucos perigosos? Como tem a coragem de soltá-los? Indagou o presidente. – Minha coragem aí, Presidente, não é soltar os loucos; está sendo a de enfrentar os sãos. Tenho a exata consciência do calvário de espinhos e do ciclone de lama que se agitam contra mim. A geração em que vivo não me interessa (...). Loucos perigosos são frutos da ignorância médica. O que existe não são loucos perigosos, são lúcidos perigosos (Lopes Rodrigues, 1929, como citado em Magro Filho, 1992).
Além de priorizar o tratamento em liberdade, abolindo o tratamento fechado, Lopes
aboliu ainda as grades e o instrumental mecânico de repressão (coleiras, argolas,
manchões entre outros) (Goulart, 2010). Lopes Rodrigues se interessava por novas práticas
57
em tratamento na saúde mental, escreveu um livro intitulado Da assistência hetero-
familiar aos insanos mentaes e discutia com outros diretores de hospício novas formas de
terapia, entre esses interlocutores estão Franco da Rocha (SP) e Joaquim Dutra
(Barbacena). O diretor do Instituto Raul Soares questionava também o papel da polícia nos
internamentos que, mesmo sendo incapaz de realizar diagnósticos, assim o faziam e
desobedecê-los era considerado desacato, uma reação contra a lei. Instituiu no Raul Soares
um setor de laborterapia, além de um espaço de ensino e pesquisa. Este trabalho de cunho
reformista teve a duração de apenas um ano, quando eclodiu a Revolução de 30 e Lopes foi
destituído da diretoria do hospital (Magro Filho, 1992).
Os posicionamentos de Lopes Rodrigues mostram sua ousadia vanguardista ao
questionar o saber médico e político estabelecido e que de forma alguma beneficiava os
doentes mentais e, ao que parece, pouco se preocupava com uma efetividade terapêutica
dos tratamentos oferecidos e muito com a manutenção da ordem social à custa das vidas
daqueles que se tornavam prisioneiros do hospício.
Salienta-se que, por longo tempo, o Instituto Neuropsiquiátrico Raul Soares foi o
responsável pela formação básica de praticamente todos os psiquiatras de Minas Gerais
(Moretzshon, 1989). O Instituto, posteriormente denominado apenas Raul Soares, teve
importante papel na reforma da psiquiatria mineira, como falaremos adiante (Goulart,
2010).
3.1.3. Informações sobre o período de criação do “Raul Soares”
O Instituto de Neuropsiquiatria Raul Soares foi inaugurado no ano de 1922, como
já falado. Pouco tempo depois, em 1927, os serviços sanitários do Estado são
reorganizados através da aprovação do Regulamento de Saúde Pública do Estado de Minas
Gerais que instituía as ações da Diretoria de Saúde Pública, que até então fazia parte da
Secretaria de Segurança. Este regulamento tinha como principal meta a regionalização dos
Distritos de Saúde, através dos Centros de Saúde que, além da equipe de saúde, contava
com os guardas como funcionários que tinham como atribuição de cargo a fiscalização das
condições sanitárias da cidade e meio rural e até mesmo a medicação em domicílio.
No Regulamento de Saúde Pública quase não é citada a doença mental, o que pode
ser explicado pelo fato de que, nesse mesmo ano, 1927, foi idealizado o Regulamento da
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Assistência aos Alienados. Ambos os regulamentos estão fundamentalmente marcados
pelo controle social. Enquanto o primeiro se preocupa com a notificação e controle de
doenças transmissíveis, o segundo estabelece que qualquer indivíduo acometido de
adoecimento mental, por mais de dois meses, deve ser comunicado às autoridades
competentes. Essa relação foi chamada de Polícia Sanitária. O que se percebe é que mais
do que promover saúde o interesse se foca na manutenção da ordem social (Magro Filho,
1992).
De um modo geral, entre 1870 e 1929, Magro Filho (1992) assinala que Minas
Gerais, em decorrência da perda crescente de poder econômico, passa a depender dos
estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Esses estados adotavam como modelo as práticas
médicas européias fundamentadas no campo da racionalidade. É nesse momento que a
loucura passa a ser regulamentada, e Minas chegou a possuir quatro regulamentos sobre a
assistência aos alienados. E é nesse mesmo período que se inicia a estrutura burocrático-
administrativa do Estado através da criação de cadeias, escolas, hospitais etc. No campo da
saúde mental, o crescente número de internações caracteriza a exclusão da loucura do meio
social, através de uma visão moral.
3.1.4. Um pouco dos anos 1930-1964 e a criação do Hospital Psiquiátrico Galba Veloso
Nos anos 1930, o Brasil passa por várias transformações, entre as mais importantes
estão a criação dos Ministérios do Trabalho, da Educação e da Saúde Pública. Em Minas
Gerais é criada a Secretaria de Educação e Saúde Pública que passa a administrar as
questões relacionadas a assistência aos alienados no Estado. Nos anos 30 e 40 a situação
dos hospitais psiquiátricos mineiros já se encontrava insustentável. Um exemplo dessa
situação são as estatísticas de mortalidade do Hospital Psiquiátrico de Barbacena, 4.251
pessoas entre os anos de 1947 e 1952. (Magro Filho, 1992).
Em todo o estado de Minas, entre 1930 e 1964, funcionavam os seguintes hospitais
públicos para a assistência a alienados: Hospital Colônia (1903), Instituto Raul Soares
(1922), Hospital Psiquiátrico de Oliveira (1924), Hospital de Neuropsiquiatria Infantil
(1947) e o Hospital Galba Veloso (1962) (Moretzshon, 1989).
O Hospital Galba Valloso foi concebido e planejado no ano de 1960. O nome faz
referência ao psiquiatra mineiro que dirigiu o Instituto Raul Soares em 1934 e em cuja
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atuação lhe é atribuído grande prestígio alcançado pelo Instituto e pela psiquiatria mineira
na época (Moretzshon, 1989).
A criação do Hospital Galba Velloso tinha como objetivo substituir o Instituto Raul
Soares, que se encontrava em notável decadência. Foi construído numa área de 12.000
metros quadrados, em terreno adquirido com verbas estaduais e federais (constituindo a
maior parte). O Governador do Estado era Dr. Crispin Jacques Bias Fortes e o Secretário
de Estado da Saúde, e principal idealizador do projeto, o Prof. Austregésilo Ribeiro de
Mendonça, antigo psiquiatra do Instituto Raul Soares e que conheceu de perto a realidade
de sua decadência.
Joaquim Affonso Moretzshon, um dos autores no qual nos baseamos para recontar
um pouco da história da psiquiatria mineira, foi responsável, na condição de Chefe do
Serviço de Psiquiatria da Secretaria de Saúde, pelo término e início de funcionamento do
hospital. Em sua gestão deliberou por manter no Raul Soares pacientes do sexo masculino
e o Galba Velloso para mulheres, sendo ambos destinados ao atendimento de indigentes
(Moretzshon, 1989).
3.1.5. Quando a situação ficou insustentável – a verdade dos hospitais psiquiátricos de
Minas Gerais vem à tona
Em toda a história da psiquiatria, o hospital psiquiátrico se mostrou ineficaz como
forma de tratamento. No contexto mineiro, desde a criação do primeiro hospital em
Barbacena, a superlotação e os maus tratos foram uma constante. E cada vez que um
hospital entrava em situação calamitosa, a proposta era a mesma: a construção de mais alas
ou de mais hospitais, e assim foi até que a situação tornou-se insustentável.
A mídia teve importante papel nas denúncias acerca dos maus tratos sofridos nos
hospitais psiquiátricos. Em 13 de abril de 1961, a TV Itacolomi levou ao ar um filme
realizado no Hospital Colônia de Barbacena no qual mostrava a grave situação dos
pacientes ali internos. Em um texto publicado no jornal O Diário da Tarde, os jornalistas
Flávio Ferreira e José Inácio comparam a situação do referido hospital a um campo de
concentração (Magro Filho,1992).
O Instituto Raul Soares também sofreu denúncias públicas em O Diário da Tarde:
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A realização de um estupro com o abafamento do inquérito administrativo a respeito; Doentes colocados no quarto forte com água escorrendo pelo chão propositalmente como forma de castigo; Doentes dormindo no chão ou sobre capim, enquanto as camas de ferro estavam expostas ao tempo; Esgotos estragados e a comida servida no chão; doentes comiam em latas e até mesmo uma dobradiça foi encontrada no meio da comida; Doentes falecendo sem a menor assistência (Bessa, 1961 como citado em Magro Filho, 1992, p.89).
A partir das várias denúncias feitas pela imprensa, a sociedade mineira teve que se
confrontar com a triste realidade dos hospitais psiquiátricos, e políticos e autoridades
médicas foram convocados a dar explicações acerca da situação, bem como resolvê-la.
Além das já citadas denúncias, em 1979, o jornalista Hiram Firmino começou a
publicar no jornal Estado de Minas uma série de reportagens intitulada Nos Porões da
Loucura, na qual denunciava o cotidiano do hospital psiquiátrico Raul Soares. O cineasta
Helvécio Ratton lançou o curta-metragem Em Nome da Razão, com imagens feitas no
hospício de Barbacena.
As denúncias realizadas, bem como a incapacidade dos hospitais psiquiátricos
evidenciada na sua notável decadência, levaram ao desencadeamento do processo
reformatório da psiquiatria. No caso de Minas Gerais, o marco histórico desse processo é
principalmente o final dos anos 1960, a partir das primeiras denúncias na imprensa mineira
e o início da mobilização de diversos setores da saúde.
Em âmbito nacional é importante destacar que o movimento pela reforma da
psiquiatria ganha força principalmente a partir de 1976, ano em que o Brasil ainda estava
sob o regime militar, com a constituição do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
(CEBES) e do Movimento de Renovação Médica (REME), sendo que é basicamente a partir
desses grupos que se inicia o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, que fez
denúncias sobre o sistema nacional de assistência psiquiátrica e críticas ao uso do
eletrochoque, bem como demais condições de tortura praticada nos manicômios. Além das
denúncias, o movimento reivindicava melhorias nas condições de trabalho no campo da
saúde, tais como: a redução da jornada de trabalho e aumento salarial. No ano de 1978,
esse Movimento realiza uma greve durante oito meses com grande repercussão na
imprensa. Esse movimento ganha força e constitui-se como o que vem a ser chamado
Movimento Antimanicomial (Amarante, 2010).
Em uma perspectiva cronológica, outro importante acontecimento no ano de 1978 é
a realização do V Congresso Brasileiro de Psiquiatria que ampliou a discussão da saúde
mental ao nível do regime político nacional. Neste mesmo ano, Franco Basaglia vem ao
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Brasil, assim como Felix Guattari, Robert Castel e Erving Goffman, para o I Congresso
Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições no Rio de Janeiro, importantes teóricos
que contribuíram para pensar o tratamento da loucura. Em 1979, é realizado em São Paulo,
o I Encontro Nacional do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, no qual se
ampliou o debate em torno da importância de se fortalecer o movimento a partir da
articulação com outros movimentos sociais.
Destaca-se a importância do movimento mineiro com a realização do III Congresso
Mineiro de Psiquiatria. O evento foi organizado pelo Centro de Estudos Galba Velloso, da
Residência em Psiquiatria do Instituto Raul Soares, tendo como coordenador o psiquiatra e
preceptor da Residência, César Campos, figura de grande importância no movimento pela
reforma da psiquiatria. O III Congresso Mineiro de Psiquiatria foi realizado de 15 a 21 de
novembro de 1979, na Associação Médica de Minas Gerais, em Belo Horizonte, e contou
com a participação de cerca de 600 pessoas, entre profissionais da saúde como médicos,
psiquiatras, psicólogos, além de sociólogos e assistentes sociais, bem como a população
representada por familiares de internos e a imprensa. A heterogeneidade do público, que
não se restringiu aos médicos, segundo Goulart e Silva (2011), demonstra o caráter social e
amplo do evento.
As presenças de Franco Basaglia e Robert Castel contribuíram para reforçar os
ideais daqueles que se opunham ao regime manicomial. Durante os dias do Congresso,
Basaglia foi convidado a falar sobre situação do Hospital Colônia de Barbacena, na
Assembléia Legislativa de Belo Horizonte. Entretanto, foi proibido por manobras políticas
do partido Arena. A respeito dessa atitude, Basaglia se pronunciou:
Foi um grande erro político. Uma falta de inteligência enorme. Com isso, a Arena deu à oposição a chance para assumir a causa dos loucos, que é justa, boa e humana. Uma assembléia que se recusa a saber das necessidades do povo, no campo da saúde mental, não representa este povo (Basaglia, Jornal Estado de Minas, 1979c como citado em Goulart & Silva, 2011).
A vinda de Franco Basaglia a Belo Horizonte, bem como em eventos em São Paulo
e Rio de Janeiro, foi de suma importância para pensar as políticas públicas em saúde
mental, uma vez que sua principal contribuição foi a divulgação da desmontagem do
aparato hospitalar público na Itália, em Trieste, e a aprovação da Lei 180, sancionada no
ano de 1978 e que dispunha sobre a extinção progressiva dos manicômios, regulamentava a
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internação compulsória e demarcava a importância de se resgatar a cidadania do doente
mental (Goulart, 2006).
Com relação às propostas aprovadas no Congresso, ficou estabelecida a promessa,
por parte dos governantes, de extinguir os manicômios do estado de Minas Gerais,
concomitante à ampliação do tratamento ambulatorial, fortificando assim o principal
parecer do evento: humanizar a psiquiatria. Dessa maneira, nos anos seguintes ao
Congresso, a saúde mental em Minas passou por muitas lutas e transformações em prol da
consolidação das propostas aprovadas. O Hospital Galba Velloso passou por uma
reestruturação mudando sua política frente ao setor privado e à Previdência Social. O papel
de César Campos foi de suma importância ao assumir a direção do hospital entre os anos
de 1983 e 1986. Nessa época, foram implantadas no hospital: Oficinas Terapêuticas,
Hospital-Dia, Leito-Crise e um Serviço de Residência em Psicologia na área de saúde
mental, em parceria com a PUC Minas (Goulart, 2009).
Salienta-se a importância do Instituto Raul Soares na reforma psiquiátrica mineira e
na preparação do III Congresso Mineiro de Psiquiatria. Já nos anos 1970, um grupo de
estudos em psicanálise fortificava-se na instituição com os estudos das obras de Freud e
Lacan, bem como de autores de cunho antimanicomial da Psicologia Social. Essas leituras
fomentaram a formação crítica de diversos profissionais da saúde mental. Em 1973, esses
profissionais começavam a resistência ao poder psiquiátrico e negaram-se ao uso do
eletrochoque (Goulart, 2010).
No ano de 1983, é implantado o CONASP Saúde Mental, que permitiu a
reestruturação do modelo assistencial dos hospitais psiquiátricos de Minas Gerais. No
Instituto Raul Soares começaram a ser organizadas equipes interdiciplinares. O supracitado
hospital foi o primeiro serviço de semi-internação da rede pública do estado de Minas
Gerais, marcando assim a abertura do hospital e a substituição de uma prática asilar
(Goulart, 2010).
Em âmbito nacional, o ano de 1989 é marcado pela proposta de uma nova
legislação psiquiátrica, o projeto de lei nº 3.657, apresentado pelo então Deputado Federal
Paulo Delgado, que dispunha sobre três pontos: a extinção progressiva dos manicômios;
sua substituição por outros recursos assistenciais; e regulamenta a internação
psiquiátrica compulsória. A lei 10.216, chamada Lei Paulo Delgado, foi sancionada
somente em 2001, contendo algumas modificações. A Lei 10.216/2001 regulamenta os
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direitos dos indivíduos em sofrimento psíquico e propõe que os tratamentos no campo da
saúde mental sejam os menos invasivos possíveis.
Em Minas Gerais, seis anos antes da aprovação da legislação federal anteriormente
citada, foi aprovada a Lei Estadual 11.802 de 18 de janeiro de 1995, conhecida como Lei
Carlão, que dispõe sobre a promoção da saúde e da reintegração social do portador de
sofrimento mental (Brasil, 1995). A lei foi elaborada pelo então deputado estadual mineiro
Antônio Carlos Pereira. Através da aprovação dessa lei fica estabelecida a implantação de
serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, bem como regulamenta a internação,
inclusive a involuntária, sendo que as mesmas devem ser comunicadas ao Ministério
Público no prazo de 48 horas a partir da internação, através de um laudo enviado aos
representantes locais da autoridade sanitária. A lei é um avanço nas práticas em saúde
mental mineira e marca um grande passo rumo a desisntitucionalização progressiva da
loucura.
