Leonard Cohen
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FERNANDO DE PAULO KOPROSKI
FLORES DAS FLORES PARA HITLER: 13 POEMAS TRADUZIDOS DE LEONARD COHEN
Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Letras, Curso de Ps-Graduao em Letras, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paran. Orientador: Prof. Dr. Mauricio Mendona Cardozo
CURITIBA 2007
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agradeo quela seo de fotogravuras de um jornal de 1945 que 60 anos depois iniciou o meu aprendizado sobre as flores das flores para Hitler
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SUMRIO
RESUMO............................................................................................................iii ABSTRACT........................................................................................................iv 1 INTRODUO ............................................................................................... 3 1.1 O AUTOR..................................................................................................... 5 1.2 O PROJETO............................................................................................... 12 2 SOBRE TRADUO .................................................................................... 18 2.1 A TRADUO COMO RELAO.............................................................. 18 2.2 A TRADUZIBILIDADE E INTRADUZIBILIDADE DA POESIA .................... 25 3 FLORES DAS FLORES PARA HITLER....................................................... 31 3.1 A IDENTIDADE JUDAICA DE COHEN ...................................................... 31 3.2 O DESENVOLVIMENTO DA IDENTIDADE JUDAICA EM THE GENIUS.. 38 3.3 A QUESTO DO JUDEU DE DACHAU ..................................................... 45 3.4 FLORES PARA HITLER............................................................................. 48 4 POEMAS....................................................................................................... 96 REFERNCIAS.............................................................................................. 125
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RESUMO O presente trabalho prope a traduo brasileira para treze poemas publicados pelo escritor canadense Leonard Cohen. Esses poemas so selecionados para a prtica de traduo em funo de se revelarem representativos da temtica do holocausto ou indicativos da identidade judaica abordada na obra potica do autor. Inicialmente, realiza-se uma reflexo terica sobre traduo literria, baseando-se no conceito de traduo como relao de Antoine Berman. Em seguida, reflete-se sobre a questo da traduzibilidade e da intraduzibilidade da poesia. Posteriormente, realiza-se uma leitura crtica de poemas selecionados do livro Flowers for Hitler de Cohen, construindo uma reflexo sobre os cenrios violentos e opressivos da tortura, sobre a natureza do Mal, sobre o horror judaico e sobre o desejo de aniquilao do humano, tal como se apresentam nos poemas de Cohen que tratam do holocausto. Palavras-chave: Literatura canadense, Poesia; Traduo literria; Holocausto;
Horror judaico.
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ABSTRACT This dissertation presents the brazilian translations of thirteen poems published by the Canadian writer Leonard Cohen. These poems were selected from Cohens books of poetry since they portray the theme of holocaust or indicate the jewish identity in his works. First, this dissertation reflects on the theory of literary translation, based on Antoine Bermans notion of translation as a relation. Later on, it reflects on the question of translatability and non-translatability of poetry. Afterwards, this dissertation presents a critical reading of selected poems from Cohens Flowers for Hitler, reflecting on the violent and oppressive sets of torture, on the nature of Evil, on the Jewish horror, and on the long for human annihilation, as they are displayed on Cohens poems concerning holocaust. Key-words: Canadian literature; Poetry; Literary translation; Holocaust; Jewish
horror.
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1 INTRODUO
1.1 O AUTOR
Estreando na poesia com Let us compare mythologies1 (COHEN,
1956), o poeta, ficcionista, msico e compositor canadense Leonard Norman
Cohen (Montreal, 1934) desenvolveu uma trajetria singular dentro dos
quadros de literatura de lngua inglesa do sculo XX, alcanando diferentes
geraes de leitores. De fato, ao iniciar sua procura artstica como poeta,
Cohen2 destilaria em uma dezena de livros de poemas sua lrica singular que
abarca temas os mais diversos. Reconhecido principalmente por desenvolver
em sua obra potica temas recorrentes, tais como a perda, o desejo de
permanncia, a culpa, a beleza e as diversas vicissitudes da arte de amar,
Cohen igualmente um autor destacado por ousar tratar de situaes
polmicas em forma de poesia, tais como a condio judaica aps o
holocausto, ou a possibilidade de erotismo irmanado religiosidade em tempos
de contnua perda de significao da f.
Em virtude da continuidade de sua produo potica na dcada de
1960, representada pela publicao de The spice-box of earth3 (COHEN,
1961), Flowers for Hitler4 (COHEN, 1964), Parasites of heaven5 (COHEN,
1966) e, principalmente, devido grande receptividade de sua primeira
antologia de poemas Selected poems 1956-19686 (COHEN, 1968), Cohen teve
ampliado consideravelmente seu pblico leitor no Canad, Estados Unidos e
na Europa durante essa dcada. De fato, Selected poems 1956-1968, em
funo de apresentar uma seleta de poemas dos quatro primeiros livros de
poesia do autor e incluir uma seo final com poemas inditos (New poems7),
foi o livro de poesia de Cohen que obteve melhor resposta comercial na dcada
de 1960, alm de conferir a Cohen um prestigiado prmio do governo
1 Utilizarei tradues minhas para as principais citaes em lngua inglesa de obras ainda no traduzidas para o portugus. Nesse caso, Vamos comparar mitologias. 2 A partir daqui, irei me referir ao poeta e escritor Leonard Norman Cohen simplesmente como Cohen. 3 A caixa de especiarias da terra. 4 Flores para Hitler. 5 Parasitas do cu. 6 Poemas selecionados 1956-1968. 7 Novos poemas.
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canadense em 1969, o qual ele veio a recusar publicamente8 (The Governor
Generals Literary Award for English-language poetry).
Um aspecto indicativo da relevncia e boa recepo crtica da obra de
Cohen a publicao de Intricate preparations: writing Leonard Cohen
(SCOBIE et al., 2000), organizado pelo poeta, crtico e membro do corpo
docente da Universidade de Victoria, Stephen Scobie. Esse volume rene tanto
ensaios acadmicos quanto discusses informais que procuram traar o
alcance e a influncia da obra literria e musical de Cohen dentro dos quadros
de literatura e msica popular contemporneos, incluindo colaboradores de
universidades da Austrlia, Inglaterra, Frana, Alemanha, Blgica, Noruega,
Finlndia e, naturalmente, do Canad.
Em The Phenomenon of Leonard Cohen, o crtico Desmond PACEY
(1967) avalia a boa recepo crtica da obra de Cohen. Nesse estudo, Pacey
trata da diversidade da obra do autor, fazendo referncia aos seus primeiros
livros de poemas. Tal qual o crtico examina: Ao chamar Leonard Cohen de
fenmeno, sou motivado pela quantidade, qualidade e variedade de sua
conquista. (...) Seus melhores poemas tm encanto lrico e inevitabilidade
verbal (PACEY, 1967, p. 5). Nesse estudo, Pacey aponta caractersticas de
Let us compare mythologies que so recorrentes ao longo da obra de Cohen,
tais como o controle e modulao quase mgicos da melodia verbal, o fascnio
por situaes que mesclam violncia e ternura para acentuar o efeito de
ambas, a busca por um deus perdido ou desconhecido e a associao ntima
entre sexo e religio. Pacey examina que em The spice-box of earth Cohen
explora ainda mais essa temtica de afirmao religiosa e sexual. Segundo o
crtico, nesse livro tambm esto presentes temticas mais sombrias como as
da vulnerabilidade humana, solido, violncia e crueldade.
J em relao ao livro Flowers for Hitler, Pacey avalia que h uma
justaposio de beleza e feira, ternura e violncia, a qual tem sido uma
caracterstica recorrente na obra de Cohen. Pacey ressalta que o novo
elemento apresentado por esse livro a averso ambio, hipocrisia e
8 Em um telegrama bastante divulgado poca, Cohen assim justifica sua recusa em receber o prmio de melhor livro de poesia em lngua inglesa oferecido pelo Canada Council: Embora uma grande parte de mim almeje esse prmio, os prprios poemas me impedem completamente. (Though much in me craves this award, the poems themselves absolutely forbid it). (NADEL, 1994, p. 91)
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crueldade da poltica do sculo XX. Para o crtico, Cohen em seus poemas
mais polticos incute a idia de que os horrores de nossa poca fazem com que
os das geraes passadas paream insignificantes.
Stephen Scobie tambm avalia a boa recepo crtica da obra de
Cohen. Em seu estudo intitulado The Counterfeiter Begs Forgiveness: Leonard
Cohen and Leonard Cohen, SCOBIE (1993) ressalta a singularidade da obra
de Cohen: Pode ser que o estilo de Cohen seja muito singular, para no dizer
peculiar, para que possa ser copiado com sucesso; qualquer tentativa acabaria
como pardia ou pastiche. Outro aspecto apontado por Scobie a
desconstruo da figura do poeta como fonte de expresso e significao. O
crtico examina que essa desconstruo do autor empreendida por Cohen em
seus livros de poemas, em especial a partir de Flowers for Hitler. Conforme
SCOBIE (1993) expe:
Os atos extravagantes contra a beleza em Flowers for Hitler; a natureza casual, fragmentria e, de fato, parastica de Parasites of heaven; a brevidade de New poems de Selected poems 1956-1968 tudo conduz ao que eu consideraria agora como a grande trilogia da auto-desconstruo de Cohen: The energy of slaves, Death of a ladys man e Book of mercy. O mais importante sobre cada um desses trs livros no so tanto os poemas especficos deles, tampouco suas declaraes temticas (sobre poltica, religio, ou problemas do casamento moderno), mas antes a postura de cada livro: a posio que cada um assume diante da crescente problemtica sobre a figura do autor.9
Outro aspecto indicativo da relevncia da obra potica e ficcional de
Cohen a publicao de mais de uma centena de tradues de seus livros
para vrios idiomas, tais como o francs, italiano, alemo, polons, espanhol,
hebraico, chins, sueco, dinamarqus, russo, holands, noruegus, finlands,
tcheco, turco, croata, srvio, romeno, esloveno, bsnio, islands e o persa.
Ao longo da dcada de 1960, com seus poemas recebendo seguidas
premiaes10, o autor fez por expandir ainda mais sua presena nos cenrios
9 A seguir, essa passagem conforme apresentada originalmente: The extravagant gestures against beauty in Flowers for Hitler; the casual, fragmentary, and indeed parasitical nature of Parasites of heaven; the brevity of the 1968 New poems all these lead into what I would now see as the major trilogy of Cohens self-deconstruction: The energy of slaves, Death of a lady's man, and Book of mercy. What is most interesting about each of these three books is not so much any individual poems in them, nor even their thematic statements (on politics, religion, or the problems of modern marriage), but rather the overall stance of each book: the position each one envisages for the increasingly problematic figure of the author. (SCOBIE, 1993) 10 Em 1959, devido receptividade de seu primeiro livro de poemas (COHEN, 1956), Cohen foi premiado com uma bolsa pelo Canada Council, o que o permitiu viajar para a Inglaterra em
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de literatura ao publicar duas instigantes obras de fico: The favourite game11
(COHEN, 1963), um notvel romance de formao, ao que se segue a
publicao do romance experimental Beautiful losers12 (COHEN, 1966).
