Leituras Borgeanas: Tempo e Eternidade.
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1.0 Resenha Biográfica
Jorge Luis Borges nasceu em Buenos Aires (Argentina) no dia 24 de agosto
de 1899. Em meio a sua vida familiar e imerso numa educação exemplar, no ano
de 1914 faz uma viagem à Europa e após percorrer por algumas cidades se
estabelece em Genebra (Suíça). Cursa três anos de bacharelado no Lycée Jean
Calvin e estuda francês e alemão (seus estudos nestes idiomas permitirão
posteriormente o seu entendimento sobre obras de poetas expressionistas e de
importantes filósofos, como por exemplo: Schopenhauer, Nietzsche). No ano de
1919 se muda para Lugano (Itália) e posteriormente para Espanha, onde
freqüenta as tertúlias de Cansinos-Asséns no Café Colonial de Madri formando
parte do movimento ultraísta (movimento este que será liderado pelo próprio na
sua terra natal).
No ano de 1921, Borges regressa a Buenos Aires e publica seus primeiros
livros de poesia: Fervor de Buenos Aires (1923); Luna de enfrente (1925);
Cuaderno San Martín (1929). Participa também de numerosas revistas literárias e
jornais. Funda, juntamente com outros colaboradores, as revistas Prisma e a
segunda fase da revista Proa. Em 1925 publica o seu primeiro livro de ensaios:
Inquisiciones e na seqüência El tamaño de mi esperanza (1927); El idioma de los
argentinos (1928). Em 1931 colabora na revista Sur com resenhas bibliográficas,
críticas cinematográficas, ensaios, poemas e contos ao lado da fundadora Victoria
Ocampo. É nesta época que começa uma amizade de longa duração com Adolfo
Bioy Casares.
Em 1932 publica um novo livro de ensaios: Discusión. No ano seguinte
dirige junto ao colega Ulises Petit de Murat o suplemento literário do jornal Crítica
(este suplemento agrupará no decorrer dos anos 1933 e 1934 os relatos que
fazem parte do livro Historia universal de la infamia,1935). No ano de 1936
colabora com a revista El Hogar.
Juntamente com Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo realiza a
compilação da Antología de la literatura fantástica (1940) e a Antología poética
Argentina (1941). Ainda no ano de 1941, Borges publica o livro de narrações El
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jardín de senderos que se bifurcan. Em 1942, em colaboração novamente com
Adolfo Bioy Casares publica Seis problemas para don Isidro Parodi.
É no ano de 1944, que sob o nome de Ficciones, Borges faz uma
recopilação dos contos do livro El jardín de senderos que se bifurcan e adiciona
outros contos, estes intitulados Artificios, recebendo então o Grande Prêmio à
Honra fornecido pela Sociedade Argentina de Escritores.
Em 1949 publica El Aleph, este considerado um dos seus mais importantes
livros de narrativa, e em 1952 publica Otras inquisiciones.
Durante o período de 1950 a 1953 preside a Sociedade Argentina de
Escritores. Em 1955 é nomeado Diretor da Biblioteca Nacional e também é
nomeado membro da Academia Argentina de Letras. No ano de 1956 recebe o
Prêmio Nacional de Literatura e um Doutorado Honoris Causa da Universidade de
Cuyo. En 1957, já privado de sua visão, publica ao lado de Margarita Guerrero o
Manual de zoología fantástica, na cidade de México.
Morre em Genebra aos 14 dias do mês de junho de 1986 aos 86 anos de
idade.
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2.0 - Introdução
A prosa narrativa borgeana se apresenta, no decorrer dos anos, como um
objeto de admiração e de estudo que tem absorvido a atenção de numerosos
críticos e estudiosos do complexo universo onde a filosofia e a teologia entram em
cena.
O tempo e a eternidade são dois temas que, desde um longínquo passado
até os dias atuais, a reflexão não alcança findá-los. Se pensarmos em Zenão,
Parmênides, Platão, Kant, Derrida, Heidegger, Nietzsche, entre muitos outros que
não foram nomeados, veremos que a preocupação está baseada em tentar propor
a elucidação de questões que envolvem o ser e o tempo, a materialidade e a
eternidade, o fim e a continuidade, culminando em uma mistura profunda entre a
teologia e a filosofia, entre o Oriente e o Ocidente.
Borges não se esqueceu dessas e de outras aporias que a metafísica
propõe e se dedicou, de uma maneira ou de outra, a refletir e ao mesmo tempo
questioná-las de diferentes ângulos. Em seu ensaio “Nueva refutación del tiempo”
(BORGES, 1952) sua tentativa filosófica é a negação do tempo assim como a
inevitável negação da matéria por Berkeley e do espírito por Hume:“(...) negadas
la materia y el espíritu, que son continuidades, negado también el espacio, no sé
con qué derecho retendremos esa continuidad que es el tiempo.” (BORGES: 1964,
p.252)1
Obviamente, Borges postulará que o agora nada mais é que um tempo
posterior e um anterior a outro e que em sua essência é completamente arbitrário
e por vezes contraditório. O próprio ser é o agora, o depois e sempre o foi: “Negar
el tiempo es dos negaciones: negar la sucesión de los términos de una serie,
negar el sincronismo de los términos de dos series. En efecto, si cada término es
1 “(...) negadas a matéria e o espírito, que são continuidades, negado também o espaço, não si com que direito retemos essa continuidade que é o tempo” Todas as traduções que não são indicadas foram realizadas pela autora da monografia.
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absoluto, sus relaciones se reducen a la conciencia de que esas relaciones
existen. Un estado precede a otro si se sabe anterior (...);”(BORGES: 1952, p.12 )2
Baseados nestes conceitos percebemos que a negação do tempo se realiza
de uma forma ambígua negando ao mesmo tempo o passado e o futuro. Se por
um lado esta complexidade deriva por pensarmos o tempo como uma unidade
indivisível, e, portanto sem princípio nem fim, nada menos complexo é perceber a
unidade de tempo divisível, pois simultaneamente teríamos um passado concreto
e um futuro que não existe.
Jorge Luis Borges nos demonstra claramente de que forma manipula os
conceitos que circundam a temática do tempo e imperceptivelmente nos submerge
no seu tempo circular e no eterno retorno: “El tiempo es la sustancia de que estoy
hecho. El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy el río; es un tigre que me
destroza, pero yo soy el tigre; es un fuego que me consume, pero yo soy el fuego.”
(BORGES:1952, p.13)3
O presente estudo se dedicará a comprovar e a demonstrar de que forma o
tempo, que por vezes se confunde com a eternidade e a idéia de eterno retorno,
cujos ciclos se repetem infinitamente, e ainda que não sejam idênticos são
similares, se apresentam na obra “El jardín de senderos que se bifurcan”4 de
Jorge Luis Borges. Perpassamos, na seqüência, sumariamente pelos conceitos
fundamentais extraídos dos filósofos e pensadores que influenciaram diretamente
ou indiretamente para embasar o estudo apresentado. Ressalte-se aqui que o
recorte escolhido baseou-se por optar pelos três primeiros filósofos a pensar o
tempo (Heráclito, Platão e Aristóteles), acrescidos estes por um filósofo da
modernidade (Nietzsche), cujos pensamentos se encontram nitidamente na obra
borgeana como um todo: "(...) el tiempo es un problema para nosotros, un
2 “Negar o tempo é duas negações: negar a sucessão dos términos de uma série, negar o sincronismo dos términos de duas séries. Efetivamente, se cada término é absoluto, suas relações se reduzem à consciência de que essas relações existem. Um estado precede a outro caso saiba-se anterior (...)”. 3 “O tempo é a substância da qual sou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me destrói, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo”. 4 “O jardim de caminhos que se bifurcam” (Ficções, 1989)
5
tembloroso y exigente problema, acaso el más vital de la metafísica; la eternidad,
un juego o una fatigada esperanza." (BORGES:1936, p. 35).5
5 “... o tempo é um problema para nós, um temeroso e exigente problema, acaso o mais vital da metafísica; a eternidade, um jogo ou uma cansada esperança”.
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2.1- HERÁCLITO (504-500 a.C.)
Considerado um dos primeiros filósofos a formular um pensamento crítico
diante do problema da unidade do ser versus a pluralidade e mutabilidade das
coisas circundantes, sendo estas consideradas como transitórias e aquelas como
estáveis, seu pensamento se estendeu ao questionamento do “processo” e como
tal formulou uma lei universal e fixa: o Lógos, responsável pelo aspecto harmônico
das transitoriedades e fundamentado nas tensões.
Portanto, para Heráclito, o tempo constitui um processo abstrato ou ainda
uma intuição abstrata do processo, uma essência verdadeira, uma constante
transformação harmônica constituída absolutamente de uma essência de opostos,
é ao mesmo tempo o ser e o não-ser, coligados em uma única unidade, mas
simultaneamente separados. Ou seja, o tempo é e não o é, cujo pêndulo que vai
de um para o outro ainda que abstrato é percebido objetivamente por nós. O
tempo não é o passado nem o futuro, é o agora que deixa de sê-lo para não mais
o ser e voltar a ser novamente, é a percepção sensorial desta constante mudança,
é a primeira e verdadeira configuração do devir.