Em todo o trajeto político e social que repercutiu em mudanças no tratamento ao
dito doente mental destaca-se o papel e organização da luta antimanicomial, que se
fortificou nos anos 1980. Na presente pesquisa faz-se essencial refletir acerca desse
movimento, uma vez que a maioria dos integrantes do grupo pesquisado, Sapos e
Afogados, tem participação ativa no mesmo e consideram-se militantes, assim como o
trabalho que o grupo desenvolve no teatro tem um papel questionador e por esse caráter
age também como resistência aos saberes e poderes psiquiátricos.
O Movimento antimanicomial, como já falado anteriormente, teve grande
influência das discussões realizadas com a vinda de Franco Basaglia, Robert Castel e
Erving Goffman ao Brasil em 1978. No ano de 1987, ocorrem dois eventos que foram de
suma importância para a configuração da luta antimanicomial: I Conferência Nacional de
Saúde Mental e o II Congresso Nacional do Movimento dos Trabalhadores de Saúde
Mental (MSTM), em Bauru/SP. A partir do citado Congresso, o movimento passa a ter
maior amplitude, principalmente pelo fato de ter contado com a participação de
associações de usuários e familiares, como a Loucos pela Vida, de São Paulo, e a
Sociedade de Serviços Gerais para a Integração Social pelo Trabalho (SOSINTRA), do
Rio de Janeiro, entre outras. Dessa forma, não apenas os trabalhadores, mas a sociedade
civil uniu-se para cobrar melhorias nos tratamentos em saúde mental. Destaca-se, nesse
sentido, uma peculiaridade desse evento: um processo de distanciamento do movimento
antimanicomial em relação ao Estado e uma aproximação com familiares e usuários nas
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discussões realizadas. Nasce o lema do movimento: Por uma sociedade sem manicômios,
ampliando o debate para além do campo da assistência (Lüchmann e Rodrigues, 2007).
Lobosque (2003) salienta a importância de pensarmos o Movimento da Luta
Antimanicomial como um processo complexo a partir da co-existência de diversos
segmentos: usuários, familiares e trabalhadores, além de contar com a participação de
diversos setores conflitantes nas discussões propostas: o próprio Movimento dos
Trabalhadores em Saúde Mental, que defende uma nova postura nas práticas em saúde
mental, a Associação Brasileira de Psiquiatria, o setor privado, a indústria farmacêutica,
entre outras. O principal conflito está entre aqueles setores antimanicomiais e os
manicomiais (Lüchmann e Rodrigues, 2007).
A luta antimanicomial é um movimento vivo no campo da saúde mental, e tem
como data comemorativa o dia 18 de maio, quando se mobilizam nacionalmente os atores
envolvidos com a causa através de protestos e comemorações, devidos aos avanços
conquistados, e a reivindicação de melhorias na saúde mental.
3.1.6. A Saúde Mental em Belo Horizonte – o caminho para a desospitalização
Como já falado anteriormente, a cidade de Belo Horizonte/MG teve importante
papel no processo de discussão da reforma na psiquiatria, bem como na mobilização pela
luta antimanicomial. A seguir falaremos brevemente acerca de como vem ocorrendo o
processo de desinstitucionalização da loucura na cidade a partir da reestruturação da rede
de atendimento em saúde mental.
As transformações pelas quais passou a cidade mineira no que concerne ao campo
da saúde mental serão aqui relatadas tendo como ponto de partida os escritos de Ana Marta
Lobosque e Abou-yo (1998) no qual falam como foi o processo de mudança na saúde
mental, principalmente a partir de 1993 com a Frente BH Popular, liderada por Patrus
Ananias (PT) que tinha como objetivo: realizar uma gestão aberta à participação dos
diversos setores da sociedade no processo de definição e adoção de diretrizes que orientam
a ação do poder público na cidade (Boschi, 1999). O principal objetivo era a elaboração de
um plano diretor com participação democrática dos diversos setores da sociedade.
Conforme relata Lobosque e Abou-yo (1998), foi a partir da implementação da
Frente BH Popular que foi possível colocar em prática, no campo da saúde mental,
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melhorias que já se encontravam nos ideais dos movimentos sociais envolvidos com a
questão antimanicomial. As propostas em Belo Horizonte basearam-se principalmente na
experiência de desisntitucionalização realizadas em Santos, a partir da criação do primeiro
NAPS (Núcleo de Atenção Psicossocial).
Algumas peculiaridades do movimento belorizontino, segundo Lobosque e Abou-
yo (1998), são o favorecimento da organização dos usuários e a articulação com diversos
núcleos antimanicomiais do país; as relações entre a Frente BH Popular e o Movimento
serem de parceria e respeito; e, por fim, o fato de uma articulação, rara entre os
profissionais de saúde mental, das demandas do campo social com a forma de cuidar do
sujeito na psicanálise.
De modo geral, as grandes transformações ocorridas entre os anos de 1994 e 1998
foram a criação de quatro Centros de Referência em Saúde Mental (CERSAM’s), assim
como quatro Centros de Convivência, valorizando a questão da inclusão social via cultura.
No campo da atenção básica, buscou-se reestruturar a prática de saúde mental nos Centros
de Saúde; foi dada maior atenção às questões relacionadas às crianças e adolescentes; foi
desenvolvida avaliação e controle dos hospitais psiquiátricos por supervisores municipais.
Além disso, foram lançadas publicações relacionadas às novas práticas. A implantação dos
CERSAM’s marcou o funcionamento de um novo modelo de instituição de atendimento a
crise, com funcionamento de 12 h por dia e com objetivo, não de complementar, mas de
substituir o hospital psiquiátrico (Lobosque e Abou-yo, 1998).
Como mencionado na introdução da presente pesquisa, os Centros de Convivência
foram aprovados através da Portaria nº 396, de 7 de julho de 2005, que regulariza o
Programa de Centros de Convivência e Cultura na rede de atenção em saúde mental do
SUS. No artigo I define: Os Centros de Convivência e Cultura são dispositivos públicos
componentes da rede de atenção substitutiva em saúde mental, onde são oferecidos às
pessoas com transtornos mentais espaços de sociabilidade, produção e intervenção na
cidade.
A referida Portaria foi aprovada pela Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais.
Segundo informações obtidas no Relatório Saúde Mental em Dados, realizado pelo
Ministério da Saúde (2007a), uma política de financiamento para os Centros de
Convivência e Cultura ainda está em construção. Segundo informações do Relatório de
Gestão em Saúde Mental (Brasil, 2007b), a partir do ano de 2005 o Ministério da Saúde
recomenda a implantação desses dispositivos em municípios com população superior a
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200.000 mil habitantes e com rede CAPS em bom funcionamento. Existem
aproximadamente 60 Centros de Convivência e Cultura em funcionamento no país, em sua
maioria concentrados nos municípios de Belo Horizonte, Campinas e São Paulo. (Brasil,
2007b). Na IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial, realizada em 2010, foi
reivindicada a criação de uma portaria ministerial para implantação de Centros de
Convivência (Brasil, 2010).
Segundo informações do site da prefeitura de Belo Horizonte, atualmente a saúde
mental da cidade conta com uma rede estruturada de CERSAMs em funcionamento de 7 às
19 h, bem como com nove Centros de Convivência que oferecem oficinas de música,
teatro, pintura, marcenaria, costura e várias outras, assim como passeios, idas ao cinema e
festas. O Grupo Sapos e Afogados começou seu trabalho no Centro de Convivência César
Campos, que comemorou neste ano 10 anos de existência. O Sapos e Afogados apresentou
uma performance em homenagem à instituição na qual iniciou seus trabalhos.
Como pode ser observado, o Movimento de Luta Antimanicomial alavancou
diversas mudanças no campo da saúde mental, bem como mobilizou diversos atores
envolvidos nessa luta. É importante afirmar que salvas de palmas devem ser dadas às
conquistas alcançadas, entretanto é necessário estarmos atentos, pois o manicômio ainda é
uma presença silenciosa que ronda as práticas de saúde mental, lembrando o lema
catarinense: Por uma vida sem manicômios, que nos adverte que a sociedade também pode
ser um manicômio.
3.2. Sobre Sapos e Afogados
O Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados trabalha com teatro e cinema,
existe há 10 anos e durante a pesquisa de campo contava com a participação de oito
pessoas, incluindo a diretora, sendo que todos os atores são usuários de serviços de saúde
mental da cidade de Belo Horizonte. Atualmente o Grupo recebeu mais três novas atrizes e
a produtora artística Renata Corrêa. Salienta-se que os novos integrantes não participaram
das entrevistas pelo fato de que, no momento da pesquisa de campo, eles ainda não
estavam integrando o grupo.
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Segundo informações obtidas através de entrevista realizada com a diretora do
Grupo, Juliana Barreto, bem como com os atores, falarei aqui um pouco sobre o percurso
percorrido pelo Grupo nesses 10 anos de trabalho. O Sapos e Afogados nasceu no interior
de um Centro de Convivência da cidade de Belo Horizonte, através de oficinas de teatro
ministradas pela atriz e pedagoga Juliana Barreto. Sobre o início desse trabalho, Juliana
conta:
A gente fazia essa coisa do teatro, eles experimentando esse lugar do teatro, conhecendo. Eu nunca tinha trabalhado com usuário de saúde mental, já tinha me apresentado pra eles no Fórum Mineiro de Saúde Mental, no 18 de maio, né? Na coisa da luta antimanicomial assim, mas eu nunca tinha dado aula de teatro pra esse público.
Desse trabalho de oficina nasceu o desejo de alguns dos participantes de montarem
um grupo de teatro e então surgiu a Cia Momentânea de Teatro. A oficina passou então a
ter dois momentos: um lugar para a experimentação do teatro e outro para aqueles que
desejavam tornarem-se atores. Devido à alta rotatividade dos participantes, Juliana criou
um método de trabalho nos Centros de Convivência, através do qual, cada ator
experimentava todos os personagens, de modo que nos dias das apresentações eles estavam
aptos a interpretar no lugar do outro, caso esse faltasse.
Juliana narra em sua entrevista como foi o primeiro convite do Grupo para fazer
algo externo ao Centro de Convivência, e como foi feito esse trabalho que marcou o
primeiro pulo do Sapos rumo ao campo da cultura:
Depois desse tempo de Cia Momentânea a gente começou a receber vários convites para além da saúde mental. Eu brincava que já não era mais com o aplauso garantido, porque querendo ou não eles se apresentarem dentro da rede pública de saúde mental era pra um público que reconhecia aquele trabalho né. Eu brincava que era um aplauso garantido, a gente tava ali bem cercado de pessoas que também tavam naquele universo. E aí a gente começou a receber convite da Secretaria de Cultura pra participar de eventos na área de teatro, na área cultural. E aí a gente recebeu convite pra participar do Terceira Zona de Ocupação no Centro de Cultura Belo Horizonte. Foi aí então que a Cia Momentânea cria um espetáculo chamado Sapos e Afogados, onde no roteiro a gente questionava, eles questionavam o lugar da arte no centro de convivência. Quando que é arte, quando que não é arte. Quando que é artesanato, quando que é arte. Quando é que só porque é do centro de convivência era vendido? Pensava nessa coisa desse rótulo que às vezes era criado. Eles questionavam isso. Então eles falavam ‘ah só porque ta escrito centro de convivência...’, né? Eles criavam uma seqüência que todo
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mundo que entrava pra assistir Sapos e Afogados ganhava um carimbo no braço escrito ‘centro de convivência’ e do outro lado Sapos e Afogados, que era o nome do espetáculo. E esse espetáculo eram personagens inusitados. A partir desse espetáculo, o diretor de cinema Ricardo Alves Júnior teve contato
com o grupo e propôs gravar um filme de curta-metragem, que é então chamado Sapos e
Afogados, nome dado ao Grupo quando se deu o rompimento com a rede. Com a direção
de cinema de Ricardo Alves Júnior, o Sapos e Afogados produziu, no ano de 2007, o curta-
metragem Material Bruto, realizado em parceria com a Universidad dell Cine, da
Argentina. Para a produção do filme foram estudadas as telas do artista plástico Hopper,
nas quais o artista trabalha o tema do silêncio. E uma das metáforas utilizadas nesse
trabalho, segundo Juliana, é o silêncio como incômodo.
O filme recebeu nove prêmios no mesmo ano em que foi lançado, com destaque
para dois internacionais: Melhor direção no Festival Internacional de Vídeo (FENAVID);
Menção Honrosa no Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira; Melhor Curta
brasileiro no Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte; Melhor Curta brasileiro
no Mostra Curta Goiânia; Prêmio Aquisição Sesc TV no Festival Internacional de Curtas
de São Paulo; Prêmio Caleidoscópio no Festival Novos Realizadores do Mercosul e
Prêmio do Júri no Cine Esquema Novo – Porto Alegre2.
Segundo Juliana, foram essas premiações recebidas que permitiram que o Grupo
sobrevivesse por alguns anos sem patrocínio. Nessa mesma época, o Sapos e Afogados
consegue um local para ensaios e reuniões. Juliana, que nesse momento ministrava aulas
de teatro no Galpão Cine Horto, consegue uma parceria para que o Grupo ensaiasse nesse
espaço, através do diretor do local, Chico Pelúcio. Juliana acentua a importância afetiva
desse novo espaço de encontro do Sapos e Afogados:
E aí a gente começa a ensaiar dentro do Cine Horto. E eles começam a criar uma relação com as pessoas ali dentro, com o espaço, com o público que frequenta o Cine Horto de um jeito muito bacana. O Cine Horto foi muito cuidadoso, muito carinhoso até, afetuoso com a gente, com eles a ponto de eles mesmos marcarem sala, de eles mesmos, assim... de realmente fazerem aquele espaço deles. Deles também serem super cuidadosos com o Cine Horto, assim. O Elon é impecável com o espaço, com o figurino. Que o Cine Horto cedeu o espaço, o figurino e o cenário, tudo que a gente precisar a gente pode pegar do acervo do Galpão, do
2 O curta Material Bruto encontra-se disponível para acesso no site Porta Curtas, no seguinte link: http: //portacurtas.org.br/filme/?name=material_bruto.
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Cine Horto. Depois veio também o Léo Lessa pra dirigir o Cine Horto que é uma figura assim, muito sensível, muito delicado o olhar do Léo, que foi maravilhoso pra gente. Então essa parceria foi só aumentando.
No ano de 2009, o Grupo é contemplado pelo Concurso Público Prêmio Cultural
Loucos pela Diversidade 2009 – Edição Austregésilo Carrano. O prêmio, recebido em
dinheiro, foi dividido entre os atores, sendo uma das preocupações de Juliana o retorno
financeiro do trabalho que realizam com empenho e seriedade: A gente depois ganhou o
prêmio Loucos pela Diversidade, que possibilitou também mais um tempo assim, de pagar
cachê pra eles. Se eu tava tratando eles como atores, então esse reconhecimento também
tinha que passar por esse lugar, né?
No ano de 2009 o Grupo produziu o espetáculo Caixa Preta que trabalha a questão
da caixa preta como inconsciente, a caixa preta enquanto caixa preta de um teatro, a
caixa preta como tarja preta de remédio e a caixa preta também como a caixa preta de um
avião que registra alguma coisa que já acabou e aí também ta até ligado uma coisa do
tempo e da morte (Juliana). O espetáculo foi feito algumas vezes ao longo desses anos,
numa proposta de nunca se repetir e surpreender o público.
Durante o tempo em que acompanhei o grupo, através de observações dos ensaios
e trabalhos, pude registrar um pouco do processo de construção do espetáculo Caixa Preta
que teve estréia na 2ª Mostra de Arte Insensata, realizada de 13 a 16 de outubro de 2010, no
espaço cultural CentoeQuatro, na cidade de Belo Horizonte. O objetivo do evento foi
apresentar ao público a produção artística de cidadãos em sofrimento psíquico da Rede
SUS|BH. A maioria dos trabalhos foi realizada em Centros de Convivência da cidade. Na
ocasião, o filme Material Bruto teve exibição seguida de debate com os atores do Sapos e
Afogados. A estréia de Caixa Preta foi recebida com grande público.
Em abril de 2011, o Grupo Sapos e Afogados realizou o trabalho Casa Breve –
Residência Artística/Habitação Criativa, no qual os atores ocuparam, por quase um mês,
uma casa antiga da cidade de Belo horizonte. Era uma casa desocupada, sem móveis, água
e luz. Na ocasião, o Grupo buscava a realização de seu terceiro filme e, à procura de uma
locação para as gravações, encontraram essa casa que já havia sido ocupada por artistas da
cidade. Cada ator ocupou um cômodo da casa e criou uma cena. Dada a diversidade dos
trabalhos produzidos, apenas uma das cenas foi escolhida para a produção do curta-
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metragem. A cena escolhida foi protagonizada pelo ator Elon Rabin, que ocupou o subsolo
da casa.