The favourite game um Bildungsroman sobre um jovem em busca de
sua identidade atravs da escrita. O romance se desenvolve em Montreal,
cidade natal de Cohen, e apresenta a histria de Lawrence Breavman,
personagem que, de maneira similar aos dados biogrficos do prprio Cohen,
nasce e cresce numa famlia judia com boas condies financeiras. Essa
personagem, tal qual Cohen, perde o seu pai quando criana, e passa a ser
criada por uma me extremamente exigente. Focalizando o perodo da infncia
e da adolescncia de Breavman em Montreal, Cohen traa um retrato do
artista quando cicatriz, atravs dos diversos envolvimentos amorosos que a
personagem realiza. Ademais, entremeando esse percurso sentimental de
Breavman, h a sua singular tentativa de interpretao do mundo, a qual
estimulada principalmente em funo de sua relao de amizade com a
personagem Krantz.
J Beautiful losers o romance de Cohen mais afeito a
experimentalismos de linguagem. Uma diversidade de lnguas e de linguagens
apresentada pelo autor ao longo da narrativa. Os idiomas que interagem no
texto so o ingls, francs, grego, latim e o iroqus. J a multiplicidade de
linguagens alcanada atravs de diferentes formas narrativas exercitadas ao
longo do romance, tais como a narrativa epistolar, a narrativa histrica,
fragmentos de dirio, trechos de livros de gramtica, anncios de publicidade,
listas e catlogos propostos, poemas, alm de fragmentos de linguagem
cinematogrfica e teatral.
Nesse segundo romance, que gerou bastante polmica quando de sua
publicao, o autor desconstri a identidade das personagens principais o
casal composto por Edith e o narrador, alm de seu amigo F. estilisticamente
utilizando uma linguagem vertiginosa e, sobretudo, tematicamente novembro desse ano, e em seguida partir para a Grcia no ms de dezembro a fim de escrever os poemas de The spice-box of earth (COHEN, 1961). J em 1961, Cohen premiado com outra bolsa do Canada Council. Em 1969, ele agraciado com o Governor Generals Literary Award for English-language poetry, prestigiado prmio oferecido pelo Canada Council. Nas dcadas seguintes, o autor iria receber outras premiaes e ttulos, denotando a grande receptividade de pblico e o reconhecimento por parte da crtica de seu trabalho. 11 O jogo favorito. 12 Belos perdedores.
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entrelaando o erotismo com religiosidade, vislumbrando o sacro no profano e
vice-versa. Alm do enfoque principal no envolvimento sentimental das
personagens em um conflitante tringulo amoroso, o romance apresenta como
pano de fundo uma leitura de Cohen a respeito do mito da primeira santa
catlica do Canad, Catherine Tekakwitha, que originalmente fora uma ndia da
tribo dos Iroqueses, nativos que habitavam a provncia de Quebec poca da
chegada dos primeiros colonizadores franceses no sculo XVII.
Paralelamente atividade de escritor e em grande parte como
conseqncia desta, Cohen desenvolve carreira como msico e compositor em
fins da dcada de 1960. Tendo j realizado diversos recitais de poesia em
Montreal desde a dcada de 1950, sendo em algumas ocasies acompanhado
por msicos de jazz, Cohen evolui suas apresentaes em direo msica
em 1966, a partir de uma leitura pblica realizada em Nova Iorque. Nessa
ocasio, o autor canta dois de seus poemas para uma audincia da YMCA, um
dos quais Suzanne, poema includo em seu quarto livro de poemas, Parasites
of heaven. (COHEN, 1966, p. 67)
Em 1966, Judy Collins grava Suzanne, o primeiro registro fonogrfico
de uma cano composta por Cohen, o qual se torna o seu primeiro xito
comercial, oferecendo a oportunidade para que o compositor assine um
contrato com a gravadora americana Columbia Records. J no ano seguinte, o
agora msico e compositor efetua sua estria fonogrfica com Songs of
Leonard Cohen (1967). Esse primeiro lbum de Cohen apresenta a temtica
sombria e melanclica das letras que aliada aos vocais baixos e profundos se
tornariam a marca registrada do compositor. O lbum aclamado entre os
amantes de msica folk, tornando Cohen um msico cultuado na Inglaterra.
Durante os anos seguintes, e ao longo de grande parte da dcada de
1970, Cohen desenvolve sua carreira musical, excursionando por diversos
pases13 do continente europeu, alm dos Estados Unidos e o Canad. Em
conjunto, uma sucesso de lbuns do compositor encontra crescente
receptividade por parte de diferentes pblicos, ampliando a sua influncia nos
cenrios de msica popular da poca. Dessa forma, so recebidos os
seguintes lbuns do compositor: Songs from a room (1969), Songs of love and
13 Em 1973, durante a Guerra do Iom Kipur, Cohen excursionou por Israel, apresentando-se em diversas bases militares, como forma de demonstrar o seu apoio ao lado israelense do conflito.
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hate (1971) e New skin for the old ceremony (1974). Em 1977, Cohen lana o
lbum Death of a ladies man, com produo do aclamado produtor e
arranjador Phil Spector, que acrescentou elaboradas instrumentaes s
composies reconhecidamente minimalistas do autor.
Outros lbuns que receberam crticas favorveis, bem como se
prestaram a expandir o pblico de Cohen foram Recent songs (1979) e Various
positions (1984). J Im your man (1988) e The future (1992) foram os lbuns
que selaram a alta popularidade de Cohen no fim da dcada de 1980 e
princpio da dcada de 1990, e que muito contriburam para uma renovao de
seu pblico. A valorizao da carreira musical de Cohen nessa poca em
grande parte fruto de um re-direcionamento esttico e musical do compositor.
Um exemplo disso a considervel mudana no arranjo e na estruturao de
suas canes, as quais presenciaram a substituio do violo folk
caracterstico dos primeiros lbuns pelo uso de camadas e mais camadas
sobrepostas de sintetizadores, o que serviu para conferir um toque de
modernidade s canes desses dois ltimos lbuns do compositor.
Um aspecto indicativo da importncia e crescente influncia que o
trabalho musical de Cohen exerceu sobre os quadros de msica folk, rock e
pop nas dcadas de 1960 a 1980 foi o lanamento de lbuns tributos a fim de
homenagear o compositor. Em 1987, Jennifer Warnes gravou Famous blue
raincoat, seu disco de covers de Cohen, ao que se seguiram os lbuns Im your
fan (1991), com canes de Cohen interpretadas por bandas de rock influentes
da dcada de 1980 como R.E.M., Pixies e Nick Cave and the bad seeds, e
Tower of song (1995), com msicas de Cohen gravadas por artistas pop, tais
como Sting, Elton John e Bono Vox.
Aps passar cincos anos recluso14 em um mosteiro zen budista
californiano (Mount Bauldy Zen Center), Cohen ressurge na cena musical com
o lbum Ten new songs (2001), ao que se segue Dear Heather (2004), o seu
ltimo lbum editado. Como resultado da redescoberta e de uma crescente
revalorizao do trabalho musical de Cohen por parte das novas geraes,
14 Em 1994, aps a tour de divulgao do lbum The future, Cohen entrou em recluso no mosteiro de Mount Bauldy. Em 1996, Cohen foi ordenado monge zen budista de Mount Bauldy. Nessa cerimnia ele recebeu o nome Jikan, o qual significa o silencioso. Cohen deixou o mosteiro em 1999, a fim de retomar a sua carreira artstica.
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lanado em fins de 2005 o longa-metragem Leonard Cohen Im your man15,
uma combinao de documentrio e concerto tributo, dirigido por Lian Lunson,
com diversos artistas homenageando o compositor. Outro aspecto indicativo do
reconhecimento da carreira artstica de Cohen a sua incluso no Canadian
Music Hall of Fame (1991), no Canadian Songwriters Hall of Fame (2006) e,
principalmente, em funo do recebimento da Order of Canad (2003), a mais
alta condecorao do governo canadense concedida a um civil.
Em meio sua bem-sucedida carreira musical nas ltimas dcadas, o
autor desenvolveu nesse perodo uma atividade literria intermitente. De fato,
em contraponto intensa atividade literria de Cohen na dcada de 1960, as
dcadas seguintes presenciaram um desenvolvimento potico do escritor em
livros lanados de forma descontinuada, mas ainda assim elaborados com o
mesmo rigor, tais como The energy of slaves16 (COHEN, 1972), Death of a
ladys man17 (COHEN, 1978) e Book of mercy18 (COHEN, 1984). No incio da
dcada de 1990, Cohen lanou a sua segunda antologia de poemas Stranger
music selected poems and songs19 (COHEN, 1993), reunindo em um mesmo
volume poemas e letras de canes marcantes de sua trajetria artstica. Em
2006, como forma de comemorao do cinqentenrio da publicao do
primeiro livro de poesia de Cohen, lanada uma edio especial de Let us
compare mythologies (COHEN, 1956) e igualmente editado o livro Book of
longing20 (COHEN, 2006), reunindo poemas inditos compostos pelo autor nas
duas ltimas dcadas.
Em relao leitura que realizei da obra potica completa publicada
por Cohen, observo a existncia de duas temticas principais desenvolvidas
pelo autor. Primeiramente, h a temtica lrico-amorosa, onde se inserem
poemas que em linhas gerais tematizam a arte de amar tal como vislumbrada
pelo autor, ou seja, Cohen desenvolve em sua poesia um verdadeiro percurso
sentimental dos amantes. Essa temtica lrico-amorosa ainda abarca diferentes
subtemas, tais como o tema da beleza, da perda, do desejo de permanncia,
da culpa, bem como do erotismo associado religiosidade. 15 Leonard Cohen Im your man (USA, 2005, 104 minutos, colorido) 16 A energia dos escravos. 17 Morte de um sedutor. 18 Livro da misericrdia. 19 Msica forasteira poemas e canes selecionados. 20 Livro do desejo.
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Em segundo lugar, h a temtica do holocausto, onde se inserem
poemas que tematizam o momento histrico do holocausto ocorrido durante o
perodo da Segunda Guerra Mundial, ou seja, Cohen desenvolve sob a forma
de poesia uma abordagem sobre esse evento catastrfico, enfocando
diferentes aspectos desse episdio, tais como o ponto de vista dos torturados,
o ponto de vista dos torturadores, alm de realizar uma considerao sobre a
culpa coletiva que propagada gerao a gerao entre os descendentes.