A sua ortodoxa percepção intuitiva do tempo está explicitada em frases que,
após vinte e cinco séculos, ainda ressoam e causam o debruçar especulativo:
“Tudo contém, ao mesmo tempo, em si o seu contrário” 6 Esta afirmação, ainda
que muitos a considerem como um foco pontual contra o próprio princípio da
contradição, representa a percepção de um cosmo multifacetado, multidimensional
e como tal possuidor de características transitórias reguladas por um caos
ordenado. Esta percepção se concretiza na experiência intuitiva do espaço e do
tempo.
Ainda tendo o tempo como um processo abstrato, mas objetivamente
compreendido pela nossa consciência, Heráclito aprofunda a sua concepção e
apresenta-se como o primeiro em expressar a natureza cíclica das transformações
6 NIETZSCHE, Friedrich. La filosofia en la época trágica de los griegos. Disponible em: http://www.nietzscheana.com.ar/la_filosofia_en_la_epoca_tragica.htm Acesso em: 23 jun 2006
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e conseqüentemente nos propõe o infinito, num fluir de ritmos e fases cujo ápice
mantém-se estável e dentro da contextualização do eterno retorno.
O entrecruzamento entre tempo e eternidade se dá basicamente através da
conceptualização do sentido da eternidade mediante noções intrinsecamente
vinculadas à caracterização do tempo, como por exemplo: ontem, hoje e amanhã.
Heráclito nega peremptoriamente a origem do cosmos e nos proporciona uma
visão cíclica do infinito: “Este cosmos, único para todos os seres, não foi feito por
nenhum deus nem pelos homens, sempre foi, é e será fogo sempre vivente, que
se acende segundo medidas e se apaga segundo medidas” (fragmento 30).7
A eternidade é apresentada como a infinita duração do tempo dentro do
ciclo do eterno retorno. A eternidade, portanto configura-se a partir da repetida
concatenação do aspecto cíclico do cosmos. A perenidade se revela como tal na
acepção da perpetuidade do verbo ser: foi, é e será, uma duração temporal que
perpassa o passado, o presente e o futuro, configurando a incessante repetição
cíclica de um tempo e tudo aquilo que nele se insere, portanto esse processo
abstrato cujo definidor não se dá linearmente e seu pêndulo movimenta-se
constantemente numa transitoriedade absolutamente fugaz e simultaneamente
objetiva à nossa percepção, constitui a harmonia criada pela contradição
concretizada no devir como um amplo processo que se realiza na transitoriedade
constante inserida na infinitude cíclica.
7 HERÁCLITO. Fragmentos escogidos. Disponível em: http://cantemar.com/Hera-Fragmentos.html Acesso em 23 jun 2006
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2.2 - PLATÃO (428(7) a. C a 347 a. C)
Os principais pensamentos postulados por Platão sobre o tempo podem ser
percebidos através do texto Timeu. Há neste texto um esforço por correlacionar
tempo e eternidade, sendo o primeiro considerado como uma tentativa de imitar o
segundo.
Na intenção de criar um cosmo perfeito, Demiurgo cria à sua imagem e
semelhança, uno e totalitário, o mundo cuja multiplicidade somente se dará devido
à unidade e submergido na totalidade. Desta forma teremos um mundo que
adquirirá características esféricas para que se possa inserir um tempo dentro de
um movimento circular, semelhante ao eterno e à eternidade assim como seu
criador (criador no sentido de ordenador do mundo caótico e não como o
responsável por permitir a existência de tal mundo como na tradição Judaico-
cristã).
Houve, portanto, uma espécie de simulacro da eternidade, que comporta
suas diferenças, onde a eternidade se reconhece pela sua imobilidade e
perenidade em contraposição com o tempo que apresenta movimento e
transitoriedade (declara-o imperfeito exatamente por não possuir esta imobilidade,
por não conseguir conter-se em si).
A concepção que aqui encontramos recai no aspecto eterno do tempo e se
confunde com a eternidade. Desta forma, o tempo ordenado que representa o
reflexo transitório da eternidade pressupõe um outro tempo cuja desordem se
inscreve no caos precedente ao cosmo, e como tal sugere ser uma sucessão dos
movimentos caóticos. Por tal motivo mesmo que a ordenação do tempo traga
consigo um princípio, o tempo é em si infinito por estar antes do caos e depois do
cosmo. O caráter eterno do tempo está em ser uma imitação da eternidade e
permanecer na ordem cíclica do cosmo e de tal maneira assume para si a
perenidade. A eternidade se manifesta e é tratada pelo seu caráter temporal à
medida que a ela relacionamos o aspecto da infinitude.
Para Platão o passado e o futuro são características próprias do tempo e
que não estão relacionadas com a eternidade, ou seja, em relação à eternidade
não se pode estabelecer uma relação entre “existia” e “existirá” pois ambos
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adotam características próprias do devir. A eternidade aceita apenas o presente,
submergido em sua imobilidade, imutabilidade, não tendo princípio nem fim. Ao
tempo lhe é dado o passado e o futuro, conseqüência imanente do devir.
A relação com o tempo está intrinsecamente conectada ao problema da
medição do mesmo. Para que se possa realizar a medição do tempo é necessário
fazer com que sua característica de continuidade se parta. Produzir-se-á, portanto,
o número e com ele a tentativa de fazer do tempo algo intemporal, imobilizando o
movimento, aproximando-o da eternidade. O número comporta-se desta maneira
como o mediador, fazendo com que o cosmo adquira propriedades de um enorme
relógio, que ao repetir-se incessantemente almeja a eternidade.
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2.3 - ARISTÓTELES (384 a.C. a 322 a.C.)
O primeiro olhar que Aristóteles lança sobre a problemática do tempo visa
contemplar o aspecto metafísico do mesmo. Este prisma se dá pelo
questionamento da essência do tempo em ser e não-ser simultaneamente. A qual
destas categorias poderíamos situar o tempo? O tempo como percepção do
absoluto não se manifesta como ser, pois o presente já é passado e o futuro ainda
não o é, desta forma o tempo está constituído pelo não-ser e como tal é
desprovido de substância. Porém, o tempo mostra-se capaz de ser dividido e para
isso é necessário aceitar pelo menos a existência de suas partes, ainda que
nenhuma parte do tempo realmente o seja, uma vez que o instante (que
poderíamos considerá-lo como presente) não se constitui como parte do tempo
(tempo este representado pelo aspecto contínuo do mesmo). Assim, temos uma
concepção metafísica aristotélica sobre o tempo: o tempo não tem ser e como tal
não possui substância.
Impedido então de seguir com uma análise cujo elemento principal não
existe, Aristóteles assume a análise do tempo partindo do movimento como base.
Afirmará que o tempo não é o movimento nem mutabilidade, pois o
movimento será o ser em transformação ou a sua localização enquanto que o
tempo se concretizará em todas as partes da mesma maneira. Será categórico e
postulará que o tempo não é movimento nem existe sem ele. Assim, podemos
perceber que a conseqüência imediata das características do movimento
(incessante e contínuo) resultará na continuidade do tempo.
Como compreender então a relação entre a descontinuidade do tempo
representada pela sua divisão numérica e a continuidade representada e
postulada por Aristóteles?
Partindo da divisão numérica dada pela medida teremos obrigatoriamente
um antes e um depois, o que origina uma localização e uma ordem de movimento
daquele para este, e se percebemos que o movimento é o eixo que une o primeiro
com o segundo e somente tendo o movimento como pilar se dará o tempo,
veremos que é através da continuidade do tempo e da percepção correlacionada
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entre um momento anterior e um momento posterior que alcançamos o
conhecimento do mesmo, reconhecendo entre estes momentos um intervalo
delimitado por dois instantes aleatórios.
O tempo então se apresenta dentro do mundo físico, não é proveniente do
movimento, não existe sem ele e se subdivide numericamente quando delimitado
por instantes assim como os pontos são os constituintes da linha. Como resultado
temos o instante, como elemento estranho ao tempo, proporcionando-nos a
possibilidade de medir o movimento mediante um intervalo de tempo que em sua
essência não é constituído por instantes uma vez que a qualidade do tempo é ser
contínuo e a do instante em não possuir extensão.
Enfim, o tempo pode ser expresso como sendo de duração longa ou curta,
mas não aceitará ser representante de essências como a rapidez ou a lentidão,
pois é o próprio tempo o número capaz de medir o movimento não havendo,
portanto, nenhum número capaz de medir a velocidade do tempo. Sendo, desta
forma, o mesmo em todas as partes, mas diferente em cada momento.
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2.4 - FRIEDRICH WILHELM NIETZSCHE (15/10/1844 – 25/08/1900)
Apesar de que tenhamos, neste breve apanhado de postulados teóricos,
resumido sumariamente os conceitos que nos oferecem um prisma pelo qual o
tempo é percebido e analisado por três filósofos que floresceram no período
anterior a uma tradição judaico-cristã, constituindo assim pilares de sustentação
como partes de uma totalidade, cujo foco se dará na concepção borgeana do
tempo, é necessário nos debruçarmos sobre os conceitos filosóficos nietzschianos
como preceitos que fundamentaram o tratamento do tempo na narrativa borgeana
proposta.
