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  • Lewis Carroll

    Lewis Carroll

    Autorretrato de Lewis Carroll

    Nome completo Charles Lutwidge Dodgson

    Nascimento 27 de Janeiro de 1832Daresbury, Inglaterra

     Reino Unido

    Morte 14 de janeiro de 1898 (65 anos)Guildford, Inglaterra

     Reino Unido

    Ocupação romancista, poeta e matemático

    Principais trabalhos •• Alice no país das maravilhas•• Alice Através do Espelho

    Movimento estético poesia moderna

    Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido pelo seu pseudônimo Lewis Carroll (Daresbury, 27 de janeiro de1832 — Guildford, 14 de Janeiro de 1898), foi um romancista, poeta e matemático britânico. Lecionava matemáticano Christ College, em Oxford, e é mundialmente famoso por ser o autor do clássico livro Alice no País dasMaravilhas e os poemas presentes neste livro, além de outros poemas escritos em estilo nonsense ao longo de suacarreira literária, são considerados por críticos, em função das fusões e da disposição espacial das palavras, comoprecursores da poesia de vanguarda.

    Tudo tem uma moral: é só encontrá-la.

    — Lewis Carroll

  • VidaDesde criança, Lewis Carroll recebeu de seu pai uma educação religiosa, pois tencionava vê-lo seguir essa carreira.Carroll desviou-se de vez da carreira sonhada pelo pai em Janeiro de 1851 quando ingressou na Universidade deOxford. Durante o tempo em que estudou na Universidade de Oxford, ele sempre se mostrou bastante interessado eesforçado, tanto que chegou a ganhar uma medalha de honra ao mérito. Devido o seu desempenho como matemático,ao acabar o seu curso, foi convidado pela universidade para trabalhar lá como professor de matemática

    HobbiesQuando criança Carroll brincava com marionetes e prestidigitação (também chamado magia ou ilusionismo), edurante a sua vida gostou de fazer passes de mágica, especialmente para as crianças. Gostava de modelar umcamundongo com um lenço e em seguida fazê-lo pular misteriosamente com a mão. Ensinava as crianças a fazerbarquinhos de papel e também pistolas de papel que estalavam ao serem vibradas no ar. Interessou-se pela fotografiaquando esta arte mal havia surgido, especializando-se em retratos de crianças e pessoas famosas e compondo suasimagens com notável habilidade e bom gosto.Carroll era apaixonado por vários tipos de jogos, tanto que inventou um grande número de enigmas, jogosmatemáticos e de lógica; gostava de teatro e era frequentador de ópera, e manteve uma amizade por toda a vida coma atriz Ellen Terry.

    Alice

    Alice Liddell (foto) foi a inspiração de Carrollpara criar Alice no País das Maravilhas.

    A história de Alice no País das Maravilhas originou-se em 1862,quando Carroll fazia um passeio de barco no rio Tâmisa com suaamiga Alice Pleasance Liddell (com 10 anos na época) e as suas duasirmãs, sendo as três filhas do reitor da Christ Church. Ele começou acontar uma história que deu origem à atual, sobre uma meninachamada Alice que ia parar a um mundo fantástico após cair numa tocade um coelho. A Alice da vida real gostou tanto da história que pediuque Carroll a escrevesse.

    Dodgson atendeu ao pedido e em 1864 surpreendeu-a com ummanuscrito chamado Alice's Adventures Underground, ou AsAventuras de Alice Embaixo da Terra, em português. Mais tarde eledecidiu publicar o livro e mudou a versão original, aumentando de 18mil palavras para 35 mil, notavelmente acrescentando as cenas do Gatode Cheshire e do Chapeleiro Louco (ou Chapeleiro Maluco).

    A tiragem inicial de dois mil exemplares de 1865 foi removida dasprateleiras, devido a reclamações do ilustrador John Tenniel sobre aqualidade da impressão. A segunda tiragem esgotou-se nas vendas rapidamente, e a obra se tornou um grandesucesso, tendo sido lida por Oscar Wilde e pela rainha Vitória e tendo sido traduzida para mais de 50 línguas.

    Em 1998, a primeira impressão do livro (que fora rejeitada) foi leiloada por 1,5 milhão de dólares americanos.

  • EnigmasAmbos os livros infantis de Carroll contêm inúmeros problemas de matemática e lógica ocultos no seu texto. EmAlice no país das maravilhas, a personagem Alice entra em uma toca atrás de um coelho falante e cai em um mundofantástico e fantasioso. Muitos enigmas contidos em suas obras são quase que imperceptíveis para os leitores atuais,principalmente os não-anglófonos, pois continham referências da época, piadas locais e trocadilhos que só fazemsentido na língua inglesa.

    PolêmicaUma de suas frases mais marcantes era "Gosto de crianças (exceto meninos)". Quando tinha oportunidade gostava dedesenhar ou fotografar meninas seminuas, com a permissão da mãe. "Se eu tivesse a criança mais linda do mundopara desenhar e fotografar", escreveu, "e descobrisse nela um ligeiro acanhamento (por mais ligeiro e facilmentesuperável que fosse) de ser retratada nua, eu sentia ser um dever solene para com Deus abandonar por completo asolicitação".Por temor que estas imagens desnudas criassem embaraços para as meninas mais tarde, pediu que após a sua mortefossem destruídas ou devolvidas às crianças ou a seus pais. Quatro ou cinco fotos ainda sobrevivem. Uma delas épossível encontrar no livro "Pleasures Taken - Performances of Sexuality and Loss in Victorian Photographs" daautora Carol Mavor. Na página 12 do livro é possível encontrar a foto da menina Evelyn Hatch, 1878 (fotografadatotalmente nua) como também referências ao trabalho fotográfico de Lewis Carroll.Em outro livro intitulado "Cartas às suas amiguinhas" da editora Sette Letras, o conteúdo das cartas de Lewis Carrollàs meninas com quem ele se relacionou é analisado de forma fria e racional e revela uma intimidade fora do comumentre Lewis e as meninas que ele fotografou.

    FalecimentoFaleceu em Guildford em 14 de janeiro de 1898. Encontra-se sepultado no Cemitério de Guildford, Guildford,Surrey na Inglaterra.[1]

    EdiçõesEdições brasileiras das obras de Carroll são: Alice no país das maravilhas (1865) e Alice no país do espelho (Alicedo outro lado do espelho, no título mais conhecido em Portugal) (1872), Algumas Aventuras de Silvia e Bruno,Rimas do país das maravilhas, A caça ao turpente e Obras escolhidas.

  • John Tenniel

    Tradução:

    Maria Luiza X. de A. Borges

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    Inclui ilustrações originais de:

    LEWIS CARROLL

    NO PAÍS DAS MARAVILHAS&

    ATRAVÉS DO ESPELHOE O QUE ALICE ENCONTROU POR LÁ

    AVENTURAS DE ALICE

  • Sumário

    Aventuras de Aliceno País das Maravilhas

    Através do Espelhoe o que Alice encontrou por lá

    OEBPS/Text/../Text/9788537802120_epub_pt01_r1.htmOEBPS/Text/../Text/9788537802120_epub_pt02_r1.htmOEBPS/Text/../Text/9788537802120_epub_bm_r1.htm

  • Aventuras de Aliceno País das Maravilhas

  • Sumário

    1. Pela toca do Coelho2. A lagoa de lágrimas3. Uma corrida em comitê e uma históriacomprida4. Bill paga o pato5. Conselho de uma Lagarta6. Porco e pimenta7. Um chá maluco8. O campo de croqué da Rainha9. A história da Tartaruga Falsa10. A Quadrilha da Lagosta11. Quem roubou as tortas?12. O depoimento de Alice

    OEBPS/Text/../Text/9788537802120_epub_p01c01_r1.htmOEBPS/Text/../Text/9788537802120_epub_p01c02_r1.htmOEBPS/Text/../Text/9788537802120_epub_p01c03_r1.htmOEBPS/Text/../Text/9788537802120_epub_p01c03_r1.htmOEBPS/Text/../Text/9788537802120_epub_p01c04_r1.htmOEBPS/Text/../Text/9788537802120_epub_p01c05_r1.htmOEBPS/Text/../Text/9788537802120_epub_p01c06_r1.htmOEBPS/Text/../Text/9788537802120_epub_p01c07_r1.htmOEBPS/Text/../Text/9788537802120_epub_p01c08_r1.htmOEBPS/Text/../Text/9788537802120_epub_p01c09_r1.htmOEBPS/Text/../Text/9788537802120_epub_p01c10_r1.htmOEBPS/Text/../Text/9788537802120_epub_p01c11_r1.htmOEBPS/Text/../Text/9788537802120_epub_p01c12_r1.htm

  • JUNTOS NAQUELA TARDE DOURADADeslizávamos em doce vagar,

    Pois eram braços pequenos,ineptos,

    Que iam os remos a manobrar,Enquanto mãozinhas fingiamapenas

    O percurso do barco determinar.Ah, cruéis Três! Naquele preguiçar,

    Sob um tempo ameno, estival,Implorar uma história, e de tão levealento

    Que sequer uma pluma pudessesoprar!Mas que pode uma pobre voz

    Contra três línguas a trabalhar?Imperiosa, Prima estabelece:

    “Começar já”; enquantoSecunda,Mais brandamente, encarece:

    “Que não tenha pé nem cabeça!”E Tertia um ror de palpites oferece,

  • Mas só um a cada minuto.Depois, por súbito silênciotomadas,

    Vão em fantasia perseguindoA criança-sonho em sua jornada

    Por uma terra nova e encantada,A tagarelar com bichos pela estrada

    — Ouvem crédulas, extasiadas.E sempre que a história esgotava

    Os poços da fantasia,E debilmente eu ousava insinuar,

    Na busca de o encanto quebrar:“O resto, para depois…” “Mas já édepois!”

    Ouvia as três vozes alegres agritar.Foi assim que, bem devagar,

    O País das Maravilhas foi urdido,Um episódio vindo a outro se ligar—

    E agora a história está pronta,

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  • Desvie o barco, comandante! Paracasa!

    O sol declina, já vai se retirar.Alice! Recebe este conto de fadas

    E guarda-o, com mão delicada,Como a um sonho de primavera

    Que à teia da memória seentretece,Como a guirlanda de floresmurchas que

    A cabeça dos peregrinosguarnece.

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  • CAPÍTULO 1

    Pela toca do Coelho

    ALICE ESTAVA COMEÇANDO a ficar muito cansada deestar sentada ao lado da irmã na ribanceira,e de não ter nada que fazer; espiara uma ouduas vezes o livro que estava lendo, mas nãotinha figuras nem diálogos, “e de que serveum livro”, pensou Alice, “sem figuras nemdiálogos?”.

    Assim, refletia com seus botões (tantoquanto podia, porque o calor a fazia se sen-tir sonolenta e burra) se o prazer de fazeruma guirlanda de margaridas valeria o es-forço de se levantar e colher as flores,

  • quando de repente um Coelho Branco deolhos cor-de-rosa passou correndo por ela.

    Não havia nada de tão extraordinárionisso; nem Alice achou assim tão esquisitoouvir o Coelho dizer consigo mesmo: “Ai, ai!Ai, ai! Vou chegar atrasado demais!”(quando pensou sobre isso mais tarde,ocorreu-lhe que deveria ter ficado es-pantada, mas na hora tudo pareceu muitonatural); mas quando viu o Coelho tirar umrelógio do bolso do colete e olhar as horas, edepois sair em disparada, Alice se levantounum pulo, porque constatou subitamenteque nunca tinha visto antes um coelho combolso de colete, nem com relógio para tirarde lá, e, ardendo de curiosidade, correu pelacampina atrás dele, ainda a tempo de vê-lose meter a toda a pressa numa grande tocade coelho debaixo da cerca.