Incluem-se ainda nessa segunda temtica poemas que afirmam a identidade
judaica do autor, pois conforme observo na obra potica de Cohen, essa
identidade se v estimulada e fortalecida em grande parte em funo da
conscincia do escritor a respeito do histrico de perseguies e violncias
impostas ao povo judeu entre essas se encontram em posio de destaque
as praticadas pelo regime da Alemanha nazista durante o holocausto.
1.2 O PROJETO
Dentre os principais temas desenvolvidos na obra potica de Cohen,
nota-se que a temtica que alude ao holocausto aliada forte identificao do
autor com a religio judaica permitem uma abordagem sobre a representao
do holocausto em sua obra.
Nesse sentido, entendo como relevante a abordagem que Cohen
realiza por meio de sua lrica por vezes irnica, incisiva ou mesmo corrosiva
sobre o tema do holocausto, em razo das conseqncias que esse evento
causou, no raro conduzindo a intelectualidade e a expresso artstica de
grande parte do sculo XX, at a de nossos tempos, a continuamente procurar
refletir filosoficamente, sociologicamente ou artisticamente sobre a natureza
catastrfica desse momento histrico.
Entre os quadros de literatura do sculo XX, a literatura que
desenvolve um trabalho de abordagem, de forma direta ou ainda que indireta,
do evento do holocausto e de suas conseqncias sobre as diferentes
geraes conhecida como literatura do testemunho. Segundo informa o
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13
professor, tradutor e ensasta Mrcio Seligmann-Silva em O local da diferena21
(SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 77):
A literatura de uma era de catstrofes desenvolveu tambm a nossa sensibilidade para reler e reescrever sua histria, do ponto de vista do testemunho. (...) Com relao Shoah surgiram centenas de publicaes de sobreviventes, de membros da segunda gerao e de outros escritores que deixaram em suas obras as marcas de um evento que tambm catalisou a reflexo filosfica, sociolgica, literria e esttica.
Tal qual apresenta Seligmann-Silva, a literatura do testemunho
abrange no somente os relatos de sobreviventes de campos de concentrao
e de extermnio comandados pela Alemanha nazista, mas tambm envolve as
publicaes de descendentes desses sobreviventes, alm das obras
construdas por outros escritores (como o caso de Cohen), que procuram
refletir sua maneira (artisticamente, filosoficamente e/ou sociologicamente)
esse mesmo momento histrico. Nesse sentido, os poemas de Cohen que
tematizam o Holocausto, ou a Shoah, permitem que abordemos a obra desse
autor sob a perspectiva da literatura do testemunho.
Segundo Seligmann-Silva contextualiza22, essa literatura produzida
sobre o tema da Shoah de relevncia para a literatura produzida no sculo
XX. Conforme ele examina, ao invs de visar uma representao do passado,
a literatura do testemunho tem em mira a sua construo a partir de um
21 Em O local da diferena, Mrcio Seligmann-Silva apresenta uma coletnea de ensaios que abordam questes da teoria literria, traduo, crtica cultural, filosofia, histria da arte e histria geral. Em seu segundo captulo, o qual intitulado Trauma, testemunho e literatura, Seligmann-Silva realiza uma reflexo abrangente sobre as relaes entre trauma e literatura, enfocando os conceitos de choque e de trauma, bem como reflete sobre a literatura do trauma, abordando a noo do testemunho. A esse respeito, Seligmann-Silva trata especialmente das relaes entre a literatura do testemunho e a tragdia, bem como efetua uma reflexo terica sobre os limites entre a construo e a fico dentro da literatura do testemunho. (SELIGMANN-SILVA, 2005) 22 Para maior compreenso da colocao de Seligmann-Silva, acompanhe-se a contextualizao que ele realiza a respeito da literatura do testemunho: ... a literatura do testemunho (...) talvez seja uma das maiores contribuies que o sculo XX deixar para a rica histria dos gneros literrios. Nesse sentido ela uma filha da prpria histria: pois nunca houve um sculo com tantos morticnios de populaes inteiras como esse. E mais: essa literatura difere das duas grandes linhas que governaram a produo literria at hoje: ela no visa nem a imitao (da natureza, da histria, ou mesmo de ideais) nem a criao absoluta (como na doutrina romntica que levou busca da arte pela arte). Nem privilgio do sujeito, nem do objeto: antes ela implica uma apropriao das lies do Romantismo (e da ironia romntica: no existe um eu estvel, nem um mundo independente de ns, nem uma linguagem independente do mundo) e a afirmao da necessidade de se construir um passado que est fadado a ficar em runas (a esttica das runas, alis, como bem conhecido, tambm romntica nas suas origens). Indivduo e mundo so construdos simultaneamente atravs dessa literatura. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 110)
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14
presente (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 79). Nesse sentido, pertinente
considerar que os poemas de Cohen que abordam o tema do holocausto
constroem esse momento histrico, segundo a distinta viso de mundo do
autor. Ou seja, o autor faz com que sua lrica se aproprie desse tema e o
escreva segundo sua perspectiva do drama judaico.
Em relao ao desafio aceito por Cohen de escrever o momento do
holocausto, h pertinncia no ponto de vista do filsofo, socilogo e crtico
literrio Theodor W. Adorno, divulgado em seu ensaio Crtica cultural e
sociedade (ADORNO, 1998), que professava a impossibilidade de se escrever
poemas aps Auschwitz. A questo de como fazer poesia lrica nessa era
catastrfica esteve presente nas reflexes empreendidas pelos pensadores da
escola de Frankfurt, que procuraram conciliar a crtica da cultura com a crtica
de regimes violentos e totalitrios. A esse respeito, Adorno desenvolveu uma
reflexo sobre a lrica, que procurava definir qual o papel da poesia em tempos
de desumanizao provocados pelo avano do capitalismo industrial, bem
como por experincias de barbrie conduzidas por regimes totalitrios, como
exemplo o regime da Alemanha nazista. Nesse sentido, em Crtica cultural e
sociedade (ADORNO, 1998, p. 26), Adorno declarava que escrever um poema
aps Auschwitz um ato brbaro, e isso corri at mesmo o conhecimento de
por que hoje se tornou impossvel escrever poemas. Essa impossibilidade
professada por Adorno, baseia-se em sua considerao de que o valor da
poesia, aps o advento de experincias violentas e traumticas do sculo XX,
depende de seu afastamento das convenes mais tradicionais de expresso e
representao23.
A estudiosa da obra de Cohen, Sandra Wynands, em artigo intitulado
The representation of the Holocaust in Flowers for Hitler (WYNANDS, 2000),
contextualiza essa controvrsia, bastante discutida entre escritores no perodo
ps-guerra, a qual aventava a hiptese de se utilizar o holocausto como objeto
de uma obra artstica. Segundo Wynands examina (WYNANDS, 2000, p. 199),
Adorno contra a representao do holocausto em obra de arte, desaprovando
a estetizao do evento, em funo dessa representao proporcionar apenas 23 Conforme o professor e pesquisador Jaime Ginzburg aponta em Theodor Adorno e a poesia em tempos sombrios. Nesse artigo, Ginzburg prope uma reflexo sobre idias de Adorno, abordando relaes entre sua concepo de poesia lrica, sua valorizao da Histria e sua crtica da experincia poltica de seu tempo (GINZBURG, 2002).
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15
um simulacro, uma cpia fraca que nunca faria justia ao original, alm de
possivelmente ser uma ofensa para as vtimas desse evento catastrfico.
Contra essa objeo de Adorno, Wynands apresenta o argumento dos que
defendem24 a necessidade de se utilizar o holocausto como objeto de obra
artstica, baseado no fato de que assim haveria a possibilidade de reflexo
sobre a catstrofe, evitando que ela casse em esquecimento. Segundo esse
ponto de vista, a utilizao do holocausto em obra de arte contribuiria para que
experincias de barbrie, tais como as que ocorreram nesse terrvel evento
histrico, no ocorressem novamente.
Em resposta desaprovao de Adorno utilizao esttica do evento,
Wynands conclui que Cohen evita uma representao mimtica do holocausto,
em funo de adotar uma postura semelhante apresentada pela literatura da
decadncia25. Ao efetivar uma inverso de temas comuns romnticos em sua
obra, Cohen no almeja proporcionar prazer esttico ao leitor. Antes de apelar
empatia deste, Cohen procura uma desfigurao da obra de arte, afastando-a
de uma concepo de arte que seja mais familiar ao leitor, muitas vezes
fazendo com que a mensagem experimentada por este seja desagradvel ou
mesmo perversa. Dessa forma, o prazer esttico que objetado por Adorno,
no objetivado nos poemas de Cohen que tratam do holocausto. Ao
contrrio, em virtude de procurar causar perturbaes, choques na
sensibilidade do leitor, os poemas de Cohen permitem abrir janelas de
significao que podem estimular a reflexo desse leitor a respeito do evento
do holocausto, bem como sobre a funo desses poemas e da prpria funo
do leitor na contemporaneidade.
Com base nessas afirmaes pode-se considerar a validade da
abordagem potica, fruto da incurso lrica, que Cohen realiza sobre o tema do
holocausto em sua obra. Em funo dos poemas selecionados para a prtica
24 Em seu artigo, Wynands ilustra esse argumento com uma citao de Wolfdietrich Schnurre: A poesia carnal. Portanto, ela fala de vida. Portanto, ela a defende. E agora, aps uma vitria global da morte como essa, a poesia deve ficar calada?. (Poetry is sensual. therefore it is about life. Therefore it defends it. And now, after such a global victory of death, poetry is supposed to be silent?). (WYNANDS, 2000, p. 199) 25 Segundo Wynands expe, na literatura da decadncia temas comuns romnticos so radicalmente reinterpretados, invertidos de forma a se libertar das limitaes das noes vitorianas e positivistas de progresso e crescimento linear (WYNANDS, 2000, p. 203). Ou seja, privilegiada a concepo esttica de fins do sculo XIX, onde o feio substitui o belo, como objeto de inspirao artstica. Nesse sentido, a potica de Baudelaire serve como exemplo desta concepo artstica.
