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Leroi-Gourhan, André (1990a), O gesto e a palavra, 1 - Técnica e linguagem. Lisboa: Edições 70 “…a evolução geral dos grupos zoológicos que seguiram o mesmo caminho que o homo sapiens implicava ‘libertações’ sucessivas, sendo as principais a cabeça, nos répteis teromorfos da era primária, e a da mão, nos australantropos dos fins da era terciária. Nos antropídeos, no decurso da sua evolução, verificou-se a libertação do cérebro e consequentemente a libertação de uma parte importante das ligações zoológicas. (…) Desde os australantropos que se verificou a libertação da base do crânio, assim como a abertura do leque cortical. Ainda cedo, pelo menos desde os paleantropos, que o dispositivo motor piramidal e as áreas de associação contíguas atingiram um desenvolvimento equivalente ao do homem actual. São disso prova os inúmeros achados que demonstram o progresso da técnica dos paleantropídeos. Assim, na evolução cerebral surge-nos o mesmo fenómeno de estabilização das estruturas adquiridas, a mesma transposição por dispositivos novos: a mão devia ser quase como a actual desde o australopiteco, o desenvolvimento técnico está praticamente realizado desde o fim dos arcantropídeos” (Leroi-Gourhan, 1990a: 121). “Para o homem, a estabilização da transposição do cérebro técnico revestiu-se de um significado capital (…) os territórios motores foram substituídos por zonas de associação, de carácter muito diferente, que em vez de orientar o cérebro para uma especialização técnica cada vez mais evoluída lhe abriram possibilidades de generalização ilimitadas, pelo menos relativamente à evolução biológica. Ao longo dessa evolução, desde os répteis, o homem surge como herdeiro de criaturas, mas como tendo escapado à especialização anatómica. (…) Desse modo ficou possibilitado de quase todas as acções possíveis (…) e utilizar o órgão extremamente arcaico do seu esqueleto, que é a mão, para realizar operações dirigidas por um cérebro superespecializado na generalização” (Leroi-Gourhan, 1990a: 121-122). “Será possível prolongar a trajectória humana? Se tivermos em conta os caracteres fundamentais (posição vertical, mão, utensílio e linguagem) verificamos que o dispositivo estacionou há talvez um milhão de anos. Se procurarmos, sem perder os seus valores fundamentais, como o homem pode ainda evoluir, é para as mudanças do edifício craniano que inevitavelmente nos orientamos. (…) Podemos também admitir que, por uma acção voluntária, ele utilize as leis genéticas para suspender, pelo menos por algum tempo, o curso da evolução. De qualquer modo, não vemos como ele se poderia ‘libertar’ sem ao mesmo tempo mudar de espécie” (Leroi-Gourhan, 1990a: 131- 132).

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Leroi-Gourhan, André (1990a), O gesto e a palavra, 1 - Técnica e linguagem.

Lisboa: Edições 70

“…a evolução geral dos grupos zoológicos que seguiram o mesmo caminho que o homo sapiens implicava ‘libertações’ sucessivas, sendo as principais a cabeça, nos répteis teromorfos da era primária, e a da mão, nos australantropos dos fins da era terciária. Nos antropídeos, no decurso da sua evolução, verificou-se a libertação do cérebro e consequentemente a libertação de uma parte importante das ligações zoológicas. (…) Desde os australantropos que se verificou a libertação da base do crânio, assim como a abertura do leque cortical. Ainda cedo, pelo menos desde os paleantropos, que o dispositivo motor piramidal e as áreas de associação contíguas atingiram um desenvolvimento equivalente ao do homem actual. São disso prova os inúmeros achados que demonstram o progresso da técnica dos paleantropídeos. Assim, na evolução cerebral surge-nos o mesmo fenómeno de estabilização das estruturas adquiridas, a mesma transposição por dispositivos novos: a mão devia ser quase como a actual desde o australopiteco, o desenvolvimento técnico está praticamente realizado desde o fim dos arcantropídeos” (Leroi-Gourhan, 1990a: 121). “Para o homem, a estabilização da transposição do cérebro técnico revestiu-se de um significado capital (…) os territórios motores foram substituídos por zonas de associação, de carácter muito diferente, que em vez de orientar o cérebro para uma especialização técnica cada vez mais evoluída lhe abriram possibilidades de generalização ilimitadas, pelo menos relativamente à evolução biológica. Ao longo dessa evolução, desde os répteis, o homem surge como herdeiro de criaturas, mas como tendo escapado à especialização anatómica. (…) Desse modo ficou possibilitado de quase todas as acções possíveis (…) e utilizar o órgão extremamente arcaico do seu esqueleto, que é a mão, para realizar operações dirigidas por um cérebro superespecializado na generalização” (Leroi-Gourhan, 1990a: 121-122). “Será possível prolongar a trajectória humana? Se tivermos em conta os caracteres fundamentais (posição vertical, mão, utensílio e linguagem) verificamos que o dispositivo estacionou há talvez um milhão de anos. Se procurarmos, sem perder os seus valores fundamentais, como o homem pode ainda evoluir, é para as mudanças do edifício craniano que inevitavelmente nos orientamos. (…) Podemos também admitir que, por uma acção voluntária, ele utilize as leis genéticas para suspender, pelo menos por algum tempo, o curso da evolução. De qualquer modo, não vemos como ele se poderia ‘libertar’ sem ao mesmo tempo mudar de espécie” (Leroi-Gourhan, 1990a: 131-132).