    No instante seguinte, lá estava Alice seenfiando na toca atrás dele, sem nem pensarde que jeito conseguiria sair depois.

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  • Por um trecho, a toca de coelho seguiana horizontal, como um túnel, depois seafundava de repente, tão de repente queAlice não teve um segundo para pensar emparar antes de se ver despencando num poçomuito fundo.

    Ou o poço era muito fundo, ou ela caíamuito devagar, porque enquanto caía tevetempo de sobra para olhar à sua volta e ima-ginar o que iria acontecer em seguida.Primeiro, tentou olhar para baixo e ter umaideia do que a esperava, mas estava escurodemais para se ver alguma coisa; depois ol-hou para as paredes do poço, e reparou queestavam forradas de guarda-louças e est-antes de livros; aqui e ali, viu mapas e figur-as pendurados em pregos. Ao passar, tirouum pote de uma das prateleiras; o rótulodizia “GELEIA DE LARANJA”, mas para seu grandedesapontamento estava vazio: como nãoqueria soltar o pote por medo de matar

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  • alguém, deu um jeito de metê-lo num dosguarda-louças por que passou na queda.

    “Bem!” pensou Alice, “depois de umaqueda desta, não vou me importar nada delevar um trambolhão na escada! Como vãome achar corajosa lá em casa! Ora, eu nãodiria nadinha, mesmo que caísse do topo dacasa!” (O que muito provavelmente eraverdade.)

    Caindo, caindo, caindo. A queda não ter-minaria nunca? “Quantos quilômetros seráque já caí até agora?” disse em voz alta.“Devo estar chegando perto do centro daTerra. Deixe-me ver: isso seria a uns seis mile quinhentos quilômetros de profundidade,acho…” (pois, como você vê, Alice apren-dera várias coisas desse tipo na escola e, em-bora essa não fosse uma oportunidade muitoboa de exibir seu conhecimento, já que nãohavia ninguém para escutá-la, era semprebom repassar) “…sim, a distância certa émais ou menos essa… mas, além disso, para

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  • que Latitude ou Longitude será que estouindo?” (Alice não tinha a menor ideia doque fosse Latitude, nem do que fosse Longit-ude, mas lhe pareciam palavras imponentespara se dizer.)

    Logo recomeçou. “Gostaria de saber sevou cair direto através da Terra! Como vaiser engraçado sair no meio daquela genteque anda de cabeça para baixo! Os antipa-tias, acho…” (desta vez estava muito satis-feita por não haver ninguém escutando, poisaquela não parecia mesmo ser a palavracerta) “…mas vou ter de perguntar a eles onome do país. Por favor, senhora, aqui é aNova Zelândia? Ou a Austrália?” (e tentoufazer uma mesura enquanto falava… ima-gine fazer mesura quando se está despen-cando no ar! Você acha que conseguiria?) “Eque menininha ignorante ela vai achar quesou! Não, não convém perguntar nada:talvez eu veja o nome escrito em algumlugar.”

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  • Caindo, caindo, caindo. Como não haviamais nada a fazer, Alice logo começou afalar de novo. “Tenho a impressão de queDinah vai sentir muita falta de mim estanoite!” (Dinah era a gata.) “Espero que selembrem de seu pires de leite na hora dochá. Dinah, minha querida! Queria que vocêestivesse aqui embaixo comigo! Pena quenão haja nenhum camundongo no ar, masvocê poderia apanhar um morcego, é muitoparecido com camundongo. Mas será quegatos comem morcegos?” E aqui Alicecomeçou a ficar com muito sono, e continu-ou a dizer para si mesma, como num sonho:“Gatos comem morcegos? Gatos comemmorcegos?” e às vezes “Morcegos comem ga-tos?”, pois, como não sabia responder a nen-huma das perguntas, o jeito como as fazianão tinha muita importância. Sentiu que es-tava cochilando e tinha começado a sonharque estava andando de mãos dadas com Di-nah, dizendo a ela, muito séria: “Vamos,

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  • Dinah, conte-me a verdade: algum dia vocêjá comeu um morcego?” quando subita-mente, bum! bum! caiu sobre um monte degravetos e folhas secas: a queda terminara.

    Alice não ficou nem um pouco machu-cada, e num piscar de olhos estava de pé.Olhou para cima, mas lá estava tudo escuro;diante dela havia um outro corredor com-prido e o Coelho Branco ainda estava àvista, andando ligeiro por ele. Não havia umsegundo a perder; lá se foi Alice como umraio, tendo tempo apenas de ouvi-lo dizer,ao dobrar uma esquina: “Por minhas orelhase bigodes, como está ficando tarde!” Ela es-tava bem rente a ele, mas quando dobrou aesquina não havia mais sinal do CoelhoBranco: viu-se num salão comprido e baixo,iluminado por uma fileira de lâmpadas pen-duradas do teto.

    Havia portas ao redor do salão inteiro,mas estavam todas trancadas; depois de per-correr todo um lado e voltar pelo outro,

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  • experimentando cada porta, caminhou des-olada até o meio, pensando como haveria desair dali.

    De repente topou com uma mesinha detrês pernas, feita de vidro maciço; sobre elanão havia nada, a não ser uma minúsculachave de ouro, e a primeira ideia de Alicefoi que devia pertencer a uma das portas dosalão; mas, que pena! ou as fechaduras eramgrandes demais, ou a chave era pequena de-mais, de qualquer maneira não abria nen-huma delas. No entanto, na segunda rodada,deu com uma cortina baixa que não havianotado antes; atrás dela havia uma portinhade uns quarenta centímetros de altura: ex-perimentou a chavezinha de ouro, que, parasua grande alegria, serviu!

    Abriu a porta e descobriu que dava parauma pequena passagem, não muito maiorque um buraco de rato: ajoelhou-se e av-istou, do outro lado do buraco, o jardimmais encantador que já se viu. Como

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  • desejava sair daquele salão escuro e passearentre aqueles canteiros de flores radiantes eaquelas fontes de água fresca! Mas não eracapaz nem de enfiar a cabeça pelo vão daporta, “e mesmo que conseguisse enfiar acabeça”, pensou a pobre Alice, “isso de pou-co adiantaria sem meus ombros. Ah, comogostaria de poder me fechar como umtelescópio! Acho que conseguiria, sesoubesse pelo menos começar.” Pois, vejambem, havia acontecido tanta coisa esquisitaultimamente que Alice tinha começado apensar que raríssimas coisas eram realmenteimpossíveis.

    Como ficar esperando junto da portinhaparecia não adiantar muito, voltou até amesa com uma ponta de esperança de con-seguir achar outra chave sobre ela, ou pelomenos um manual com regras para encolherpessoas como telescópios; dessa vez achou láuma garrafinha (“que com certeza não es-tava aqui antes”, pensou Alice), em cujo

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  • gargalo estava enrolado um rótulo de papelcom as palavras “BEBA-ME” graciosamente im-pressas em letras graúdas.

    Era muito fácil dizer “Beba-me”, mas aajuizada pequena Alice não iria fazer isso as-sim às pressas. “Não, primeiro vou olhar”,disse, “e ver se está escrito ‘veneno’ ou não”;pois lera muitas historinhas divertidas sobrecrianças que tinham ficado queimadas e sidocomidas por animais selvagens e outrascoisas desagradáveis, tudo porque não selembravam das regrinhas simples que seusamigos lhes haviam ensinado: que umatiçador em brasa acaba queimando suamão se você insistir em segurá-lo por muitotempo; quando você corta o dedo muitofundo com uma faca, geralmente sai sangue;e ela nunca esquecera que, se você bebemuito de uma garrafa em que está escrito“veneno”, é quase certo que vai se sentirmal, mais cedo ou mais tarde.

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  • Como porém nessa garrafa não estava es-crito “veneno”, Alice se arriscou a provar e,achando o gosto muito bom (na verdade, erauma espécie de sabor misto de torta decereja, creme, abacaxi, peru assado, puxa-puxa e torrada quente com manteiga), deucabo dela num instante.

    “Que sensação estranha!” disse Alice; “devoestar encolhendo como um telescópio!”

    E estava mesmo: agora só tinha vinte ecinco centímetros de altura e seu rosto se

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  • iluminou à ideia de que chegara ao tamanhocerto para passar pela portinha e chegaràquele jardim encantador. Primeiro, no ent-anto, esperou alguns minutos para ver se iaencolher ainda mais: a ideia a deixou umpouco nervosa; “pois isso poderia acabar”,disse Alice consigo mesma, “me fazendosumir completamente, como uma vela.Nesse caso, como eu seria?” E tentou ima-ginar como é a chama de uma vela depoisque a vela se apaga, pois não conseguia selembrar de jamais ter visto tal coisa.

    Um pouco depois, descobrindo que nadamais acontecera, decidiu ir imediatamentepara o jardim; mas, ai da pobre Alice!quando chegou à porta, viu que tinha esque-cido a chavezinha de ouro e, quando voltouà mesa para pegá-la, constatou que nãoconseguia alcançá-la: podia vê-la muito bematravés do vidro, e fez o que pôde paratentar subir por uma das pernas da mesa,mas era escorregadia demais; tendo se

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  • cansado de tentar, a pobre criaturinha sen-tou no chão e chorou.

    “Vamos, não adianta nada chorar assim!”disse Alice para si mesma, num tom umtanto áspero, “eu a aconselho a parar já!”Em geral dava conselhos muito bons para simesma (embora raramente os seguisse),repreendendo-se de vez em quando tão sev-eramente que ficava com lágrimas nos olhos;certa vez teve a ideia de esbofetear as pró-prias orelhas por ter trapaceado num jogo decroqué que estava jogando contra si mesma,pois essa curiosa criança gostava muito defingir ser duas pessoas. “Mas agora”, pensoua pobre Alice, “não adianta nada fingir serduas pessoas! Ora, mal sobra alguma coisade mim para fazer uma pessoaapresentável!”

    Pouco depois deu com os olhos numacaixinha de vidro debaixo da mesa: abriu-a,e encontrou dentro um bolo muito pequeno,com as palavras “COMA-ME” lindamente escritas

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  • com passas sobre ele. “Bem, vou comê-lo”,disse Alice; “se me fizer crescer, posso al-cançar a chave; se me fizer diminuir, possome esgueirar por baixo da porta; assim, deuma maneira ou de outra vou conseguirchegar ao jardim; para mim tanto faz!”

    Comeu um pedacinho, e disse para simesma, aflita, “Para cima ou para baixo?Para cima ou para baixo?”, com a mão sobrea cabeça para sentir em que direção estavaindo, ficando muito surpresa ao verificarque continuava do mesmo tamanho: não hádúvida de que isso geralmente acontecequando se come bolo, mas Alice tinha seacostumado tanto a esperar só coisas esquis-itas acontecerem que lhe parecia muito semgraça e maçante que a vida seguisse damaneira habitual.

    Assim, pôs mãos à obra e, num segundo,deu cabo do bolo.

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  • CAPÍTULO 2

    A lagoa de lágrimas

    “CADA VEZ MAIS ESTRANHÍSSIMO!” exclamou Alice (asurpresa fora tanta que por um instante real-mente esqueceu como se fala direito).“Agora estou espichando como o maiortelescópio que já existiu! Adeus, pés!” (pois,quando olhou para eles, pareciam quase forado alcance de sua vista, de tão distantes).“Oh, meus pobres pezinhos, quem será quevai calçar meias e sapatos em vocês agora,queridos? Com certeza, eu é que não vouconseguir! Vou estar longe demais para meincomodar com vocês: arranjem-se como

  • puderem… Mas preciso ser gentil com eles”,pensou Alice, “ou quem sabe não vão andarno rumo que quero! Deixe-me ver. Vou darum par de botinas novas para eles todoNatal.”