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tradutria e das discusses por esses poemas apresentadas e estimuladas, a
obra potica de Cohen indica que, apesar da impossibilidade adorniana,
possvel escrever poemas sobre os campos de extermnio da Alemanha
nazista, e de certa forma construir o evento catastrfico do holocausto sob a
forma de poesia. Ou seja, em funo da postura romntico-decadente adotada
por Cohen26, que no almeja causar prazer esttico no leitor, Cohen antes
procura efetuar uma aspirao ao horror em seus poemas, de forma a indicar
os diversos atos de desumanizao praticados pelo regime nazista. Nesse
sentido, compreendo que atravs dos poemas de Cohen que tematizam a
Shoah, possvel realizar uma abordagem sobre o holocausto e, por meio
dessa, estimular a reflexo do leitor a respeito dessa experincia de barbrie e
violncia.
Tendo em vista a prtica tradutria dos poemas de Cohen que
tematizam a Shoah, realizo uma leitura crtica sobre os aspectos brbaros e as
diversas atrocidades praticadas contra aqueles judeus que sofreram
perseguies, torturas e outras mutilaes por parte do regime nazista,
propondo ao leitor uma reflexo sobre a meticulosa campanha de aniquilao
do humano promovida por tal regime. Considero a necessidade de se realizar
esta abordagem sobre o holocausto a fim de melhor estudo e compreenso
dos poemas selecionados para meu projeto de traduo.
Assim sendo, apresento no captulo 2 uma reflexo terica sobre
traduo. Inicialmente, apresento a traduo como relao, tal como
conceituada por Antoine Berman no texto A traduo em manifesto de seu
livro A prova do estrangeiro (BERMAN, 2002, p. 11-25). Este o conceito que
pretendo considerar em meu estudo. Em seguida, trato da natureza paradoxal
da atividade do tradutor de poesia, ou seja, da questo da traduzibilidade e da
intraduzibilidade do gnero poesia. Considero necessrias essas reflexes
sobre traduo a fim de melhor fundamentar terica e criticamente a prtica de
traduo.
No captulo 3, apresento uma leitura crtica sobre treze poemas
integrantes da obra potica de Cohen, selecionados para a prtica de traduo
em funo de se revelarem representativos da temtica do holocausto ou
26 Tratarei mais detalhadamente da postura romntico-decadente, ou do romantismo sombrio, adotado por Cohen no tpico 3.2. O desenvolvimento da identidade judaica em The genius.
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indicativos da identidade judaica abordada em sua obra. Nessa leitura crtica,
trato de diferentes aspectos abordados em relao ao tema do holocausto na
obra de Cohen. Dessa maneira, realizo uma leitura crtica tratando
primeiramente da identidade judaica do autor e, em seguida, ressaltando o
desenvolvimento dessa identidade no poema The genius (COHEN, 1961, p.
15). Na seqncia, abordo a questo do judeu de Dachau. Posteriormente,
realizo uma leitura de poemas selecionados do livro Flowers for Hitler de
COHEN (1964), construindo uma reflexo sobre os cenrios violentos e
opressivos do ambiente de tortura, sobre a natureza do Mal, sobre o horror
judaico, bem como sobre o desejo de aniquilao do humano, tal como pode
ser observado nos poemas de Cohen em relao ao genocdio comandado
pelo regime da Alemanha nazista.
No captulo 4, apresento os textos originais em lngua inglesa de
Cohen, bem como a traduo proposta para esses treze poemas focalizados
em minha leitura crtica. Esses poemas so: City Christ, do livro Let us
compare mythologies (COHEN, 1956); The genius, do livro The spice-box of
earth (COHEN, 1961); A note on the title, Folk, Heirloom, The failure of a
secular life, What Im doing here, Hitler the brain-mole, All there is to know
about Adolph Eichmann, Opium and Hitler e A migrating dialogue, do livro
Flowers for Hitler (COHEN, 1964); I am a priest of God, do livro Parasites of
heaven (COHEN, 1966); e Not a Jew, do livro Book of longing (COHEN, 2006).
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2 SOBRE TRADUO
2.1 A TRADUO COMO RELAO
Opto por considerar nesse projeto de traduo de poemas de Cohen a
traduo tal como foi conceituada pelo tradutor e terico francs Antoine
Berman no texto A traduo em manifesto que faz as vezes de prefcio de
seu livro A prova do estrangeiro (BERMAN, 2002, p. 11-25), ou seja, tratarei a
traduo como sendo um texto que procura estabelecer com o texto original
uma espcie de relao.
Em A prova do estrangeiro, Antoine Berman apresenta um estudo
sobre a cultura e traduo na Alemanha romntica, examinando teorias de
autores como Herder, Goethe, Schlegel, Novalis, Humboldt, Schleiermacher e
Hlderlin. Em A traduo em manifesto, Berman realiza uma reflexo a
respeito de questes fundamentais sobre traduo como, por exemplo,
procurar definir que lugar ocupa a traduo em nosso campo cultural.
Conforme Berman expe: a essncia da traduo ser abertura, dilogo,
mestiagem, descentralizao. Ela relao, ou no nada (BERMAN, 2002,
p. 17). A construo dessa relao, espcie de dilogo proposto entre o texto
traduzido e o texto original, o que objetivo nesse estudo.
Nesse projeto de traduo de poemas da obra de Cohen, compreende-
se a relao proposta por Berman, como uma relao que seja representativa
de minha leitura crtica da obra de Cohen. Ou seja, tendo em vista a prtica
tradutria de poemas da obra do autor que tematizam o evento da Shoah, irei
realizar uma traduo a partir do desenvolvimento de uma abordagem crtica
dos diversos aspectos do holocausto nos poemas de Cohen. Atravs dessa
leitura crtica da obra do autor, procuro estabelecer em meu texto em traduo
uma relao entre nossa cultura contempornea e a cultura canadense, tal
como foi articulada e desenvolvida sob a forma de poesia por Cohen.
A conceituao da prtica tradutria como sendo forma de dilogo
proposto entre duas lnguas (e duas culturas) defendida no s por Berman,
mas encontra ecos no cenrio brasileiro, mais especificamente no discurso do
poeta e tambm tradutor Rgis Bonvicino. Em entrevista ao Jornal Rascunho
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(BONVICINO, 2005, p. 14), Bonvicino discorre a respeito da questo da
fidelidade ou no do texto em traduo em relao ao texto original, afirmando
a sua concepo de traduo como sendo dilogo. Essa afirmao ilustra
perceptivelmente a consonncia do discurso de Bonvicino ao de Berman.
Conforme o poeta explica nessa entrevista (BONVICINO, 2005, p 14):
A rigor, no existe fidelidade possvel entre lnguas diferentes. por isso que a traduo sempre um desafio, um problema, um fracasso. Os conceitos de fidelidade e de traio so um pouco moralistas no que se refere traduo. Penso que traduzir dialogar com modelos [grifo meu]. E isso muito importante para uma literatura, embora sujeito ao fracasso, como eu disse.
De maneira similar que se pretende o projeto de traduo
desenvolvido nesse estudo, ou seja, objetiva-se construir em lngua portuguesa
um texto em traduo que dialogue com o texto original de Cohen,
estabelecendo com ele, conforme Berman postula, uma relao. Assim sendo,
pretende-se escrever, ou melhor, re-escrever em portugus um texto que
dialogue com o modelo Cohen e que estabelea uma relao com a lrica
traduzvel do autor canadense.
Nesse sentido, objetiva-se que essa traduo possa se relacionar com
o modelo Cohen, a fim de estabelecer atravs dessa relao no A
correspondncia, mas uma espcie de correspondncia sensvel aos diversos
procedimentos lingsticos e estilsticos utilizados pelo autor que possam ser
observados em meu ato de leitura e interpretao do texto original. Pois
compreendo que ao objetivar re-escrever um texto em portugus que dialogue
com o modelo Cohen preciso estar cnscio de que o olhar do tradutor fruto
de uma comunidade interpretativa especfica e que faz referncia indelvel
poca, lugar e cultura em que este tradutor existe e atua. Assim sendo, o que
se prope nesse estudo no a traduo dos poemas de Cohen, mas uma
traduo possvel dos poemas de Cohen, fundada em minha leitura crtica
dessa obra, pois conforme Berman examina em A traduo em manifesto de
seu livro A prova do estrangeiro (BERMAN, 2002, p. 18):
A dialtica reversvel da fidelidade e da traio est presente neste ltimo [o tradutor] at na ambigidade de sua posio de escrevente: o puro tradutor aquele que tem necessidade de escrever a partir de uma obra, de uma lngua e de um autor estrangeiros. Desvio notvel. No plano psquico, o tradutor ambivalente. Ele quer forar dos dois lados: forar a sua lngua a se lastrear de
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estranheza, forar a outra lngua a se de-portar em sua lngua materna. Ele quer ser escritor, mas no seno re-escritor. Ele autor e nunca o Autor. Sua obra de tradutor uma obra, mas no A Obra.
Compreende-se esse projeto de traduo de maneira semelhante. De
fato, procuro ressaltar nesse estudo que estou ciente de que essa traduo
proposta fruto de um ato de interpretao especfico e provisrio, isto ,
sujeita natural transitoriedade que o ato de leitura e interpretao efetivar do
texto original. Estou, portanto, cnscio de que ao construir significados em
minha leitura do texto de Cohen, e ao procurar evidenciar esses significados
em minha traduo, estou inevitavelmente propondo que essa traduo possa
se relacionar com o texto estrangeiro de forma a possibilitar uma re-escritura
temporria desse em nossa lngua materna.
possvel re-escrever em nosso idioma aspectos da obra potica do
autor, os quais conforme Berman explana mantenham uma relao de
dilogo e abertura com o texto estrangeiro. Ou seja, segundo a leitura crtica
que realizo da obra de Cohen, considero possvel re-escrever em meu texto em
traduo diferentes aspectos da temtica do holocausto, de forma a oferecer
um recorte dessa obra. Visto que essa leitura crtica devido a um ato de
interpretao pessoal e especfico, no imagino ser possvel a traduo da
totalidade da obra isto , traduzir toda a pluralidade de significaes que a
obra de Cohen permite aos leitores mas certamente considero possvel uma
traduo desse recorte que efetuo da obra.
Outro aspecto importante a se ressaltar, ao qual Berman se refere
pertinentemente em A traduo em manifesto de seu livro A prova do
estrangeiro (BERMAN, 2002), a conceituao da traduo como sendo
mestiagem, ou seja, o que se procura permitir a entrada de contedo
estrangeiro no texto em traduo, objetivando desse modo, que o texto original
em lngua estrangeira estabelea com o texto em traduo uma relao de
miscigenao. Sobre essa questo, apropriado lembrar que Berman
desenvolve em sua concepo de traduo uma considerao terica j
tratada por Schleiermacher no incio do sculo XIX.