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Leroi-Gourhan, André (1990b), O gesto e a palavra, 2 - Memória e ritmos. Lisboa:

Edições 70

“Dos animais inferiores aos mamíferos superiores, assiste-se à inversão das proporções entre o condicionamento genético e o condicionamento resultante da aprendizagem, a que se segue o aparecimento da possibilidade de escolha entre as operações simples” (Leroi-Gourhan, 1990b: 20). A inteligência é “a aptidão para a projecção de cadeias simbólicas. Tal posição equivale a tornar a linguagem no instrumento de libertação relativamente ao vivido. Paralelamente, o utensílio manual surgiu como o instrumento de libertação das restrições genéticas que ligam o utensílio orgânico animal à espécie zoológica” (Leroi-Gourhan, 1990b: 21). “O comportamento técnico do homem (…) manifesta-se a três níveis: o nível específico, o nível sócio-técnico e o nível individual. No nível específico, a inteligência técnica do homem está ligada ao grau de evolução do seu sistema nervoso e à determinação genética das aptidões individuais; guardadas as devidas distâncias nada a distingue formalmente do comportamento animal, particularmente a submissão ao ritmo excessivamente lento da evolução geral das espécies. No nível sócio-técnico, a inteligência humana comporta-se de uma forma muito particular, única, visto que ela forja, à margem dos indivíduos e dos laços específicos, um organismo colectivo cujas propriedades evolutivas são espantosamente rápidas. O grau de sujeição sócio-técnica é tão imperioso para o indivíduo quanto a sujeição zoológica que o faz nascer homo sapiens; no entanto, os termos desta sujeição não são iguais, visto que admitem, em determinadas condições, a possibilidade de uma certa libertação pessoal. (§) No nível individual, a espécie humana apresenta igualmente um carácter único, visto que, dado a sua aparelhagem cerebral lhe dar a possibilidade de confrontar situações traduzidas em símbolos, o indivíduo está em condições de se emancipar simbolicamente dos laços simultaneamente genéticos e sócio-técnicos” (Leroi-Gourhan, 1990b: 21). “O tema do ‘homem ultrapassado pelas suas próprias técnicas’ faz ressaltar a disparidade entre a evolução das técnicas e a evolução do dispositivo moral da sociedade: ao longo de milénios, o homem adquire toda uma série de meios técnicos que poderiam ajudá-lo a assegurar um domínio individualmente equilibrado sobre o meio material, enquanto que a maioria dos meios de que dispõe continua apenas a satisfazer desordenadamente tendências predadoras que remontam aos tempos em que defrontava os rinocerontes. Esta aparente incapacidade em constituir um comportamento moral que fosse vivido ao mesmo nível do comportamento técnico nada tem de anormal nem de particularmente desesperante” (Leroi-Gourhan, 1990b: 24). “(O) afastamento que se exprime na separação do utensílio relativamente à mão, no da palavra relativamente ao objecto, também se exprime na distanciação que a sociedade assume relativamente ao grupo zoológico. Toda a evolução humana concorre para colocar à margem do homem aquilo que, no resto do mundo animal, corresponde à adaptação específica. O facto material mais flagrante é, sem dúvida, a ‘libertação’ do utensílio, mas, na realidade, o facto fundamental é a libertação do verbo, essa propriedade única de que o homem dispõe, a possibilidade de situar a sua memória à margem de si próprio, no organismo social” (Leroi-Gourhan, 1990b: 31).