    E continuou planejando com seus botõescomo faria isso. “Vão ter de ir pelo correio”,pensou; “e que engraçado vai ser, mandarpresentes para os próprios pés! E como o en-dereço vai parecer estranho!

    Exmo Sr. Pé Direito da Alice,Tapete junto à lareira

    Perto do guarda-fogo,(Com o amor da Alice).

    Ai, ai, quanto disparate estou dizendo!”Exatamente nesse momento sua cabeça

    bateu no teto do salão: de fato, agora estavacom quase três metros; agarrou

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  • imediatamente a chavezinha de ouro e foi li-geiro para a porta do jardim.

    Pobre Alice! O máximo que conseguiu,deitada de lado, foi olhar para o jardim comum olho só; chegar lá estava mais impossívelque nunca: sentou-se e começou a chorar denovo.

    “Devia ter vergonha”, disse Alice, “umamenina grande como você” (podia bem dizerisso), “chorando dessa maneira! Pare já, já,estou mandando!” Mesmo assim continuou,

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  • derramando galões de lágrimas, até que àsua volta se formou uma grande lagoa, comcerca de meio palmo de profundidade e seestendendo até a metade do salão.

    Passado algum tempo, ouviu uns passin-hos à distância e enxugou as lágrimas maisque depressa para ver o que estavachegando. Era o Coelho Branco de volta,esplendidamente vestido, com um par deluvas brancas de pelica em uma das mãos eum grande leque na outra: vinha a toda apressa, muito afobado, murmurando con-sigo: “Oh, a Duquesa, a Duquesa! Oh! Comovai ficar furiosa se eu a tiver feito esperar!”Alice estava tão desesperada que se sentiadisposta a pedir ajuda a qualquer um; assim,quando o Coelho Branco se aproximou,começou, com uma vozinha baixa, tímida:“Por gentileza, Sir…” O Coelho teve umforte sobressalto, deixou cair as luvas bran-cas de pelica e o leque, e escapuliu para aescuridão o mais depressa que pôde.

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  • Alice apanhou o leque e as luvas, e,como fazia muito calor no salão, ficou seabanando sem parar enquanto falava: “Ai,ai! Como tudo está esquisito hoje! E ontemas coisas aconteciam exatamente como decostume. Será que fui trocada durante anoite? Deixe-me pensar: eu era a mesmaquando me levantei esta manhã? Tenho umaligeira lembrança de que me senti um bo-cadinho diferente. Mas, se não sou a mesma,a próxima pergunta é: ‘Afinal de contasquem sou eu?’ Ah, este é o grande enigma!”E começou a pensar em todas as crianças dasua idade que conhecia, para ver se poderiater sido trocada por alguma delas.

    “Ada com certeza não sou”, disse,“porque o cabelo dela tem cachos bem lon-gos, e o meu não tem cacho nenhum; é claroque não posso ser Mabel, pois sei todo tipode coisas e ela, oh! sabe tão pouquinho!Além disso, ela é ela, e eu sou eu, e… ai, ai,que confusão é isto tudo! Vou experimentar

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  • para ver se sei tudo que sabia antes. Deixe-me ver: quatro vezes cinco é doze, e quatrovezes seis é treze, e quatro vezes sete é… ai,ai! deste jeito nunca vou chegar a vinte! Masa Tabuada de Multiplicar não conta; vamostentar Geografia. Londres é a capital de Par-is, e Paris é a capital de Roma, e Roma…não, está tudo errado, eu sei! Devo ter sidotrocada pela Mabel! Vou tentar recitar‘Como pode…’”, e de mãos cruzadas no colo,como se estivesse dando lição, começou arecitar, mas sua voz soava rouca e estranhae as palavras não vieram como costumavam:

    Como pode o crocodiloFazer sua cauda luzir,

    Borrifando a água do NiloQue dourada vem cair?

    Sorriso largo, vai nadando,E de manso, enquanto nada,

    Os peixinhos vai papando

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    Co’a bocarra escancarada!

  • “Tenho certeza de que estas não são aspalavras certas”, disse a pobre Alice, e seusolhos se encheram de lágrimas de novo en-quanto continuava. “Afinal de contas, devoser Mabel, e vou ter de ir morar naquela cas-inha apertada, e não ter quase nenhum brin-quedo com que brincar, e oh! muitíssimaslições para aprender! Não, minha decisão es-tá tomada; se sou Mabel, vou ficar aqui! Nãovai adiantar nada eles encostarem suascabeças no chão e pedirem ‘Volte para cá,querida!’ Vou simplesmente olhar para cimae dizer ‘Então quem sou eu? Primeiro me di-gam; aí, se eu gostar de ser essa pessoa, eusubo; se não, fico aqui embaixo até ser al-guma outra pessoa’… Mas, ai, ai!” exclamouAlice numa súbita explosão de lágrimas,“queria muito que encostassem a cabeça nochão! Estou tão cansada de ficar assim soz-inha aqui!”

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  • Ao dizer isto, olhou para as suas mãos eteve a surpresa de ver que calçara uma dasluvinhas brancas de pelica do Coelho en-quanto falava. “Como posso ter feito isso?”pensou. “Devo estar ficando pequena denovo.” Levantou-se, foi até a mesa para semedir por ela e descobriu que, tanto quantopodia calcular, estava agora com uns ses-senta centímetros, continuando a encolherrapidamente: logo descobriu que a causa erao leque que estava segurando e jogou-obruscamente no chão, escapando por poucode encolher até sumir de vez.

    “Foi por um triz!” disse Alice, bastanteapavorada com a mudança repentina, masmuito satisfeita por ainda estar existindo. “Eagora, para o jardim!” e correu a toda devolta à portinha — mas, que pena! aportinha se fechara de novo e a chavezinhade ouro continuava sobre a mesa comoantes; “as coisas estão piores que nunca”,pensou a pobre criança, “pois nunca fui tão

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  • pequena assim antes, nunca! Eu garanto, istoé muito ruim, de verdade!”

    Quando dizia essas palavras, pisou emfalso e, num instante, tchibum! estava comágua salgada até o queixo. A primeira ideiaque lhe ocorreu foi que, de alguma maneira,caíra no mar, “e nesse caso posso voltar detrem”, disse de si para si. (Alice tinha estadoà beira-mar uma vez na vida, e chegara àconclusão geral de que, onde quer que se váno litoral da Inglaterra, encontram-se umaporção de máquinas de banho no mar, algu-mas crianças escavando a areia com pás demadeira, uma fileira de hospedarias e, atrásdelas, uma estação ferroviária.) Contudo,logo se deu conta de que estava na lagoa delágrimas que chorara quando tinha quasetrês metros.

    “Gostaria de não ter chorado tanto!”disse Alice, enquanto nadava de um ladopara outro, tentando encontrar uma saída.“Parece que vou ser castigada por isso

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  • agora, afogando-me nas minhas próprias lá-grimas! Vai ser uma coisa esquisita, lá issovai! Mas está tudo esquisito hoje.”

    Nesse instante, ouviu alguma coisa es-padanando água na lagoa um pouco adiantee se aproximou a nado para ver o que era:de início pensou que devia ser uma morsaou um hipopótamo, mas então se lembroudo quão pequena estava agora e logo se deuconta de que era só um camundongo quetambém escorregara na água.

    “Será que adiantaria alguma coisa,agora,” pensou Alice, “falar com este camun-dongo? É tudo tão estranho aqui embaixo

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  • que é bem capaz de ele saber falar; dequalquer modo, não custa tentar.” Assim,começou: “Ó Camundongo, sabe como se fazpara sair desta lagoa? Estou muito cansadade ficar nadando para todo lado, ó Camun-dongo!” (Alice achava que essa devia ser amaneira correta de se dirigir a um camun-dongo; nunca fizera isso antes, mas se lem-brava de ter visto na Gramática Latina doirmão: “Um camundongo… de um camun-dongo… para um camundongo… umcamundongo… ó camundongo!”) OCamundongo lançou-lhe um olhar um tantoinquisitivo, pareceu piscar um olho, mas nãodisse nada.

    “Talvez não entenda inglês”, pensouAlice. “Aposto que é um camundongofrancês, que veio com Guilherme, o Con-quistador.” (Pois, com todo o seu conheci-mento de história, Alice não tinha uma ideialá muito clara de há quanto tempo qualquercoisa tinha acontecido.) Assim, recomeçou:

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  • “Où est ma chatte?” que era a primeira frasedo seu livro de francês. O Camundongo pu-lou fora d’água e pareceu estremecer todode medo. “Oh, desculpe-me!” Alice se apres-sou em exclamar, temendo ter magoado ossentimentos do pobre animal. “Esqueci com-pletamente que você não gostava de gatos.”

    “Não gostar de gatos!” gritou o Camun-dongo com uma voz estridente, exaltada.“Você gostaria, se fosse eu?”

    “Bem, talvez não”, respondeu Alice numtom apaziguador. “Não se zangue com isso.Mesmo assim, gostaria de poder lhe mostrarnossa gata Dinah: acho que começaria a teruma quedinha por gatos se ao menospudesse vê-la. É uma coisinha tranquila, tãoquerida”, Alice continuou, falando mais parasi mesma, enquanto nadava lentamente pelalagoa, “se senta ronronando tão bonitinhojunto da lareira, lambendo as patas elimpando o rosto… é um bichinho tão maciopara se ninar… e é tão formidável para

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  • pegar camundongos… oh, desculpe-me!” ex-clamou de novo, porque desta vez o Camun-dongo estava ficando todo arrepiado, o quelhe deu a certeza de que devia estar real-mente ofendido. “Nós não falaremos maissobre ela, se você prefere.”

    “Nós, é claro!” gritou o Camundongo,que agora tremia até a ponta do rabo.“Como se eu fosse falar de um assuntodesse! Nossa família sempre detestou gatos:criaturas nojentas, baixas, vulgares! Não mefaça ouvir esse nome de novo!”

    “Pode estar certo que não!” disse Alice,aflita por mudar o rumo da conversa. “Poracaso você… gosta… de… de cachorros?”Como o Camundongo não respondeu, Alicecontinuou, animada: “Há um cachorrinhotão lindo perto da nossa casa, gostaria de lhemostrar! Um terrier pequenino, de olhos es-pertos, sabe, com oh! um pelo marrom tãoencaracolado! E ele apanha as coisas quandoa gente joga, e se senta e pede o seu jantar,

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  • essas coisas todas… Não consigo me lembrarde metade delas… e o dono dele, umfazendeiro, sabe, diz que ele é tão útil quevale uma centena de libras! Diz que mata to-dos os ratos… ai, ai!” exclamou Alice, con-doída. “Acho que o ofendi de novo!” Pois oCamundongo estava se afastando dela anado o mais rápido que podia, causando umverdadeiro rebuliço na lagoa.

    Então ela o chamou bem de mansinho:“Querido Camundongo! Volte aqui, e nãofalaremos mais de gatos nem tampouco decachorros, se não gosta deles!” Ao ouvir isso,o Camundongo deu meia-volta e veionadando devagar em direção a ela: tinha orosto pálido (de emoção, pensou Alice), edisse com voz baixa e trêmula: “Vamos paraa margem. Lá eu lhe contarei minha históriae você vai compreender por que odeio gatose cachorros.”