Durante o tempo em que estiveram na casa, os atores contaram com a ajuda dos
vizinhos. Em frente a casa foi colocada uma placa com os seguintes dizeres: Casa dos
atores loucos. Sobre a relação com a vizinhança, e como essa relação quebrou de certa
forma com o estigma da loucura, Juliana conta:
Aí os vizinhos começaram a ficar muito amigos deles. Então, cediam energia pra carregar bateria ou então pra carregar celular e computador, e água, vela. Os vizinhos começaram a ficar muito solidários a ponto de no último dia eles receberem dez garrafas de champagne pra brindar, foi um luxo o último dia. ‘Como assim os vizinhos trazendo champagne’. O povo adorou eles. O que antes era um medo ‘como assim atores loucos’, né? As cenas criadas foram: Tríade, Hoje são os meus mistérios gozozos, A travessia do
mar vermelho, Um show particular, Mirra e Pré-babélica. Algumas dessas cenas viraram
vinhetas, algumas viraram filmes, outras ficaram só como cenas. Todos os dias, após os
ensaios, os atores sentavam-se na varanda para uma roda de conversa. Ricardo e Juliana se
revezaram para irem todos os dias à casa. No dia primeiro de abril, os atores abriram as
portas da casa e apresentaram para público externo as cenas produzidas. O público contou
com usuários dos Centros de Convivência, alunos da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) e atores e pessoas relacionadas ao teatro. Além das apresentações
aconteceu uma roda de conversa sobre os trabalhos do Grupo e uma homenagem a uma das
atrizes mais antigas do Sapos, Germana, que nesse momento encontra-se afastada das
atividades por motivo de saúde e por estar bem idosa, com quase 80 anos.
O evento de abertura de Casa Breve – Residência Artística/Habitação Criativa foi
organizado com a ajuda de duas produtoras, Renata Côrrea e Valentina Vandeveld. Renata,
que começou o trabalho com o Sapos e Afogados nessa época, assume hoje o papel de
produtora artística e assistente de direção do Grupo e Valentina, o de produtora.
Em maio de 2011, alguns integrantes do Grupo estiveram na Itália para a
participação em um festival de cinema brasileiro em Milão, a convite do Instituto
Brasil/Itália (IBRITI). Participaram da exibição e debate do filme Material Bruto e uma
das atrizes do grupo, Sílvia, apresentou-se com a peça Duo. Além da participação no
festival, puderam encontrar-se com o grupo Accademia Della Follia, grupo de teatro criado
por Cláudio Misculin, há trinta anos, no antigo hospital psiquiátrico em Trieste, na Itália,
71
com o qual tem realizado trocas desde novembro de 2010, quando o grupo italiano veio ao
Brasil.
Em julho de 2011, Sapos e Afogados e Accademia Della Follia realizaram um
Workshop de teatro na cidade de Belo Horizonte com a participação de 20 usuários da rede
de saúde mental da cidade e cinco atores profissionais convidados. O resultado do
Workhop foi apresentado no Galpão Cine Horto, importante centro cultural de Belo
Horizonte, sob a forma do espetáculo Mad Music.
Em 2012 o Grupo Sapos e Afogados completou 10 anos. Para comemorar, o Grupo
realizou, em maio deste ano, a Mostra 10 anos – Sapos e Afogados. No primeiro dia a
programação contou com a exibição do filme produzido pelo Grupo Material Bruto,
seguido de roda de conversa com o diretor de cinema Ricardo Alves Júnior e do espetáculo
teatral Duo, com as atrizes Renata Corrêa e Sílvia. No segundo dia de evento, a atriz
Viviane apresentou a performance Hoje são mistérios gozosos os meus surtos psicóticos,
seguido de roda de conversa com o Núcleo e as convidadas Denise Pedron, Patrícia
Fonseca e Rose Aparecida. Na oportunidade apresentei ao Grupo e convidados, um pouco
do que desenvolvi com eles na pesquisa de mestrado. O Grupo apresentou, ainda, o
espetáculo Caixa Preta, com o ator convidado David Pantuzza e encerrou as atividades
com a apresentação da peça Frog Sound, na qual os atores intervêm no espaço urbano de
Belo Horizonte. Frog Sound foi apresentado, também, na 3ª Mostra de Arte Insensata,
realizada em junho deste ano na cidade de Belo Horizonte.
Como pode ser observado, através da história do grupo Sapos e Afogados aqui
narrada, é que o mesmo encontra-se num momento de grande crescimento, fato
evidenciado na quantidade e qualidade dos trabalhos por eles produzidos. Recentemente
alguns atores integraram o grupo, são eles: Jaqueline Gonçalves e Lydia, que também são
usuárias da rede de saúde mental de Belo Horizonte, e Juni Resende, estudante de
psicologia e atriz. As novas atrizes participam do espetáculo Frog Sound.
É importante ressaltar a importância e a notoriedade do Grupo Sapos e Afogados na
cena cultural da cidade de Belo Horizonte e o quanto o Grupo consegue levar a questão da
saúde mental a diversos locais e públicos através da sua arte. Ressalta-se que dois atores do
grupo, Viviane e Vítor, tornaram-se monitores de teatro em Centros de Convivência. Vítor
encontra-se afastado dos trabalhos com o Sapos e Afogados devido ao fato de que está
cursando a faculdade de Física na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Não é
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comum encontrar grupos de saúde mental tão independentes e com um trabalho tão
substancial. Esses aspectos, aqui ressaltados, foram um ganho para o desenvolvimento da
presente pesquisa no que se refere às reflexões acerca da reabilitação psicossocial. Mais
informações sobre os trabalhos do Grupo Sapos e Afogados podem ser encontradas no
blog:http://saposeafogados.blogspot.com.
CAPÍTULO 4: OS DISCURSOS DOS INTEGRANTES DO NÚCLEO DE
CRIAÇÃO E PESQUISA SAPOS E AFOGADOS
Neste capítulo são apresentados as descrições analíticas dos enunciados dos
integrantes do Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados, tendo como referências as
entrevistas concedidas à pesquisa, bem como demais falas registradas em diários de campo
e em filmagens dos ensaios e trabalhos do Grupo. Buscou-se investigar como as categorias
Atividade, Liberdade e Afetividade aparecem nos discursos dos integrantes do Sapos e
Afogados. Cada enunciado foi criado a partir da leitura aprofundada das enunciações dos
integrantes do Grupo.
A análise de discurso teve como aporte teórico, principalmente, as contribuições de
Michel Foucault no que concerne as análises arqueológicas do saber e foi complementada
por contribuições de suas análises genealógicas, a fim de investigar as relações de poder do
Grupo em relação ao campo da Saúde Mental. A disposição dos discursos foi feita por uma
divisão dos enunciados criados pela pesquisadora em cada categoria. A criação dos
enunciados baseou-se nas enunciações dos participantes da pesquisa. Ao final de cada
análise das enunciações, apresentam-se conclusões a respeito das categorias investigadas
em articulação ao referencial teórico adotado.
4.1. Atividade
Onde há obra, não há loucura (Michel Foucault)
4.1.1. Enunciado 1: Participar do Sapos e Afogados não é fazer terapia, mas é
terapêutico
Nas enunciações abaixo os participantes do Grupo Sapos e Afogados descrevem a
potencialidade terapêutica do trabalho teatral, ainda que o objetivo do Grupo não seja o de
realizar terapia:
dar um tratamento artístico pra suas questões mais profundas, é... pra mim aí é muito assim, no SAPOS, especialmente hoje, porque talvez eu poderia responder essa pergunta... melhor seria é: como é fazer teatro hoje, né, hoje porque já foi, já
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foi diferente, talvez seja diferente para qualquer outros grupos. Mas aqui no SAPOS pra mim é isso, é... a oportunidade de eu trabalhar as minhas questões, tanto o que gosto, tanto o que é a arte, o corpo, o próprio teatro em si. (...) É um trabalho, só que eu misturo isso com a arte, eu quero é que isso tenha uma expressividade, né... enfim, mas são esses conteúdos, é... difíceis de trabalhar, que, que eu não trabalharia nem na análise, que não é o caso de tratar com palavras mesmo, né? (Viviane)
Acho que ajuda a clínica, você enquanto paciente de saúde mental, ajuda você na clínica, a
melhorar enquanto ser humano também. Nesse sentido eu acho que é bastante proveitoso
fazer teatro. Você pode resolver muitos problemas que na terapia, na psicanálise, você,
durante as sessões psicanalíticas você não consegue resolver, dentro do teatro você fica um
pouco protegido também porque é permitido fazer diversas coisas no teatro que na sua vida
real você não pode fazer ou não deveria fazer. (Elon)
É como se fosse tomar um haldol, no meu caso entendeu? É um reforço pra mim não ser mais esquizofrênico, entendeu? Não, não ser mais aquele cara que acredita que é feiticeiro e é feiticeiro ao mesmo tempo, entendeu? E agora eu sei que o feiticeiro não existe, feiticeiro é um personagem que eu criei, e daqui a um tempo vai se tornar um livro que eu to escrevendo, eu to escrevendo livros. (Edmundo)
Foi a arte que me salvou da loucura mesmo, eu sei... eu acho que loucura e arte juntas caminham muito bem.(risos) (Sílvia)
Eu acho que é uma válvula de escape pra mim, pras minhas dificuldades, pras minhas limitações... acho que é isso assim.(...) Sempre ajuda, pra saber lidar com as pessoas, pra saber... pra botar pra fora, as coisas, quando eu grito, dou aqueles berros, espero não ficar berrando tanto... to fazendo terapia também sabe? Psicanálise, então, vai mexendo com a gente também, como nosso coração né, e... eu ponho pra fora assim a... e a Juliana faz pôr pra fora e ela incentiva isso né? De uma maneira assim... de uma maneira assim, não sei como... Pôr pra fora o que a gente tiver sentindo, a tristeza ou então a alegria, uma válvula de escape assim, pra, pra descarregar o nervosismo da gente, meu, ansiedade né? E acalma também quando a gente...a gente acalma. (Ludmila)
Na fala do ator Rogério fica evidente a colocação da atividade teatral como tão
importante para a estabilidade psíquica como os tratamentos convencionais como a
psicoterapia e a medicação:
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Me senti muito bem, hoje eu to mais estável mais por causa diss, né? Além da medicação que eu preciso ter que tomar todo dia, tem que tomar todo dia. Tem que fazer psicoterapia, tem que ir no psicólogo, tem que ir no psiquiatra, mas isso ajuda muito a gente. (...) o teatro ajuda muito na estabilidade do portador de sofrimento mental. (Rogério)
Sílvia fala também do trabalho como norteado pelos princípios da Psicanálise:
Entendendo o grupo, o modo de trabalhar do grupo como grupo que tem uma leitura, tem um modo de funcionar muito, muito pautado na psicanálise. Entendendo o modo de trabalhar do grupo, buscando as memórias, os recortes de memória, buscando a verdade daquele sujeito para que ele transforme isso na linguagem da arte, em uma linguagem do teatro. (Sílvia)
Através dessas falas é possível percebermos a potencialidade da atividade artística
como elaboração do sofrimento mental, nesse caso específico, a atividade teatral.
Chegando a aparecer até mesmo como uma forma de tratamento.
Através das falas dos integrantes do Grupo é possível perceber como a dimensão do
trabalho no Sapos se aproxima da dimensão da atividade como parte do tripé terapêutico
proposto por Nise da Silveira. Trata-se de uma atividade na qual é possível trabalhar o
sofrimento psíquico, a partir do momento em que a construção dos personagens é feita por
cada ator através de suas memórias afetivas. Não se trata de realizar terapia, uma vez que
não é o objetivo do trabalho do Grupo, mas trata-se de um fazer que possibilita que cada
sujeito, de uma maneira sutil, possa trazer suas questões e elaborá-las. A condução do
trabalho teatral é feito por Juliana, que utiliza, além das técnicas teatrais, a linguagem da
psicanálise no entendimento do sujeito psicótico e que, para ela, é fundamental no sentido
de ter um modo de trabalhar que seja flexível com a condição desses sujeitos, que nem
sempre estão estabilizados:
tem uma máxima que até é uma frase do Elon e que atualmente me guia com o trabalho deles que é o seguinte: ‘As regras estão impostas e colocadas para serem seguidas, mas a gente pode optar por subverter as regras’. Então o tempo inteiro a gente tem um combinado, que ele pode mudar. E a gente vai falar: ‘mudou’, sabe? E essa flexibilidade pra mim, ela é fundamental nesse trabalho. Ah, a psicanálise é uma coisa que eu gosto, que eu faço há muito tempo, que me orienta nesse trabalho também, pra gente pensar nesse flexibilidade, não criar esse grande Outro assim... É algo que é, mas também pode ser de outro jeito, e isso é muito bom pro teatro, é
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muito bom pra eles, é fundamental, acho, pro trabalho. De não criar nada assim tão... sabe? (...) Oh, mudou, pode ser assim, mas e aí vamos mudar, vamos inventar outra coisa aqui? Ou então: isso não ta bom não, vamos... Ou então, isso tá bom demais, vamos mais um pouco. De ter todo dia essa escuta, todo dia assim, não tem nada que tá pronto, não tem mesmo, nem o espetáculo. Aliás, principalmente, se não perde a graça. (Juliana)
A composição das peças produzidas pelo Sapos, e mesmo os personagens, não são
necessariamente vivências pessoais dos atores. No enunciado a seguir Juliana fala um
pouco da construção dos personagens e como esse fazer se relaciona com as vivências da
psicose:
A gente busca assim, geralmente eu trago algum objeto, ou algum elemento que pode ser, por exemplo, uma música, ou então pode ser um caso que eu conto. Às vezes até um caso de outro usuário, por exemplo, eu conheci um usuário que criava almas em caixinhas de fósforo. E é lindo isso, e aí eu criava, propunha uma cena, a partir disso, de uma caixinha de fósforo cheia de vozes, cheia de almas. Isso não é da Sílvia, por exemplo. Essa história não é da Sílvia, eu trouxe pra ela como objeto e ela vai criar aquilo ali. Mas na hora que ela tá fazendo aquilo ali ela fala comigo ‘Juliana, eu tenho um sonho que aparece com umas meias no meu vestido e depois eu risco uma tela e aí...’ Ela traz isso, já existe, já foi tanto feito que é normal também que eles cheguem trazendo coisas ‘Ah eu quero cantar essa música’, ‘Ah, eu tenho esse caso pra contar’. Então, às vezes os ensaios da gente são vários casos assim, são grandes rodas de conversa que eles vão falando, né? Então, às vezes um conta um caso e ‘gente isso dá uma cena maravilhosa’. Não repetir o que ele contou, mas como que eu posso fazer aquilo virar uma cena? Então é um pouco assim e a gente sabe também que às vezes eles trazem algumas coisas que eles não querem que vá pra cena e que isso é respeitado. Então, por exemplo, tem ‘ah aconteceu isso e isso comigo’ ou então ‘Ah eu escuto a voz me dizendo isso e isso’ mas isso é meu, eu socializo aqui no grupo, eu conto aqui pro grupo, mas eu não quero que isso vire cena. (Juliana, grifo nosso)
Juliana pontua, no enunciado a seguir, como ela percebe essa possibilidade de
trabalhar o sofrimento psíquico e também quando o papel do teatro pode ser o de aliviar
esse sofrimento:
Então eu acho que pra eles funciona também assim, eles podem mergulhar ali naquele tempo do espetáculo de uma maneira, de poder brincar assim, sabe? E de ser um respiro também no sofrimento mental deles. De ser um ‘uh’, ’ah’(faz sinal de alívio), agora eu posso, sabe? De colocar esse sofrimento também de um outro jeito, em um outro lugar. De coisas que talvez não pudessem fora de cena, em cena pode. Naquela cena pode. (Juliana)
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Numa perspectiva de análise genealógica, a atividade teatral no Sapos e Afogados é
oposta à definição dada por Foucault (1987c) a exercício, em suas análises sobre o poder
disciplinar, que o autor define como: a técnica pela qual se impõem aos corpos tarefas ao
mesmo tempo repetitivas e diferentes, mas sempre graduadas (p. 186). A divisão dos
corpos no trabalho, estudada por Foucault nas fábricas, evidencia uma forma de atividade
que, além de explorar toda a potência útil do corpo, o aliena da produção como um todo,
produzindo assim corpos dóceis.