Partindo do pressuposto que este estudo não se propõe a analisar
detidamente tais conceitos filosóficos, permito-me explicar sucintamente os
conceitos gerais pelos quais são permeadas ditas idéias.
Filósofo e filólogo alemão do século XIX, Nietzsche propôs uma visão do
caráter metafísico do tempo postulando o devir, o niilismo e o eterno retorno.
A idéia do eterno retorno nietzschiano se concretiza na transcendência do
devir, sendo que este é tido como uma sucessão temporal infinita que para tal é
necessário que o instante tido como presente deixe de existir para que o próximo
instaure-se em seu lugar e assim sucessivamente. O devir, portanto, não é
concebido a partir de uma sucessão linear do tempo e sim pela recorrente procura
do total esvaziamento da experiência do mundo e como tal encontra o seu ápice
na concepção niilista.
A configuração consagrada da idéia do caráter imortal da alma está
diretamente relacionada com a influencia de um pensamento baseado na
concepção cristã do mundo, na qual é tido como certo a geração de um mundo
por um Deus, que nos proporciona o retorno das almas, mas nada nos diz em
relação às experiências dessas almas, aos objetos materiais e às situações
vividas pelas mesmas. Pelo contrário, a concepção judaico-cristã baseia-se no
retorno em outros corpos, para viver outras vidas que nada ou pouco terão em
comum com a anterior que não seja em relação a uma missão predestinada ou
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aos pecados cometidos. Ou seja, a tradição cristã nos submergirá em uma história
linear do tempo, expressando em última análise um sentido de progresso.
Em contrapartida, Nietzsche, nos proporciona uma visão cíclica do tempo,
na qual está inserido o eterno retorno, a recorrente repetição finita dentro de um
tempo infinito. Ainda, o eterno retorno pré-configura a vida de forma absoluta, uma
vez que o próprio instante ocorre eternamente, não como uma duração eterna,
mas como uma eterna sucessão.
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2.5 - Revisão de conceitos operatórios
O exposto anteriormente tem como objetivo proporcionar uma síntese da
visão do tempo e não se apresenta de forma alguma como uma tentativa de
estudo sobre os filósofos que pensaram o tempo como problemática e suas
conseqüências, visto que tal estudo requereria um fôlego e um detalhamento
maior, cujo intuito não cabe ao propósito do estudo aqui retratado.
Aponte-se que, ainda que breve tenha sido este recorte, faz-se necessário
para o entendimento da análise da apresentação do tempo na narrativa borgeana,
tomando-os como fundamentos teóricos para comprovação do confronto existente
entre um tempo delimitado e a característica circular que este tempo assume.
Ainda torna-se necessário ressaltar que será analisado como o tempo se
refletirá nas representações alegóricas dos conceitos formulados e postulados
através da escrita borgeana, sua relação não só com um tempo medido
numericamente, mas o tempo que faz com que nós, matéria pertencente ao
movimento cíclico temporal, nos vejamos refletidos e incitados a refletir sobre o
aspecto místico de estar sendo constante e incessantemente modificados pelo
devir e perpassados pelo tempo que em si comporta o ser e o não ser.
Para tanto, revisemos alguns conceitos básicos já propostos anteriormente:
Heráclito – refere-se à problemática da eternidade através de postulações
que giram em torno do ontem, hoje e amanhã, onde a eternidade se manifesta
como a infinita duração do tempo, num ciclo perpétuo.
Platão – postula que o cosmo tenha tido origem e o movimento do mesmo
inclui o movimento do tempo, demarcado pelo número e fundamentado na
questão espacial. O caráter eterno do mesmo se dá através da imitação da
eternidade, esta representada pela sua essência perene.
Aristóteles – centraliza o foco do tempo no plano físico, onde este é a
medida do movimento, é número da possibilidade numérica do movimento. O
instante será aquele que permitirá a característica que o tempo tem de poder ser
numerado, sendo simultaneamente o contínuo e o limite do tempo. O instante
como divisor e como aquele que proporciona a continuidade do tempo,
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demonstrando a eternidade do tempo através da eternidade do movimento,
mesmo quando em repouso.
Nietzsche – possui uma visão metafísica do tempo que postula
principalmente o caráter niilista do mesmo, ou seja, a morte ou esvaziamento total
do instante cuja sucessão não se faz de modo linear, mas realiza-se na infinitude
temporal.
Concluímos, portanto, que tais pensamentos filosóficos tentam separar o
tempo da eternidade, o primeiro sendo visto como portador da perenidade e o
segundo como perpétua duração. A noção cíclica do tempo e o eterno retorno
proporcionando-nos um movimento semelhante ao repouso e o mais próximo
possível da imutabilidade.
Justifica-se a escolha dos filósofos acima referidos e as suas reflexões
sobre o tempo e a eternidade, tendo como ponto de partida os textos borgeanos,
já sejam em prosa ou em poesia, uma vez que o nosso autor não somente se
refere aos mesmos explicitamente como também utiliza e reutiliza as concepções
por eles exploradas, propondo um jogo que vai além da simples retórica.
Portanto, a presente análise tem como principal objetivo verificar como se
manifesta o processo temporal presente nos contos do livro “El jardín de senderos
que se bifurcan” (BORGES, 1941)8 e como, através do tempo, se concretizam os
seus principais conceitos.
8 Ibidem nota 4
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3.0 ANÁLISE DE EL JARDÍN DE SENDEROS QUE SE BIFURCAN
O livro “Ficciones”9 contempla duas divisões internas separadas por dois
prólogos, sendo que a primeira parte intitula-se “El jardín de senderos que se
bifurcan” (1941)10 e a segunda parte denomina-se Artifícios (1944)11. Nossa
análise está baseada na contemplação da primeira divisão do livro.
A construção do prólogo se faz claramente baseado em um contato direto
com o receptor, onde o autor propõe desde um início uma vinculação ou ainda
uma cumplicidade por parte do leitor. Borges obviamente incita o leitor a mostrar-
se como parte ativa do texto narrado e não como mero receptor cujo raciocínio
sagazmente o leva a completar o próprio círculo do postulado eterno retorno. Ou
seja, é no prólogo que se inicia um jogo de símbolos e de idéias que envolvem e
comprometem o leitor a participar e completar esta cadeia circular.
Já no início do mesmo, postula a não necessidade de se elucidar os contos
subseqüentes pertencentes a essa primeira parte, mas ao mesmo tempo em que
nega o caráter investigativo do leitor que se depara com a sua narrativa, o convida
a mergulhar no jogo interpretativo, cujo leque de intertextualidade começa a
desbordar. É, portanto, que vemos não só o início da idéia do caráter circular do
tempo, demonstrada obviamente através dos simbolismos que atravessam as
idéias contidas neste prólogo, como também podemos perceber em que medida
sua própria escrita exala esse caráter e interaciona com o mesmo.
Podemos verificar a título de exemplo como isso ocorre:
“... en Pierre Menard, autor del Quijote lo es el destino que su protagonista
se impone. La nómina de escritos que le atribuyo no es demasiado divertida pero
no es arbitraria;…” (BORGES, 1941, pg. 10, grifos do autor) 12
A seleção de determinados arquivos particulares, que foi examinado por
Menard, já está justificada de antemão como colocações pertinentes e propositais,
9 “Ficcções” (1989) 10 ibdem nota 4 11 “Artificios”(1944) 12 “... em Pierre Menard, autor do Quixote, irreal é o destino que seu protagonista se impõe. O rol de escritos que lhe atribuo não é muito divertido, mas não é arbitrário;...” (Ficções, prólogo)
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reclamando, portanto, a atenção do leitor para os conceitos que por detrás deles
se escondem. São nestes conceitos subjacentes que encontramos indícios do
tratamento do tempo e da ideologia que permeia a narrativa borgeana.
Ainda não podemos deixar de registrar a menção direta a Aristóteles, para o
qual o tempo se dá da percepção de dois momentos diferentes, um anterior e
outro posterior, denominados de instantes permitindo-nos perceber o transcurso
do mesmo e caracterizando-o como eterno quando submetido à essência infinita
do movimento.
Percebe-se desta forma que o caráter circular do tempo começa a
desenhar-se através de um pêndulo que nos remete ora a futuras narrativas ora a
narrativas anteriores, onde o devir mostra-se em constante transformação.
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3.1 TLÖN, UQBAR, ORBIS TERTIUS
É neste conto que Borges nos propõe tanto a idéia da criação de um mundo
fictício à margem inexistente da história do mundo, que se apresenta ordenado por
regras, como também nos presenteia com a criação de outro mundo que por si só
é mais ‘real’, superpondo as temporalidades de ambos, sendo que este novo
mundo se entrecruza com os relatos reais, ou seja, com aqueles relatos que
podemos identificar como existentes no mundo que percebemos como real.
Borges imortaliza um pedaço de uma história inexistente fazendo com que
este seja inviolável, inesquecível e ainda mais real que a própria realidade,
concretizado na escritura das páginas de um livro. Ainda, o faz de forma a
intercalar ambas realidades com personagens da história literária que possuem
(ou possuíram) presença física no mundo em que vivemos, exemplo: Bioy
Casares, Herbert Ashe, Martinez Estrada, Drieu la Rochelle, entre otros.