    Era mais do que hora de ir, pois a lagoaestava ficando apinhada de aves e animais

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  • que tinham caído nela: havia um Pato e umDodô, um Papagaio e uma Aguieta, além devárias outras criaturas curiosas. Alice tomoua dianteira e o grupo todo nadou para amargem.

  • CAPÍTULO 3

    Uma corrida em comitê e umahistória comprida

    PARECIA MESMO UM GRUPO ESTRAMBÓTICO o que se re-uniu na margem: as aves com as penasenxovalhadas, os animais com o pelogrudado no corpo, e todos ensopados, mal-humorados e indispostos.

    A primeira questão, claro, era como seenxugar: confabularam sobre isso e, após al-guns minutos, pareceu muito natural a Alicever-se conversando intimamente com eles,

  • como se os tivesse conhecido a vida toda. Naverdade, teve uma discussão bastante longacom o Papagaio, que acabou se zangando esó dizia: “Sou mais velho que você e devosaber mais”; isso Alice se recusava a admitir,sem saber quantos anos ele tinha, e, como oPapagaio se negou categoricamente a rev-elar sua idade, não havia mais nada a dizer.

    Finalmente o Camundongo, que pareciaser uma autoridade entre eles, bradou:“Sentem-se, vocês todos, e ouçam-me! Voudeixá-los bem secos logo, logo!” Todos sesentaram imediatamente num grande cír-culo, com o Camundongo no meio. Aliceficou de olhos pregados nele, ansiosa, poistinha certeza de que pegaria uma gripe feiase não secasse rápido.

    “Ham!” fez o Camundongo com ar im-portante. “Estão todos prontos? Esta é acoisa mais seca que eu conheço. Silêncio doprincípio ao fim, por favor! ‘Guilherme, oConquistador, cuja causa era apoiada pelo

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  • papa, logo se rendeu aos ingleses, que queri-am líderes, e andavam ultimamente muitoacostumados com usurpação e conquista.Edwin e Morcar, condes da Mércia e daNortúmbria…’”

    “Arre!” soltou o Papagaio, com umarrepio.

    “Perdão!” falou o Camundongo,fechando a cara, mas muito polido: “Dissealguma coisa?”

    “Eu não!” o Papagaio se apressou emresponder.

    “Pensei que tinha”, disse o Camundongo.“Continuando: ‘Edwin e Morcar, condes daMércia e da Nortúmbria, proclamaram seuapoio a ele e até Stigand, o patriótico ar-cebispo de Canterbury, achando issooportuno…’”

    “Achando o quê?” indagou o Pato.

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  • “Achando isso”, respondeu o Camun-dongo, bastante irritado. “Suponho quesaiba o que ‘isso’ significa.”

    “Sei muito bem o que ‘isso’ significaquando eu acho uma coisa”, disse o Pato.“Em geral é uma rã ou uma minhoca. Aquestão é: o que foi que o arcebispo achou?”

    Sem tomar conhecimento da pergunta, oCamundongo se apressou em continuar:“‘…achando isso oportuno, foi com EdgarAtheling ao encontro de Guilherme e lheofereceu a coroa. De início a conduta deGuilherme foi moderada. Mas a insolênciade seus normandos…’. Como está se sen-tindo agora, meu bem?” continuou, olhandopara Alice enquanto falava.

    “Mais molhada do que nunca”, re-spondeu Alice, desgostosa. “Isso não pareceme secar nadinha.”

    “Nesse caso”, disse o Dodô solenemente,ficando de pé, “proponho que a assembleia

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  • seja adiada para a adoção imediata de remé-dios mais drásticos…”

    “Fale inglês!” exclamou a Aguieta. “Nãosei o sentido de metade dessas palavras com-pridas e, o que é pior, nem acredito que vo-cê saiba!” E baixou a cabeça para dissimularum sorriso; algumas das outras aves sol-taram risadinhas audíveis.

    “O que eu ia dizer”, disse o Dodô numtom ofendido, “é que a melhor coisa paranos secar seria uma corrida em comitê.”

    “O que é uma corrida em comitê?” per-guntou Alice; não que quisesse muito saber,mas o Dodô tinha feito uma pausa como seachasse que alguém devia falar, e mais nin-guém parecia inclinado a dizer coisaalguma.

    “Ora”, disse o Dodô, “a melhor maneirade explicar é fazer.” (E, como você podequerer experimentar a coisa por conta

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  • própria, num dia de inverno, vou lhe contarcomo o Dodô a organizou.)

    Primeiro traçou uma pista de corrida,uma espécie de círculo (“a forma exata nãotem importância”, ele disse) e depois todo ogrupo foi espalhado pela pista, aqui e ali.Não houve “Um, dois, três e já”: começarama correr quando bem entenderam e pararamtambém quando bem entenderam, de modoque não foi fácil saber quando a corridahavia terminado. Contudo, quando estavamcorrendo já havia uma meia hora, e com-pletamente secos de novo, o Dodô de re-pente anunciou: “A corrida terminou!” e to-dos se juntaram em torno dele, perguntandoesbaforidos: “Mas quem ganhou?”

    O Dodô não pôde responder a essa per-gunta sem antes pensar muito, e ficou sen-tado um longo tempo com um dedo es-petado na testa (a posição em que você ger-almente vê Shakespeare, nas imagens dele),enquanto o resto esperava em silêncio.

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  • Finalmente o Dodô declarou: “Todo mundoganhou, e todos devem ganhar prêmios.”

    “Mas quem vai dar os prêmios?” um ver-dadeiro coro de vozes perguntou.

    “Ora, ela, é claro”, disse o Dodô, apont-ando o dedo para Alice; e o grupo todo seamontoou em torno dela, numa gritaria con-fusa: “Prêmios! Prêmios!”

    Alice não tinha a menor ideia do quefazer e, no seu desespero, enfiou a mão nobolso, tirou uma caixinha de confeitos (feliz-mente não entrara água salgada nela) edistribuiu-os como prêmios. Havia exata-mente um para cada um.

  • “Mas ela também deve ganhar umprêmio!” exclamou o Camundongo.

    “Claro”, respondeu o Dodô, muito grave-mente. “Que mais você tem no bolso?”continuou, voltando-se para Alice.

    “Só um dedal”, disse Alice, tristonha.“Pois dê cá esse dedal”, disse o Dodô.Em seguida todos se juntaram em torno

    dela de novo, enquanto o Dodô a presen-teava solenemente com o dedal, dizendo:

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  • “Humildemente lhe pedimos que aceite esteelegante dedal”; e, quando encerrou essebreve discurso, todos aplaudiram.

    Alice achou aquilo tudo muito absurdo,mas todos pareciam tão sérios que não ou-sou rir; como não lhe ocorreu nada paradizer, simplesmente fez uma reverência epegou o dedal, com o ar mais solene quearranjou.

    Depois veio a hora de comer os confeitos;isso provocou algum barulho e confusão,com as aves grandes se queixando de quenão conseguiam sentir o gosto dos seus, e asmenores engasgando e tendo de levarpalmadas nas costas. Mas finalmente tudoterminou e eles se sentaram de novo numcírculo e pediram ao Camundongo que lhescontasse mais alguma coisa.

    “Prometeu me contar a sua história,lembra?” perguntou-lhe Alice. “E por quedetesta… G e C”, acrescentou num sussurro,com medo de que se ofendesse de novo.

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  • “Todo o rosário, de cabo a rabo? Ele écomprido e triste”, disse o Camundongo,virando-se para Alice e suspirando.

    “Comprido ele é, sem dúvida”, disseAlice, olhando assombrada o rabo doCamundongo; “mas por que diz que étriste?” E ficou ruminando a questão en-quanto o Camundongo falava, de modo quea ideia que fez da história foi mais ou menosassim:

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  • “Você não está prestando atenção!” disseo Camundongo severamente a Alice. “Emque está pensando?”

    “Peço desculpa”, disse Alice, muito hu-milde. “Nós tínhamos chegado à quintavolta, não é?”

    “Nós, não!” gritou o Camundongo, muitobrusco e zangado.

    “Nós!” exclamou Alice, sempreprestativa, olhando ansiosa ao seu redor.“Oh, deixe-me ajudar a desatá-los!”

    “Não vou fazer nada disso”, disse oCamundongo pondo-se de pé e se afastando.“Você me insulta falando tanto disparate!”

    “Foi sem querer!” protestou a pobreAlice. “Mas como você se ofende à toa!”

    A resposta do Camundongo foi só umresmungo.

    “Por favor, volte e termine a suahistória!” Alice chamou-o; e todos os outrosfizeram coro com ela. “Sim, por favor,

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  • volte!” mas o Camundongo apenas sacudiu acabeça, impaciente, e apertou o passo umpouquinho.

    “Que pena ele não ficar!” suspirou oPapagaio, assim que o Camundongo sumiude vista; e uma velha Carangueja aproveitoua oportunidade para dizer à filha: “Ah,minha querida! Que isto lhe sirva de lição:nunca perca a sua calma!” Ao que a jovemCarangueja respondeu, um tantinho in-solente: “Bico calado, mamãe! Com você atéuma ostra perde a paciência!”

    “Quem me dera que a nossa Dinah est-ivesse aqui, quem me dera!” Alice disse alto,sem se dirigir a ninguém em particular.“Num instante ela o traria de volta!”

    “E quem é Dinah, se é que posso me atre-ver a perguntar?” disse o Papagaio.

    Alice respondeu com entusiasmo, pois es-tava sempre disposta a falar sobre suabichana: “Dinah é a nossa gata. Vocês não

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  • imaginam como é formidável para apanharcamundongos! E, oh! gostaria que pudessemvê-la atrás das aves! Ah! Mal vê um passar-inho, e ele já está no papo.”

    Essa fala causou especial comoção entreo grupo. Algumas das aves saíram correndoimediatamente; uma velha gralha começou ase agasalhar com muito cuidado, coment-ando: “Realmente preciso ir para casa; o ser-eno não convém à minha garganta!” E umCanário chamou os filhos numa voz trêmula:“Vamos embora, meus queridos! Já estámais do que na hora de estarem todos nacama!” Sob pretextos variados, todos seafastaram e Alice logo se viu só.

    “Não devia ter mencionado a Dinah!”disse tristemente com seus botões. “Pareceque ninguém gosta dela aqui embaixo, etenho certeza de que é a melhor gata domundo! Oh, minha Dinahzinha, será quevou vê-la outra vez?” E aqui a pobre Alicecomeçou a chorar de novo, sentindo-se

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  • muito sozinha e acabrunhada. Dali a pouco,no entanto, voltou a ouvir um barulhinho depassos à distância e levantou os olhos ansio-sa, com uma ponta de esperança de que oCamundongo tivesse mudado de ideia eresolvido voltar para terminar a sua história.

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  • CAPÍTULO 4

    Bill paga o pato

    ERA O COELHO BRANCO caminhando de volta, de-vagar, olhando ansioso para todos os ladoscomo se tivesse perdido alguma coisa; e elao ouviu murmurar consigo mesmo: “ADuquesa! A Duquesa! Oh, minhas patasqueridas! Oh, meu pelo e meus bigodes! Vaimandar me executar, tão certo quanto don-inhas são doninhas! Onde posso tê-los deix-ado cair? me pergunto!” Alice adivinhou nomesmo instante que estava procurando o le-que e o par de luvas brancas de pelica e,muito amavelmente, começou também a

  • buscá-los aqui e ali, mas não conseguiuavistá-los em lugar algum… tudo parecia termudado desde seu nado na lagoa, e o grandesalão, com a mesa de vidro e a portinha, de-saparecera por completo.