Em 1813, o telogo e filsofo alemo Friedrich Schleiermacher
indicava em seu ensaio Sobre os diferentes mtodos de traduo
(SCHLEIERMACHER, 2001) quais caminhos so possveis de serem tomados
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pelo tradutor. Segundo Schleiermacher, s h dois caminhos possveis: Ou o
tradutor deixa o autor em paz e leva o leitor at ele; ou deixa o leitor em paz e
leva o autor at ele (SCHLEIERMACHER, 2001, p. 43).
Visto dessa forma, Schleiermacher argumenta que o tradutor ao optar
pelo primeiro caminho, ponha em prtica um mtodo de traduo
estrangeirizante, o qual valorize e procure reproduzir no texto em traduo os
estranhamentos, ou seja, as diferenas culturais do texto estrangeiro.
Conforme Schleiermacher apresenta, caso opte pelo segundo caminho, o
tradutor estar utilizando um mtodo de traduo que priorize o abafamento no
texto em traduo das diferenas e estranhamentos do texto em lngua
estrangeira.
Nesse contexto, coerente afirmar que Berman procura desenvolver
em sua concepo de traduo o primeiro caminho mencionado por
Schleiermacher. Ou seja, Berman procura evidenciar no texto em traduo as
diversas diferenas culturais e lingsticas do texto estrangeiro e no apag-
las, tal como fazem as tradues etnocntricas. Segundo Berman argumenta
(BERMAN, 2002, p. 16), o prprio objetivo da traduo proporcionar uma
espcie de relao com o texto em lngua estrangeira, onde esse ltimo atue
de forma a fecundar o texto em traduo, inseminando este com suas
especificidades de linguagem, ou seja, com os estranhamentos estilsticos
caractersticos do autor, os estranhamentos especficos de linguagem que
possam ser observados no texto estrangeiro. Dessa maneira, nas palavras de
BERMAN (2002, p. 16):
A prpria visada da traduo abrir no nvel da escrita uma certa relao com o Outro, fecundar o Prprio pela mediao do Estrangeiro choca-se de frente com a estrutura etnocntrica de qualquer cultura, ou essa espcie de narcisismo que faz com que toda sociedade deseje ser um Todo puro e no misturado. Na traduo, h alguma coisa da violncia da mestiagem.
Sem dvida, h na traduo alguma espcie de violncia da
mestiagem. No toa que os puristas de maneira geral, comportem-se de
forma a proteger a sua lngua materna, criticando a entrada e veiculao de
eventuais estranhamentos do texto estrangeiro em sua lngua. Conforme
Berman explicita, toda cultura procura conservar sua estrutura etnocntrica.
Para tanto, em nome de uma pureza idealizada, age de forma a preservar essa
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espcie de narcisismo que a impede de se misturar sem reservas com outras
culturas. Sob esse ponto de vista, compreende-se que toda traduo
represente uma ousadia sensvel para a cultura domstica, visto que prope
uma forma de mestiagem entre essa e a cultura estrangeira. Alie-se a isso o
fato de que essa mestiagem do texto em traduo no ocorre de forma
pacfica, mas freqentemente surge com certa violncia, devido ao choque de
idias e de diferentes vises de mundo, o qual realado em virtude do
inevitvel contraste que existe entre diferentes culturas.
Nesse sentido, compreende-se por que os que avaliam tradues
literrias (leitores, editores e crticos) algumas vezes privilegiem a fluncia de
certos textos em traduo, e em outras ocasies condenem a estranheza ou
mesmo a bizarria de linguagem de outros textos, como se o advento desses
fosse fruto de uma inabilidade ou mesmo incompetncia lingstica do tradutor.
Ao contrrio do que muitos desses crticos e leitores imaginam, fluncia no
texto em traduo no significa necessariamente uma maior compreenso do
texto em lngua estrangeira e, subseqentemente, uma maior competncia do
tradutor em seu ofcio. Sabe-se que, muitas vezes, em prol de uma maior
inteligibilidade do texto em traduo, h tradutores que cometem apagamentos
de determinados estranhamentos de linguagem do texto original, ou at mesmo
efetuam um ato de sublimao de alguns recursos estilsticos caractersticos do
autor no raro, optam por evitar evidenciar aspectos contrastantes que
ocorrem entre diferentes culturas, recusando-se a admitir e a proporcionar uma
saudvel mestiagem entre essas culturas no texto em traduo. Tais
tradutores agem dessa maneira de forma a proporcionar uma maior fluncia
de seu texto em traduo, certos de que essa qualidade seja valorizada em
seus trabalhos.
A esse respeito, o professor, tradutor e um dos mais respeitados
tericos dos estudos da traduo da atualidade, Lawrence Venuti, faz especial
meno em seu livro The translators invisibility (VENUTI, 1995). Nesse
trabalho, Venuti mapeia a histria da traduo do sculo XVII atualidade,
relatando como o aspecto da fluncia prevaleceu sobre outras estratgias de
traduo quando da formao do cnone de literaturas estrangeiras traduzidas
para a lngua inglesa.
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23
Segundo Venuti, um texto em traduo julgado aceitvel pelo pblico
avaliador de tradues (resenhistas, editores e leitores), quando este texto
lido de maneira fluente. As avaliaes desse pblico baseiam-se na ausncia
no texto em traduo de peculiaridades estilsticas ou lingsticas presentes no
texto estrangeiro. Ou seja, para esses avaliadores, um texto em traduo
satisfatrio quando legvel ou fluente, quando comete apagamentos de
construes estranhas no texto estrangeiro, tornando-se transparente, isto ,
dando a impresso de que o texto traduzido faa refletir de maneira
transparente a essncia do texto original. Pois, a maioria desses avaliadores,
segundo Venuti, gostaria de ler as tradues como se estas tivessem sido
escritas em sua prpria lngua, e no receb-las como o fruto de uma cultura
estrangeira. Nesse sentido, nota-se que o pblico avaliador de tradues
privilegia o segundo caminho possvel de ser tomado pelo tradutor, tal como foi
apontado por Schleiermacher anteriormente, em seu ensaio Sobre os
diferentes mtodos de traduo (SCHLEIERMACHER, 2001). Ou seja, para
esse pblico avaliador, o tradutor deve deixar o leitor em paz e levar o autor at
ele, cometendo apagamentos das diferenas e estranhamentos do texto
estrangeiro, a fim de tornar o texto traduzido mais fluente.
Dessa forma, com base nesse valorizado aspecto da fluncia, ou
melhor, da iluso da transparncia do texto em traduo, Venuti elabora em
seu livro o conceito de invisibilidade do tradutor. Tal conceito por esse
terico assim apresentado: para esse pblico avaliador de tradues que
orientado pela iluso da transparncia, ou seja, no percebe que esse carter
de transparncia um simples efeito do discurso construdo pelo tradutor
para garantir legibilidade de seu texto, Venuti expe que Quanto mais fluente a
traduo, mais invisvel o tradutor (VENUTI, 1995, p. 2). Ou seja, para
Venuti, o ideal da fluncia torna as tradues transparentes, o que acaba por
ocasionar a invisibilidade do tradutor. Segundo seu estudo, essa invisibilidade
a situao em que se encontra o tradutor atualmente no cenrio cultural anglo-
americano.
De forma a se contrapor a essa tendncia historicamente dominante no
mundo das tradues e, principalmente, se opor ao autoritarismo da
transparncia, Venuti prope ento a defesa de uma traduo
estrangeirizante. Para Venuti, uma traduo estrangeirizante em lngua inglesa,
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24
ou seja, que permita a presena de diferenas lingsticas e culturais, pode ser
uma forma de resistncia contra o etnocentrismo, racismo, narcisismo cultural e
imperialismo dos pases de lngua inglesa. nesse sentido que nota-se a
consonncia do estudo de Venuti com a concepo de traduo de Berman.
De fato, Venuti ope-se tal como Berman s tradues etnocntricas. Ambos
fundamentam suas consideraes tericas no ensaio escrito por
Schleiermacher Sobre os diferentes mtodos de traduo
(SCHLEIERMACHER, 2001), ou seja, buscam pr em prtica um mtodo de
traduo estrangeirizante, o qual deixe o autor em paz e leve o leitor at ele. A
esse respeito, Berman desenvolve, conforme j foi visto, o conceito de visada
tica do texto em traduo, a fim de evidenciar no texto traduzido uma relao
com o Outro (BERMAN, 2002, p. 16). J Venuti, como fruto de suas leituras
crticas de Schleiermacher e de Berman, prope uma prtica tradutria
estrangeirizante que resista ao ideal de fluncia e de domesticao cultural
(ou seja, que no cometa apagamentos de estranhamentos e diferenas
culturais), de forma a se opor iluso da transparncia atualmente em
vigncia, objetivando dessa maneira tornar visvel o papel do tradutor.
Com base nessas consideraes apresentadas que direcionam a
prtica tradutria, compreende-se que a forma de conduta apropriada para
esse projeto de traduo de Cohen seja a de respeitar as diferenas culturais
do texto estrangeiro. De fato, o que se pretende nesse projeto de traduo de
forma alguma, ocasionar ou possibilitar alguma espcie de sublimao ou
apagamento proposital e sistemtico de qualquer estranhamento de linguagem
que possa ser observado no texto de Cohen. No objetiva-se nesse trabalho
desconsiderar especificidades lingsticas observveis no texto estrangeiro,
nem tampouco procurar desenvolver no texto em traduo procedimentos
lingsticos que a despeito de eventualmente possibilitarem uma certa
fluncia, colaborando para criar uma certa iluso da transparncia nesse
texto, certamente impliquem em um abafamento e apagamento da lrica do
autor.
Assim sendo, procura-se construir um texto em lngua portuguesa que
estabelea uma relao representativa de minha leitura crtica da obra de
Cohen. Com base nas exposies de Berman (BERMAN, 2002, p. 16), ao abrir
no nvel da escrita de minha traduo uma certa relao com o Outro, procuro
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construir nesse projeto de traduo uma forma de dilogo com a lrica do autor
que no cometa apagamentos do texto estrangeiro e, sobretudo, represente os
aspectos observveis em minha leitura crtica da temtica da Shoah nos
poemas de Cohen, efetivando, portanto, a possibilidade de traduo desse
meu recorte da obra.