Configura-se nesta narrativa a presença de três mundos: o mundo real,
Tlön e o mundo de histórias do nosso autor. Este entrelaçamento nos direciona
para o questionamento sobre o que é a realidade e a qual deles deve-se dar o
crédito de ser real, ou ainda no limite porque não pensar que todos são reais e
existem na medida em que o outro também existe num ciclo infinito de
dependência.
O narrador se posiciona de forma bastante categórica em relação ao
conceito de tempo que sustenta a criação destes mundos apresentados neste
conto, e explicitamente temos: “Quiénes inventaron a Tlön? El plural es inevitable,
porque la hipótesis de un solo inventor – de un infinito Leibniz obrando en la
tiniebla y en la modestia – ha sido descartada unánimemente.” (BORGES, 1941,
p.19)13. Neste excerto temos a negação da criação originaria do mundo por um
único ser, neste caso Deus ou outra entidade divina, aproximando-se, portanto
dos pensamentos filosóficos de Heráclito, Platão, Aristóteles (filósofos que
obviamente não floresceram sob a influência judaico-cristã) e sem dúvida de
13 “Quais os inventores de Tlön? O plural é inevitável, porque a hipótese de um só inventor – de um infinito Leibniz trabalhando na treva e na modéstia – fora descartada unanimemente..” (ibid., p. 6)
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Nietzsche cujo pensamento filosófico se opôs às concepções dogmáticas sobre a
construção do mundo. Vejamos como isso ocorre: a pergunta supõe uma resposta
em plural, e já aí temos a ausência de um único criador como verdade cristalizada.
Como se a pergunta não bastasse, a justificativa da mesma se dá na continuidade
e é apresentada como uma verdade absoluta e unânime, não havendo
possibilidade de dúvidas e a firme refutação de um “infinito Leibniz”. Leibniz,
filósofo racionalista alemão (1646 – 1716), era partidário de uma concepção
relacionista do tempo, afirmando que esta concepção seria a única plausível, pois
possibilita que a eternidade de Deus se mostre independente em relação ao
tempo como um todo, considerando, portanto que o tempo se manifestaria na
mera ordem de sucessões. Leibniz sugeria que: “... o tempo é a ordem de
existência das coisas que não são simultâneas. Assim, o tempo é a ordem
universal das mudanças, quando não levamos em conta as classes particulares de
mudança.” (FONTES, 1994, p.677)
Temos, ainda a referencia ao caos ordenado: “Al principio se creyó que
Tlön era un mero caos, una irresponsable licencia de la imaginación; ahora se
sabe que es un cosmos y las íntimas leyes que lo rigen han sido formuladas, (…).”
(BORGES,1941, p. 19 e 20)14. À primeira vista temos uma desordem
representando a irrealidade mas logo o narrador nos demonstra que esse caos
ordenado faz parte de uma realidade inserida no conceito do universo, que será
expresso a seguir: “El mundo para ellos no es un concurso de objetos en el
espacio; es una serie heterogénea de actos independientes. Es sucesivo,
temporal, no espacial.” (BORGES,1941, p.20)15, ou ainda: “ He dicho que los
hombres de ese planeta conciben el universo como una serie de procesos
mentales, que no se desenvuelven en el espacio sino de modo sucesivo en el
tiempo.” (BORGES,1941, p.21 e 22)16
14 “No começo pensou-se que Tlön era um mero caos, uma irresponsável licença da imaginação; agora se sabe que é um cosmos e as íntimas leis que o regem foram formuladas, (...)” (ibid., p. 7) 15 “O mundo para eles não é um concurso de objetos no espaço; é uma série heterpgênea de atos independentes. É sucessivo, temporal, não espacial.” (id.) 16 “Mencionei que os homens desse planeta concebem o universo como uma série de processos mentais, que não se desenvolvem no espaço, mas de modo sucessivo no tempo.” (ibid., p. 8)
20
Desta forma o narrador nos apresenta enfaticamente a sua posição
delimitadora que nos permite começar a visualizar o seu conceito de tempo, onde
este se mostra alheio a concepções influenciadas pela tradição judaico-cristã e
admite que o processo de ordenação de um cosmo em caos aparente seja dado
de modo sucessivo no tempo da mesma maneira como os homens desse universo
“imaginário” percebem e o descrevem como tal mundo. Persiste, portanto, na
configuração desse mundo imaginário baseado nas concepções do tempo que ora
são refutadas ora se aproxima sagazmente.
“Una de las escuelas de Tlön llega a negar el tiempo: razona que el
presente es indefinido, que el futuro no tiene realidad sino como esperanza
presente, que el pasado no tiene realidad sino como recuerdo presente.”
(BORGES, 1941, p.23).17
É também através de figurações alegóricas cujas premissas já são
consideradas como consagradas em textos borgeanos que verificamos a
representação metafórica do tempo, entre elas os espelhos, os sonhos, as
concretizações duplas que interagem de maneira a caracterizar fortemente o
sentido que o tempo adquire durante a narrativa.
Temos que: “Otra, que mientras dormimos aquí, estamos despiertos en otro
lado y que así cada hombre es dos hombres.” (BORGES, 1941, p. 23).18
Pensamento este que nos leva diretamente para o confronto do duplo como
característica do eterno retorno, como imagens que se multiplicam, onde a
unidade se confronta com a multiplicidade, mas ao mesmo tempo esta
multiplicidade se comporta como um reflexo ou ainda como o próprio. Nos propõe
ainda uma imagem labiríntica para representação ambivalente da condição não
somente do eterno retorno dentro de uma capacidade circular e infinita do tempo,
mas também nos proporciona a visão da unidade, onde não apenas por uma
passagem, mas incrustada por toda a narrativa deste conto, o ser uno que em si
17 “Uma das escolas de Tlön chega a negar o tempo: argumenta que o presente é indefinido, que o futuro não tem realidade senão como esperança presente, que o passado não tem realidade senão como lembrança do presente.”(ibid., p. 9) 18 “Outra, que enquanto dormimos aqui, estamos despertos em outro lado e que assim cada homem é dois homens.” (ibid., p. 10)
21
representa a todos: “Todos los hombres que repiten una línea de Shakespeare,
son William Shakespeare”.(BORGES, 1941, p. 25).19
Finalizo, portanto a análise temporal deste conto com um excerto do
mesmo cuja característica reside na contemplação da unidade do múltiplo e da
identificação desta com a não demarcação temporal, ou seja, una e eterna: “No
existe el concepto del plagio: se ha establecido que todas las obras son obra de
un solo autor, que es intemporal y es anónimo.” (BORGES, 1941, p. 26)20
Sendo assim, Borges estabelece um vínculo estreito com o conceito de
pluralidade contido na unidade, de caráter intemporal submerso no círculo do
eterno retorno.
19 “Todos os homens que repetem uma linha de Shakespeare são William Shakespeare.” (ibid., p. 11) 20 “Não existe o conceito do plágio: estabeleceu-se que todas as obras são obra de um só autor, que é intemporal e é anônimo.” (ibid., p. 13)
22
3.2 PIERRE MENARD, AUTOR DEL QUIJOTE
No presente conto transbordam temáticas que insistem em aparecer e
reaparecer na crítica contemporânea e são elas: a intertextualidade, o receptor no
papel de escritor e a escritura em si como funcional a partir da leitura, a noção de
enunciado e enunciação, a acentuada crítica que abrange a idéia de produções
originais e a influência recebida ou proporcionada.
Borges situa esta narrativa entre os salões e tertúlias decadentistas da
cidade de Nímes. Trata-se de um artigo sobre a obra de Pierre Menard, cujo
enfoque se dará na reescrita de Quixote (autor: Miguel de Cervantes Saavedra).
Ao reescrever esta obra, Menard não se propõe a realizar uma cópia do original,
pois como podemos identificar claramente no texto esta teria sido uma tarefa
pueril e inútil. Também não se propõe a escrever um Quixote contemporâneo, pois
significaria apenas um “anacronismo” e definitivamente não possui a intenção de
escrever outro Quixote e sim “o Quixote” como uma nova obra cujas páginas
coincidissem literalmente com as de Cervantes.
O singular relato encerra uma meditação sobre o tempo e a obsessiva
duplicação dos objetos à semelhança dos efeitos obtidos por meio de um
incessante jogo de espelhos. O lapso de tempo decorrido entre o Quixote de
Cervantes e o de Menard faz com que existam dois livros, ainda que,
estruturalmente, sejam coincidentes literalmente, são em seu discurso
profundamente diferentes.
“Mi empresa no es difícil…” (...) “Me bastaría ser inmortal para llevarla a
cabo” (BORGES, 1941, p.42).21 A concepção de tempo aqui utilizada vem
perpassada por duas representações que se entrecruzam para a formação do
sentido, que são: a configuração da eternidade como representação cíclica que
nos promove um novo Quixote a cada leitura, e, portanto este Quixote que hoje
lemos não é o Quixote de Cervantes, é o nosso, construído com a nossa leitura,
com os nossos pensamentos e com a depuração sistemática na qual o leitor é o
próprio autor.