    Logo, logo o Coelho se deu conta dapresença de Alice, enquanto ela procuravapor todos os lados, e chamou-a com voz ir-ritada: “Ora essa, Mary Ann, que estáfazendo aqui? Corra já até em casa e metraga um par de luvas e um leque! Rápido,vá!” Alice ficou tão amedrontada que correuimediatamente na direção que ele apontou,sem nem tentar lhe explicar o engano.

    “Ele me confundiu com a sua criada”,disse consigo enquanto corria. “Como vaificar surpreso quando descobrir quem eusou! Mas é melhor lhe trazer o leque e asluvas… isto é, se eu conseguir achá-los.” Aodizer isso, topou com uma casa pequenina ejeitosa; na porta, uma placa de bronze traziao nome “COELHO B.” gravado. Entrou sem bater

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  • e correu escada acima, com muito medo dedar de cara com a verdadeira Mary Ann eser expulsa da casa antes de achar o leque eas luvas.

    “Como parece esquisito”, disse Alice con-sigo mesma, “receber incumbências de umcoelho! Logo, logo a Dinah vai estar medando ordens!” E começou a imaginar quetipo de coisa iria acontecer: “SenhoritaAlice! Venha imediatamente e apronte-separa sua caminhada!” “Estou indo num se-gundo, ama! Mas tenho de ficar tomandoconta para o camundongo não sair.” “Só quenão acho”, Alice continuou, “que eles deix-ariam a Dinah ficar lá em casa se elacomeçasse a dar ordens às pessoas dessejeito!”

    A essa altura havia entrado numquartinho bem-arrumado, com uma mesa àjanela e, sobre ela (como esperara), um le-que e dois ou três pares de minúsculas luvasbrancas de pelica. Pegou o leque e um par

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  • de luvas e estava prestes a sair do quartoquando bateu o olho numa garrafinha pou-sada junto do espelho. Desta vez não havianenhum rótulo com a palavra “BEBA-ME”, masmesmo assim ela a desarrolhou e levou aoslábios. “Sei que alguma coisa interessantesempre acontece”, pensou, “cada vez quecomo ou tomo qualquer coisa; então vou sóver o que é que esta garrafa faz. Espero queme faça crescer de novo, porque estou real-mente cansada de ser esta coisinha tãopequenininha.”

    Foi o que aconteceu, e bem mais de-pressa do que Alice esperara: antes de tomara metade da garrafa, sentiu a cabeçaforçando o teto e teve de se abaixar paranão quebrar o pescoço. Pousou a garrafarápido, dizendo para si: “É mais do que obastante… Espero não crescer ainda mais…Do jeito que está, já não passo pela porta…Não devia ter bebido tanto!”

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  • Que pena! Era tarde para se lamentar!Continuou crescendo, crescendo, e dali apouco teve de se ajoelhar no chão; mais uminstante e não havia mais espaço para tal;tentou então o artifício de se deitar com umcotovelo contra a porta e o outro braço en-rolado em volta da cabeça. Mas ainda con-tinuou crescendo, e, como último recurso,enfiou um braço pela janela afora e um pépela chaminé acima, murmurando: “Agoranão posso fazer mais nada, aconteça o queacontecer. O que vai ser de mim?”

    Para sorte de Alice, a garrafinha mágicajá tivera seu pleno efeito e ela não ficoumaior. Mesmo assim, aquilo estava muitodesconfortável, e, como parecia não ter amenor possibilidade de sair do quarto, nãoadmira que se sentisse infeliz.

    “Era muito mais agradável lá em casa”,pensou a pobre Alice, “lá não se ficavasempre crescendo e diminuindo, e re-cebendo ordens aqui e acolá de

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  • camundongos e coelhos. Chego quase adesejar não ter descido por aquela toca decoelho… no entanto… no entanto… ébastante interessante este tipo de vida! Real-mente me pergunto o que pode ter aconte-cido comigo! Quando lia contos de fadas, euimaginava que aquelas coisas nunca aconte-ciam, e agora cá estou no meio de uma!Deveria haver um livro escrito sobre mim,ah isso deveria! E quando eu for grande, vouescrever um… mas sou grande agora”, acres-centou num tom pesaroso. “Pelo menos aquinão há mais espaço para crescer mais.”

    “Mas nesse caso”, pensou Alice, “seráque nunca vou ficar mais velha do que souagora? Não deixa de ser um consolo… nuncaficar uma velha… mas por outro lado…sempre ter lições para estudar! Oh! Eu nãoiria gostar disso!”

    “Oh, Alice, sua tola!”, respondeu a simesma. “Como vai poder estudar as lições

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  • aqui? Ora, mal há lugar para você, que dirápara os livros!”

    E assim continuou, tomando primeiro umlado e depois o outro, e transformandoaquilo numa conversa completa. Passadosalguns momentos, porém, ouviu uma voz láfora e parou para escutar.

    “Mary Ann! Mary Ann!” disse a voz.“Pegue minhas luvas já!” Depois ouviu osom de passinhos na escada. Alice sabia queera o Coelho à sua procura, e tremeu atéfazer a casa sacudir, completamente esque-cida de que agora era umas mil vezes maior

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  • do que o Coelho e não tinha razão algumapara temê-lo.

    Logo o Coelho chegou à porta e tentouabri-la, mas, como abria para dentro e ocotovelo de Alice estava comprimido contraela, a tentativa revelou-se um fracasso. Aliceouviu-o murmurar: “Neste caso, vou dar avolta e entrar pela janela.”

    “Isso é que não”, pensou Alice, e, apósesperar até ter a impressão de ouvir oCoelho ao pé da janela, abriu de repente amão e fez um gesto de agarrar algo no ar.Não agarrou coisa alguma, mas ouviu umpequeno guincho, uma queda e um ruído devidro quebrado, do que concluiu que pos-sivelmente ele caíra numa estufa de pepinos,ou algo do gênero.

    Em seguida veio uma voz furiosa — a doCoelho: “Pat! Pat! Onde está você?” E depoisuma voz que ela nunca ouvira antes. “Comcerteza estou aqui! Escavando maçãs, voss’excelença.”

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  • “Escavando maçãs, pois sim!” disse oCoelho, irritado. “Aqui! Venha me ajudar asair disto!” (Mais sons de vidro quebrado.)

    “Agora me diga, Pat. Que é aquilo najanela?”

    “Com certeza é um braço, voss’ ex-celença!” (Pronunciava brass.)

    “Que braço, seu pateta! Quem já viubraço daquele tamanho? Como! Ocupa ajanela inteira!”

    “Com certeza enche, voss’ excelença; masnão deixa de ser um braço.”

    “Bem, seja como for, ele não tem nadaque fazer ali. Vá e suma com ele!”

    Em seguida fez-se um longo silêncio, eAlice pôde ouvir apenas uns cochichos vezpor outra, como: “Com certeza não gostodisso, voss’ excelença, nada, nada!” “Faça oque estou mandando, seu covarde”, e porfim ela abriu a mão de novo, fazendo outrogesto de agarrar algo no ar. Desta vez houve

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  • dois guinchos, e mais sons de vidroquebrado. “Quantas estufas de pepino!” pen-sou Alice. “O que será que vão fazer agora?Quanto a me puxar pela janela, eu bemqueria que pudessem! Tenho certeza de quenão quero ficar aqui nem mais um minuto.”

    Esperou algum tempo sem ouvir maisnada; finalmente escutou um rangido derodinhas de carroça e o som de uma porçãode vozes, todas falando ao mesmo tempo.Conseguiu entender as palavras: “Onde estáa outra escada?” “Ora, eu só tinha de trazeruma; o Bill pegou a outra.” “Bill! Traga issoaqui rapaz!” “Ponha as duas de pé nestecanto.” “Não, primeiro amarre uma naoutra… mesmo assim não vão chegar nem àmetade da altura.” “Oh! Vão dar muito bem,não seja tão meticuloso.” “Aqui, Bill! Segureesta corda.” “Será que o teto aguenta?”“Cuidado com aquela telha solta.” “Opa! Lávem ela! Abaixem a cabeça!” (ruído de coisase espatifando). “Ora essa, quem fez isso?”

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  • “Foi o Bill, eu acho.” “Quem vai descer pelachaminé?” “Eu é que não! Você desce!”“Então também não desço!” “O Bill é quetem de descer.” “Ei, Bill! O patrão estádizendo que é para você descer pelachaminé!”

    “Ah! Então é o Bill que tem de descerpela chaminé, não é?”, disse Alice consigomesma. “Que vergonha, parece que jogamtudo em cima do Bill! Não queria estar nolugar do Bill por nada. Esta lareira é estreita,é verdade; mas acho que consigo dar unsbons pontapés!”

    Afundou o pé o mais que pôde na cham-iné, e esperou até ouvir um bichinho (nãoconseguiu adivinhar de que tipo era) arran-hando e trepando na base da chaminé acimadela. Então, dizendo consigo “É o Bill”, deuum forte pontapé e esperou para ver o queiria acontecer.

    A primeira coisa que ouviu foi um corogeral, “Lá vai o Bill!”, depois a voz do

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  • Coelho sobressaiu: “Levantem-no, vocês aíperto da cerca!”; depois silêncio e entãooutra confusão de vozes: “Ergam a cabeçadele.” “Um gole de conhaque.” “Não ofaçam engasgar.” “Como foi isso, compan-heiro? Que foi que lhe aconteceu? Conte-nostudo.”

    Por fim veio uma vozinha fraca, esgan-içada (“É o Bill”, pensou Alice): “Bem, eumesmo não sei… Chega, obrigado; estoumelhor agora… mas estou um pouco atar-antado demais para lhes contar… O que eusei é que uma coisa bateu em mim, comoum boneco saltando de uma caixa de sur-presa, e voei como um foguete!”

    “Voou mesmo, companheiro!” disseramos outros.

    “Temos de botar fogo na casa!” ouviu-sea voz do Coelho; e Alice berrou o mais altoque pôde: “Se fizerem isso, solto a Dinah emcima de vocês!”

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  • Um silêncio profundo baixou no mesmoinstante, e Alice matutou: “Gostaria de sabero que vão fazer agora! Se raciocinassem umpouquinho, arrancariam o telhado fora.” De-pois de um ou dois minutos, eles começarama se agitar de novo, e Alice ouviu o Coelhodizer: “Um carrinho de mão cheio está bom,para começar.”

    “Um carrinho de mão cheio de quê?”pensou Alice; mas não teve muito tempopara conjeturar, porque no segundo seguinteuma chuva de pedrinhas começou a pipocarna janela e algumas a atingiram no rosto.“Vou acabar com isto”, disse consigomesma, e gritou: “Melhor não repetiremisso!” o que produziu outro silêncioprofundo.

    Alice notou, com alguma surpresa, que aspedrinhas espalhadas no chão estavam todasvirando bolinhos, e uma ideia luminosa lheveio à cabeça. “Se eu comer um destes bolin-hos”, pensou, “ele com certeza vai produzir

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  • alguma mudança no meu tamanho; e, comonão é possível ele me aumentar, só pode mediminuir, suponho.”

    Assim, devorou um dos bolos e ficou sat-isfeitíssima ao ver que começou a diminuirimediatamente. Assim que ficou pequena obastante para passar pela porta, correu parafora da casa e encontrou um bando de ani-maizinhos e aves esperando. O pobrelagarto, Bill, estava no meio, sustentado pordois porquinhos-da-índia que lhe davam al-guma coisa de uma garrafa. Todosavançaram para Alice no instante em queela apareceu; mas ela correu o mais rápidoque pôde e logo se viu a salvo num densobosque.

    “A primeira coisa que tenho de fazer”,disse Alice para si mesma enquanto vagavapelo bosque, “é voltar para o meu tamanhode novo; e a segunda é chegar àquele jardimencantador. Acho que este é o melhorplano.”