No Sapos e Afogados, a prática teatral apresenta-se como possibilidade de
produção da verdade dos sujeitos, ao criar condições para a elaboração do sofrimento
psíquico através da criação artística. Essa atividade pode ser vista como uma forma de
resistência ao poder disciplinar no campo do trabalho que, numa lógica própria ao
capitalismo, privilegia a alienação do sujeito da produção ao controlar sua atividade
(Foucault, 1987c). O teatro no Sapos e Afogados é uma forma de trabalho com forte
significação para os cidadãos em sofrimento psíquico que dele participam, como pode ser
evidenciado em seus enunciados. É uma forma de resistência, ainda, aos micropoderes
impostos pela medicina psiquiátrica no que concerne ao uso de medicamentos que
objetivam tamponar os sintomas e delírios psicóticos numa tentativa de calar o sofrimento
desses sujeitos. No Sapos e Afogados o delírio é valorizado na construção dos
personagens, uma vez que são parte da vida desse sujeitos.
Esse aspecto de resistência através de produção criativa aparece principalmente nos
discursos dos atores Elon e Viviane:
você poder através da arte trabalhar as suas questões , os seus conflitos, na construção do personagem. Coisa que você na vida real talvez não possa fazer. Por exemplo, numa situação real se você ficar agitado, extremamente agitado, a pessoa vai te pedir pra ter calma, agora se o seu personagem, se na construção do seu personagem, ele tem essa característica de personalidade, psíquica e emocional, você pode ficar agitado o tempo que for porque faz parte da característica psicológica do seu personagem. (Elon)
É um trabalho, é um trabalho, só que eu misturo isso com a arte, eu quero é que isso tenha uma expressividade, né... enfim, mas são esses conteúdos, é... difíceis de trabalhar, que, que eu não trabalharia nem na análise. (Viviane)
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4.1.2. Enunciado 2: O Grupo Sapos e Afogados levanta a bandeira da saúde mental e da
luta antimanicomial
Em algumas entrevistas fica evidente o caráter político do Grupo nas questões
relativas ao movimento de luta manicomial:
A gente consegue assim, levantar bandeira né? Ter uma atitude assim, uma atitude... uma atitude de... como que é que chama?... Como que eu vou falar a palavra? Levantar a bandeira da saúde mental né, é... falar assim pros outros colegas nossos que estão aí no Centro de Convivência, lutar contra... levantar a bandeira da saúde mental pra sociedade. Saber que a gente é útil pros nossos colegas. Saber que a gente não tá falando por nós, mas que nós estamos falando pelos nossos colegas que estão também na mesma situação. (Rogério)
Eu to muito feliz assim de estar num movimento social, de estar hoje fazendo coisas que condizem com os meus sonhos, sabe? Sem ta protelando pro futuro, que ia deixar pra fazer, isso inclui também o teatro. (...) Eu estar na militância sem dialogar com a arte eu acho que eu ficaria muito pobre, né, com um vazio. É, eu acho que é uma potência, uma força muito grande pra militar diante dessa ideologia e desse princípio mesmo, quer dizer... portadores de sofrimento mental são atores sim, são pessoas capazes, são pessoas talentosas, são pessoas... E eu acho que levantar essa bandeira enquanto grupo, eu me disponho, né. (Sílvia)
Então é uma responsabilidade muito grande, por isso que eu não gosto de aceitar qualquer papel, então, um papel que tem um senso crítico, quero que as pessoas sejam mais humanas entendeu, quero continuar na militância na luta antimanicomial, (inaudível) na luta antimanicomial. (...)(Edmundo)
A maioria dos integrantes do Sapos e Afogados está ligada diretamente ao
Movimento de Luta Antimanicomial da cidade de Belo Horizonte. A atriz Sílvia ocupou o
cargo de 1ª Tesoureira da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental de
Minas Gerais (ASUSSAM-MG). Esse envolvimento dos atores no Movimento aparece
também nos trabalhos realizados pelo Grupo, uma vez que nos enunciados dos atores o
lugar do Grupo é também o de mostrar à sociedade que cidadãos em sofrimento psíquico
podem estar em plena atividade de trabalho. E o próprio texto das peças evoca as questões
da saúde mental, como, por exemplo, no espetáculo Caixa Preta que brinca com a questão
dos medicamentos de tarja preta. Pensando na questão da análise dos poderes, a militância
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dos atores do Grupo na Saúde Mental é o ponto mais evidente do posicionamento de
resistência aos micropoderes que ainda agem sobre a loucura. Os atores buscam, com esse
trabalho, evidenciar para a sociedade que, apesar de apresentarem o que é classificado pela
medicina psiquiátrica como transtornos mentais, eles podem ser atores e ocuparem os
mesmos espaços que as pessoas consideradas normais.
4.2. Liberdade
Todo mundo fala, mas ninguém sabe, ninguém ensina, nem a mãe, nem o tio, se entrar
numa quitanda e perguntar ninguém lhe diz, ninguém lhe dá. (Fernando Diniz)
Sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão. (Guimarães Rosa)
4.2.1. Enunciado 1: A entrada na cultura se deu de fato com a saída do Centro de
Convivência.
Os Centros de Convivência foram criados como espaços para potencializar as
possibilidades de inserção social para cidadãos em sofrimento psíquico através da oferta de
diversas atividades artísticas, bem como oficinas de geração de renda. Fazem parte das
estratégicas no campo das políticas públicas em saúde mental que visam efetivar a
reabilitação psicossocial. Entretanto, o trabalho do Grupo Sapos e Afogados nos leva a
questionar esse espaço como efetivo promotor de convivência social e acesso aos bens
culturais.
O Grupo em questão, como é colocado nas entrevistas tanto pela diretora, quanto
pelos integrantes mais antigos, rompeu com o Centro de Convivência onde iniciaram o
trabalho por não conseguirem, nele, dar esse salto de acesso à cultura, uma vez que esse
trabalho foi barrado por algumas pessoas da rede de saúde mental de Belo Horizonte que
afirmaram que essas pessoas não poderiam ser atores. Em entrevista cedida à pesquisa, a
diretora do grupo fala desse momento de rompimento com a rede:
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Nesse meio tempo eu saio da rede pública de saúde mental, por entender que esse trabalho, que hoje tá comigo, já podia dar um outro salto e aí talvez não coubesse ali naquele formato. Pra mim foi uma época difícil, né? Que foi abrir mão do trabalho que era feito lá, por acreditar também na potência que esse trabalho tinha fora, de fazer com que esse trabalho circulasse num outro lugar. E o que eu tentava mostrar era isso, que eles tavam sim com o domínio, com o jeito de fazer teatro. Então eu podia buscar... dar esse salto, de verdade, assim, essa inclusão, de ir mesmo um passo além. E foi difícil pra mim explicar e me fazer entender, né? Eles diziam ‘mas eles não são atores’ ‘mas quem são vocês pra dizer que eles não são atores. Eles tão com um produto aqui, com um trabalho aqui que ta interessando, que é interessante, pra eles é bom e pra quem ta vendo também’ e que eu queria investigar aquilo ali pra além do serviço assim, e se na verdade o serviço propõe a inclusão, eu tava tendo essa oportunidade de fazer isso; De fazer essa inclusão deles, de oferecer pra eles inclusive esse outro nome, não mais de usuário de saúde mental ou louco ou paciente, mas de ator, né? (Juliana)
Então pra mim isso foi muito forte e, como atriz, foi um caminho sem volta. Eu não conseguia mais pensar na minha carreira de atriz, eu até fico arrepiada assim... Não conseguia mais pensar na minha carreira de atriz sem esse encontro. Pra mim foi impossível, foi um caminho sem volta mesmo. Então eu radicalizei, eu precisei radicalizar. Eu fiquei sem emprego, mas não sem trabalho. (Juliana)
Os atores poderiam fazer atividades teatrais dentro do espaço do Centro de
Convivência. Em certo momento, esse espaço ficou restrito e houve a necessidade de
ampliá-lo. Entretanto, a equipe de saúde mental colocou resistências à ampliação e
consequentemente à mudança de perspectiva do Grupo. A afirmação de que eles não
poderiam ser atores é uma tentativa de cercear o trabalho do grupo, limitá-lo a um espaço.
Retomando as contribuições de Foucault, umas das facetas do poder disciplinar é o
controle da atividade (Foucault, 1987c). No caso do Sapos, essa tentativa de controle não
prevaleceu, pois o Grupo optou pelo rompimento com o Centro de Convivência.
Nas falas dos atores esta entrada para o campo da cultura, a inserção social de fato,
aparece a partir da saída do Centro de Convivência e com a acolhida no campo artístico
através do Grupo Galpão, renomado grupo de teatro, que cede espaço para os ensaios e
produções do Grupo.
No Sapos e Afogados cada um tem sua verdade e cada um tem sua história, entendeu? Cada um tem sua emoção de ta fora do sistema, do centro de convivência, de ta fazendo um trabalho, de voltar pra casa, não é isso? (...)Então aqui eu respiro teatro e lá eu respirava loucura, apesar de ta fazendo teatro eu respirava loucura. (Edmundo, grifo nosso)
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Foi daí que começou, fora do Centro de Convivência o Grupo Sapos e Afogados, foi que daí passou pra cultura porque agora a gente faz parte da cultura, a gente não faz parte do Centro de Convivência. Nós somos usuários da Saúde Mental, porque nós somos portadores de sofrimento mental, mas nós somos um grupo independente, um grupo que ta na cultura, que, que dialoga com outros grupos que falam a mesma linguagem. Então a gente ta numa situação, assim, um pouco melhor que antes, né. (Rogério, grifo nosso)
Perguntado como foi a saída de Centro de Convivência, o ator Elon responde sobre
o impacto na rede, afirmando que a mesma é que ficou de certa forma prejudicada:
A rede hoje está órfã de um monitor de teatro de palco. Pode ter um outro modelo de teatro dentro da rede, que esteja satisfazendo alguns usuários, mas de teatro de palco, a rede está órfã.(Elon).
E em relação ao impacto no Grupo afirma:
Autonomia. É, a gente tem a rede como parceiro, a rede de serviços substitutivos de Belo horizonte como parceira e temos autonomia porque todos os recursos, os recursos financeiros, espaço físico ou equipamento físico, recurso humano, ele não tem vínculo nenhum com a prefeitura de Belo Horizonte. (...) poder se expandir mais pra outros espaços artísticos dentro de Belo Horizonte, no estado de Minas, em outros circuitos que lidam com a questão cultural, que produz cultura, que consome cultura (Elon, grifo nosso).
Essa enunciação não aparece de forma direta no discurso de Sílvia, entretanto é
interessante vermos que sua entrada no grupo se deu justamente por este acesso à cultura.
Em entrevista, Sílvia fala do impacto que teve quando conheceu o grupo através da
exibição de seus trabalhos em espaços culturais.
Conheci duma apresentação de um curta, o primeiro curta que o grupo fez chamado Sapos e Afogados, com o Elon Rabin e a Germana. Foi num espaço cultural belíssimo chamado Cinema Belas Artes, na Liberdade. E pra mim foi um evento muito bonito, sabe, muito... E aí naquela sala de cinema eu tive contato com o curta e fiquei muito, muito tocada, muito, muito impressionada, né? Acho que considerando que o que tinha visto ali era uma obra prima, uma obra prima. E numa segunda exibição dos trabalhos do SAPOS que aí já era o segundo, o Material Bruto, então houve uma apresentação dos vídeos aqui no Galpão Cine Horto na sala de cinema. (Sílvia)
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Nas falas de Sílvia o grupo aparece sempre como um lugar de produção cultural.
Este aspecto mostra que o grupo encontra-se num momento mais próximo à cultura do que
a saúde mental. Os prêmios recebidos pela produção do curta Material Bruto são do meio
cultural, os festivais nos quais ganharam diversos prêmios são renomados espaços de
valorização de produção audiovisual, nos quais concorreram com trabalhos realizados por
sujeitos considerados ‘normais’.
4.2.1.1. Algumas reflexões sobre a noção de Território (Espaço) no trabalho do Núcleo
de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados e a vivência da cidadania
O enunciado A entrada na cultura se deu de fato com a saída do Centro de
Convivência levanta um questionamento sobre o papel deste espaço na história do Grupo
Sapos e Afogados: convivência com o que? Convivência com quem? Percebe-se que neste
caso, o Centro de Convivência, embora preconizasse a integração dos cidadãos em
sofrimento psíquico à sociedade, se afirmou como espaço de exclusão, uma vez que nesses
discursos ele aparece como instituição de saúde mental, onde a convivência parece se dar
entre loucos e não em um espaço comunitário diverso. Numa das falas de Rogério, ele
refere-se ao Centro de Convivência como um lugar de pessoas adoecidas. Sua descrição, se
tomada fora do contexto das demais falas da entrevista, parece referir-se a um CAPS e não
a um Centro de Convivência:
Uma oportunidade que você tiver, você procura um centro de convivência e você vai ver como são as pessoas lá. Elas são debilitadas, elas tem que tomar remédio fortíssimo. (Rogério)
As questões anteriormente expostas nos remetem a pensar na dimensão da
territorialização. No caso do Sapos e Afogados propomos reflexões a respeito da maneira
como vivenciam a espacialização, principalmente a partir do desligamento do Centro de
Convivência. Esse é o marco de uma nova forma de ocupar a cidade, os atores passam a se
reunir em praças públicas até efetuarem a parceria com o Galpão Cine Horto. Além da
espacialização, o movimento do Grupo nos leva a pensar a remodelagem da paisagem da
83
cidade que produzem ao colocar-se em atividade. Os loucos estão na rua e estão fazendo
teatro, estão produzindo.
A paisagem, como colocada por Santos (1988), está em relação com a produção,
uma vez que cada forma produtiva necessita de um tipo de instrumento de trabalho
(Santos, 1988, p. 23). No caso dos Sapos, os instrumentos utilizados para transformar a
paisagem são o corpo e o teatro. A transformação da paisagem é do ponto de vista
funcional, ou seja, há uma forma de subverter a funcionalidade cotidiana dos espaços. Essa
transformação é claramente evidenciada nas performances produzidas pelo Grupo, nas
quais a rua torna-se um grande palco, como é caso do trabalho recente Frog Sound
(Direção de Juliana Barreto, 2012).
No caso do Centro de Convivência, observou-se que a transformação do espaço
deu-se de maneira inusitada, uma vez que o objetivo desse dispositivo é facilitar a inserção
social dos cidadãos em sofrimento psíquico. Entretanto, isso só foi possível quando o
Grupo rompe com o serviço e se dispõe a ocupar outros espaços. Salientando-se que
qualquer modificação da paisagem e do espaço só é possível através de uma rede de
mudanças que incluem os aspectos culturais, geográficos e políticos (Santos, 1988). Assim,
afirmarmos que todo o trabalho que o Grupo desenvolve e a possibilidade de serem
independentes é fruto também das mudanças culturais e políticas que hoje viabilizam um
novo lugar para a loucura que não mais o enclausuramento. Como afirma Machado (2009)
a respeito das análises genealógicas de Michel Foucault: A genealogia é uma análise das
condições políticas de possibilidades dos discursos (p. 167). E o percurso da cidade de
Belo Horizonte no campo da saúde mental tem destacado papel nos avanços políticos que
possibilitam o trabalho do Sapos e Afogados.
Faz-se importante destacar que não se trata aqui de colocar que os Centros de
Convivência não se afirmam como espaços de socialização e reinserção para cidadãos em
sofrimento psíquico. Pelo contrário, trata-se de um dispositivo de grande força para atingir
esse propósito. Entretanto, a especificidade do caso em estudo nos alerta para que
estejamos sempre atentos às práticas em saúde mental, o manicômio é muitas vezes
84
mental, como afirma Pelbart (1992). Veiga-Neto (2001) nos alerta também para os riscos
de se promover uma reinserção apenas no nível técnico sem de fato atingir o nível prático.3
Nesse sentido, cabe falar nessas enunciações do lugar de resistência aos saberes que
ainda tentam se impor no campo da saúde mental. No caso do Sapos é possível
percebermos o poder disciplinar, descrito por Foucault, a partir do momento em que esses
sujeitos não são considerados atores. Qual o risco de essas pessoas saírem dos Centros de
Convivência e ocupar outros lugares?
A posição da diretora em continuar o trabalho fora da instituição e a aceitação dos
participantes diante de um novo desafio marcam o lugar de resistência do Grupo. E é essa
aposta na potencialidade desse trabalho que, naquele momento, extrapolou a proposta da
saúde mental, possibilitou o crescimento do Grupo que hoje tem visibilidade e notoriedade,
sobretudo no campo da cultura.