21 “Minha empresa não é essencialmente difícil” (...) “Bastar-me-ia ser imortal para realizá-la” (ibid., p. 34)
23
Menard reescreve uma passagem de Dom Quixote, primeira parte, capítulo
IX:
“…la verdad, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo
de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir.” (Cervantes) (BORGES,
1941, p.46)22
“…la verdad, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo
de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir.” (Menard) (BORGES,
1941, p. 46)23
Ou seja, ainda que sejam literalmente idênticos, o discurso que se encontra
submerso nesses excertos estão submetidos ao entendimento da leitura do
receptor e por isso para reescrever o Quixote (ou qualquer obra) seria necessário
ser eterno, uma vez que toda nova leitura nos brinda um novo autor, que imprime
características próprias.
Borges novamente cria possibilidades textuais onde a aporia de Aquiles e a
tartaruga, ou ainda, Descartes, Russel, Leibniz, Nietzsche, ingressem em sua
narrativa não com a intenção de fazer parte de uma retórica, mas como pilares de
sustentação da conformação do tratamento dado ao tempo (não somente ao
tempo) e a sua manifestação dentro do texto.
Vejamos alguns exemplos dessa conformação e da proposição em questão:
“m) La obra Lês problèmes d’un problème (París, 1917) que discute en
orden cronológico las soluciones del ilustre problema de Aquiles y la tortuga.” (...)
“…el consejo de Leibniz (…) , y renueva los capítulos dedicados a Russel y a
Descartes.” (BORGES, 1941, p. 39).24 O filósofo alemão Leibniz já foi citado
22 “... a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.” (ibid., p. 36) 23 “... a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.” (ibid., p. 36) 24 “m) A obra Lês probèmes d’un problème (Paris,1917) que discute em ordem cronológica as soluções do ilustre problema de Aquiles e a tartaruga.” (...) “... o conselho de Leibniz (...), e renova os capítulos dedicados a Russel e a Descartes.” (ibid., p. 31)
24
anteriormente e dentro dos limites deste estudo foi proposta uma explicação ao
alcance do leitor. A aporia de Aquiles e a tartaruga será explanada posteriormente
quando o “eu” narrativo descrever de modo alternativo a mesma cena, porém no
conto “La muerte y la Brújula”25. Isto visa alcançar a unidade do sucintamente
proposto neste conto e da própria utilização desta teoria para o desencadeamento
de uma situação semelhante.
Torna-se necessário, a meu ver, permitir a elucidação de alguns aspectos
que poderão fazer com que compreendamos de maneira mais completa
determinadas escolhas do autor.
Os personagens participantes deste conto, e participantes também de toda
a sua produção são personagens filosóficos que se inserem na obra como um
todo e não se restringe a situá-los como simples menções ou a uma única
contextualização, não deixando de completar, portanto o ciclo infinito do eterno
retorno dentro da estrutura de sua própria obra.
Bertrand Arthur William Russel (1872 – 1970) – a sua filosofia é de caráter
complexo. Sua proposta constitui que os principais postulados da lógica provêem
da aritmética. A menção a este filósofo não pode ser considerada sem um
propósito e sua justificativa se faz se recordarmos a proposta de Platão para o
qual o número possui o papel de mediador entre o tempo e a eternidade, sendo
que aquele tenta aproximar-se deste através de sua repetição continua. Ainda não
podemos olvidar-nos da questão física / matemática proposta por Zenão de Elea,
cuja divisão em infinitas partes de um determinado espaço / tempo nos remete
novamente ao movimento cíclico do tempo.
René Descartes (1596 – 1650) – é considerado o pai da filosofia moderna e
possui como seguidores: Spinoza, Leibniz, Locke, Kant. Ressalve-se que isto não
impede de termos em consideração os laços que o unem diretamente com os
grandes filósofos clássicos: Platão e Aristóteles. Novamente identifica-se que a
citação de filósofos que pensaram o tempo e a problemática do mesmo não se faz
de maneira não-intencional, demarca, dentro de um contexto cujo centro narrativo
gira em torno de problemáticas de autoria / re-criações / autor e receptor, a
25 “A Morte e a Bússula” (ibid., p. 113 a 126)
25
fundamentação teórica que é capaz de criar a atmosfera temporal que se ergue e
sustenta toda a narrativa, ainda que tais conceitos e contraposições não sejam
longamente explicitados dentro do conto carregam no limite de suas fronteiras
toda a concepção necessária para a postulação da eternidade e do eterno retorno.
A intenção neste momento não é discorrer sobre cada teórico ou filósofo
que possa ter de alguma forma uma relação intertextual com a narrativa que
encontramos na obra tratada, mas de alguma maneira conectar os seus sentidos
básicos e demonstrar que em Jorge Luis Borges não há citação, menção ou
inclusão que esteja presente no seu fazer e que se apresente de forma
desvinculada ou desmedida ou ainda contraditória.
26
3.3 LAS RUINAS CIRCULARES
A narração gira em torno de uma analogia entre homem e Deus. Entre o
sonhador / sonhado / sonhador. O relato constitui-se de um personagem
masculino, que não é determinado por nomenclatura e por esta causa
denominado “homem”, que deseja criar outro homem através de seus sonhos, à
semelhança do poder divino, e, para isto, seu principal objetivo é deixar-se sonhar.
Este homem está de tal maneira determinado a concretizar o seu objetivo que está
disposto a entregar-se ao tempo dos sonhos para selecionar e criar ao seu filho:
“…cerró los ojos pálidos y durmió, no por flaqueza de la carne sino por
determinación de la voluntad.” (BORGES, 1941, p. 52) 26
Se partirmos do pressuposto que este conto pode ser analisado do ponto
de vista de uma analogia da vida, o autor nos apresenta o mago, que sonhando
criou o homem que tinha sido criado por outro sonhador. Temos então que, para
chegar a um sonho tem-se como fonte principal um ponto real do qual emana um
sonho, que por sua vez pode ser proveniente de outro sub-sonho e assim
sucessivamente, infinitamente.
O narrador nos mostra Deus como o primeiro sonhador: “...como ese Adán
de polvo era el Adán de sueño que las noches del mago habían fabricado.”
(BORGES, 1941, p. 55).27 Mas ao mesmo tempo nos condiciona a uma visão
retroativa, esta permitida pela existência de magos anteriores, manifestando-se
numa precedência e subseqüência temporal.
Já na epígrafe, retirada do autor Lewis Carroll, obra “Through the Looking-
Glass”, Borges nos indica qual é o caminho que teremos que realizar ao chegar ao
fim e concomitantemente ao ápice de seu conto: "And if he left off dreaming about
you...", “Con alivio, con humillación, con terror, compreeendió que él también era
una apariencia, que otro estaba soñándolo.” (BORGES, 1941, p. 51)28
26 “… fechou os olhos pálidos e dormiu, não por fraqueza da carne, mas por determinação da vontade.” (ibid., p. 40) 27 “... como esse Adão de pó era o Adão de sonho que as noites do mago tinham fabricado.” (ibid., p. 43) 28 “Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando.” (ibid., p. 45)
27
A resposta, a uma pergunta sugerida, encontra-se com um sabor amargo,
como uma espécie de resignação, conformidade por ser tão simplesmente um dos
tantos sonhados e sonhadores, cuja dependência se dá na mesma proporção em
que sonha e é sonhado, configurando o retorno cíclico.
Deve-se destacar a presença de três elementos significativos e
representantes da obra borgeana: o primeiro é a ausência do nome de nosso
personagem principal o que nos leva a uma multiplicidade de identidade, ou seja,
mais uma vez fica factível a proposição de que todos os homens sejam apenas
uno e eterno, um rosto que contém todos os outros rostos.
O segundo ponto significativo recai na localização que Borges escolhe para
inserir a sua narração: Ruínas Circulares, a forma geométrica das ruínas, tão
exaltada pelo nosso autor, nos transporta novamente ao ideal de eterno retorno, a
uma interminável confluência e regresso do homem.
O terceiro elemento, e não menos importante, é a construção labiríntica do
próprio texto, dentro de um espaço circular, deixando-nos imersos em um labirinto
infinito que abrange novamente o eterno retorno.
28
3.4 LA LOTERIA EN BABILONIA
Deparamo-nos com a representação de uma sociedade que está imersa
num círculo vicioso de jogo e, como todo jogo, este é contemplado pelo azar. Os
primeiros sorteios começam com ganhos e perdas pecuniárias, que decidem a
sorte dos homens, da humanidade em si, mediante sorteios secretos cujos
significados esta sociedade não alcançava decifrar. A loteria, como representante
mor dos jogos de azar, permitia que a sociedade tivesse esperança determinando
a sorte, seja esta boa ou má, de cada pessoa. Desse modo a vida dos habitantes
de Babilônia gira em torno do risco, do risco que não contempla a ordem de uma
causa e efeito nem uma conduta coerente de prêmios e castigos.