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  • Parecia um plano excelente, sem dúvida,e arranjado com muita ordem e simplicid-ade; o único problema era que ela não tinhaa menor ideia de por onde começar; e en-quanto, muito aflita, espreitava atentamenteentre as árvores, um latidinho agudo logoacima da sua cabeça a fez erguer os olhosnum átimo.

    Um enorme filhote de cachorro olhavapara ela com seus olhos redondos e graúdos,esticando debilmente uma pata, tentandotocá-la. “Pobre bichinho!” disse Alice, comcarinho, e fez um grande esforço para asso-biar para ele; mas o tempo todo estava sesentindo terrivelmente amedrontada com aideia de que ele podia estar com fome, casoem que muito provavelmente iria comê-la,apesar de todos os seus afagos.

    Mal sabendo o que fazia, apanhou umgraveto e o estendeu para o cachorrinho; di-ante disso o filhote saltou no ar, todas as pa-tas de uma vez, com um latido de deleite, e

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  • avançou contra o graveto, fingindo ter medodele; depois Alice se esquivou atrás de umgrande cardo para não ser atropelada; assimque apareceu do outro lado, o cachorrinhofez outra investida contra o graveto e deuuma cambalhota na afobação de agarrá-lo;então Alice, achando que aquilo era muitoparecido com brincar com um cavalinho, eesperando ser pisoteada por ele a qualquermomento, correu de novo para trás docardo; em seguida o filhote iniciou umasérie de breves investidas para o graveto,correndo cada vez bem pouquinho para afrente e muito para trás, arquejando, a lín-gua pendendo da boca, os olhos enormessemicerrados.

    Aquela pareceu a Alice uma boa opor-tunidade para fugir; assim, partiu imediata-mente, correndo até ficar realmente cansadae sem fôlego, até o latido do cachorrinhosoar muito fraco à distância.

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  • “Ainda assim, que cachorro engraçad-inho!” disse Alice, encostando-se num botão-de-ouro para descansar e se abanando comuma das folhas: “Teria gostado muito de en-sinar alguns truques a ele… se pelo menosestivesse do tamanho certo para isso! Ai, ai!Tinha quase me esquecido de que precisocrescer de novo! Deixe-me ver… como possoconseguir isso? Suponho que teria de comerou beber uma coisa ou outra; mas a grandequestão é: o quê?”

    A grande questão era, certamente, “oquê?”. Alice olhou para as flores e a relvaque a cercavam por todos os lados, mas nãoviu nada que parecesse a coisa certa para secomer ou beber naquelas circunstâncias.Havia perto dela um cogumelo grande,quase da sua altura; depois de olhar em-baixo dele, e dos dois lados, e atrás, ocorreu-lhe que não seria má ideia espiar o quehavia em cima dele.

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  • Esticou-se na ponta dos pés e espiousobre a borda do cogumelo e seu olhar en-controu imediatamente o de uma grandelagarta azul, sentada no topo, de braçoscruzados, fumando tranquilamente um com-prido narguilé, sem dar a mínima atenção aela ou a qualquer outra coisa.

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  • CAPÍTULO 5

    Conselho de uma Lagarta

    A LAGARTA E ALICE ficaram olhando uma para aoutra algum tempo em silêncio. Finalmentea Lagarta tirou o narguilé da boca e se diri-giu a ela numa voz lânguida, sonolenta.

    “Quem é você?” perguntou a Lagarta.Não era um começo de conversa muito

    animador. Alice respondeu, meio encabu-lada: “Eu… eu mal sei, Sir, neste exato mo-mento… pelo menos sei quem eu era quandome levantei esta manhã, mas acho que jápassei por várias mudanças desde então.”

  • “Que quer dizer com isso?” esbravejou aLagarta. “Explique-se!”

    “Receio não poder me explicar”, re-spondeu Alice, “porque não sou eu mesma,entende?”

    “Não entendo”, disse a Lagarta.“Receio não poder ser mais clara”, Alice

    respondeu com muita polidez, “pois eumesma não consigo entender, para começar;e ser de tantos tamanhos diferentes num diaé muito perturbador.”

  • “Não é”, disse a Lagarta.“Bem, talvez ainda não tenha descoberto

    isso”, disse Alice; “mas quando tiver de viraruma crisálida… vai acontecer um dia,sabe… e mais tarde uma borboleta, diria

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  • que vai achar isso um pouco esquisito, nãovai?”

    “Nem um pouquinho”, disse a Lagarta.“Bem, talvez seus sentimentos sejam

    diferentes”, concordou Alice; “tudo que sei éque para mim isso pareceria muitoesquisito.”

    “Você!” desdenhou a Lagarta. “Quem évocê?”

    O que as levou de novo para o início daconversa. Alice, um pouco irritada com oscomentários tão breves da Lagarta,empertigou-se e disse, muito gravemente:“Acho que primeiro você deveria me dizerquem é.”

    “Por quê?” indagou a Lagarta.Aqui estava outra pergunta desconcer-

    tante; e como não pudesse atinar com nen-huma boa razão, e a Lagarta parecesse estarnuma disposição de ânimo muito de-sagradável, Alice deu meia-volta.

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  • “Volte!” chamou a Lagarta. “Tenho umacoisa importante para dizer!”

    Isso parecia promissor, sem dúvida; Alicese virou e voltou.

    “Controle-se”, disse a Lagarta.“Isso é tudo?” quis saber Alice, engolindo

    a raiva o melhor que podia.“Não”, respondeu a Lagarta.Alice pensou que podia muito bem esper-

    ar, já que não tinha mais nada a fazer etalvez, afinal, ela dissesse alguma coisa quevalesse a pena ouvir. Por alguns minutos aLagarta soltou baforadas sem falar, mas porfim descruzou os braços, tirou o narguilé daboca de novo e disse: “Então acha que estámudada, não é?”

    “Receio que sim, Sir”, disse Alice. “Nãoconsigo me lembrar das coisas como antes…e não fico do mesmo tamanho por dezminutos seguidos!”

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  • “Não consegue se lembrar de quecoisas?” perguntou a Lagarta.

    “Bem, tentei recitar ‘Como pode a abelh-inha atarefada’, mas saiu tudo diferente!”Alice respondeu com voz tristonha.

    “Recite ‘Está velho, Pai William’”, disse aLagarta.

    Alice juntou as mãos e começou:“Está velho, Pai William”,

    Disse o moço admirado.“Como é que ainda faz

    Cabriola em seu estado?”“Fosse eu moço, meu rapaz,

    Podia os miolos afrouxar;Mas agora já estão moles,

    Para que me preocupar?”“Está velho”, disse o moço,

    “E gordo como uma pipa;Mas o vi numa cambalhota…

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  • Não teme dar nó na tripa?”“Quando moço”, disse o sábio,

    “Fui sempre muito ágil; usava estapomada:

    É só um xelim a caixa, nãoNão quer dar uma experimentada?”

    “Está velho”, disse o moço,“Seus dois dentes já estão bambos,

    Mas gosta de chupar cana,Como então não caem ambos?”

    “Quando moço”, disse o pai,“Sempre evitei mastigar.

    Foi assim que estes dois dentesConsegui economizar.”

    “Está velho”, disse o moço,“Já não enxerga de dia,

    Como então inda equilibraNo seu nariz uma enguia?”

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  • “Já respondi a três perguntas,Parece mais que o bastante,

    Suma já ou eu lhe mostroQuem aqui é o importante.”

    “Isso não está correto”, falou a Lagarta.“Não completamente, acho”, disse Alice;

    “algumas palavras foram alteradas.”“Está errado do princípio ao fim”, de-

    clarou a Lagarta, peremptória. E seguiram-sealguns minutos de silêncio.

    A Lagarta foi a primeira a falar.“De que tamanho você quer ser?”

    perguntou.“Oh, não faço questão de um tamanho

    certo”, Alice se apressou a responder; “sóque ninguém gosta de ficar mudando todahora, sabe.”

    “Eu não sei”, disse a Lagarta.

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  • Alice não disse nada: nunca fora tão con-testada em sua vida e sentiu que estava per-dendo a paciência.

    “Está satisfeita agora?” perguntou aLagarta.

    “Bem, gostaria de ser pouco maior, Sir, senão se importasse”, disse Alice. “Oito centí-metros é uma altura tão insignificante parase ter.”

    “Pois é uma altura muito boa!” disse aLagarta encolerizada, empinando-se en-quanto falava (tinha exatamente oito centí-metros de altura).

    “Mas não estou acostumada a isso!”defendeu-se a pobre Alice num tom que in-spirava pena. E pensou: “Como gostaria queas criaturas não se ofendessem tãofacilmente!”

    “Com o tempo você se acostuma”, disse aLagarta; pôs o narguilé na boca e começou afumar de novo.

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  • Desta vez Alice esperou pacientementeaté que ela resolvesse falar de novo. Depoisde um ou dois minutos, a Lagarta tirou onarguilé da boca, bocejou uma ou duasvezes e se sacudiu. Em seguida desceu docogumelo e foi rastejando pela relva, observ-ando simplesmente, de passagem: “Um ladoa fará crescer, e o outro a fará diminuir.”

    “Um lado do quê? O outro lado do quê?”Alice se perguntou.

    “Do cogumelo”, foi a resposta da Lagarta,exatamente como se ela tivesse perguntadoem voz alta; mais um instante, e a Lagartatinha sumido de vista.

    Alice ficou olhando para o cogumelo porum minuto, pensativa, tentando identificarquais eram seus dois lados; como era perfeit-amente redondo, aquela lhe pareceu umaquestão muito difícil. No entanto, por fimesticou o máximo que podia os braços emvolta dele e quebrou um pedacinho da bordacom cada mão.

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  • “E agora, qual é qual?” perguntou-se, emordiscou uma ponta do pedaço da mãodireita para experimentar o efeito: num in-stante sentiu uma pancada violenta sob oqueixo: ele batera no seu pé!

    Ficou bastante assustada com essamudança súbita, mas lhe parecia que nãohavia tempo a perder, pois estava encol-hendo rapidamente; assim, tratou logo decomer um pouco do outro pedaço. Seuqueixo estava tão comprimido contra seu péque mal tinha como abrir a boca; mas final-mente a abriu, conseguindo engolir um ticodo pedaço da mão esquerda.

    “Viva! Até que enfim minha cabeça estálivre”, disse Alice com um prazer que numinstante se transformou em susto, quandodescobriu que não achava seus ombros emlugar algum: tudo o que conseguia ver,quando olhava para baixo, era uma imensaextensão de pescoço, que parecia se erguer

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  • como um talo de um mar de folhas verdesque se estendia lá longe, debaixo dela.

    “O que pode ser toda aquela coisaverde?” disse Alice. “E onde foram pararmeus ombros? Oh! Minhas mãozinhas, porque será que não consigo mais vê-las?”Estava mexendo as mãos enquanto falava,mas isso não parecia produzir nenhumefeito, exceto uma sacudidela das distantesfolhas verdes.

    Como parecia não haver nenhuma pos-sibilidade de erguer as mãos até a cabeça,tentou abaixar a cabeça até elas, ficandomaravilhada ao descobrir que seu pescoçopodia se curvar facilmente em qualquerdireção, como uma cobra. Acabara deconseguir curvá-lo num gracioso zigue-zague, e ia mergulhar entre as folhas — quedescobriu serem apenas as copas das árvoressob as quais estivera perambulando —quando um assobio agudo a fez recuar de-pressa: uma grande pomba tinha voado até o

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  • seu rosto e estava batendo nela violenta-mente com suas asas.