Outro momento marcante de intervenção que o Grupo participa e que modifica a
paisagem da cidade de Belo Horizonte é a Marcha da Luta Antimanicomial, realizada
todos os anos no dia 18 de maio. As ruas ganham um imenso carnaval fora de época,
povoada por blocos em que a loucura está diluída, loucos e sãos, todos no mesmo ritmo. A
participação do Grupo ocorre não só na Marcha, mas nas reuniões e entidades que
discutem as políticas de saúde mental, salientando-se que a maioria dos atores se envolve
diretamente com o movimento antimanicomial.
O Grupo Sapos e Afogados, como já falado anteriormente, realiza suas atividades
de ensaio e produção no Galpão Cine Horto, importante espaço de cultura da cidade de
Belo Horizonte, e nesse espaço circulam como qualquer outro ator que lá trabalha ou faz
aulas. Este aspecto pôde ser bastante observado por mim durante o trabalho de campo, no
qual pude acompanhar de perto como os atores se relacionam como este espaço e com as
pessoas que nele trabalham e circulam.
Juliana fala da entrada no Galpão Cine Horto e da importância das relações afetivas
nesse processo. Fala também de como esse espaço do Grupo Galpão tornou-se um espaço
deles também, onde eles se sentem à vontade de ocupar.
3 Apesar das dificuldades encontradas em conciliar os objetivos de trabalho do Grupo com os objetivos dentro do Centro de Convivência, é necessário ressaltar que foi por meio do Centro de Convivência que o trabalho do Grupo Sapos e Afogados pôde começar.
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E aí a gente começa a ensaiar dentro do Cine Horto. E eles começam a criar uma relação com as pessoas ali dentro, com o espaço, com o público que frequenta o Cine Horto de um jeito muito bacana assim. O Cine Horto foi muito cuidadoso, muito carinhoso até, afetuoso com a gente, com eles a ponto de eles mesmos marcarem sala, de eles mesmos, assim... de realmente fazerem aquele espaço deles assim. Deles também serem super cuidadosos com o Cine Horto. O Elon é impecável com o espaço, com o figurino. O Cine Horto cedeu o espaço, o figurino e o cenário, tudo que a gente precisar a gente pode pegar do acervo do Galpão, do Cine Horto. (Juliana)
Esse aspecto da identidade de cidadão aparece também em outras falas que
demarcam a possibilidade de ocupar a cidade, de caminhar por ela. Alguns dos atores
afirmam que antes da entrada no Grupo Sapos e Afogados não tinham circulação pela
cidade. A seguir uma fala de Rogério, ao ser perguntado se antes de estar no Grupo tinha
circulação pela cidade:
Não tinha, eu não tinha. A minha vida era só do Centro de Convivência pra casa. (Rogério)
Na fala de Ludmila esse aspecto aparece em contraponto ao passado, num momento
anterior à experiência da loucura, quando tinha circulação nos meios culturais:
Não, sinceramente na cidade não. Eu lembro, você falou de cidade, eu lembrei também de São Paulo, né, em São Paulo eu ia bastante no teatro, sabe? Eu tive oportunidade, graças a deus eu tive, de ver peças muito interessantes. (Ludmila)
Esse aspecto relativo à ocupação da cidade nos remete a uma importante
característica das reformas no campo da saúde mental: a noção de território, não como
espaço meramente geográfico, mas como espaço subjetivo de cuidados. Territorialização
dos atendimentos refere-se a entender o campo da saúde mental como não restrito a
espacialidade concreta das instituições de saúde mental. Os espaços comunitários, a cidade
em si deve ser entendida como parte desse território de cuidados, principalmente se
pensarmos que o principal objetivo das políticas públicas em saúde mental é a restituição
da cidadania através da reinserção social.
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O espaço é também muito importante no trabalho com o cidadão em sofrimento
psíquico, e Silveira (1981; 1992) coloca a importância da afetividade nesse aspecto. O
espaço deve ser também afetivo, ou seja, propiciar ao sujeito acolhimento e liberdade. Em
seus pioneiros trabalhos no campo da arte e da saúde mental, Silveira enviou alguns
trabalhos para um congresso em Zurique, com a presença de Carl Gustav Jung. O que,
nesse congresso, chamou a atenção de Jung foi o fato de que nas pinturas realizadas em
Engenho de Dentro os planos de fundos das telas eram feitos com cores que passavam a
impressão de tranqüilidade em contraponto a outros trabalhos feitos por psicóticos que
apresentavam confusão e caos. Espantado com essa diferença, perguntou a Nise da Silveira
como eram realizados os trabalhos ao que ela respondeu: em espaços abertos, diferente dos
demais que eram feitos no interior do hospital psiquiátrico. A importância do espaço
afetivo aparece na fala de Edmundo, se referindo ao espaço do Galpão Cine Horto:
Eu acho que, que o meu corpo talvez, talvez, não seja assim, não tem diferença eu tá aqui ou ta num Posto de saúde fazendo teatro, mas pro meu espírito eu acho que, que eu tenho sonhado bastante com esse espaço aqui entendeu, e eu espero me tornar célebre, mas toda vez que eu fecho o olho e durmo eu sonho com, com esse espaço aqui. (Edmundo)
Em relação a ampliação dos territórios, o Grupo Sapos e Afogados apresenta
grande circulação no meio cultural, como já assinalado. Viviane, atriz do Grupo, acentua
que cada vez mais o Grupo tem atingido diversos espaços e pessoas.
As pessoas nos convidam pra falar pra essas pessoas e pra outras também porque a gente não tem né, cada vez mais a coisa, o discurso se abre, os públicos são mais heterogêneos e assim que tem que ser mesmo. (Viviane)
4.2. Enunciado 2: Participar do Sapos é uma possibilidade de estar integrado à
sociedade e vivenciar vários papéis
A experiência de participação no Grupo Sapos e Afogados é também a experiência
de circulação no meio social. Esse aspecto aparece nas falas de vários dos entrevistados,
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além da possibilidade de vivenciar outros papéis, como o de ator e sair do rótulo de louco
como aquele que é incapaz.
Eu me sinto, me sinto integrada assim. A gente se sente integrado à sociedade, mais integrado, menos excluído. (Ludmila)
Em falas informais, registradas em diário de campo, Ludmila fala com entusiasmo
que a arte é muito boa em sua vida, que lhe possibilita sair de casa e ter uma ocupação.
Ah, muda que eu me torno uma atriz, né. E, é isso, eu já podia ser atriz antes porque eu tinha formação quando eu... te disse, mas eu não tava em atividade e logo que eu cheguei no Sapos eu não tava assim como você ta me vendo agora. Eu tava ainda bem retraída (...) Você não fica nesse lugar de grupo de portadores de sofrimento mental todo o tempo sabe? A gente fica pensando no teatro. (Viviane)
Muitas vezes eu fui me apresentar, aí a pessoa olhava pra mim e dizia assim ‘esse rapaz não é portador de sofrimento mental’, eles não acreditavam nisso. Então, é uma conquista pra gente, né? Então é uma conquista, essa, essa questão no início ser um pouco difícil, a gente conseguir despertar nas pessoas que a gente é portador de sofrimento mental, mas que a gente tem uma vida normal. A gente tem uma vida que, se a gente tiver medicado, a gente é uma pessoa normal como outra qualquer, tem um potencial enorme e no teatro a gente consegue elevar isso. (...) Muda no sentido assim, de eu, de eu conseguir me adaptar melhor ao meio social né. (Rogério)
Quando você fala que ta fazendo parte de um grupo de teatro, você é visto com outros olhos entendeu? Você não é vagabundo, você não ta a toa, não ta só comendo dinheiro do governo, só aposentado com dinheiro do governo (...) foi bom ter entrado pro Sapos e Afogados, ter saído do espaço, porque muita gente tem como referência: o Edmundo, quem é o Edmundo? Ah, o do Sapos e Afogados. Quem é o Edmundo? Ah o artista que pintou um quadro. Quem é o Edmundo? Aquele que desenhou. Quem é o Edmundo? Que foi marido da Ludmila, que foi marido da Isa. Que Edmundo? Que é amigo da Sílvia, que ta acompanhando a Sílvia no trajeto dela agora, dando uma força pra ela. (Edmundo)
Essas falas demonstram a potencialidade da arte na reconstrução de um laço com a
sociedade, antes marcado pela exclusão e pelo preconceito e nesse lugar de ator como
indivíduo construtor de algo, como participante ativo na sociedade através da expressão
88
artística. A participação no Grupo Sapos e Afogados permite aos atores a vivência de
novas identidades.
4.2.2.1. A identidade no Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados
Pensar as possibilidades de inclusão social e vivência de vários papéis nos remete a
pensar na formação identitária e na possibilidade de exercício da cidadania. As vivências
de várias identidades perpassam fortemente os discursos dos integrantes do Sapos e
Afogados. Em relação às questões identitárias vivenciadas pelos membros do Grupo,
chama a atenção o fato de que a participação no Sapos e Afogados potencializa a vivência
de um novo papel: o de ator, ou seja, daquele que produz cultura. Esse aspecto aparece de
forma explícita nos discursos dos integrantes do referido Grupo, como já assinalado.
Implicitamente, a essa identidade de ator, podemos afirmar que aparece a identidade de
cidadão como aquele que ocupa a cidade, usufrui de seus benefícios e busca exercer seus
direitos e deveres. Sobre a vivência de outras identidades, citamos como contribuição
teórica os pressupostos de Ciampa.
Ciampa (1994) apresenta duas idéias importantes para a compreensão da categoria
identidade. A primeira é a quebra da crença na identidade como algo rígido. Para o autor, a
identidade está em constante transformação, é metamorfose, ela está sempre articulada a
uma atividade social e deve ser pensada como verbo e não como substantivo:
Nossa linguagem quotidiana tem dificuldade de falar do ser como atividade - como acontecer, como suceder. Acabamos por usar substantivos que criam a ilusão de uma substância de que o indivíduo seria dotado, substância que se expressaria através dele (Ciampa, 1994, p. 133).
No caso da saúde mental, podemos refletir sobre como a identidade louco tornou-se
uma categoria rígida, como se o sujeito fosse a doença. Nesse sentido, a identidade louco é
geralmente sobreposta às demais identidades do indivíduo. Um cidadão na igreja é um
religioso, um louco na igreja é o louco, um cidadão no teatro é um espectador, um louco no
teatro é o louco, e por aí vai. Persiste na sociedade um estigma da loucura como a
totalidade do indivíduo. Retomamos uma fala do ator Edmundo para falar de como ele
89
coloca a possibilidade de assumir várias identidades, para além do lugar de cidadão em
sofrimento :
porque muita gente tem como referência: o Edmundo, quem é o Edmundo? Ah, o do Sapos e Afogados. Quem é o Edmundo? Ah, o artista que pintou um quadro. Quem é o Edmundo? Aquele que desenhou. Quem é o Edmundo? Que foi marido da Ludmila, que foi marido da Isa. Que Edmundo? Que é amigo da Sílvia, que ta acompanhando a Sílvia no trajeto dela agora, dando uma força pra ela. E quem é o Edmundo? E quando eu me identificar tanto com o Sapos e Afogados a ponto de, de confundir eu e o Sapos, entendeu? (Edmundo)
Na fala de Edmundo pode ser evidenciado como o fazer é que produz a identidade.
O indivíduo é aquilo que ele faz. Nesse sentido, Edmundo se afirma através das suas
atitudes: o artista que pinta o quadro, o amigo que está acompanhando a amiga. Evidencia,
ainda, a importância atribuída à participação no Grupo, a ponto de confundir-se com ele.
Outra fala emblemática no entendimento de como a identidade deve ser percebida
em correlação com a atividade é a de Viviane, citada anteriormente:
(...) eu me torno uma atriz, né. E, é isso, eu já podia ser atriz antes porque eu tinha formação quando eu... te disse, mas eu não tava em atividade e logo que eu cheguei no Sapos. (Viviane)
Sobre a vivência de vários papéis retomamos as contribuições teóricas de Pichon-
Riviére (1991) e Nery (2003) no entendimento da dimensão afetiva subjacente a vivências
identitárias. Nesta enunciação vemos claramente como a participação no Grupo e as
vivências afetivas de Edmundo, como a amizade e o casamento, possibilitam a ampliação
de suas identidades através da vivência de vários papéis. Aqui está também implícita a
idéia de afeto catalisador colocada por Silveira (1992).
Para Ciampa (1992), é fundamental entendermos a mobilidade da identidade: O
indivíduo não mais é algo: ele é o que faz (p.135). Nesse sentido, a participação no Grupo
Sapos e Afogados amplia as possibilidades de vivenciar novas identidades, que não mais
aquela que apenas se identifica com o sofrimento mental, e sim o que há para além dele e
mesmo o que é possível produzir a partir dele.
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Complementando as colocações de Ciampa sobre a mobilidade da identidade,
retomamos as contribuições de Pichon Rivière (1991). O autor ressalta a importância de
pensar os vínculos saudáveis como aqueles em que o sujeito consegue produzir
transformações em seu meio e, consequentemente, em si mesmo, num movimento de
espiral dialética, onde o fora e o dentro se complementam mutuamente.
As enunciações anteriormente citadas nos remetem a pensar na dimensão da
vivência da cidadania na categoria liberdade. Como já dito, não basta que os chamados
loucos estejam no meio social, é preciso pensar como é possível essa circulação. No Sapos
e Afogados fica evidente a importância da vivência do papel de ator. Faz-se importante,
ainda, refletir sobre os espaços nos quais os atores realizam os espetáculos. São espaços
próprios à cultura ou mesmo às ruas de Belo Horizonte. A questão do espaço possibilita,
nesse caso, a produção de uma atividade social significativa. Não se trata de peças
realizadas em espaços de loucura, mas em espaços diversos.
4.2.2.2. A identidade do Grupo Sapos e Afogados
Como já assinalado, Martín-Baró (1989) ressalta a importância de compreendermos
os Grupos através de três categorias básicas: identidade grupal, poder e atividade grupal.
No que concerne à categoria identidade grupal, o autor coloca que devem ser investigados:
como se dá sua formação organizativa, como se relaciona com outros grupos e a
consciência de pertencimento dos integrantes ao Grupo. A seguir comentaremos como
esses três aspectos aparecem no Grupo Sapos e Afogados.
Durante o tempo que acompanhei o Grupo Sapos e Afogados, o mesmo se
encontrava em um momento de grande crescimento, com muitas produções. Quando
comecei o trabalho de campo, em agosto de 2010, os atores e a diretora estavam
preparando a peça teatral Caixa Preta, que teve estréia em outubro desse mesmo ano na 2ª
Mostra de Arte Insensata de Belo Horizonte/MG. Nesse meio tempo, fizeram contato com
o Grupo de teatro a Acaddemia Della Follia, da Itália, com o qual realizaram trocas através
de um workshop na cidade de Belo Horizonte para usuários da rede de saúde mental e
atores profissionais. Na ocasião, alguns atores e a diretora do Grupo foram à Itália a
91
convite do Instituto Brasile Italia (IBRIT) para participarem de um Festival de Cinema
com o curta-metragem Material Bruto.
Nesse momento de muita circulação, onde diversas pessoas tem entrado em contato
com o trabalho do Sapos e Afogados, muitos pedidos para participar do Grupo começaram
a ser feitos, o que levou a uma discussão interna a respeito da identidade do mesmo. Isso
gerou uma profícua discussão acerca de quem pode participar do Grupo: qualquer pessoa
ou somente pessoas em sofrimento psíquico? Em reunião realizada no dia 11 de novembro
de 2010, esse assunto foi pauta de discussão. Esta reunião foi gravada e registrada em
diário de campo.
Alguns participantes são contra e outros a favor de convidar ou aceitar pessoas que
não sejam, como eles afirmaram, loucas. A discussão teve início a partir da colocação de
Elon:
A defesa que eu faço é, uma vez que nós tomamos a bandeira da política de saúde mental, que é a ideologia de respeito às diferenças, e Belo Horizonte é um modelo de política de saúde mental. Sem desconsiderarmos o pioneirismo da Juliana Barreto em trabalhar com pessoas portadoras de sofrimento mental. (...) eu entendo que, é... pro elenco, qualquer outro, todo, todos os aspectos, inclusive de iluminação, você tem que trabalhar com todos, no elenco prioritariamente eu concordo de numa peça ser só portador de sofrimento mental. Agora, eu serei radicalmente contra se isso for uma decisão definitiva, ou seja, o elenco não terá uma pessoa normal, porque isso pra mim é preconceito invertido e preconceito invertido, preconceito nenhum é bom, inclusive o invertido, não tem como preconceito ser bom. (Elon, grifo nosso)
A partir dessa fala, os demais atores e a diretora do grupo colocaram suas opiniões.