2.2 A TRADUZIBILIDADE E INTRADUZIBILIDADE DA POESIA
Dentre as diversas particularidades com as quais o tradutor se depara
em seu ofcio, significativo notar o carter de singularidade que envolve
aqueles que se propem a traduzir poesia. Nesse sentido, pertinente uma
considerao a respeito da conscincia do paradoxo que envolve essa
atividade. Ou seja, tratarei, a seguir, da constatao de que a poesia se revela
intraduzvel e ao mesmo tempo traduzvel. Para melhor exemplificao,
considera-se um depoimento do poeta Michel Deguy em relao a este tema
(DEGUY, 2001, p. 8):
Quanto poesia, h uma verdade forosamente paradoxal: um poema ao mesmo tempo intraduzvel e traduzvel. Ns no escutamos a lngua do outro na nossa prpria lngua. Se eu no falo russo, no entenderei jamais um poema de Puchkin; se no falo portugus, no entenderei um poema de Pessoa. Uma lngua no fala em outra lngua ela um enclausuramento. Tudo est compartimentado, encerrado, cloisonn (uma das grandes palavras do esprito filosfico contemporneo). Cada lngua forma um meio relativamente independente e relativamente finito dentro de sua infinitude, o que quer dizer que o mundo inteiro se passa na totalidade de uma lngua: se eu no falo uma lngua, eu no compreendo sua verso do mundo.
H pertinncia na constatao de DEGUY (2001, p. 8) a respeito da
intraduzibilidade da poesia, em razo dela estar, por natureza, enclausurada na
lngua em que foi produzida. Sob esse aspecto, posso acrescentar
considerao de Deguy outra circunstncia a ser observada pelo tradutor de
poesia. A saber, a percepo de que um poema ainda mais intraduzvel se
considerarmos todo o sistema fnico que nele habita, em funo tanto da
complexidade sugerida de associaes de sonoridades, quanto das
possibilidades de associaes dessas sonoridades com os arranjos de silncio
que o autor procure articular em sua pea potica. De fato, os recursos sonoros
dentro de um poema so responsveis por grande parte da capacidade
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26
expressiva desse, pois atravs deles que freqentemente o poeta alcana o
encantatrio e no raro amplia o poder de sugesto de seus versos. Sob essa
tica, uma obra potica se revela, essencialmente, intraduzvel. No entanto,
conforme Deguy explica ao longo de seu depoimento (DEGUY, 2001, p. 8), um
poema ao mesmo tempo que se revela intraduzvel, tambm revela-se
traduzvel:
Mas, por outro lado tudo traduzvel. Tudo est por ser traduzido, no cessamos de traduzir, nada pode ter lugar seno pelo esforo da traduo. Trata-se de uma palavra de ordem: preciso traduzir, o que Benjamin27 chamava das grosse Ausgabe des bersetzers28 (a grande tarefa do tradutor). Eu no o entendo em sua lngua, mas devo me entender com aquilo que foi pensado nessa lngua. Nesse ponto, porm, h uma bifurcao que corresponde justamente literatura, diferena lngua-literatura. Falando de modo um pouco caricatural, importante conhecer o portugus para poder ir a um restaurante ou alugar um carro em So Paulo, mas muito mais importante ler a obra de um grande escritor brasileiro em traduo para lngua francesa. O importante que cada lngua se torne capaz de fazer chegar at si a literatura das outras lnguas. Ento eu diria que, em primeiro lugar, um poema intraduzvel e, em segundo lugar, que tudo est por ser traduzido. Esse o paradoxo.
Assim sendo, possvel realizar duas constataes a respeito da tarefa
do tradutor de poesia, ainda que essas se encontrem em ntido paradoxo. A
primeira constatao a de que uma obra potica intraduzvel porque se
encontra enclausurada na lngua em que foi produzida, ou seja, se no se fala
determinada lngua, no se compreende a viso de mundo que esta abriga.
Dessa forma, um poema se revela decididamente intraduzvel, mas por outro
lado, esse tambm se apresenta como traduzvel. Utilizando o mesmo
depoimento de DEGUY (2001, p. 8), pode-se chegar segunda constatao, a
qual entra em confronto com a primeira, ou seja, a de que tudo traduzvel
(...), tudo est por ser traduzido, pois h a necessidade de traduo em nossa
lngua do que foi pensado em outra. A fim de satisfazer essa necessidade, h a
possibilidade de dilogo desses pensamentos inaugurados em outra lngua
com pensamentos construdos na nossa lngua. De fato, atravs do que
27 Benjamin, em seu ensaio A tarefa renncia do tradutor, defende a idia da traduzibilidade das obras. Conforme ele argumenta em certa passagem: vale o princpio: se a traduo uma forma, a traduzibilidade deve ser essencial a certas obras, ou ainda, na concluso de seu texto: todos os grandes escritos contm, (...), a sua traduo virtual entre as linhas. (BENJAMIN, 2001, p. 191, 215) 28 Erro de formulao do texto citado. Onde se l das grosse Ausgabe des bersetzers, leia-se, portanto, die grosse Aufgabe des bersetzers.
-
27
Berman conceitua como relao, imperativo elaborar um texto em lngua
portuguesa que estabelea uma relao de dilogo com o texto estrangeiro.
Dessa maneira, possvel atravs de um ato de interpretao nico e
provisrio, construir um texto em portugus que apresente muitas das
conotaes psicolgicas, sensoriais, musicais e filosficas que possam ser
interpretadas do texto original. Nesse sentido, portanto, observa-se que um
poema tambm se revela traduzvel.
A respeito das particularidades e dos desafios que uma prtica de
traduo de poesia impe ao tradutor, so relevantes as consideraes que
Jos Paulo Paes, escritor respeitado no cenrio brasileiro em funo de sua
atividade como poeta e tambm como tradutor, desenvolve em seu texto O
tradutor e a formao do leitor de poesia (PAES, 1996). A fim de que no haja
dvida alguma, Paes anuncia em alto e bom tom o carter no apenas
singular, mas intenso e cruel da luta empenhada pelos que se propem a
traduzir poesia. Nas suas palavras: Em nenhum outro setor da atividade
tradutria a luta contra o impulso isolacionista da linguagem mais
encarniada do que na traduo de poesia (PAES, 1996, p.14). A atividade
tradutria conceituada como luta bem explicativa do embate entre duas
diferentes foras que se realiza na mente do tradutor de poesia. Conforme j
visto, em relao traduo de poesia, a conceituao do poema como sendo
intraduzvel conflita com a conceituao do poema como sendo traduzvel,
revelando a natureza paradoxal da atividade tradutria. Nesse sentido, em
relao questo da intraduzibilidade e da traduzibilidade da poesia, observa-
se que o poeta e tradutor Paes apresenta consonncia com o pensamento de
Deguy, desenvolvendo um ponto de vista similar ao do francs em seu texto.
Conforme Paes explica (PAES, 1996, p. 14):
Em outras palavras, cada idioma uma espcie de crculo de giz dentro do qual s h espao de entendimento para os membros da mesma comunidade lingstica. Dele fica excludo o forasteiro ou o intruso que no tenha sido iniciado na esotrica fala da tribo. Desde os seus mais recuados primrdios, a traduo pode ento ser vista como um esforo de fazer o impulso positivo da linguagem para a abertura e a comunicao preponderar sobre a negatividade do seu outro impulso para o fechamento e a excluso. Por sua vez, na condio anfbia de homem de dois ou mais mundos, o tradutor um construtor de pontes lingsticas que ligam umas s outras as ilhas idiomticas fechadas em si mesmas.
-
28
Para PAES (1996, p. 14) cada idioma fecha-se sobre si mesmo tal qual
um crculo de giz, ou uma espcie de ilha, que oferece possibilidade de
entendimento e comunicao apenas aos membros de sua comunidade. A no
ser que tenha passado por um processo de iniciao, qualquer estrangeiro,
forasteiro, ou indivduo no pertencente a esse crculo, encontrar apenas o
desentendimento e a excluso por parte dos membros da tribo. Nesse sentido,
sob a perspectiva de Paes, realada a questo da intraduzibilidade de um
texto, tal qual acontece com a traduo de um poema. No entanto, Paes,
apesar das adversidades naturais que se apresentam em relao apreenso
de um idioma para um indivduo forasteiro e aqui interpreto o tradutor como
um forasteiro em eterno processo de iniciao argumenta a possibilidade de
entendimento e de dilogo que ocorre devido dedicao desse forasteiro aos
seus ritos de iniciao na fala da tribo. Dessa forma, que se anuncia a
possibilidade de comunicao, incluso de um tradutor o forasteiro iniciado ,
entre os membros da comunidade lingstica daquela ilha. Assim,
argumentada a questo da traduzibilidade de um texto, tal qual acontece com a
traduo de um poema, pois conforme Paes defende em seu ponto de vista, o
tradutor um construtor de pontes. Ou seja, o tradutor possui uma vantagem
em seu ofcio, pois devido sua condio anfbia, a ele dada a capacidade
de habitar diferentes mundos, diferentes idiomas. Dessa maneira, em virtude
de poder trafegar por mundos distintos, possibilitado ao tradutor propor a
comunicao, ou seja, a construo das pontes, o estabelecimento dos
dilogos entre esses mundos, essas ilhas, essas lnguas.
Essa comunicao proposta pelo tradutor em seu ofcio e aqui leia-se
o projeto de construo das pontes ou, sobretudo, o momento em que se
traduz apesar da intraduzibilidade s se efetivar devido luta promovida
entre dois diferentes impulsos: o impulso positivo da linguagem, que conforme
Paes explica, trata da capacidade de abertura e comunicao de uma lngua, e
o impulso negativo da linguagem que trata da capacidade de fechamento e
excluso dessa lngua. Dessa maneira, nessa luta encarniada que a
traduo de poesia, cabe ao tradutor, fazer com que o impulso positivo
prepondere sobre o impulso negativo da linguagem. Caso seja bem sucedido
em seu ofcio, o tradutor visualizar sua ponte articulada entre as ilhas,
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29
possibilitando a ligao entre mundos diferentes, ou seja, para a poesia ele
tornar realizvel uma traduo apesar da intraduzibilidade.
Assim sendo, nota-se a consonncia do ponto de vista de Jos Paulo
Paes com o de Michel Deguy. Sob perspectivas pessoais e, certamente,
argumentaes diferentes, ambos dividem a opinio de que no processo de
comunicao, e de, sobretudo, traduo, que ocorre entre lnguas possvel
verificar a existncia de duas foras que operam em oposio: a questo da
intraduzibilidade da poesia e, paralela a essa, a questo da traduzibilidade da
poesia. Ambos concordam que a despeito de, devido sua natureza e origem,
pertencer a uma ilha fechada em si mesma (Paes), isto , estar enclausurado
na lngua em que foi produzido (Deguy), um poema traduzvel. Para que isso
se realize, preciso que o tradutor construa pontes lingsticas entre os
idiomas (Paes), isto , entenda-se com o que foi pensado na lngua estrangeira
(Deguy).