    “Cobra!” arrulhou a Pomba.“Não sou uma cobra!” disse Alice,

    indignada. “Deixe-me em paz!”“Cobra, eu insisto!” repetiu a Pomba,

    mas num tom mais comedido, e acrescentoucom uma espécie de soluço: “Já tentei de to-das as maneiras, e nada parece contentá-las!”

    “Não faço ideia do que está falando”,disse Alice.

    “Tentei as raízes das árvores, tentei asribanceiras e tentei cercas vivas”, continuoua Pomba, sem lhe prestar atenção; “mas es-sas cobras! Não há como agradá-las!”

    Alice estava cada vez mais perplexa, masachou que não adiantava dizer nada até quea Pomba terminasse.

    “Como se não fosse bastante ter de cho-car os ovos”, disse a Pomba, “tenho de ficar

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  • de sentinela, vigiando as cobras noite e dia!Ora, faz três semanas que não prego o olho!”

    “Sinto muito que tenha se aborrecido”,disse Alice, que estava começando a en-tender o que ela queria dizer.

    “E justamente quando escolhi a árvoremais alta do bosque”, continuou a Pomba,elevando a voz a um guincho, “justamentequando estava pensando que finalmente meveria livre delas, elas têm de descer do céuse retorcendo! Arre, Cobra!”

    “Mas não sou uma cobra, estou lhedizendo!” insistiu Alice. “Sou uma… uma…”

    “Ora essa! Você é o quê?” perguntou aPomba. “Aposto que está tentando inventaralguma coisa!”

    “Eu… eu sou uma menininha”, re-spondeu Alice, bastante insegura,lembrando-se do número de mudanças quesofrera aquele dia.

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  • “Realmente uma história muitoplausível!” disse a Pomba num tom do maisprofundo desprezo. “Vi muitas menininhasno meu tempo, mas nunca uma com umpescoço desse! Não, não! Você é uma cobra;e não adianta negar. Suponho que agora vaime dizer que nunca provou um ovo!”

    “Provei ovos, sem dúvida”, disse Alice,que era uma criança muito sincera; “masmeninas comem quase tantos ovos quanto ascobras, sabe.”

    “Não acredito nisso”, declarou a Pomba;“mas, se comem, então são uma espécie decobra, é só o que posso dizer.”

    Era uma ideia tão nova para ela queAlice ficou em silêncio absoluto por um oudois minutos, o que deu à Pomba oportunid-ade para acrescentar: “Você está procurandoovos, isso eu sei muito bem; o que me im-porta se é uma menininha ou uma cobra?”

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  • “Pois a mim, me importa muito”, Aliceretrucou rápido; “mas não estou procurandoovos; e, se estivesse, não iria querer os seus:não gosto de ovo cru.”

    “Bem, então dê o fora!” disse a Pombanum tom amuado, enquanto se acomodavade novo em seu ninho. Alice se agachouentre as árvores como pôde, pois seupescoço ficava se enganchando entre os gal-hos e, vez por outra, tinha de parar edesembaraçá-lo. Passado algum tempo,lembrou-se de que ainda tinha pedaços docogumelo nas mãos, e pôs-se ao trabalhocom muita aplicação, mordiscando primeiroum e depois o outro, ficando às vezes maisalta e às vezes mais baixa, até conseguir seajustar à sua altura normal.

    Fazia tanto tempo que nem se aproxim-ava do tamanho certo que, no começo,aquilo pareceu bastante estranho; mas seacostumou e, alguns minutos depois,começou a conversar consigo mesma como

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  • de hábito. “Pronto, metade do meu plano es-tá cumprida! Como todas essas mudançasdesorientam! Nunca sei ao certo o que vouser de um minuto para outro! Seja como for,voltei para o meu tamanho; o próximo passoé ir àquele bonito jardim… como será quevou conseguir isso?” Ao dizer essas palavras,chegou de repente a um lugar aberto, comuma casinha de cerca de um metro e vintecentímetros de altura. “Seja lá quem moreaqui”, pensou Alice, “não convém me aprox-imar deles com este tamanho; que susto iri-am levar!” Assim, começou a mordiscar dopedacinho da mão direita de novo e não seaventurou a chegar perto da casa antes deconseguir se reduzir a vinte e dois centímet-ros de altura.

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  • CAPÍTULO 6

    Porco e pimenta

    POR UM OU DOIS MINUTOS, ela ficou olhando para acasa e pensando o que fazer em seguida,quando, de repente, um lacaio de libré saiucorrendo do bosque (supôs que era um la-caio porque estava de libré; não fosse porisso, a julgar apenas pelo rosto, teria ditoque era um peixe) e bateu na porta ruid-osamente com os nós dos dedos. A porta foiaberta por um outro lacaio de libré, de rostoredondo e olhos grandes como um sapo; e osdois lacaios, Alice notou, tinham cabeleirasencaracoladas e empoadas à volta de toda a

  • cabeça. Sentiu muita curiosidade de saber oque era aquilo e, furtivamente, saiu umpouquinho do bosque para ouvir.

    O Lacaio-Peixe começou por tirar de de-baixo do braço uma grande carta, quase dotamanho dele, que entregou para o outro,dizendo com solenidade: “Para a Duquesa.Um convite da Rainha para jogar croqué.” OLacaio-Sapo repetiu, com igual solenidade,só trocando um pouquinho a ordem das pa-lavras: “Da Rainha. Um convite à Duquesapara jogar croqué.”

    Depois ambos fizeram uma profundamesura, e os cachos dos dois seembaraçaram.

    Alice riu tanto disso que teve de correrde volta para o bosque, de medo que aouvissem, e, na primeira espiada que deu, oLacaio-Peixe tinha desaparecido e o outroestava sentado no chão perto da porta, ol-hando aparvalhado para o céu.

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  • Alice foi timidamente até a porta ebateu.

    “Não adianta nada bater”, disse o Lacaio,“e isto por duas razões. Primeiro, porque es-tou do mesmo lado da porta que você; se-gundo, porque estão fazendo tanto barulholá dentro que ninguém pode ouvi-la.” Erealmente estava-se fazendo uma barulheiradescomunal lá dentro: berros e espirros con-stantes e volta e meia um grande estrépito,como se uma travessa ou uma chaleirativesse sido estilhaçada.

    “Nesse caso, por favor”, disse Alice,“como faço para entrar?”

    “Poderia haver algum sentido em vocêbater”, continuou o Lacaio sem lhe daratenção, “se tivéssemos a porta entre nós.Por exemplo, se você estivesse dentro, poder-ia bater e eu poderia lhe deixar sair, claro.”Enquanto falava, ele olhava o tempo todopara o céu, o que pareceu a Alice franca-mente descortês. “Mas talvez ele não possa

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  • evitar”, disse consigo mesma; “tem os olhostão perto do cocuruto. Mesmo assim, podiaresponder a perguntas. “Como faço para en-trar?” repetiu, alto.

    “Vou ficar sentado aqui”, observou o La-caio, “até amanhã…”

    Nesse instante a porta da casa se abriu eum pratarraz saiu zunindo, bem na direçãoda cabeça do Lacaio: pegou lhe o nariz deraspão e foi se espatifar numa das árvoresque havia atrás.

    “…ou depois de amanhã, quem sabe”,continuou o Lacaio no mesmo tom, como seabsolutamente nada tivesse acontecido.

    “Como faço para entrar?” Alice pergun-tou de novo, mais alto.

    “Mas, afinal, você deve entrar?” disse oLacaio. “Esta é a primeira pergunta.”

    Era, sem dúvida: só que Alice não gostouque lhe dissessem isso. “É realmente espan-toso”, murmurou consigo, “como todas as

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  • criaturas brigam. É de levar a gente àloucura!”

    O Lacaio pareceu ver nisso uma boaoportunidade para repetir seu comentário,com variações. “Vou ficar sentado aqui”,disse, “ora sim, ora não, por dias e dias”.

    “Mas o que devo fazer?” perguntou Alice.“O que quiser”, respondeu o Lacaio, e

    começou a assobiar.“Oh! Não adianta falar com ele”, disse

    Alice, desesperada, “é completamente idi-ota!” E abriu a porta e entrou.

    A porta dava diretamente para uma co-zinha ampla, enfumaçada de ponta a ponta:a Duquesa estava sentada no meio, numtamborete de três pés, ninando um bebê; acozinheira estava debruçada sobre o fogo,mexendo um caldeirão enorme que pareciacheio de sopa.

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  • “Com certeza há pimenta demais naquelasopa!” Alice disse consigo, tanto quanto po-dia julgar por seus espirros.

    No ar, sem dúvida havia muita. Até aDuquesa espirrava de vez em quando;quanto ao bebê, espirrava e berrava sem umminuto de trégua. As duas únicas criaturasque não espirravam na cozinha eram a co-zinheira e um gato grande que estava deit-ado junto ao forno, sorrindo de orelha aorelha.

    “Por favor, poderia me dizer”, perguntouAlice um pouco tímida, pois não sabia se erade bom-tom falar em primeiro lugar, “porque seu gato tanto sorri?”

    “É um gato de Cheshire”, disse aDuquesa, “é por isso. Porco!”

    Disse a última palavra com tão súbita vi-olência que Alice deu um pulo; mas num in-stante viu que era dirigida ao bebê, não a si.Diante disso, tomou coragem e continuou:

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  • “Não sabia que os gatos de Cheshiresempre sorriem; na verdade, não sabia quegatos podiam sorrir.”

    “Todos podem”, disse a Duquesa, “e amaioria o faz.”

    “Não conheço nenhum que sorria”, de-clarou Alice, com muita polidez, sentindo-semuito contente por ter entabulado umaconversa.

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  • “Você não sabe grande coisa”, observoua Duquesa; “e isto é um fato.”

    Alice não gostou nada do tom dessa ob-servação e pensou que seria melhor in-troduzir algum outro assunto. Enquantotentava escolher um, a cozinheira tirou ocaldeirão de sopa do fogo e se pôs imediata-mente a atirar tudo que estava a seu alcancena Duquesa e no bebê: primeiro foram osatiçadores; depois uma chuva de caçarolas,travessas e pratos. A Duquesa não tomavaconhecimento deles, nem quando a at-ingiam; o bebê já estava berrando tanto queera quase impossível dizer se os golpes omachucavam ou não.

    “Oh! Por favor, veja o que está fazendo!”gritou Alice, levantando-se de um salto, ater-rorizada. “Oh! Lá se vai o mimoso narizinhodele”; pois uma enorme caçarola passourente e quase o arrancou fora.

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  • “Se cada um cuidasse da própria vida”,disse a Duquesa num resmungo rouco, “omundo giraria bem mais depressa.”

    “O que não seria uma vantagem”,emendou Alice, muito satisfeita por ter umaoportunidade de exibir um pouco da suasabedoria. “Pense só no que seria feito dodia e da noite! Veja, a Terra leva vinte equatro horas para completar suarevolução…”

    “Por falar em revolução”, disse aDuquesa, “cortem-lhe a cabeça!”

    Bastante aflita, Alice deu uma olhada desoslaio para a cozinheira para ver se ela iaaproveitar a deixa; mas estava ocupada mex-endo a sopa e parecia não ter ouvido. Assim,recomeçou: “Vinte e quatro horas, eu acho;ou serão doze? Eu…”

    “Ora, não me aborreça”, disse a Duquesa;“nunca pude suportar números!” E com issocomeçou a acalentar o filho de novo,

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  • enquanto cantava uma espécie de cantiga deninar, dando-lhe fortes sacudidas ao fim decada verso:

    Fale grosso com seu bebezinho,E espanque-o quando espirrar:

    Porque ele é bem malandrinho,Só o faz para azucrinar.