Para Juliana, não se trata de permitir ou não a entrada de outras pessoas, mas sim que essas
pessoas consigam dialogar com a lógica de trabalho do Grupo. Juliana considera que há
uma especificidade no trabalho com atores psicóticos, algo no sentido de uma
visceralidade maior que, segundo ela, nem sempre é possível alcançar dentro de uma
lógica neurótica:
(...) deixar esse lugar pro, pro ator convidado, fazer com que essa pessoa também conquiste esse espaço de diálogo com a gente, sabe? Aí eu vou pegar uma frase que a Sílvia fala que é dialogar, com o usuário de saúde mental sem normatizar a loucura, sem tentar colocar ele na minha lógica, mas como que eu dialogo com
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aquele lugar, como que a gente pode trocar desse jeito. Eu acho que o ator que vier pra jogar com vocês em cena, ele tem que tá assim. (Juliana)
Viviane é a favor da construção de uma identidade de grupo com atores portadores
de sofrimento mental, assim como Sílvia:
Estruturar com essa identidade, que na minha opinião é importante, até pra gente ter, solicitar esse espaço, é, artístico na saúde mental, é importante, eu acho... (Viviane)
(...)agora como que a gente vai construir essa identidade? A gente vai fazer só com portador de sofrimento mental no grupo? No elenco? Eu acho que a gente pode levantar essa bandeira e eu tô topando ela, né? (Sílvia)
Essa discussão mostrou-se bastante rica para o Grupo repensar seus critérios de
pertencimento. Sílvia apresentou argumentos muito ricos que levaram o Grupo a
questionar o que é a loucura, como definir que um participante é louco ou não.
Salientando, ainda, a potencialidade de militância que o Sapos e Afogados apresenta por
ter em seu elenco apenas cidadãos em sofrimento psíquico.
E aí a gente para nesse viés assim, pensar talvez no futuro sabe? Da gente né, da gente pensar, qual ideologia, nesse sentido porque o enlouquecimento, o enlouquecimento também atravessa as pessoas normais, né? Assim, pessoas que tem psicose, ou não, também podem passar por uma experiência de enlouquecimento, de uma dor terrível que ela diga: eu enlouqueci, né? É, então eu acho que a gente tem que pensar em algo então assim: Quem é doido e quem não é doido também, né? Pra gente falar assim: aqui é só de doido, né, e o que que é doido? A gente também pode parar pra pensar nisso, né? Quem é doido? Então eu acho, assim, eu to muito atenta a essa questão dessa bandeira, que eu sou militante, né? Visto a camisa mesmo, acho muito relevante,importante levantar essa... eu vejo uma importância enorme, sabe? Quando, é, partindo desse lugar e afirmando esse lugar. Olha o grupo é de portador de sofrimento mental e o que eles tão fazendo. (Sílvia)
Esta fala de Sílvia é bastante emblemática para pensarmos o por quê de tanta
exclusão daqueles que são dito loucos, se a experiência da loucura é uma possibilidade
para cada pessoa e pode ser vivida, como em sua fala, em apenas alguns momentos na vida
de cada pessoa. Essa fala nos remete a pensar na aceitação das diferenças.
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As discussões em torno da questão identitária do grupo tiveram como consenso que
não se trata de excluir pessoas normais da possibilidade de participação como atores no
Grupo, uma vez que os papéis de direção e produção do Grupo são ocupados por pessoas
que não são consideradas em sofrimento psíquico, mas sim aceitar que há uma
especificidade de trabalho do Sapos e quem for convidado precisa entender essa lógica de
funcionamento e jogar com os atores, independente de ser usuário de saúde mental ou não.
Ficou estabelecido, ainda, que nesse momento não convidariam ninguém porque estão
estreando trabalho novo e, segundo a diretora, Juliana, em nove anos de grupo é primeira
vez que eles estão em sintonia e isso se manifesta na boa produção. Como colocado por
Martin-Baró (1989), as normas de pertencimento ao Grupo podem ser tanto formais, como
informais, rígidas ou flexíveis. No caso do Sapos e Afogados, as principais normas de
pertencimento nesse momento são o interesse pela atividade teatral e ser usuário de saúde
mental. A flexibilidade está na colocação de que não necessariamente o ator precisa ser um
cidadão em sofrimento psíquico, mas ter sensibilidade para entender as especificidades do
trabalho com esses sujeitos.
Para além do consenso estabelecido na discussão, foi muito interessante observar os
posicionamentos políticos dos atores e o nível elevado da discussão. É da parte dos
próprios atores que a discussão se inicia, num caráter democrático, são eles que também
decidem os rumos do grupo que fazem parte, numa posição de autonomia. A autonomia
dos atores nos trabalhos realizados pelo Grupo é evidente nas escolhas e na construção dos
personagens. Todos os trabalhos do Grupo são discutidos em reunião, na qual cada um
pode se posicionar e decidir somente quando há um consenso.
A discussão acerca da identidade do Grupo nos provoca a pensar a problemática da
cidadania dos cidadãos em sofrimento psíquico, uma vez que é consenso entre os
participantes a afirmação de um lugar para aquele que é considerado louco. Para os atores
do Sapos é importantíssimo mostrar à sociedade, através do trabalho de teatro, que
cidadãos em sofrimento psíquico podem ser atores. Essa discussão nos remete as
contribuições de Birman (1992) acerca de uma cidadania tresloucada, baseada numa
concepção racionalista que nega a verdade da loucura e exclui o cidadão em sofrimento
psíquico do contrato social. O trabalho do Sapos questiona a possibilidade de exercer o
direito de ser, de fato, um cidadão em sofrimento psíquico. A possibilidade de se pensar
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uma forma de cidadania é um grande desafio à saúde mental. Numa das falas de Rogério é
possível ver como ainda é difícil assegurar esse lugar:
Porque a gente vive numa sociedade que discrimina muito o portador de sofrimento mental. Você observa que... que, por exemplo, se eu contar pra uma namorada que eu sou esquizofrênico, ela não vai me querer mais. Então a sociedade discrimina muito o portador de sofrimento mental. Então, muitas vezes a gente tem que fazer as coisas escondido. A gente não pode estar revelando pro mundo porque a sociedade, ela é... ela castra muito a pessoa sabe? Então, a gente tem que ir aos poucos, caminhando devagarzinho assim e... é isso, sabe? A gente, a gente tenta é... buscar na sociedade assim, um meio melhor de viver junto com o nosso, o nosso semelhante, né? Então é um pouco, um pouco assim... Quando a pessoa tá um pouco debilitada, os familiares... muitas vezes até os próprios familiares, eles não... eles não aceitam, assim... eles não entendem a posição da pessoa naquele momento. Então a gente se sente um pouco fragilizado e discriminado pela sociedade, pelos familiares. Eu senti isso muito na pela sabe? Assim... então eu... a gente precisa viver também em um mundo capitalista. O mundo capitalista influencia muito na vida das pessoas e a gente sofre por causa disso também porque a gente não tem uma renda fixa. Então a gente se uniu e muitas vezes a gente ta fazendo um trabalho e que tem até uma renda assim sabe, ajuda muito a gente. (Rogério)
Na fala de Rogério, acima mencionada, é possível observar como o preconceito é
vivido por ele e como em determinados momentos a sua militância cede lugar a um
posicionamento contrário, ao esconder o adoecimento psíquico. A aceitação da cidadania
do cidadão em sofrimento psíquico depende de uma mudança de mentalidade da sociedade
como um todo, é um caminho que já começou a ser trilhado e trabalhos como o do Sapos e
Afogados contribuem para a realização desse propósito. A principal contribuição do Grupo
Sapos e Afogados para essa mudança de mentalidade é a afirmação de seu trabalho teatral.
Os trabalhos produzidos pelo Grupo destacam-se pela qualidade artística e, por esse fato,
conseguem mostrar à sociedade que cidadãos em sofrimento psíquico podem realizar bons
trabalhos, assim como qualquer indivíduo considerado normal. E não precisam, por isso,
serem normais, pois é a partir da lógica da loucura que produzem seus espetáculos.
No que concerne ao segundo aspecto mencionado por Martín-Baró (1989), durante
o tempo de pesquisa e através de relatos dos integrantes foi possível observar algumas
relações com outros Grupos e mesmo instituições. A respeito das relações com instituições
de saúde mental, observa-se a parceria do Grupo com os Centros de Convivência e a
Prefeitura de Belo Horizonte, através da Secretaria de Saúde Mental, ainda que não haja
95
ligação direta ou relação de dependência. Em vários dos eventos organizados pelo Sapos,
os usuários dos Centros de Convivência são convidados a participarem. Sobre a relação
com outros grupos, nota-se nesse momento de trabalho uma aproximação maior com atores
profissionais da cidade de Belo Horizonte, que tem se frutificado em experiências como,
por exemplo, a participação especial de um ator numa das peças realizadas pelo Grupo
apresentada em maio de 2012, em comemoração aos 10 anos do Sapos e Afogados. Essa
troca com atores profissionais evidencia a busca pela qualificação constante do trabalho de
teatro que realizam.
Além das relações observadas, é importante colocar que o Grupo tem se apresentado
cada vez mais em espaços não convencionais, como as ruas, e menos em eventos de saúde
mental, o que não descaracteriza sua militância pela saúde mental, mas os aproxima do
campo da cultura. O filme por eles realizado, Material Bruto, como falado anteriormente,
foi premiado em diversos eventos culturais. O terceiro aspecto mencionado por Martín-
Baró, referente à consciência de pertencimento ao grupo, pode melhor ser comentado na
categoria analisada a seguir.
4.3. Afetividade
Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. (Guimarães Rosa)
O que cura é o amor, o que cura é o afeto. (Nise da Silveira)
4.3.1. Enunciado 1: O Grupo Sapos e Afogados é um espaço para vivenciar afetos
A importância da dimensão da afetividade no trabalho do Sapos e Afogados
perpassa a própria metodologia de trabalho do Grupo. O método de trabalho teatral por
eles utilizado se embasa principalmente na construção de personagens a partir das
memórias afetivas dos atores, como já mencionado.
A afetividade, entendida tanto como positividade como negatividade, é inerente a
qualquer relação humana. No caso do Sapos, é um questionamento desta pesquisa entender
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como se dão os vínculos afetivos no grupo e como estes influenciam nos trabalhos
realizados e na vida pessoal dos participantes, lembrando que nosso trabalho contrapõe-se
à premissa psiquiátrica que a vivência psicótica causa embotamento da afetividade. Como
observadora do Grupo, registrei as atividades, que incluem ensaios, reuniões e conversas
informais entre os integrantes antes de realizarem as atividades do grupo. Estes registros
foram feitos através de filmagens e diários de campo. As filmagens se restringiram mais ao
contexto de trabalho do grupo, que neste caso abrangeu principalmente a produção da peça
Caixa Preta e também as entrevistas individuais. A afetividade entre os participantes pôde
ser registrada principalmente pelos diários de campo. Falaremos primeiramente sobre as
relações afetivas do Grupo a partir das observações em campo e a seguir recorreremos aos
discursos dos participantes.
Primeiramente abordaremos a afetividade percebida entre os participantes durante
os momentos informais do grupo: momentos antes dos ensaios, antes das apresentações,
entre outros. Sempre tive a impressão de um ambiente de muita descontração, onde
invariavelmente estavam expressando emoções (às vezes rindo, outras chorando) e falando
de suas vidas, o que poderia ser descrito como um grupo de amigos. Quando os atores
chegam para os ensaios, na maioria das vezes, conversam sobre vivências pessoais e,
muitas vezes, percebi que contavam casos relativos a lugares onde saíram juntos,
mostrando que essa relação de afetividade ultrapassa os limites do trabalho de teatro.
Elon Rabin, que está no grupo desde sua fundação, funciona como uma espécie de
afeto catalisador (Silveira, 1981) no Grupo, constatação evidenciada no fato de que três
dos integrantes foram convidados por ele. Segundo Elon, seu papel no grupo é muitas
vezes o de um suporte. Em suas palavras: eu fico como um suporte, pelo menos alguns
entendem assim, um suporte psicológico do grupo todo. Elon Rabin é assistente de direção
do Grupo. Em algumas enunciações de Elon, aparece como uma das bases da convivência
em grupo o laço afetivo da amizade:
Então acho que o respeito mútuo que há entre nós, essa consciência é muito interessante e o bom humor também que acontece, as gentilezas, é... o bom senso, isto tudo está fazendo com que o grupo fique mais maduro em relação a cinco anos atrás ou a três anos atrás(...) Como pessoas eu gosto de todos eles, eu gosto de todos, não só do elenco, eu gosto de todas as pessoas com as quais a gente mantém contato. Eu tenho, a gente tem uma relação boa, a gente tem com quem nos apóia
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também, a gente tem uma relação que tem sido proveitosa, relações saudáveis, que eu entendo como saudáveis. (Elon)
Numa outra fala, Elon refere-se às vivências afetivas com os outros integrantes,
situando-as como relações de amizade que ocorrem em qualquer grupo social.
Fora da relação de trabalho, existe a relação de amizade, que eu acho indispensável a relação de amizade pra qualquer grupo social.(Elon)
Rogério ressalta a união de grupo e a intimidade que há entre eles por esta
convivência. Além de um lugar onde é possível falar de si, partilhar vivências pessoais
difíceis:
Porque no Sapos e Afogados, a gente se conhece melhor, conhece o grupo, a gente apresenta. A gente tem, tem, tem é... momentos que a gente ta ensaiando, que a gente ta... é uma coisa boa assim porque a gente consegue interpretar, a gente consegue é... conversar com um, com outro. A gente é um grupo muito unido sabe? A gente é um grupo muito unido. Então, isso faz bem não só pra mim, mas pra todo pessoal do grupo. O pessoal do grupo também tá unido. A gente sente dificuldade, às vezes um ta com problema, o outro não ta não, né? Mas a gente consegue levar, pra mim é uma coisa muito boa eu acho participar do grupo.(Rogério)
Então, tanto a gente se conhece, como conhece o colega do grupo. A gente sabe da debilidade, a gente sabe das fraquezas, a gente conhece... conhece praticamente a vida da pessoa toda. Porque a gente tem mais intimidade um com o outro né?(...) A gente pode falar dos nossos problemas, das nossas desilusões, dos nossos conflitos. Então a gente se dá muito bem um com o outro. (Rogério)
A palavra intimidade é usada por Rogério para descrever o vínculo afetivo entre os
integrantes. Palavra que tem como significados: que está muito dentro; muito interno; que
existe no coração; muito cordial, tranquilo ou aconchegante; que está muito próximo de
ou tem relações estreitas com. (Ferreira, 1995). Os significados dessa palavra, sobretudo o
último citado, demonstra a potencialidade dos vínculos positivos vivenciados pelo ator no
Sapos e Afogados.
Nas falas de Edmundo, a afetividade vivenciada no grupo parece ser um dos pontos
essenciais em sua ligação com os participantes e até mesmo em relação à atividade teatral:
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Olha, uma coisa que, que eu acho que é muito pontual que a gente como um grupo de teatro, falando do Sapos e Afogados, que a gente faz um laço de amizade muito grande, entendeu. Então tem uma interação entre os atores, as atrizes, o diretor, a produtora, então o que muda é que, que eu to aprendendo a ser mais amigo do que ser companheiro das pessoas, entendeu. (...) Aí ta sendo único porque eu to tendo a oportunidade de fazer parte de um grupo onde tem pessoas e eu sou responsável, me sinto responsável pelo grupo que eu to cativando entendeu. (Edmundo)
Para Edmundo, a afetividade é fator que gera a responsabilidade para com o grupo:
A relação de amizade mesmo, de troca mesmo, de responsabilidade muito grande, entendeu, de, de, de chegar em casa e tomar o remédio na hora certa e falar que no outro dia vai acordar em tal hora assim, assim, que tem um encontro e tudo. É uma relação profissional mesmo, e, e, e profissional e amadora também. E tem uma relação de amizade muito grande, de amizade e responsabilidade, é mais ou menos isso. (Edmundo)
E essas relações são vivenciadas tanto como afetividade positiva como negativa:
E, a minha relação com eles é relação de amor e ódio ao mesmo tempo, entendeu. (Edmundo)
O Grupo aparece também nos discursos como o lugar onde é possível aprender a ter
melhores relações afetivas:
Acho que isso é mais importante, ter amizade, ter amor pelos colegas, respeito pelos colegas, é, esse é o laboratório né, da minha vida, ta sendo assim. Assim com todas as pessoas que eu convivo to tentando, não sei se eu to falando...to falando uma coisa que eu sinto assim. (...) O que eu sinto assim, que me sinto importante no meio desse grupo. (Ludmila)
mas o mais importante é o amor entre os colegas, o respeito de um colega com o outro, da limitação de um pro outro, se esforçar né? Eu acho que eu vou me esforçar a vida inteira pra... eu vou me esforçar. É uma oportunidade rara de, de... convívio social, convívio social, de tirar a timidez um pouco, a insegurança um pouco.(Ludmila)
E, mas quase em todos os momentos eu sinto que eu já pude contribuir com a aflição de, de todos eles. E isso é legal, é um lugar bom assim, que eu me sinto confortável. Eu, eu sou maternal com o grupo, e, e... é, é bacana isso, mas ao mesmo tempo eu tento evitar um pouco pra, rs, né?(Viviane)
99
As vivências afetivas de Viviane no Grupo são descritas por ela muitas vezes
através da palavra conforto. Mais uma vez recorrendo ao dicionário de língua portuguesa,
vemos que a palavra conforto pode apresentar os seguintes significados: nova força; novo
vigor; bem-estar (Ferreira, 1995). E nesse sentido é possível perceber pela descrição de
suas enunciações o quanto o fato de sentir-se aceita pelo Grupo e, por esse fator, sentir-se
confortável entre os integrantes contribuiu para que ela pudesse exercer a função de atriz e
pudesse trabalhar suas questões no teatro. O vínculo afetivo da atriz com o Grupo passa
para ela a sensação de força de vontade e aceitação.