Além de claramente propor o tema do azar, este amplamente possível de
ser relacionado com o destino, podemos vislumbrar o caos na sociedade:
Alguien ensayó una reforma: la interpolación de unas pocas suertes adversas en el censo
de números favorables. Mediante esa forma, los compradores de rectángulos numerados corrían el
doble albur de ganar una suma y de pagar una multa a veces cuantiosa. Ese leve peligro (por cada
treinta números favorables había un número aciago) despertó, como es natural, el interés del
público. Los babilonios se entregaron al juego. (BORGES, 1941, p. 62 e 63)29
Assim, a loteria começou a interferir na vida dos integrantes desta
sociedade e aumentou progressivamente as conseqüências negativas que esta
produzia e como reflexo aumentava o êxito da mesma:
...todo hombre libre automáticamente participaba en los sorteos sagrados, que se
efectuaban en los laberintos del dios cada sesenta noches y que determinaban su destino hasta el
otro ejercicio. Las consecuencias eran incalculables. Una jugada feliz podía motivar su elevación al
concilio de magos o la prisión de un enemigo (notorio o íntimo) o el encontrar, en la pacífica tiniebla
29 “Alguém esboçou uma reforma: a intercalação de uns poucos números adversos no censo de números favoráveis. Mediante essa reforma, os compradores de retângulos numerados expunham-se ao duplo risco de ganhar uma soma e de pagar uma multa, às vezes vultosa. Esse leve perigo (em cada trinta números favoráveis havia um número aziago) despertou, como é natural, o interesse do público. Os babilônios entregaram-se ao jogo.” (ibid., p. 48)
29
del cuarto, la mujer que empieza a inquietarnos o que no esperábamos rever, una jugada adversa:
la mutilación, la variada infamia, la muerte. (BORGES, 1941, p. 64 e 65)30
O caos do universo (ou de uma sociedade) que repetidamente se mostra,
acaba por fazer parte da percepção de um contínuo que culminara em um caos
ordenado regido pela incessante repetição dentro de um tempo infinito: “Si la
lotería es una intensificación del azar, una periódica infusión del caos en el
cosmos ¿no convendría que el azar interviniera en todas las etapas del sorteo y
no en una sola?” (BORGES, 1941, p. 66).31
Novamente o narrador nos proporá a visão circular que nos permite chegar
ao ponto inicial / final repetidas vezes (esta proporcionada pela própria fusão entre
o caos e o cosmos, onde o tempo infinito segundo Platão se encontra antes do
caos e depois do cosmos, portanto uma imagem que nos impele ao movimento
circular dentro das bifurcações inesgotáveis e repetitivas de um destino / azar)
alcançando praticamente a imobilidade, característica esta fundamental do caráter
eterno promovido por um tempo infinito: “Acata los dictámenes del azar, les
entrega su vida, su esperanza, su terror pánico, pero no se le ocurre investigar sus
leyes laberínticas, ni las esferas giratórias que lo revelan.” (BORGES, 1941, p. 66,
grifos meus)32
Ainda que tenhamos diversas representações metafóricas da eternidade e
da caracterização do tempo dentro dela como um eterno retorno, o narrador nos
diz explicitamente: “En realidad el número de sorteos es infinito. Ninguna decisión
es final, todas se ramifican en otras. Los ignorantes suponen que infinitos sorteos
requieren un tiempo infinito, en realidad basta que el tiempo sea infinitamente
30 “... todo homem livre participava automaticamente dos sorteios sagrados, que se efetuavam nos labirintos do deus cada sessenta noites e que demarcavam seu destino até o próximo exercício. As conseqüências eram incalculáveis. Uma jogada feliz podia motivar-lhe a elevação ao concílio de magos ou a detenção de um inimigo (conhecido ou íntimo) ou a encontrar, na pacífica treva do quarto, a mulher que começa a inquietar-nos ou que não esperávamos rever; uma jogada adversa: a mutilação, a variada infâmia, a morte.” (ibid., p. 50) 31 “Si a loteria é uma intensificação do acaso, uma periódica infusão do caos no cosmos, não conviria que a casualidade interviesse em todas as fases do sorteio e não apenas numa ?” (ibid., p. 51) 32 “Acata os ditames do acaso, entrega-lhes a vida, a esperança, o terror pânico, mas não lhes ocorre investigar suas leis labirínticas, nem as esferas giratórias que o revelam.” (ibid., p. 51)
30
subdivisible, como lo enseña la famosa parábola del Certamen con la Tortuga.”
(BORGES, 1941, p. 67. grifos do autor)33
A conclusão do conto vai gradualmente surgindo à medida que o jogo
metafórico entre eterno, tempo circular e caos se manifesta como uma
interpolação e conclui novamente com a constatação de que: “... Babilonia no es
otra cosa que un infinito juego de azares”.(BORGES, 1941, p. 69)34 Onde o infinito
toma a proporção de eternidade – e como tal o infinito não possui início nem fim,
incessante e perene –, o jogo equipara-se ao movimento circular – este
movimento circular permitirá através de suas repetições fazer com que o tempo
assuma características próprias da eternidade, assemelhando-se a ela – e o azar
é o representativo do destino / caos – o azar relaciona-se diretamente com o
destino e a ele se mistura formando uma intersecção entre a predeterminação e o
próprio acaso, cujas substâncias se misturam e não podem ser consideradas
separadamente, pois não há um destino sem a incidência do azar, e este como já
foi previsto anteriormente deixa de ser, portanto, considerado acaso e passa a
pertencer também ao destino. Da mesma forma que Borges nos propõe a
repetição interminável do movimento circular, do homem que é em si todos os
homens, do autor que é todos os autores, propõe que o azar tido como acaso
pertence ao ciclo e já foi previsto dentro do movimento temporal do destino. Enfim,
o destino contempla o azar, mas antes este foi contemplado pelo destino e assim
sucessivamente. Em relação ao caos temos que o azar visto de maneira inicial
representa a desordem, mas inserido neste movimento cíclico do eterno retorno
nos proporcionará o caos ordenado, retomando portanto os conceitos postulados
por Platão, para quem o tempo se inscreve infinitamente dentro da repetição de
movimentos caóticos que repetidos seriam uma ordem.
33 “Na realidade o número de sorteios é infinito. Nenhuma decisão é final, todas se ramificam em outras. Os ignorantes supõem que infinitos sorteios requerem um tempo infinito; em verdade, basta que o tempo seja infinitamente subdivisível, como o ensina a famosa parábola do Certame com a Tartaruga.” (ibid., p. 52) 34 “... Babilônia não é outra coisa senão um infinito jogo de acasos.”
31
3.5 EXAMEN DE LA OBRA DE HERBERT QUAIN
A narrativa deste conto abrange o comentário do narrador em relação a
uma obra imaginária que se intitula The God of the Labyrinth, escrita por um não
menos imaginário autor Herbert Quain.
O título do livro nos influencia a imaginar a supremacia de uma
conformação labiríntica e a escolha não se faz de forma inocente. Durante todo o
texto, o narrador nos levará por um caminho circular à semelhança de um labirinto
estipulando com o leitor uma espécie de jogo, onde a ficção (ou aquilo que
consideramos fictício) se confunde com a realidade (ou na mesma medida, aquilo
que consideramos realidade). Vejamos, portanto, como isso ocorre e que sentido
adota no decorrer da narração: “Hay un indescifrable asesinato en las páginas
iniciales, una lenta discusión en las intermedias, una solución en las últimas. Ya
aclarado el enigma, hay un párrafo largo y retrospectivo que contiene esta frase:
Todos creyeron que el encuentro de los dos jugadores de ajedrez había sido
casual.” (BORGES, 1941, p. 75, grifos do autor)35
É da mesma forma que Borges constrói o seu conceito circular de eterno
retorno, obrigando-nos a retroceder e perceber a conjunção de dados que nos
remetem para o anterior ao mesmo tempo em que nos impulsionam para o
continuo. Simultaneamente nos remete para a sua própria elaboração do texto e
para a tentativa de elucidação do texto presente, num jogo sagaz que faz com que
o leitor se entregue aos caprichos do tempo circular. O excerto acima esta
diretamente relacionado com: “El jardín de senderos que se bifurcan – es policial;
sus lectores asistirán a la ejecución y a todos los preliminares de un crimen, cuyo
propósito no ignoran pero que no comprenderán, me parece, hasta el último
párrafo.” (BORGES, 1941, p. 9, grifos do autor)36
35 “Há um indecifrável assassinato nas páginas iniciais, uma lenta discussão nas intermédias, uma solução nas últimas. Já esclarecido o enigma, há um parágrafo longo e retrospectivo que contém esta frase: Todos acreditaram que o encontro dos jogadores de xadrez fora casual.” (ibid., p. 56) 36 “O jardim de caminhos que se bifurcam – é policial; seus leitores assistirão à execução e a todos os preliminares de um crime cujo propósito não ignoram, mas que compreenderão, parece-me, até o último parágrafo.” (ibid., prólogo, grifos do autor)
32
Antes de prosseguir com a análise comparativa de seus intertextos, o conto
possui uma análise estrutural simétrica sustentada em Schopenhauer: “Arturo
Schopenhauer escribió que los sueños y la vigilia eran hojas de un mismo libro y
que leerlas en orden era vivir, y hojearlas, soñar. Cuadros dentro de cuadros,
libros que se desdoblan en otros libros, nos ayudan a intuir esa identidad”
(BORGES,1996 p. 435).37
Arthur Schopenhauer (1788 – 1860) – filósofo e prosador alemão,
Schopenhauer propôs que o mundo “real” está constituído da mesma substância
que o mundo dos sonhos, existindo apenas uma força cósmica que se focaliza na
vontade, que pode fazer com que se gerem, por exemplo, a vida sem cessar.