    REFRÃO

    (Com a participação da cozinheira e dobebê):

    Oba! Oba! Oba!Enquanto cantava a segunda estrofe da

    canção, a Duquesa jogava o bebê brusca-mente para cima e para baixo, e a pobre cri-aturinha berrava tanto que Alice mal con-seguiu ouvir as palavras:

    Falo bravo com meu garoto,Bato nele quando espirra

    Pois só assim toma gosto

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  • Por pimenta e não faz birra.REFRÃO

    Oba! Oba! Oba!“Tome! Pode niná-lo um pouquinho, se

    quiser!” disse a Duquesa a Alice, jogando-lheo bebê. “Preciso me aprontar para jogarcroqué com a Rainha”, e se retirou apres-sada. Quando saía, a cozinheira lhe atirouuma frigideira, mas errou a pontaria.

    Alice agarrou o bebê com certa di-ficuldade, pois a criaturinha tinha umaforma estranha, com braços e pernas estica-dos em todas as direções, “igualzinho a umaestrela-do-mar”, pensou Alice. O pobrezinhobufava como uma locomotiva quando ela opegou, dobrando-se e se esticando semparar, de tal modo que, por um ou doisminutos, tudo que ela conseguiu fazer foisegurá-lo.

    Assim que descobriu a maneira adequadade acalentá-lo (que era torcê-lo numa

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  • espécie de nó, depois agarrar firme suaorelha direita e o pé esquerdo, evitando as-sim que se desatasse), ela o levou para o arlivre. “Se eu não levar esta criança comigo”,pensou Alice, “com certeza vão matá-laqualquer dia desses: não seria umassassinato deixá-la para trás?” Disse estasúltimas palavras em voz alta, e a criaturinhagrunhiu em resposta (a essa altura parara deespirrar). “Pare de grunhir”, disse Alice;“não é em absoluto uma maneira apropriadade se expressar.”

    O bebê grunhiu de novo, e Alice, muitoinquieta, examinou seu rosto para ver o quehavia de errado com ele. Não havia a menordúvida de que tinha um nariz muito arrebit-ado; além disso, os olhos eram um tantomiúdos para um bebê: no todo, Alice nãogostou da aparência da criatura. “Mas talvezele estivesse só soluçando”, pensou, e olhoude novo os olhos dele para ver se havialágrimas.

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  • Não, não havia lágrimas. “Se você vaivirar um porco, meu querido”, disse Aliceseriamente, “não vou mais querer saber devocê. Preste atenção!” O coitadinho soluçoude novo (ou grunhiu, era impossível distin-guir), e os dois ficaram em silêncio por al-gum tempo.

    Alice estava começando a pensar “Eagora? Que vou fazer com esta criaturaquando for para casa?” quando ele grunhiude novo com tanta fúria que ela olhou parao seu rosto um tanto alarmada. Desta veznão havia engano possível: era nem maisnem menos que um porco, e lhe pareceu queseria totalmente absurdo continuarcarregando-o.

    Assim, colocou a criaturinha no chão e sesentiu muito aliviada ao vê-la caminharcalmamente para o bosque. “Se tivesse cres-cido”, disse ela para si mesma, “teria sidouma criança horrorosa; mas como porco ébem jeitozinho, eu acho.” E começou a

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  • pensar sobre outras crianças que conheciaque ficariam muito bem como porcos, e bemna hora em que estava pensando “se aomenos alguém soubesse a maneira corretade transformá-las” teve um ligeiro sobres-salto ao ver o Gato de Cheshire sentado nogalho de uma árvore a alguns metros dedistância.

    Ao ver Alice, o Gato só sorriu. Pareciaamigável, ela pensou; ainda assim, tinhagarras muito longas e um número enorme dedentes, de modo que achou que devia tratá-lo com respeito.

    “Bichano de Cheshire”, começou, muitotímida, pois não estava nada certa de queesse nome iria agradá-lo; mas ele só abriuum pouco mais o sorriso. “Bom, até agoraele está satisfeito”, pensou e continuou: “Po-deria me dizer, por favor, que caminho devotomar para ir embora daqui?”

    “Depende bastante de para onde quer ir”,respondeu o Gato.

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  • “Não me importa muito para onde”, disseAlice.

    “Então não importa que caminho tome”,disse o Gato.

    “Contanto que eu chegue a algum lugar”,Alice acrescentou à guisa de explicação.

    “Oh, isso você certamente vai conseguir”,afirmou o Gato, “desde que ande obastante.”

    Como isso lhe pareceu irrefutável, Alicetentou uma outra pergunta. “Que espécie degente vive por aqui?”

    “Naquela direção”, explicou o Gato,acenando com a pata direita, “vive umChapeleiro; e naquela direção”, acenandocom a outra pata, “vive uma Lebre deMarço. Visite qual deles quiser: os dois sãoloucos.”

    “Mas não quero me meter com gente lou-ca”, Alice observou.

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  • “Oh! É inevitável”, disse o Gato; “somostodos loucos aqui. Eu sou louco. Você élouca.”

    “Como sabe que sou louca?” perguntouAlice.

    “Só pode ser”, respondeu o Gato, “ou nãoteria vindo parar aqui.”

    Alice não achava que isso provasse coisaalguma; apesar disso, continuou: “E comosabe que você é louco?”

    “Para começar”, disse o Gato, “um ca-chorro não é louco. Admite isso?”

    “Suponho que sim”, disse Alice.“Pois bem”, continuou o Gato, “você

    sabe, um cachorro rosna quando estázangado e abana a cauda quando está con-tente. Ora, eu rosno quando estou contente eabano a cauda quando estou zangado. Port-anto sou louco.”

    “Chamo isso ronronar, não rosnar”, disseAlice.

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  • “Chame como quiser”, disse o Gato. “Vaijogar croqué com a Rainha hoje?”

    “Gostaria muito”, admitiu Alice, “masainda não fui convidada.”

    “Encontre-me lá”, disse o Gato, edesapareceu.

    Alice não ficou muito surpresa com isso,tão acostumada estava ficando a ver coisasesquisitas acontecerem.

    Ainda estava olhando para o lugar ondeo vira quando ele apareceu de novo derepente.

    “A propósito, o que foi feito do bebê?”quis saber o Gato. “Ia me esquecendo deperguntar.”

    “Virou um porco”, Alice respondeu tran-quilamente, como se o Gato tivesse voltadode uma maneira natural.

    “Eu achava que iria virar”, disse o Gato,e desapareceu de novo.

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  • Alice esperou um pouco, com certa es-perança de vê-lo de novo, mas ele nãoapareceu e, depois de um ou dois minutos,ela caminhou na direção em que, pelo quelhe fora dito, morava a Lebre de Março. “Vilebres antes”, pensou; “a Lebre de Março vaiser interessantíssima, e talvez, como estamosem maio, não esteja freneticamente louca…pelo menos não tão louca quanto emmarço.” Enquanto assim pensava, ergueu osolhos e lá estava o Gato de novo, sentado nogalho de uma árvore.

    “Você disse porco ou corpo?” o Gatoperguntou.

    “Disse porco”, respondeu Alice; “egostaria que não ficasse aparecendo e sum-indo tão de repente: deixa a gente comvertigem.”

    “Está bem”, disse o Gato; e dessa vez de-sapareceu bem devagar, começando pelaponta da cauda e terminando com o sorriso,

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  • que persistiu algum tempo depois que oresto de si fora embora.

    “Bem! Já vi muitas vezes um gato semsorriso”, pensou Alice; “mas um sorriso semgato! É a coisa mais curiosa que já vi naminha vida!”

    Não tinha ido muito longe quando av-istou a casa da Lebre de Março: pensou quea casa era aquela porque as chaminés tin-ham forma de orelhas e o telhado era depelo. Era uma casa tão grande que não quischegar mais perto antes de lambiscar maisum pouquinho do pedaço de cogumelo damão esquerda e crescer até uns sessentacentímetros de altura. Mesmo assim avançoubastante timidamente, dizendo para simesma: “E se no fim das contas ela estiverfreneticamente louca? Chego quase a desejarter ido visitar o Chapeleiro!”

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  • CAPÍTULO 7

    Um chá maluco

    EM FRENTE À CASA HAVIA UMA MESA posta sob umaárvore, e a Lebre de Março e o Chapeleiroestavam tomando chá; entre eles estava sen-tado um Caxinguelê, que dormia a sonosolto, e os dois o usavam como almofada,descansando os cotovelos sobre ele e con-versando por sobre sua cabeça. “Muitodesconfortável para o Caxinguelê”, pensouAlice; “só que, como está dormindo,suponho que não se importa.”

    Era uma mesa grande, mas os três es-tavam espremidos numa ponta: “Não há

  • lugar! Não há lugar!” gritaram ao ver Alicese aproximando. “Há lugar de sobra!” disseAlice, indignada, e sentou-se numa grandepoltrona à cabeceira.

    “Tome um pouco de vinho”, disse aLebre de Março num tom animador.

    Alice correu os olhos pela mesa toda,mas ali não havia nada além de chá. “Nãovejo nenhum vinho”, observou.

    “Não há nenhum”, confirmou a Lebre deMarço.

    “Então não foi muito polido da sua parteoferecer”, irritou-se Alice.

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  • “Não foi muito polido da sua partesentar-se sem ser convidada”, retrucou aLebre de Março.

    “Não sabia que a mesa era sua”, declarouAlice; “está posta para muito mais do quetrês pessoas.”

    “Seu cabelo está precisando de umcorte”, disse o Chapeleiro. Fazia algumtempo que olhava para Alice com muitacuriosidade, e essas foram suas primeiraspalavras.

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  • “Devia aprender a não fazer comentáriospessoais”, disse Alice com alguma severid-ade; “é muito indelicado.”

    O Chapeleiro arregalou os olhos ao ouvirisso; mas disse apenas: “Por que um corvo separece com uma escrivaninha?”

    “Oba, vou me divertir um pouco agora!”pensou Alice. “Que bom que tenhamcomeçado a propor adivinhações.” E acres-centou em voz alta: “Acho que posso mataresta.”

    “Está sugerindo que pode achar a res-posta?” perguntou a Lebre de Março.

    “Exatamente isso”, declarou Alice.“Então deveria dizer o que pensa”, a

    Lebre de Março continuou.“Eu digo”, Alice respondeu apressada-

    mente; “pelo menos… pelo menos eu pensoo que digo… é a mesma coisa, não?”

    “Nem de longe a mesma coisa!” disse oChapeleiro. “Seria como dizer que ‘vejo o

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  • que como’ é a mesma coisa que ‘como o quevejo’!”

    “Ou o mesmo que dizer”, acrescentou aLebre de Março, “que ‘aprecio o que tenho’ éa mesma coisa que ‘tenho o que aprecio’!”

    “Ou o mesmo que dizer”, acrescentou oCaxinguelê, que parecia estar falando dor-mindo, “que ‘respiro quando durmo’ é amesma coisa que ‘durmo quando respiro’!”

    “É a mesma coisa no seu caso”, disse oChapeleiro, e neste ponto a conversa arrefe-ceu, e o grupo ficou sentado em silêncio porum minuto, enquanto Alice refletia sobretudo de que conseguia se lembrar sobre cor-vos e escrivaninhas, o que não era muito.

    O Chapeleiro foi o primeiro a quebrar osilêncio. “Que dia do mês é hoje?” disse,voltando-se para Alice. Tinha tirado seurelógio da algibeira e estava olhando paraele com apreensão, dando-lhe umas sacu-didelas vez p