Para Viviane, as relações afetivas entre os participantes propiciam um lugar onde se
é aceito:
(...) confiar que você tem um grupo, que você tem pessoas que te aceitam da maneira que você chegar aqui, a coisa... você chega sempre, você sai sempre melhor do que você entrou pela, pela convivência. (Viviane)
Em alguns momentos, Viviane ressalta que a convivência se restringe mais às
vivências dentro do Grupo, tendo pouca abrangência em sua vida pessoal:
Eu tenho liberdade com eles, tenho afinidade, mas é uma coisa que, que se restringe a essa vivência do ‘Sapos’, sabe? Diferente, por exemplo, de quando eu, eu estudava teatro, os meus amigos do teatro eram também meus amigos da vida social, né? Iam lá em casa conhecer a minha filha. Aqui não, é uma coisa, a convivência é legal, mas é... é profissional, vamos dizer assim, né?(Viviane)
Ressalta-se que Viviane é a integrante mais recente do Grupo. Na fala de Sílvia a
amizade aparece novamente como descrição dessa relação que extrapola os limites do
trabalho em Grupo e passa para a sua vida pessoal:
uma relação boa, é uma relação boa, de amizade.. (...)Então, fora do ensaio, considero os atores meus amigos. (Sílvia)
Juliana também ressalta em algumas falas como as relações afetivas são
vivenciadas com os atores do Grupo:
100
Eles convivem com a minha família, eles convivem na minha casa, eles convivem com meu filho. Então chega uma hora assim, também já tem um tempo né? Vão fazer nove anos que a gente ta junto. Então, chega uma hora que é isso mesmo ‘vamos comer uma pizza juntos?’. ‘Vamos fazer amigo oculto no final do ano’, igual qualquer grupo de teatro assim, né? Do meu filho participar dos ensaios, ou de eles virem fazer uma roda de conversa na minha casa, né? Nesse ponto de vista, chega uma hora que rola até uma certa intimidade assim, de participar de algumas coisas da minha vida, de saber o que que ta acontecendo comigo. Porque eles tão comigo também toda semana, o tempo todo assim. (Juliana).
Na viagem pra Itália agora também teve isso, foram 20 dias grudados, juntos o tempo inteiro, às vezes dormindo no mesmo lugar, enfim. É uma coisa íntima assim, então, e não tinha muito jeito, era esse lugar que a gente tinha pra ficar e é ótimo também, conviver com as diferenças também no dia a dia, né, assim. (Juliana)
Na fala de Juliana é possível perceber a importância do amadurecimento das
relações afetivas vivenciadas no Grupo, como ela mesmo afirma: também já tem um tempo
né? Vão fazer nove anos que a gente ta junto. E, assim, como na fala de Rogério, aparece a
palavra intimidade, dando um tom de profundidade aos vínculos vivenciados.
Através das enunciações anteriores é possível perceber o quanto a afetividade é a
base para um bom trabalho com cidadãos em sofrimento psíquico. São principalmente os
vínculos afetivos estabelecidos entre os integrantes e a diretora que possibilitam a
realização do trabalho em grupo e, muitas vezes, as mobilizações psicológicas necessárias
para a elaboração do sofrimento psíquico. Cada integrante vivencia essa dimensão de uma
forma mais marcante: para alguns a vinculação é mediada pelo sentimento de
responsabilidade, numa dimensão de cuidado com o outro, como é o caso de Edmundo.
Para outros, como possibilidade de aceitação e possibilidade de escuta, uma zona de
conforto.
Retomando as contribuições teóricas de Pichon Rivière e Nise da Silveira sobre a
categoria afetividade é possível observar a partir dos enunciados listados como a
afetividade, a forma como se vinculam ao outro, é importante na reconstrução de um novo
lugar para o cidadão em sofrimento psíquico. O vínculo é o modo pelo qual o sujeito
produz transformações em seu meio e em si mesmo (Pichon-Riviére, 1991). E, como foi
possível observar, os vínculos afetivos vivenciados entre os integrantes do Grupo, de fato,
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produzem transformações tanto em suas vidas pessoais, quanto no trabalho teatral por eles
desenvolvido e que é potencializado na relação de Grupo.
Vieira-Silva (2000) destaca a importância da afetividade no processo de produção
do grupo, salientando que para a realização de uma tarefa não se trata apenas de ter
conhecimento teórico necessário, mas de ter predisposição afetivo emocional para a
realização da mesma. Essa predisposição depende das relações afetivas vivenciadas entre
os integrantes, bem como da representação atribuída à atividade em termos individuais e
coletivos. No caso do Sapos é ressaltado, numa das falas de Juliana, que o Grupo encontra-
se, atualmente, numa fase de boa produção e sintonia no trabalho realizado, o que pode ser
evidenciado nas peças produzidas. Através dos discursos dos integrantes é possível
perceber como os vínculos afetivos contribuem nesse processo da atividade grupal. Os
vínculos afetivos são estabelecidos não somente entre os atores, mas com a atividade,
como descreveremos no enunciado a seguir.
4.3.2. Enunciado 2: Estar no Sapos é realizar o sonho de ser artista
Na fala de cinco dos seis atores entrevistados aparece que participar do Grupo
Sapos e Afogados é a realização de um desejo de ser artista. Desejo interrompido pela
experiência da loucura. Nas entrevistas de Ludmila, Sílvia e Edmundo isso aparece de
forma marcante, verdadeiras memórias afetivas trazidas de longe. Alguns atores as
trouxeram da infância:
Eu assim, na minha infância, eu vendo as novelas (ri), tomada por esse discurso, ou não, acho que não foram só as novelas, acho que foi de um trabalho de teatro na quarta série que aí eu montei, eu comecei a produzir peças de teatro no quintal com os meus amigos, sabe? (ri). Eu era uma diretora muito carrasca. (ri). ‘Faz desse jeito. Já falei’ (ri) (...) então eu é que escrevia as peças (ri), as histórias. Interessante né, bonito assim.. Mas aí esbarrava em limites, um monte de coisa e na ocasião fazendo essas... brincando de teatro né, com meus amigos, aí eu lembro de delirar muito (ri). De começar a escrever as pequenas peças, a gente também chamavam os pais, os outros amigos pra assistir, quem não queria participar como ator na brincadeira. Aí eu comecei a escrever pra filme, eu escrevia, eu escrevi alguns, nossa, mas eu tinha isso como arte, primeiro era a música, depois com a experiência na escola de fazer um teatro, e aí foi o teatro. E um desejo muito
102
grande assim de ser atriz, mas aí na adolescência eu fui, não sei, esse sonho meu de ser atriz, de trabalhar com as artes de um modo geral né, a música e o teatro, aí foi interrompido, não sei dizer, pela experiência tão dolorida, tão sofrida, tão violenta mesmo, da loucura, né?(Sílvia)
Eu acho que eu fazer teatro e cinema no grupo Sapos e Afogados diz de... fala de um desejo... de um desejo, fala da circulação de um desejo, assim.(Sílvia)
Nas enunciações de Sílvia é possível perceber como o vínculo com a
atividade teatral nos dias atuais tem suas raízes em desejos que a acompanham
desde a sua infância. A seguir, algumas enunciações de Ludmila, que assim como
Sílvia, já trazia em sua história pessoal a vontade de ser artista:
(...) desde pequena eu gostava de fazer arte, fazer teatro, até agora gosto de fazer teatro, drama, eu me identifico com drama, com coisa engraçadas né. (Ludmila)
Meu tio era meio maluco, aí eu puxei meu tio Bilé. Meu tio Bilé tinha umas garruchonas grandes assim, um sapatão, umas calças largas, um bigodinho assim, careca, grisalho assim. Tio Bilé morava na Avenida Afonso Pena, na esquina lá, do lado do parque municipal, com a tia Olina e eu lembro que eu, que eu era menina, eu ia lá ver a casa dele, eu ia lá visitar, aí eu via ele pintando, eu ficava vendo ele pintar. (...) eu nem sabia que ia poder agora com 50 anos gostar de pintar (...) eu fazia com guache os trabalhos, mas eu lembro do meu tio Bilé pintando, (...) Tem meu avô que já é falecido, que ficou tomando conta de mim quando eu era menina, minha mãe desencarnou muito cedo, eu tinha 4 anos (...). E meu avô ficava desenhando, eu sentava no colo dele, e uma folha, ele ficava desenhando com caneta esferográfica assim, esferográfica, aí eu, ele tinha uma cadeira de balanço, era depois do almoço, não lembro, durante o dia, na casa que a gente, que ele morava, meu avô. Aí ele pegava uma folha de papel em branco e eu, eu via assim, ele começava a fazer um desenho, aí eu ficava curiosa pra saber o que que ia sair de resto assim. Que nem o Picasso quando era menino, ele fazia uns desenhos parece quando era menino, eu dei uma lida assim por alto, ele era desde menino também, seis anos já tinha essa tendência artística né? (...) eu via meu vô desenhando no colo. (Ludmila)
Ludmila tem curso superior incompleto em Educação Artística. Quando mais
jovem, trabalhou em São Paulo, como designer júnior em algumas empresas. Em seu relato
traz também o prazer que sentia freqüentando os teatros de sua cidade natal, São Paulo, e
cursos que fez nessa área quando cursava a faculdade:
103
Eu lembro, você falou de cidade eu lembrei também de São Paulo, né, de São Paulo eu ia bastante no teatro, sabe? Eu tive oportunidade, graças a deus eu tive, de ver peças muito interessantes. (...)Aí eu via as peças ó: aí eu, eu, eu me arrastei muito naquela São Paulo, na Moca eu fui ver peça com a Lílian Cabral, na Moca. (Ludmila)
Edmundo traz de suas memórias as experiências teatrais vivenciadas em sua
juventude, antes das internações psiquiátricas:
É, eu sou ator profissional registrado (...) Só que eu nem contribuo mais com a, com o sindicato por que...por eu ser aposentado eu não posso trabalhar com carteira assinada entendeu. Agora eu me profissionalizei foi há uns 20 anos atrás mais ou menos.(...). Fui um dos primeiros atores a se profissionalizar quando a (inaudível) veio pra Belo Horizonte, a Sociedade protetora dos atores teatrais, começaram a cadastrar. Aí perguntaram assim é: quem tiver três peças infantil e uma adulta montada, pode se profissionalizar. Eu tinha o que, eu tinha feito TU, palácio das artes. E exatamente eu tinha três peças infantis e uma peça adulta que era, a peça adulta era: ‘Alô, Alô Belô’. Eu ensaiei também ‘A voz do elefantinho falante’, que era uma peça, que era uma pantomima do Carlinhos, para criança de 7, de 7 a 70 anos. (...) Foi engraçado que meu pai era vivo na época, isso foi há 20 anos, há 20 anos atrás, meu pai já tem 20 anos que morreu.(...)Depois disso eu surtei e fiquei um tempão sem atuar e tudo mais e só voltei agora, com o Caixa Preta agora, em 2008. (Edmundo)
Então eu acho que o momento é único, esse momento agora é bem diferente do outro que eu tinha 20 e poucos anos e agora to com 54 anos, entendeu. (Edmundo)
Edmundo trabalhou por um tempo em um núcleo de ensino teatral na cidade de
Belo Horizonte, quando teve seu primeiro surto e sua carreira de ator foi interrompida
pelas sucessivas internações em hospitais psiquiátricos pelas quais passou.
Viviane tem formação teatral, mas assim que se formou teve uma crise e esteve
afastada da atividade teatral, no Sapos ela retomou esta atividade:
Eu, eu estudei, né. Não tive exatamente tanta experiência, eu fui estudante, formei, fiz algumas apresentações. Porque eu adoeci logo depois, eu formei em 2001 e adoeci em 2003. Então todo esse, de 2003 até aqui, eu fiquei fora do teatro, né. Até o ano passado. De modo que experiência, experiência como atriz eu não tenho. (...)é isso, eu já podia ser atriz antes porque eu tinha formação, quando eu... te disse, mas eu não tava em atividade e logo que eu cheguei no Sapos eu não tava assim como você ta me vendo agora. Eu tava ainda bem retraída, com vontade, com desejo assim. (Viviane)
104
De, essa coisa de você participar de uma coisa que você considera importante, né? Bacana, que você é... se entrega né, se entrega, passa, passa pelo meu projeto de vida e isso muda tudo né, isso te dá um, te motiva, te motiva... é... Tem, tem... É, é motivaçã, né? É, você quer estar bem, porque você quer ir ao ensaio, você quer fazer a coisa, né? Te põe pra frente. (Viviane)
A experiência teatral de Elon vem de seu interesse pelo Psicodrama, que chegou a
praticar por um tempo a partir de estudos que realizou por conta própria:
Eu tinha experiência com psicodrama. Então eu tinha teoria, tinha algumas etapas do psicodrama e tem alguma semelhança porque você usa o teatro realidade, no psicodrama você usa o aspecto teatral. (...)O artigo que eu tinha sobre as técnicas psicodramáticas, as etapas, as três etapas principais do psicodrama. E eu lia e em algumas situações reais eu, eu tentava colocar em prática alguma coisa do meu entendimento sobre as etapas psicodramáticas. (Elon)
Como pode ser evidenciado na fala de Elon, a realização da atividade teatral já era
um desejo seu desde a época que praticava e estudava o psicodrama. Elon diferencia o
modo de trabalho do Sapos em relação ao psicodrama e ressalta o que é uma forte
característica Grupo Sapos e Afogados, o teatro fora de um lugar prioritariamente
terapêutico:
Então tinha algumas semelhanças, mas o fio, o fio do psicodrama é terapêutico e na arte não é o fim terapêutico.(Elon)
Como se pôde perceber, a atividade teatral é um aspecto que perpassava a vida de
alguns dos participantes antes do encontro com o Grupo Sapos e Afogados e foi nesse
espaço que encontraram uma via para a realização desses desejos. O vínculo afetivo com a
atividade teatral é notavelmente mais forte entres esses integrantes, como pode ser
evidenciado nas enunciações anteriores.
Se o vínculo afetivo com os integrantes é de suma importância para a participação
no Grupo, a ligação com a atividade também o é. Ambas as formas de vinculação estão
interligadas. Destaca-se o que já foi salientado na análise da categoria atividade: que a
105
atividade teatral para os atores é forma de significação dos sofrimentos enfrentados pela
experiência da loucura.
Através dessas falas percebemos também que a situação de entrevista possibilitou o
reavivamento de diversas memórias afetivas, como dizer ainda que a experiência da
psicose, ou da loucura, causa embotamento da afetividade?
Para finalizar a análise dos enunciados sobre a afetividade, voltamos ao terceiro
item de análise da categoria identidade para o autor Marín-Baró (1989), que se refere à
consciência de pertencimento ao grupo. No caso do Sapos e Afogados, essa consciência se
dá principalmente pela afetividade, tanto a afetividade vivenciada entre os integrantes,
citando palavras dos atores que a descrevem: o lugar da intimidade, da aceitação, da
responsabilidade, da amizade e do conforto, bem como a afetividade em relação a
atividade realizada, que é o teatro: a realização do desejo de ser artista, a possibilidade da
militância e de uma vivência cidadã, a elaboração do sofrimento psíquico.
Antes de partirmos para as considerações finais gostaria de contar um pequeno caso
ocorrido na história do Grupo Sapos e Afogados e que nos faz refletir sobre a afetividade.