Com base nas argumentaes de Deguy e de Paes, compreende-se
nesse estudo, portanto, que ao objetivar construir no texto em traduo uma
relao de dilogo com o texto estrangeiro, o tradutor estar objetivando
procurar traduzir apesar da intraduzibilidade. Assim, portanto, que se
considera o ofcio do tradutor nesse projeto de traduo dos poemas de Cohen,
pois conforme Paulo Rnai j argumentava: O objetivo de toda arte no algo
impossvel? O poeta exprime (ou quer exprimir) o inexprimvel, o pintor
reproduz o irreproduzvel, o estaturio fixa o infixvel. No surpreendente,
pois, que o tradutor se empenhe em traduzir o intraduzvel. (RNAI apud
CAMPOS, 1992, p. 34)
Dessa maneira, o que se pretende nesse projeto de traduo de
poesia, desenvolver uma prtica de traduo cnscia da natureza paradoxal
da atividade do tradutor de poesia, isto , em funo da reflexo terica aqui
apresentada, compreende-se o carter intraduzvel, e ao mesmo tempo,
traduzvel que habita qualquer pea potica. Nesse sentido, procuro traduzir
treze poemas selecionados de um recorte da obra de Cohen ainda que haja a
intraduzibilidade do todo. Compreende-se como recorte uma leitura pessoal
sobre a temtica do holocausto na obra potica de Cohen, embora muitas
outras leituras sejam possveis sobre esse tema.
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30
Traando um paralelo com a considerao da obra potica de Cohen, a
qual, conforme j visto, indica que, apesar da impossibilidade adorniana,
possvel escrever poemas sobre os campos de extermnio da Alemanha
nazista, a fim de construir o evento do holocausto sob a forma de poesia, nota-
se que a condio do tradutor de poesia assim se assemelha. Ou seja, apesar
da questo da intraduzibilidade, considero que possvel traduzir poemas da
obra de Cohen para a lngua portuguesa. Nesse sentido, compreendo que no
seja possvel a traduo da totalidade da obra de Cohen (apontando a sua
intraduzibilidade), mas decididamente compreendo que seja possvel uma
traduo de um recorte representativo da leitura crtica que se realiza da obra
do autor, indicando, portanto, a sua traduzibilidade.
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31
3 FLORES DAS FLORES PARA HITLER
3.1 A IDENTIDADE JUDAICA DE COHEN
Nascido em 1934 em uma tradicional e conservadora famlia judaica,
Cohen desde cedo sentiu a questo da religiosidade impondo forte influncia
em sua formao. De acordo com a biografia de Cohen escrita por NADEL
(1994), possvel mapear a origem e a intensidade dessa influncia em seu
quadro familiar.
Em relao ascendncia paterna de Cohen, seu pai Nathaniel
Bernard Cohen neto de Lazarus Cohen, comerciante que antes de migrar
para o Canad em 1869, foi professor do Colgio dos Rabinos de Wolozhin na
Litunia. Em 1871, Lazarus traz sua mulher e filho Lyon para Maberly, Ontrio,
posteriormente se estabelecendo em Montreal. Lyon Cohen, av paterno de
Cohen, alm de desenvolver sensivelmente a atividade comercial do pai,
participa de maneira influente na comunidade judaica de Montreal,
desempenhando ao longo de sua vida diversas atividades a ela relacionadas,
tais como servir ao Congresso Judeu Canadense (Canadian Jewish Congress),
Organizao Sionista do Canad (Zionist Organization of Canada), fundar o
jornal The Jewish Times, escrever artigos para a imprensa judaica, alm de
posteriormente se tornar o mais jovem presidente da maior Sinagoga do
Canad: Shaar Hashomayim.
Em relao ascendncia materna de Cohen, sua me Masha Cohen
filha do rabino Solomon Klinitsky-Klein, o qual escreveu Lxico de
homnimos hebreus (Lexicon of hebrew homonyms) e O dicionrio das
interpretaes rabnicas (The treasury of rabbinic interpretations). O rabino e
igualmente escritor Klein, para quem Cohen viria a dedicar seu segundo livro
de poemas The spice-box of earth (COHEN, 1961), exerceu uma influncia
ainda mais notvel sobre Cohen, principalmente em funo das leituras de
textos sagrados que Klein realizava em conjunto com seu neto, a fim de melhor
estimular e desenvolver a sua formao religiosa. Uma prova dessa influncia
o poema Lines from my Grandfathers journal, poema que conclui o livro The
spice-box of earth (COHEN, 1961). Nesse texto potico, Cohen mimetiza a
linguagem do av, construindo uma narrativa potica em primeira pessoa,
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32
utilizando a forma de dirio, a fim de tratar dos eventos ocorridos no passado
de seu av no Canad e, anteriormente, na Polnia, nao de onde Klein
migrou em 1923.
Uma maneira de averiguar a fora com que a questo da religiosidade
em seu quadro familiar se impe na obra de Cohen, observar a ocorrncia
dessa temtica em muitos de seus poemas. Em relao s significaes do
nome Leonard Norman Cohen, que de forma quase que predestinada
caracterizam o escritor como um possvel sacerdote, descendente por direito
de uma longa linhagem sacerdotal, importante lembrar o poema I am a priest
of God29, integrante de Parasites of heaven (COHEN, 1966), que de forma
irnica responde a toda essa carga religiosa embutida em seu nome e, por
conseqncia, ao papel que a ele historicamente legado.
Sou um sacerdote de Deus Ando pelas ruas com os bolsos nas minhas mos s vezes sou mau e s vezes sou muito bom Acredito que eu acredito em tudo que eu preciso Gosto de ouvir voc dizer enquanto dana com uma cabea rolando numa bandeja de prata que sou um sacerdote de Deus Achei que estava fazendo outras 100 coisas mas eu era um sacerdote de Deus Amei umas 100 mulheres jamais contei a mesma mentira duas vezes Eu disse Oh Cristo tu s um egosta mas reparti meu po e arroz Ouvi minha voz dizer multido que eu estava s e era um sacerdote de Deus o que me tornou to vazio que at hoje em 1966 no estou certo de ser um sacerdote de Deus30
De acordo com a biografia de Cohen (NADEL, 1994, p. 17), reporta-se
que Norman, o seu nome do meio uma forma anglicizada de Nehemiah, o
qual significa o reconstrutor. Em sua forma hebraica, Elieser, o nome Leonard
significa Deus meu amparo. J o sobrenome Cohen, significa aquele que
exerce as funes, o qual segundo as tradies o primeiro a ler a Torah e
29 Em minha traduo: Sou um sacerdote de Deus. 30 Para acompanhar o texto original em ingls, vide a pgina 93.
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oferecer a bno sacerdotal. Historicamente dentro da tradio judaica, ser
um Cohen significa ser um dos Kohanim, ou seja, integrar uma linhagem
sacerdotal estabelecida, que de acordo com a Bblia provm desde Aro, irmo
de Moiss.
Com base nesses dados, o poema I am a priest of God revela a
aceitao e ao mesmo tempo uma certa crtica de Cohen funo de
sacerdote que lhe oferecida, segundo as significaes religiosas de seu
nome. De fato, nesses versos o autor responde de forma irnica ao papel que a
ele legado, enquanto passeia resignado pelas ruas, filosofando sobre suas
aes em um cenrio contemporneo. Em certo momento, por meio de suas
reflexes, ele chega at a se identificar com Herodes, rei dos judeus que
governou a Judia entre 37 a.C. e 4 a.C., vislumbrando uma espcie de
Salom danando com uma bandeja de prata, relacionando portanto essa
imagem sua sina religiosa, ainda que na parte final do poema, ele comece a
duvidar dessa funo. Dessa maneira, observa-se claramente a forma com que
Cohen se relaciona com o legado semntico de seu nome, alm de notar a
forte influncia que a religio judaica tem em sua obra.
Nesse sentido, em funo do profcuo histrico religioso da famlia e
das significaes que dele advm, encontrando expresso at mesmo em
relao gnese de seu prprio nome, possvel esboar a acentuada
influncia que a religio judaica ocasionou na formao do jovem Cohen. O
poema Not a Jew31, integrante de sua mais recente publicao de poesia Book
of longing (COHEN, 2006), contribui centralmente para esse vis de leitura:
Qualquer um que diga que no sou um Judeu no um Judeu sinto muito mas essa deciso final32
Esse poema de Cohen responde enfaticamente aos que possam
duvidar de sua identidade judaica. Se observar que esse poema foi publicado
posteriormente ao perodo em que o autor ficou recluso no mosteiro zen
budista (Mount Bauldy Zen Center), pode-se considerar esse poema como uma 31 Em minha traduo: No Judeu. 32 Para acompanhar o texto original em ingls, vide a pgina 95.
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34
forma de afirmao de sua crena na religio judaica, alm de ser uma
resposta efetiva aos que vejam nessa sua experincia budista uma negao de
sua relao com o judasmo.
Sob esse aspecto, significativo ainda mencionar um fragmento do
livro Leonard Cohen in his own words (DEVLIN, 1998). Nessa publicao, que
compila entrevistas de Cohen concedidas ao longo de toda a sua carreira, a
identidade judaica j era por ele afirmada de forma decidida. Como ele prprio
ressalta: Sei que sou um Judeu e vim de uma boa famlia Judia, conservadora
e sim, certamente sinto essa tradio profundamente, eu posso rezar em
Hebraico, posso falar com o Chefe em Hebraico33 (DEVLIN, 1998, p. 10).
Atravs dessa declarao do autor e dos poemas considerados, observa-se a
fora com que o judasmo se insere na poesia de Cohen, estimulando-o a
afirmar sua identidade judaica.
Na biografia de Cohen (NADEL, 1994, p. 20) percebe-se que aliado a
essa identidade judaica h o sentimento de perda ao qual o futuro escritor
entraria em contato muito cedo. O evento que trata da morte de Nathaniel, pai
de Cohen, ocorre em 1944, quando este tinha apenas nove anos de idade.
Nessa poca Cohen j vinha estudando religio na escola judaica da Sinagoga
Shaar Hashomayim em paralelo a seus estudos primrios, portanto ampliando
o seu conhecimento a respeito da histria do povo judeu. O sentimento de
perda ocasionado pela morte do pai, certamente imps ao jovem Cohen um
contato mais spero com a realidade. Tal sentimento iniciado em relao
perda do pai, iria se aprofundar ainda mais em razo de Cohen, nessa j difcil
fase de sua infncia, tomar ento conhecimento da perseguio e do genocdio
que os judeus sofriam durante a Segunda Guerra Mundial. A conscincia do
sofrimento e da morte de milhares de judeus na poca de sua infncia
intensificaria sensivelmente o seu sentimento de perda, o qual se tornaria um
tema recorrente, desenvolvido de forma singular na obra do futuro escritor.