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“A mão humana é humana em função do que dela decorre e não por aquilo que ela é (…) O valor humano do gesto não se encontra, pois, na mão, cuja condição suficiente consiste em estar livre durante a marcha, mas, precisamente, na marcha vertical e nas sequências paleontológicas que dela derivam no domínio do desenvolvimento do aparelho cerebral. (…) A mão deixa de ser utensílio para se tornar motor” (Leroi-Gourhan, 1990b: 38). “No decurso da evolução humana, a mão enriquece os seus modos de acção no âmbito do processo operatório. A acção manipuladora dos Primatas, em que gesto e utensílio se confundem, é seguida, com o aparecimento dos primeiros Antropídeos, pela acção da mão em motricidade directa, em que o utensílio manual já se tornou separável do gesto motor. Na etapa seguinte, ultrapassada talvez no Neolítico, as máquinas manuais anexam o gesto e a mão, em motricidade indirecta, limita-se a fornecer o impulso motor. No decorrer dos tempos históricos, a própria força motriz abandona o braço humano, passando a desencadear o processo motor nas máquinas animais ou nas máquinas automotoras, como é o caso dos moinhos. Finalmente, no último estádio, a mão passa a desencadear um processo programado em máquinas automáticas, que não só exteriorizam o utensílio, o gesto e a motricidade, como invadem o domínio da memória e do comportamento maquinal. (§) Este empenhamento do utensílio e do gesto em órgãos exteriores ao homem tem todas as características de uma evolução biológica, já que se desenvolve no tempo, tal como a evolução cerebral, por adição de elementos que permitem aperfeiçoar o processo operatório sem se eliminarem mutuamente. (…) A existência e o funcionamento de uma máquina automática dotada de um programa complexo implica, tal como no respeitante aos seus níveis de fabrico, ajustamento e reparação, a intervenção na penumbra de todas as categorias do gesto técnico”(Leroi-Gourhan, 1990b: 38-39). “Uma vez adquirida a posição vertical, a mão torna-se o órgão de relação (…) o contacto lábio-dental deixa de ser dominante (…); no homem, só mantém a sua importância a nível dos contactos afectivos e de determinadas operações técnicas em que a boca desempenha o papel de pinça suplementar. A passagem para o utensílio encontra-se, pois, funcionalmente justificada pela transferência do campo da relação para a mão. (…) A mão em motricidade indirecta corresponde a uma nova ‘libertação’, pois o gesto motor fica liberto no âmbito de uma máquina manual que o prolonga ou o transforma. É muito difícil situar no tempo o momento em que esta importante etapa veio a ser ultrapassada”(Leroi-Gourhan, 1990b: 41). “A partir desse momento e até à aurora dos tempos históricos, as aplicações da motricidade indirecta continuam a desenvolver-se. A passagem à economia agrícola-pastoril leva à sua acumulação no âmbito das diferentes técnicas. (…) O processo que projecta progressivamente todos os instrumentos para o exterior do homem surge tão nítido como o que caracteriza o utensílio manual…” (Leroi-Gourhan, 1990b: 43). “A evolução prossegue e o próprio impulso muscular se liberta do corpo até ao momento em que inicia a utilização da motricidade animal, da motricidade eólica e da motricidade hidráulica: propriedade singular da espécie humana que lhe permite escapar periodicamente, limitando-se a um papel de mera animação, a uma especialização orgânica que a paralisaria definitivamente”(Leroi-Gourhan, 1990b: 43).