Integrou as bases da filosofia ocidental (Platão e Kant) com a oriental, fechando
assim um ciclo da filosofia, e retornando, ainda que de forma não intencional, às
origens das culturas mais antigas da humanidade. Percebe-se claramente que
este conto está norteado por um significativo pensamento filosófico sobre o tempo
baseado em Schopenhauer, o qual poderia ser descrito desta forma: a
necessidade de demonstrar que cada esquema estrutural das bifurcações do
conto não se restringia apenas a configurações ordenadas dos contos e que estes
continham uma maior intensidade de significação quando a ordem cronológica dos
mesmos era abandonada para seguir por um caminho de ramificações que nos
impelem tanto ao tempo posterior como ao anterior, num ir e vir constante e
interminável, novamente colocando-nos dentro do movimento do eterno retorno.
Configura-se ainda neste conto duas outras intertextualidades que se
realizam da seguinte forma: “Cada uno de ellos prefigura o promete un buen
argumento, voluntariamente frustrado por el autor. Alguno – no el mejor – insinúa
dos argumentos”.(BORGES, 1941, p. 79)38
A construção de um conto, que contemple as características de ser uma
narrativa policial e que neste momento possui dois argumentos nos direciona ao
37 “Arturo Schopenhauer escreveu que os sonhos e as vigílias eram folhas de um mesmo livro e que lê-las em ordem era viver e folheá-las era sonhar. Quadros dentro de quadros, livros que se desdobram em outros livros, nos ajudam a intuir essa identidade.” 38 “Cada uma delas prefigura ou promete um bom argumento, frustrado voluntariamente pelo autor. Alguma – não a melhor – insinua dois argumentos.” (ibid., p. 60)
33
conto La muerte y la brúljula, conto este que se manifesta como paralelo
significativo, pois a presente narrativa se mostra de forma a intercalar o tempo
circular dentro da própria obra “Ficciones.” Uma vez mais, portanto, Borges utiliza-
se da sua narrativa para com ela nos promover uma grande metáfora da sua
própria obra, uma metáfora significativa que tem como pano de fundo o tempo (e
suas variantes: eternidade / eterno retorno / movimento circular) como seu eixo
narrativo, cujas preocupações e questionamentos filosóficos advêm ora explicita
ora implicitamente por toda a sua produção literária.
Há na continuidade a referência explícita a essa bifurcação, a essa
ramificação tão glorificada pelo nosso autor em questão: “Del tercero, The Rose of
Yesterday, yo cometí la ingenuidad de extraer “Las ruinas circulares”, que es una
de las narraciones del libro El jardín de senderos que se bifurcan.” (BORGES,
1941, p. 79, grifos do autor)39
Aqui há dois tipos de intertextualidade, a primeira está claramente exposta:
o conto “Las ruínas circulares” foi extraído do terceiro conto do autor Herbert
Quain e foi inserido no livro denominado “Ficciones”, mas esta intertextualidade
além da simples constatação do nosso sumamente conhecido tempo circular ou
movimento circular dentro de um tempo eterno nos propõe uma intertextualidade
que vai além da simples menção factível e nos incita a pensar como a obra que
estamos lendo (ou que lemos) foi extraída de uma obra cujo autor não existe, cujo
texto não existe? Retornamos aqui com o conceito trabalhado no próprio conto
“Las ruínas circulares”: sonhador / sonhado / sonhador, pelo qual podemos
substituir por fictício / real / fictício. Um jogo de metáforas que nos transformam em
personagens ativos pertencentes sem dúvida a uma perenidade temporal num
movimento circular de eterno retorno.
39 “Da terceira, The rose of yesterday, cometi a ingenuidade de extrair As ruínas circulares, que é um dos contos do livro O jardim de caminhos que se bifurcam.” (ibid., p. 60)
34
3.6 LA BIBLIOTECA DE BABEL
Novamente o próprio título se transforma em um ponto motriz: Babel, ícone
do caos e do desentendimento, precedido pelo inquestionável símbolo da paz, da
quietude, invocando uma sensação de amplitude que se preenche pela presença
dos livros. O vínculo que estabelecemos entre as palavras Biblioteca e Babel está
relacionado com o fato de que ambos são resultados de esforços humanos na
tentativa de alcançar a verdade.
No início da narrativa: “El universo (que otros llaman la Biblioteca)...”
(BORGES, 1941, p. 83)40 demonstra fortemente o conceito de totalidade, de caos
ordenado começando a se prefigurar. A Biblioteca, escrita com letra maiúscula em
contraposição ao universo, detém uma aura de força e isolamento, sugerida pela
sua imensidão.
A irrealidade é insinuada na seqüência narrativa através dos espelhos, uma
vez que somos aparências, volta-se aqui à mesma substância dos quais éramos
formados pelos sonhos, tão reais quanto fugazes: “En el zaguán hay un espejo,
que fielmente duplica las apariencias.” (BORGES, 1941, p. 83).41 Ou seja,
reproduz a aparência, o individuo em si não é reproduzido, ou ainda, a “realidade”
do indivíduo não é reproduzida, uma vez que essa mesma “realidade” faz parte do
simulacro do simulacro.
Vejamos alguns postulados que o texto nos oferece diretamente:
A Biblioteca está composta por galerias hexagonais. Neste caso somente
três figuras podem ser consideradas: os triângulos, os quadrados e os hexágonos.
Esta figura sugere certa perfeição arquitetônica, não havendo possibilidade para
ocos nesse plano. Assim, a Biblioteca se constrói como uma instituição completa e
absoluta.
Agora identifiquemos como os conceitos que vem sendo trabalhados no
decorrer deste trabalho se aplicam a este conto em particular:
40 “O universo (que outros chamam a Biblioteca) ...” (ibid., p. 61) 41 “No saguão há um espelho, que duplica as aparências fielmente.” (ibid., p. 62)
35
A afirmação da existência do absoluto ainda que não tenha sido
encontrado: “... he peregrinado en busca de un libro, acaso del catálogo de
catálogos; ahora que mis ojos casi no pueden descifrar lo que escribo, me preparo
a morir a unas pocas leguas del hexágono que nací.” (BORGES, 1941, p. 84)42
Ainda temos a reiteração do caráter cíclico do tempo e a sua conformação
inserida no eterno retorno, proporcionado pela sua característica de perenidade no
tempo: “Yo afirmo que la biblioteca es interminable” (BORGES, 1941, p. 84)43, ou:
“(Los místicos pretenden que el éxtasis les revela una cámara circular con un gran
libro circular de lomo continuo, que da toda la vuelta de las paredes; pero su
testimonio es sospechoso; sus palabras, oscuras. Ese libro cíclico es Dios.”
(BORGES, 1941, p. 84)44
Neste excerto temos não somente a temporalidade demarcada como
perene, mas também a aproximação das filosofias ocidental e oriental.
De forma explícita o narrador nos leva a constatação de dois “axiomas”:
• “... La Biblioteca existe ab aeterno”.(BORGES, 1941, p. 85).45 Desta
afirmação podemos retirar algumas conclusões, são estas: A Biblioteca
prefigura a existência de um deus; o homem (“el imperfecto bibliotecário”)
ao contrário pode ser considerado como obra do azar. Aqui se contrapõe,
portanto, a fugacidade do homem, ou seja, o seu caráter efêmero e a
imutabilidade do universo, a sua essência eterna.
• “... cada hexágono corresponden cinco anaqueles; cada anaquel encierra
treinta y dos libros de formato uniforme; cada libro es de cuatrocientas diez
páginas; cada página, de cuarenta renglones; cada renglón, de unas
ochenta letras de color negro” (...) El número de símbolos ortográficos es
veinticinco.” (BORGES, 1941, p. 85, grifos do autor).46 Neste axioma nos é
42 “... peregrinei em busca de um livro, talvez o catálogo dos catálogos; agora que meus olhos quase não podem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer, a poucas léguas do hexágono em que nasci.” (ibid., p. 62) 43 “Afirmo que a Biblioteca é interminável.” (ibid., p. 62) 44 (Os místicos pretendem que o êxtase lhes revele uma câmara circular com um grande livro circular de lombada contínua, que segue toda volta das paredes; mas seu testemunho é suspeito; suas palavras, obscuras. Esse livro cíclico é Deus.)” (ibid., p. 62) 45 “A Biblioteca existe ab aeterno.” (ibid., p. 63) 46 “… cada hexágono correspondem cinco prateleiras; cada prateleira encerra trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada página, de quarenta linhas; cada linha, de umas
36
dado a perceber como devemos entender o conto. Esta distribuição,
decifrada em um hexágono, nos permite determinar a natureza dos livros.
Assim expressa-se a razão de ser da narração: a biblioteca contempla toda
a expressão lingüística possível. Qualquer combinação de letras significa algo em
algum lugar, o que pode estar escrito já está escrito, aguarda pacientemente em
alguma estante de um hexágono qualquer. Sendo que: “La biblioteca es ilimitada y
periódica. Si un eterno viajero la atravesara en cualquier dirección, comprobaría al
cabo de los siglos que los mismos volúmenes se repiten en el mismo desorden
(que, repetido, sería un orden: el Orden)”. (BORGES, 1941, p. 93, grifos do
autor)47
Vemos claramente a concepção de um cosmo, ou no limite a proposta de
um caos ordenado que vem submerso na idéia do eterno retorno, este submerso
por sua vez na promessa e ameaça de eternidade.