Confirmativa desse sentimento a declarao de Cohen, mencionada por seu
bigrafo (NADEL, 1994, p. 22), na qual o autor afirma que seu verdadeiro
33 A seguir, essa passagem conforme apresentada originalmente: I know that I am a Jew and I came from a good Jewish family, Conservative and yeah, I certainly feel that tradition deeply, I can pray in Hebrew, I can speak to the Boss in Hebrew. (DEVLIN, 1998, p. 10)
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35
aprendizado comeou quando viu pela primeira vez as fotos de um campo de
concentrao, em 1945.
O tema da morte e o tema da perda relacionado ou desencadeado por
esta, perpassa toda a obra potica de Cohen, encontrando ressonncia at
mesmo em sua obra ficcional e em letras de canes. Em seu primeiro livro de
poemas, Let us compare mythologies (COHEN, 1956), Cohen visita este tema
em poemas tais como Elegy ou Rites, os quais tratam do dolorido episdio da
morte de seu pai. No mesmo livro de estria, Cohen inicia sua abordagem
sobre o tema da identidade judaica, anunciando o que se tornaria em sua obra
uma frutfera investigao a respeito de assuntos relacionados histria e as
tradies da religio judaica sob a forma de poesia. O poema City Christ34, de
Let us compare mythologies (COHEN, 1956), ilustrativo desta abordagem
temtica do autor:
Aps a guerras incontveis sobreviver, Ele chega cego e desesperadamente mutilado. Ele suporta os bondes ao amanhecer E conta os anos num quarto da rua Peel. Mantido em seu lugar como um judeu da corte, Para aconselhar sobre furaces e pragas, Ele nunca caminha com eles pelo oceano35 Ou adere a seus jogos solitrios nas caladas.36
34 Em minha traduo: Cristo da Cidade. 35 Para acompanhar o texto original em ingls, vide a pgina 97. 36 Nessa traduo, que a partir desse momento irei chamar de traduo a, optei por priorizar o aspecto rmico e rtmico do poema City Christ, em detrimento do paralelismo formal que pode ser observado em certos versos do texto estrangeiro. Se optasse por traduzir esse poema sob a perspectiva do paralelismo, uma traduo possvel seria: Ele retornou de guerras incontveis,/ Cego e desesperadamente mutilado./ Ele suporta os bondes ao amanhecer/ E conta os anos num quarto da rua Peel.// Ele mantido em seu lugar como um judeu da corte,/ Para aconselhar sobre furaces e pragas,/ Ele nunca caminha com eles pelo oceano/ Ou adere a seus jogos solitrios nas caladas. Como pode-se observar, essa segunda traduo, que a partir desse momento irei chamar de traduo b, ao procurar reproduzir o contedo semntico do poema, o faz de forma literal. A literalidade da traduo b se presta tarefa de reproduzir o paralelismo entre o primeiro verso da primeira estrofe (He has returned from countless wars,), o terceiro verso da primeira estrofe (He endures the morning streetcars) e o primeiro verso da segunda estrofe (He is kept in his place like a court jew,). Um argumento que sustentaria a perspectiva do paralelismo seria a repetio do pronome He no incio de cada um desses versos, aludindo figura do filho de Deus (Ele). Entretanto, ao optar por reproduzir o paralelismo que h entre esses versos, a traduo b no reproduz as rimas que h entre o primeiro e o terceiro verso da primeira estrofe, alm de estender substancialmente o metro do primeiro verso da segunda estrofe, tornando-o desritmado em relao ao resto da composio. Com base nessas deficincias rmicas e rtmicas apresentadas pela traduo b que opto por apresentar nesse estudo minha traduo a. Nessa traduo, procurei reproduzir o aspecto rmico do poema, em especial as rimas que h entre o primeiro e o terceiro verso da primeira estrofe. A fim de satisfazer essa exigncia rmica observada em minha leitura do texto estrangeiro, realizei uma construo frasal em portugus que permitisse as rimas entre wars e
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36
O poema faz meno indisfarvel histria judaica, referindo-se
diretamente a eventos recentes e traumticos da histria universal, tal como a
perseguio e o subseqente genocdio sofrido pelos judeus no perodo da
Segunda Guerra Mundial. Num primeiro momento, observa-se o percurso de
guerras (countless wars) enfrentado pelo sujeito lrico, percurso pelo qual ele
no passou ileso, pois foi o responsvel por diversas mutilaes em sua
existncia. Estas so mutilaes ocorridas no somente no plano fsico, em
respeito cegueira (blinded), ou seja, a mutilao de sua viso, mas tambm
mutilaes impostas ao plano mental e sentimental. O desespero ressaltado
nas mutilaes fsicas (hopelessly lame), fatalmente no se restringe apenas
superfcie do indivduo, mas alcana cicatrizes mais profundas no plano
psicolgico deste. nesse lugar que o sujeito lrico ir se encontrar e se
identificar com uma dor maior, no alheia sua, isto , uma dor anterior e
histrica, a dor ancestral de seu povo, por onde se incute todo o pesar e o
dramtico histrico de perseguies imputadas ao povo judeu ao longo da
histria.
Em seu romance de estria, The favorite game (COHEN, 1963), Cohen
desenvolve a imagem da cicatriz, a qual vista como marca herdada de uma
dor ou uma perda, freqentemente denuncia uma mutilao, seja ela fsica ou
psicolgica, portanto entrando em concordncia com o contedo semntico do
poema acima. No incio desta narrativa romanesca, observa-se a seguinte
passagem: Crianas mostram cicatrizes como se fossem medalhas. Amantes
as utilizam como segredos a serem revelados. Uma cicatriz o que acontece
quando a palavra se torna carne37 (COHEN, 1963, p. 7). Explorando
streetcars, efetivando, portanto, o primeiro verso (Aps a guerras incontveis sobreviver) em rima com o terceiro da mesma estrofe (Ele suporta os bondes ao amanhecer). Alm disso, ao reduzir, sem prejuzo de significao, o metro do primeiro verso da segunda estrofe (Mantido em seu lugar como um judeu da corte,), propus para esse verso uma traduo que no atravessasse, ou melhor, ultrapassasse consideravelmente o ritmo do resto do poema a ponto de torn-lo disforme. No obstante esses esforos para reproduzir o aspecto rmico e rtmico que ressaltam a musicalidade do texto estrangeiro, importante notar que ao apresentar nesse estudo a traduo a, proponho uma traduo para o poema de Cohen que visa no literalidade, mas sobretudo busca destacar o aspecto artstico do poema. Nesse quesito, considero a traduo a mais expressiva artisticamente que a traduo b. Embora esse possa ser visto como um critrio subjetivo, considero-o de grande importncia para minha prtica de traduo, pois tal critrio procura fazer com que o poema original de Cohen possa igualmente se sustentar como poema em lngua portuguesa. 37 A seguir, essa passagem conforme apresentada originalmente: Children show scars like medals. Lovers use them as secrets to reveal. A scar is what happens when the word is made flesh. (COHEN, 1963, p. 7)
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37
prosaicamente a imagtica das cicatrizes, Cohen ressalta no somente a
possibilidade de existncia de diferentes naturezas de cicatrizes tanto da
cicatriz heroicamente conquistada e passvel de orgulho relacionada infncia,
quanto da cicatriz confessional na idade adulta, denunciativa do passado dos
amantes , como tambm revela o propsito dessas cicatrizes, o qual pode ser
compreendido igualmente como denunciativo de suas razes como escritor.
Como o prprio autor declara, investido da posio de narrador desse romance
de formao: Uma cicatriz o que acontece quando a palavra se torna carne
(COHEN, 1963, p. 7). Assim sendo, para Cohen as palavras e em
conseqncia a arte da escrita propriamente dita, dessa maneira se
apresentam: fsicas, palpveis, transitrias, passveis de violncia, bem como
de fragilidade, visto que so carne. E com consistncia de carne que Cohen
explora sua potica, construindo poemas vigorosos, constitudos no de
retricas ou de artificialismos de linguagem, mas de versos vivos, carnais,
passveis de vitrias ou fracassos, perdas ou permanncias.
Escrevendo poemas com carne e sangue38, Cohen trata de assuntos
dramticos da histria judaica e universal, explorando com extrema coerncia e
verossimilhana tais assuntos na forma de poesia. O poema City Christ de seu
primeiro livro anunciativo desses propsitos do autor, em relao
principalmente bagagem histrica do poema, ou seja, s referidas guerras
incontveis que o sujeito lrico teve que enfrentar, e as quais ele sobreviveu.
Entenda-se nesse momento guerras e perseguies poca da Segunda
Guerra Mundial, bem como guerras e perseguies ancestrais, tais como o
xodo realizado pelos hebreus do Egito.
Entretanto, apesar da referncia dolorida ao percurso de guerras
enfrentado pelo sujeito lrico, percurso pelo qual ele sobreviveu passando por
terrveis adversidades, o cenrio atual que lhe apresentado no
reconfortante. Com dureza ele enfrenta a herana que lhe imposta pela
Histria: o tdio esboado pela lenta passagem dos anos (and counts ages in a
Peel street room), o desafio de suportar o cotidiano aps todo o fardo que o 38 Sobre o livro Beautiful losers, Cohen j afirmou em entrevista publicada em Leonard Cohen in his own words que: Eu o considero um poema, antes de tudo. Ele foi escrito dessa forma com certeza. Ele foi escrito do jeito que eu sempre escrevi poesia. (I consider it a poem, first of all. It was certainly written that way. It was written in the way that Ive always written poetry). Cohen assim complementa a sua opinio sobre esse livro, afirmando que: Ele foi escrito com sangue. (It was written with blood). [grifo meu]. (DEVLIN, 1998, p. 48)
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passado trgico lhe imps a carregar (He endures the morning streetcars), e,
sobretudo, a posio que ele ocupa na contemporaneidade. Em City Christ,
esta posio a de um judeu da corte (court jew), ocupao que referida
com uma sinistra utilidade, pois o sujeito lrico, a despeito do tdio e do fardo
histrico que tem de enfrentar, mantido nesse lugar a fim de aconselhar
sobre tragdias e infortnios (to consult on plagues or hurricanes). Entretanto,
essa funcionalidade a ele sugerida no lhe garante integrao. De fato, apesar
de perdurar neste estranho espao que lhe ofertado, e fortuitamente poder
aconselhar essa sociedade da qual ele faz parte em tempos de crise, esse
judeu da corte no se integra nos quadros propostos, pois no desfruta das
mesmas possibilidades, tanto das possibilidades de realizao coletivas, ao
dividir os mesmo caminhos (and he never walks with them on the sea), quanto