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“A libertação da motricidade é a etapa mais importante, não tanto para o homem como sobretudo para a sociedade, detentora, colectivamente, dos seus meios de acção. (…) Geralmente considerado como um fenómeno histórico de significação técnica, (…) também deve ser considerado como um fenómeno biológico, como uma mutação desse organismo externo que, no caso do homem, se substitui ao corpo fisiológico” (Leroi-Gourhan, 1990b: 44). “Se, no decurso da História, a conquista da força hidráulica e eólica ocorreu bastante cedo, datando da Antiguidade, a verdade é que a força automotora permaneceu limitada durante séculos (…) A humanidade apercebeu-se então muito claramente do carácter perturbador da mutação de escala que se verificou nas relações entre o mundo natural e o homem. Desde a Idade do Bronze que não fora dado um passo tão importante. A primeira conquista do metal foi uma vitória da mão, a conquista do vapor consagrou definitivamente a exteriorização do músculo”(Leroi-Gourhan, 1990b: 44). “Na realidade, o nascimento da força automotora é realmente uma etapa biológica essencial, se admitirmos que a transformação biológica é um facto que interessa simultaneamente à organização física e ao comportamento dos seres por ela atingidos. (…) a partir do homo sapiens, evolução humana testemunha uma separação cada vez mais acentuada entre o desenvolvimento das transformações do corpo, que permaneceu na escala do tempo geológico, e o desenvolvimento das transformações dos utensílios ligado ao ritmo das sucessivas gerações. Para a sobrevivência da espécie, tornava-se necessária uma acomodação, que não dizia apenas respeito aos hábitos técnicos, mas que, em cada mutação, implicava a reformulação das leis de agrupamento dos indivíduos. Se om paralelismo com o mundo zoológico apenas se pode manter com base no paradoxo, a verdade é que também não é possível deixar de considerar que a humanidade muda um pouco de espécie cada vez que simultaneamente muda de utensílios e de instituições. (…) um observador que não fosse humano e que permanecesse estranho às explicações a que a história e a filosofia nos acostumaram, separaria o homem do século XVIII do do século XX tal como nós separamos o leão do tigre ou o lobo do cão” (Leroi-Gourhan, 1990b: 45). “Ao longo dos tempos, a instalação de um organismo social no qual o indivíduo desempenha progressivamente o papel de célula especializada leva a que se torne cada vez mais clara a insuficiência do homem de carne e osso, autêntico fóssil vivo, imóvel na escala histórica, perfeitamente adaptado ao tempo em que triunfava do mamute, mas já ultrapassado no tempo em que os seus músculos impeliam as trirremes. A procura constante de meios mais poderosos e mais precisos deveria conduzir inevitavelmente ao paradoxo biológico do robot, que, através dos autómatos, obceca desde há séculos o espírito humano. Com efeito, à imagem do antepassado-macaco (…) não se opõe a imagem espiritual do anjo ou do corpo glorioso, mas sim do homem perfeitamente fabricado, duplo mecânico do Antropóide, inserido na constelação em que gravitam, em torno do homem de carne e osso, Tarzan, o astronauta e o robot… ”(Leroi-Gourhan, 1990b: 46). “Actualmente, a adaptação ainda não terminou: a evolução aborda agora um novo patamar, o da exteriorização do cérebro e, do ponto de vista estritamente tecnológico, a mutação já teve lugar (…) A compressão do tempo e das distâncias, a elevação do ritmo de acção, a inadaptação ao óxido de carbono e às toxinas industriais, a permeabilidade radioactiva, levantam o curioso problema da adequação física do homem, a um meio

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que, por longo tempo, será ainda o seu. Poder-se-á perguntar se não teremos de reconhecer que só a sociedade tira pleno proveito do progresso; o homem individual não passaria já dum organismo obsoleto (…) relegado para segundo plano, enquanto infraestrutura de uma humanidade pela qual ‘a evolução’ se interessaria muito mais do que pelo homem”(Leroi-Gourhan, 1990b: 51-52). “A definição da relação entre a técnica, a linguagem e a estética é importante, porque é indubitável que as três manifestações fundamentais da qualidade humana estão estreitamente ligadas. (…) Podemos partir da hipótese de que, sendo a técnica e a linguagem dois aspectos do mesmo fenómeno, a estética poderia muito bem constituir um terceiro…”(Leroi-Gourhan, 1990b: 78).

“Não existem dois factos tipicamente humanos, um dos quais seria a técnica e o outro a linguagem, mas apenas um único fenómeno mental, baseado neurologicamente em territórios conexos e expresso conjuntamente pelo corpo e pelos sons. A prodigiosa aceleração do progresso a partir da libertação dos territórios pré-frontais liga-se simultaneamente à irrupção do raciocínio nas operações técnicas e ao enfeudamento da mão à linguagem no âmbito do simbolismo gráfico que conduz à escrita. (§) daí a conveniência de nos interrogarmos sobre qual será o destino do homo sapiens enquanto animal pensante.” (Leroi-Gourhan, 1990b: 221). “É, pois, preciso conceber um homo sapiens totalmente transposto, sendo quase certo estarmos a assistir às últimas relações livres entre o homem e o mundo natural. Uma vez liberto dos seus utensílios, dos seus gestos, dos seus músculos, da programação dos seus actos, da sua memória, liberto da sua imaginação devido à perfeição dos meios teledifundidos, liberto do mundo animal, do mundo vegetal, do vento, do frio, dos micróbios, do desconhecido das montanhas e dos mares, o homo sapiens da zoologia está, muito provavelmente, perto do termo da sua carreira. (…) Em todo o caso, o homem tem diante de si um futuro que ultrapassa de longe o ritmo da sua evolução sócio-técnica” (Leroi-Gourhan, 1990b: 226-227). “O grande problema do mundo actual está por resolver: como é que este mamífero obsoleto, com as necessidades arcaicas que constituíram o motor de toda a sua ascensão, irá continuar a empurrar o seu rochedo encosta acima, se um dia já só lhe restar a imagem da sua realidade?” (Leroi-Gourhan, 1990b: 227).