Fazendo um paralelo, contamos aqui o fato ocorrido com o artista plástico Emydio de
Barros e como através do seu olhar demonstrou interesse em participar da oficina de artes
plásticas. No Grupo Sapos e Afogados, de forma similar, a atriz Sílvia foi convidada por
Juliana para participar do grupo pelo fato de diretora ter visto em seus olhos um brilho
diferente. Sílvia conheceu o Grupo através de uma exibição pública dos trabalhos
realizados pelo Sapos e Afogados. Sobre o convite de Juliana, Sílvia diz:
Então eu me lembro que havia um desejo muito, muito grande, mas o modo como eu entrei no grupo aí foi um presente porque disso que eu manifestava no olhar, né? Pedindo pelos olhos numa situação que eu achei muito propícia assim também, eu atribuo isso ao destino. (...): E aí trocando idéias, conversando, trocamos telefones e nessa história... (ri). Eu acho que certamente os meus olhos brilharam e meu desejo tava ali também e eu acabei sendo convidada nesse presente.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Aqui, retornaremos, de forma resumida, aos resultados encontrados no presente
estudo e faremos algumas reflexões em torno dos mesmos. O principal objetivo desta
pesquisa referiu-se à investigação de como as categorias atividade, liberdade e afetividade,
que compõem o tripé terapêutico postulado por Nise da Silveira, aparecem nos discursos
dos integrantes do Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados. Para a análise
discursiva utilizamos entrevistas individuais realizadas com os atores e diretora e os
registros em diário de campo e de ensaios do Grupo. Salientamos que durante o processo
de análise as categorias pesquisadas foram separadas de forma didática. Entretanto, na
leitura do trabalho é possível percebermos que elas se atravessam e são interdependentes. É
por esse fato que a metáfora do tripé faz-se pertinente.
Na categoria Atividade, destacamos dois enunciados, os quais comentaremos a
seguir. O primeiro enunciado analisado foi: Participar do Sapos e Afogados não é fazer
terapia, mas é terapêutico. Nas enunciações que permitiram a construção deste enunciado,
os atores demonstram o quanto a participação no Grupo e a realização da atividade teatral
é, para eles, terapêutica. Através dessas experiências os integrantes do Grupo relatam como
é possível a elaboração do sofrimento psíquico através do teatro. Em algumas falas a
atividade teatral aparece como tão importante quanto as formas convencionais de
tratamento, ou mesmo como um a mais, como é ressaltado pela atriz Viviane, que relata
que no teatro é possível elaborar suas questões para além das palavras, em comparação à
clínica psicanalítica. O método teatral utilizado pelo Grupo favorece essas elaborações uma
vez que trabalha com a construção de personagens através das memórias afetivas, bem
como a forma de condução de Juliana que se pauta em princípios psicanalíticos e na
flexibilidade do trabalho, uma vez que nem sempre os atores estão estáveis psiquicamente.
Além disso, a construção de cada personagem é individual, o que permite que cada um
possa trazer suas questões pessoais para a cena.
No que concerne a análise de cunho genealógico, destaca-se que o trabalho teatral
no Sapos e Afogados configura-se como forma de resistência criativa ao se propor como
um trabalho com forte significação social para os atores. Resistência ainda à medicina
psiquiátrica que tenta tamponar os sintomas produtivos da psicose através do uso excessivo
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de medicamentos. Esses sintomas são, no Sapos e Afogados, fonte de inspiração para a
produção dos trabalhos.
O segundo enunciado da categoria Atividade é O Grupo Sapos e Afogados levanta
a bandeira da saúde mental e da luta antimanicomial. Neste enunciado, os atores falam
como, através do teatro, eles militam pela causa da luta antimanicomial. Este é o ponto
mais evidente de resistência do Grupo à sociedade que ainda tem dificuldade de lidar com
a loucura. Salienta-se que grande parte dos atores do Grupo são militantes ativos do
Movimento da Luta Antimanicomial, movimento muito forte no cenário mineiro, como
pôde ser observado na discussão do contexto de produção dos discursos pesquisados.
A segunda categoria analisada é a Liberdade. O primeiro enunciado analisado foi A
entrada na cultura se deu de fato com a saída do Centro de Convivência. Neste enunciado
os atores e a diretora afirmam que o Grupo pôde entrar para o campo da cultura a partir do
rompimento com a rede de saúde mental. É um momento de dificuldades pelo qual o
Grupo passou, entretanto foi o que afirmou o trabalho independente e possibilitou que as
criações desses atores extrapolassem os limites da rede. É quando o Sapos e Afogados
começa a se apresentar em diversificados eventos e não mais com o aplauso garantido dos
eventos da saúde mental, como afirma a diretora Juliana. Nesse enunciado refletimos
acerca da noção de territorialização e a vivência da cidadania dos cidadãos em sofrimento
psíquico. Reflexões que se fazem muito presentes nas discussões em torno da
desinstitucionalização na saúde mental, sendo um campo novo e também por isso
controverso, ao passo em que está em construção. Os resultados encontrados nesse
enunciado nos permitem refletir acerca do poder disciplinar, que ainda se faz presente nas
práticas em saúde mental, e a questionarmos como a inclusão pode ser de fato uma via de
acesso a vivência cidadã. Trata-se de questionarmos como a reabilitação psicossocial tem
sido feita a partir de como é proposta. Como afirma Veiga-Neto (2001), ao referir-se à
importância da crítica para a saúde mental:
De qualquer maneira, nesse campo —como em qualquer outro— o que me parece mais interessante, necessário e produtivo é manter sempre ativas e afi(n)adas a problematização e a crítica radicais, a investigação histórica e a observação microscópica das condições de possibilidade presentes. Tudo isso visando não apenas a saber o que estamos fazendo de nós mesmos, como, ainda, a arriscar a invenção de novas formas de vida e convivência (p. 118).
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A presente pesquisa permitiu refletir acerca de como é possível fazer essa travessia
rumo à cidade. O Grupo Sapos e Afogados, ao tornar-se um Grupo independente e, por
isso, também mais próximo à cultura, propiciou que de fato os seus atores vivenciarem a
cidadania de uma outra maneira como é evidenciado no segundo enunciado da categoria
Liberdade: Participar do Sapos é uma possibilidade de estar integrado à sociedade e
vivenciar vários papéis. A vivência de novas identidades, que não se restringem apenas a
do louco produz transformações na vida desses sujeitos, a vivência do papel ator é
fundamental nesse processo.
Outro aspecto discutido nesse enunciado refere-se à identidade do Grupo que se
afirma para a maioria dos atores como o espaço de militância na saúde mental. Uma
possibilidade de mostrar à sociedade que eles são cidadãos em sofrimento psíquico sim,
mas que também podem ser atores. E, por isso, a maioria dos atores afirma que preferem
que, no elenco do Grupo, só tenha cidadãos em sofrimento psíquico.
A terceira e última categoria analisada é a Afetividade. Nesta categoria dois
enunciados foram analisados: O Grupo Sapos e Afogados é um espaço para vivenciar
afetos e Estar no Sapos é realizar o sonho de ser artista. No primeiro enunciado vemos
como os vínculos afetivos são vivenciados pelos atores e como produzem transformações
em suas vidas. Esses vínculos são percebidos de várias formas. Para alguns, como
amizade, aceitação, conforto, responsabilidade, possibilitando que se fale de si e que se
partilhem vivências pessoais difíceis e até mesmo uma possibilidade de aprender a se
relacionar melhor com as pessoas. Através da análise dessas enunciações, é possível
perceber que, assim como afirma Nise da Silveira, a afetividade parece ser a base
fundamental para o trabalho com cidadãos em sofrimento psíquico. Os laços afetivos
estabelecidos entre os participantes do Grupo Sapos e Afogados são a principal fonte de
mobilização para a realização do trabalho teatral e a estabilização psíquica.
No segundo enunciado da categoria Afetividade, aparece a possibilidade encontrada
no Grupo de realizar o sonho de ser artista. O vínculo afetivo dos atores com a atividade é
marcado por suas histórias de vidas. Tão importante quanto a vinculação dos participantes
do Grupo é a que ocorre com a atividade e, no caso do Sapos e Afogados, essa vinculação
é fortalecida pelo fato de permitir a realização do desejo da maioria dos atores. Através dos
enunciados investigados, é possível afirmamos que o grupo Sapos e Afogados trabalha, de
forma muito particular, a reinserção do cidadão em sofrimento psíquico e produz efetivos
109
resultados na vida desses sujeitos. O Grupo aparece nos discursos constantemente como o
lugar onde é possível trabalhar o sofrimento psíquico e transformá-lo através da arte.
Aparece também o lugar onde se tem amigos e pessoas para se buscar apoio.
O Grupo Sapos e Afogados é também o espaço da militância pelos direitos dos
cidadãos em sofrimento psíquico e se afirma como lugar de resistência. É importante
ressaltarmos a importância de conhecermos o contexto de produção dos discursos, uma vez
que a cidade de Belo Horizonte tem um importante histórico de militância no campo da
saúde mental e isso se reflete no trabalho do Grupo Sapos e Afogados. Na fala de Sílvia
fica clara a importância da militância no Sapos e Afogados, que para ela, é mais importante
que a atividade teatral:
É, o teatro, ele não tem essa prioridade, a prioridade é o movimento, é a causa de fechar o manicômio, de ter uma sociedade que se relaciona de uma outra maneira, né? Com a diferença.
Com esse estudo esperamos ter contribuído para as reflexões em torno da
reabilitação psicossocial dos cidadãos em sofrimento psíquico. A reabilitação psicossocial
é um ideal no campo da saúde mental e há ainda poucos indicadores de seus resultados. O
que depreendemos, pelo aumento do número de serviços que se propõe a trabalhar a
reinserção social desses sujeitos, é que há uma aposta nesta forma de encarar a loucura. É
um desafio pensarmos as noções de cidadania, que assim como aponta Birman (1992),
ainda tenta se afirmar de uma maneira tresloucada.
Assim como já falado nos resultados encontrados, o trabalho do Grupo Sapos e
Afogados é uma aposta numa forma de reabilitação psicossocial que passa pelo
desenvolvimento da autonomia dos sujeitos e do direito a ser um cidadão-louco. A loucura
não é um fator excludente para a vivência da cidadania, ela é um modo de estar na cidade e
de intervir nela, no caso específico desse Grupo, através a arte.
Entretanto, é preciso deixar claro que a cidadania da qual falamos, e que deve estar
presente nos projetos de reabilitação psicossocial, é uma cidadania não baseada apenas na
racionalidade, que seria uma cidadania tresloucada, nas palavras de Birman (1992). Mas
sim, uma forma de cidadania que aceite a loucura como forma de estar na cidade e nela
poder exercer deveres e usufruir direitos. Do contrário, se não pensarmos desta maneira
110
haverá sempre o risco anunciado por Veiga-Neto (2001), o de incluir para excluir. Nesse
sentido, através da experiência do Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados,
esperamos ter contribuído para pensar novas formas de encarar a possibilidade da vivência
cidadã do sujeito tido como louco.
Uma contribuição deste estudo, e que não pode deixar de ser ressaltada, é a
constatação da atualidade da proposta do Tripé Terapêutico de Nise da Silveira, que como
pôde ser evidenciado nos discursos dos integrantes do Sapos e Afogados, é efetivo para
pensarmos em como a reabilitação psicossocial pode deixar de ser uma norma, um ideal a
ser atingido, e tornar-se uma realidade.
Outra contribuição do presente estudo é refletir sobre novos modelos de atenção em
saúde mental que demandam práticas que extrapolem os modelos clínicos tradicionais,
com foco no indivíduo, para ações de cunho coletivo que insiram essas pessoas na
sociedade e lhes dêem condições de exercerem sua cidadania.
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118
APÊNDICES
APÊNDICE A – Roteiro de entrevista com os atores
1. Como você conheceu o grupo Sapos e Afogados?
2. Como você entrou para o grupo?
3. Há quanto tempo você está no grupo? (Como foi a saída do Centro de Convivência? -
para quem esteve neste momento.)
4. Fale um pouco sobre sua experiência com teatro. E com curta metragens
(experiências anteriores)
5. Como é pra você fazer teatro e fazer os curtas metragens? Mudou alguma coisa em
sua vida fazer essas atividades?
6. Como é pra você participar do Sapos e Afogados?
7. Como é sua relação com os outros atores do grupo? E com a diretora?
8. Qual o impacto das premiações que o grupo recebeu e a circulação pela cidade de
Belo Horizonte na sua vida?
9. Como você percebe o reconhecimento do trabalho do Sapos e Afogados? (citar
prêmios que receberam, festivais em que participaram).
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APENDICE B – Roteiro de entrevista com a diretora do grupo
1. Como começou o Grupo SAPOS e AFOGADOS?
2. Quantas pessoas começaram no grupo? Quantas ficaram? (Critérios de participação e entrada no grupo)
3. Como foi a saída do Centro de convivência?
4. Como é pra você dirigir o SAPOS e AFOGADOS?
5. Fale um pouco sobre o método de trabalho teatral com o SAPOS e AFOGADOS.
6. Como é sua relação com os atores do grupo?
7. Quais foram os prêmios que o grupo recebeu?
8. Qual o impacto das premiações que o grupo recebeu e a circulação pela cidade de Belo Horizonte na sua vida?
9. Como você percebe o reconhecimento do trabalho do SAPOS e AFOGADOS? (citar prêmios que receberam, festivais em que participaram).
120
APÊNDICE C- Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Você está sendo convidado para participar da pesquisa previamente nomeada “Um olhar sobre a reabilitação psicossocial: a experiência da arte e do afeto no Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados”, sob a responsabilidade dos pesquisadores Patrícia Fonseca de Oliveira (mestranda) e Walter Melo Júnior (orientador). Esta pesquisa é realizada no Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ).
Nesta pesquisa nós estamos buscando entender como acontece a reinserção social de pessoas em sofrimento psíquico através da participação em grupos de arte, e qual o papel das relações afetivas neste processo.
Na sua participação você concederá uma entrevista, que será filmada, falando sobre sua participação no grupo “Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados” e será filmado durante as reuniões realizadas pelo grupo durante aproximadamente seis meses, duas vezes por mês. As filmagens serão utilizadas para melhor entender o grupo e serão disponibilizadas aos participantes da pesquisa, ao final da mesma. As filmagens ficarão sob a responsabilidade dos pesquisadores que as utilizarão apenas para os fins da pesquisa, sem prejuízo para o grupo.
O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido será obtido pela pesquisadora Patrícia Fonseca de Oliveira na reunião realizada pelo grupo no dia 20 de agosto de 2010.
Em nenhum momento você será identificado. Os resultados da pesquisa serão publicados e ainda assim a sua identidade será preservada. Seu nome só será revelado caso você deseje.
Você não terá nenhum gasto e ganho financeiro por participar na pesquisa.
Não há riscos em participar desta pesquisa.
Você é livre para parar de participar a qualquer momento sem que nenhum prejuízo lhe seja causado.
Ao final da pesquisa você terá livre acesso aos resultados da mesma.
Uma cópia deste Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ficará com você.
Em caso de dúvida a respeito da pesquisa você poderá entrar em contato a qualquer momento com os pesquisadores: Walter Melo Júnior e Patrícia Fonseca de Oliveira, no seguinte endereço: Departamento de Psicologia (Prof.: Walter Melo Júnior), Praça Dom Helvécio, nº 74, Bairro Dom Bosco - CEP: 36301-160, São João del Rei, Minas Gerais, ou nos fones: (32) 3379- 2457 ou (31) 9226-1792.
E-mails: [email protected], [email protected].
São João Del Rei, 20 de agosto de 2010
_______________________________________________________________
Assinatura dos pesquisadores
Eu aceito participar do projeto citado acima, voluntariamente, após ter sido devidamente
esclarecido sobre como será minha participação e quais são os meus direitos.
____________________________________________________________
Participante da pesquisa
121
APÊNDICE D - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Eu,_________________________________________________, portador do
RG____________________ e CPF______________________ aceito ter meu nome
divulgado na dissertação intitulada: “Liberdade, Afetividade e Atividade: o Tripé
Terapêutico de Nise da Silveira no discurso dos integrantes do Núcleo de Criação e
Pesquisa Sapos e Afogados”, da qual participei cedendo entrevista que foi transcrita e
analisada pela pesquisadora Patrícia Fonseca de Oliveira e pelo orientador Walter Melo
Júnior. A pesquisa de mestrado foi desenvolvida no Programa de Pós Graduação em
Psicologia (PPG/PSI) da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ). Estou ciente
de que meu nome só será citado em falas, por mim emitidas, durante as entrevistas de
pesquisa.
São João Del Rei, 13 de outubro de 2012
_______________________________________________________________
Assinatura dos pesquisadores
____________________________________________________________
Participante da pesquisa