E, ainda: “... la Biblioteca perdurará: iluminada, solitaria, infinita,
perfectamente inmóvil, armada de volúmenes preciosos, inútil, incorruptible,
secreta”. (BORGES, 1941, p. 92)48
De acordo com os axiomas propostos pelo narrador, temos que La
Biblioteca de Babel é uma insignificante folha ocupada em um livro, que repousa
sobre alguma estante de algum hexágono. Partindo desse pressuposto e uma vez
mais sendo o leitor personagem deste conto, podemos inferir que Jorge Luis
Borges não escreveu este conto, ele sempre esteve ali, ao alcance de algum leitor
inadvertido das possibilidades infinitas de um universo “que muitos chamam
Biblioteca”.
oitenta letras de cor preta.” (...) “O número de símbolos ortográficos é vinte e cinco.”(ibid., p. 62 e 62, grifos do autor) 47 “A Biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, reiterada, seria uma ordem: a Ordem).” (ibid., p. 70) 48 “… a Biblioteca permanecerá: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumem preciosos, inútil, incorruptível, secreta.” (ibid., p. 69)
37
3.7 EL JARDÍN DE LOS SENDEROS QUE SE BIFURCAN
Esta narrativa nos oferece a construção de um labirinto feito em sua
essência de tempo e concretizado em livro. A proposta da criação de um labirinto
literário como tema central deste conto não está isento da própria concepção da
significação de labirinto para J.L.Borges, que postula a circularidade da escritura
perante jogos metafóricos associados a uma perenidade temporal e inscritos num
caos ordenado de um universo circular.
No prólogo deste livro que leva o mesmo nome, “Jardín de senderos que se
bifurcan”49, inicia-se um movimento que acaba por envolver o leitor em um ciclo
temporal e faz com que seu receptor demonstre-se ativo num ir e vir dentro de sua
escrita labiríntica: “... El jardín de senderos que se bifurcan – es policial; sus
lectores asistirán a la ejecución y a todos los preliminares de un crimen, cuyo
propósito no ignoran pero que no comprenderán, me parece hasta el último
párrafo.” (BORGES, 1941, p. 9, grifos do autor)50
Este livro, como já foi demonstrado anteriormente é retomado no conto
“Examen de la obra de Herbert Quain” e cujos significados também já foram
propostos, o citamos novamente aqui para verificar como explicitamente Borges
joga com a sua própria escrita promovendo não somente um pensamento sobre o
caráter circular do tempo, o infinito e a eternidade, mas também fazendo desse
pensamento um instrumento de sua construção narrativa: “Pensé en un laberinto
de laberintos, en un sinuoso laberinto creciente que abarcara el pasado, el
porvenir y que implicara de algún modo los astros”.(BORGES, 1941, p.102)51
A construção, ainda que imaginária, recria um labirinto infinito. Mas,
concretiza-se quando se torna temporal e imerso na escrita circular que propõe
bifurcações infinitas: “_Un laberinto de símbolos – corrigió -. Un laberinto de
49 ibdem nota 4 50 “O jardim de caminhos que se bifurcam – é policial; seus leitores assistirão à execução e a todos os preliminares de um crime cujo propósito não ignoram, mas que compreenderão, parece-me, até o último parágrafo.” (ibid., prólogo) 51 “Pensei num labiritno de laberintos, num sinuoso labiritno crescente que abarcasse o passado e o futuro e que envolvesse, de algum modo, os astros. (ibid., p. 76)
38
tiempo.” (...) “Todos imaginaron dos obras; nadie pensó que libro y laberinto eran
un solo objeto.” (BORGES, 1941, p. 105)52
E, ainda temos como se constrói esta bifurcação: “Dejo a los varios
porvenires (no a todos) mi jardín de senderos que se bifurcan.”( BORGES, 1941,
p. 106, grifos do autor)53 “... el jardín de senderos que se bifurcan era la novela
caótica; la frase varios porvenires (no a todos) me sugirió la imagen de la
bifurcación en el tiempo, no en el espacio” (BORGES, 1941, p. 106, grifos do
autor)54
Reitera, portanto, a construção de um livro infinito, cuja bifurcação no tempo
nos leva a optar por diversos devires, diversos tempos que também são passíveis
de bifurcação e de proliferação, culminado na ordem de um caos, o universo do
eterno retorno: “El jardín de senderos que se bifurcan es una enorme adivinanza,
o parábola, cuyo tema es el tiempo…” (BORGES, 1941, p.108, grifos do autor)55,
ou ainda: “Creía en infinitas series de tiempos, en una red creciente y vertiginosa
de tiempos divergentes, convergentes y paralelos. Esa trama de tiempos que se
aproximan, se bifurcan, se cortan o que secularmente se ignoran, abarca todas las
posibilidades.” (BORGES, 1941, p.109, grifo do autor)56
O conto “El jardín de senderos que se bifurcan”57, assim como a proposta
que vem sendo desenvolvida neste trabalho, pode ser visto individualmente e
analisado separadamente, onde encontraremos todas as concepções descritas
anteriormente sobre a perenidade temporal e a cíclica percepção do eterno
retorno, mas também o nosso olhar pode perpassar este conto como uma grande
metáfora do próprio livro em si, de mesmo nome, que no limite nos propõe uma
visão de como o tema do tempo e da eternidade é tratado pela narrativa borgeana,
52 “_Um labirinto de símbolos – corrigiu - . Um invisível labirinto de tempo.” (...) “ Todos imaginaram duas obras; ninguém pensou que o livro e labirinto eram um só objeto.” (ibid., p. 78) 53 “Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de caminhos que se bifurcam.” (ibid., p. 79, grifos do autor) 54 “ … o jarfim de caminhos que se bifurcam era o romance caótico; a frase vários futuros (não a todos) sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço.” (ibid., p. 79, grifos do autor) 55 “O jardim de caminhos que se bifurcam é uma enorme charada, ou parábola, cujo tema é o tempo; essa causa recôndita proíbe-lhe a menção desse nome.” (ibid., p. 81, grifos do autor) 56 “Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades.” (ibid., p. 82, grifo do autor) 57 ibdem nota 4
39
e como ele executa literariamente esta concepção. “El jardín de senderos que se
bifurcan”58, onde o jardim é o livro e os caminhos que se bifurcam são os
pensamentos filosóficos que norteiam e se diluem por toda a sua obra. Este jardim
não se restringe apenas a este livro, pois assim como o conto, abrange todas as
possibilidades. Ainda estruturalmente verificamos que o conto é propositalmente
colocado como último fechando o circular retorno, como a última página de um
livro cujo verso corresponde ao seu início.
58 ibdem nota 4
40
4.0 A APORIA DE AQUILES E A TARTARUGA E A SUA CONCRETIZAÇÃO EN “LA MUERTE Y LA BRÚJULA”
O presente estudo da manifestação textual da aporia de Aquiles e a
Tartaruga no conto “La muerte y la brújula” (Ficciones, pg.145 a 161)59 tem como
objetivo demonstrar como os pensamentos filosóficos sobre a perenidade
temporal, o infinito e o eterno retorno se concretizam na escritura circular
borgeana. De forma alguma esta constatação significa que variações desta aporia,
a própria ou outros conceitos vinculados com as concepções filosóficas sobre o
tempo estejam descartadas na realização da obra como um todo.
O filósofo Zenão de Elea (490 a.C a 430 a.C.), propôs sucintamente a
seguinte problemática (ressalve-se aqui que entraremos apenas na questão da
eternidade devido ao continuum do tempo, de forma a mostrar-se o infinito. Não
abordaremos questões matemáticas nem físicas, visto que não serve para o
propósito desta análise, cujo caráter fundamental é de constatar e verificar como
diversos pensamentos filosóficos da Antigüidade e da Modernidade, perpassam e
se inscrevem nos contos borgeanos).
Problemática: Disputam uma corrida Aquiles, o Pélida, (símbolo, portanto
da rapidez) e uma Tartaruga (símbolo característico da lentidão), desde que esta
tenha uma pequena vantagem em relação a Aquiles, este nunca alcançará a
tartaruga. Pois Aquiles deverá obrigatoriamente recorrer o espaço que o separava
inicialmente da tartaruga, enquanto esta percorre por mínimo que seja uma
determinada distancia, por menor que seja. Assim, Aquiles terá de recorrer esta
nova distância, mesmo que menor, dando a oportunidade da tartaruga avançar
novamente, e assim sucessivamente surge uma separação entre os dois, ainda
que ínfima.
Esta problemática constitui uma aporia, pois o resultado do postulado é
absolutamente contraditório com a percepção racional da situação. Mas nos
apoiaremos nesta aporia para afirmar o caráter infinito do tempo e o seu eterno
retorno. Vejamos como essa aporia se concretiza na obra de Borges.
59 “A morte e a bússula” (Ficções, 1989)
41
_ En su laberinto sobran tres líneas – dijo por fin - . Yo sé de un laberinto griego que es una
‘línea única, recta. En esa línea se han perdido tantos filósofos que bien puede perderse un
mero detective. Scharlach, cuando en otro avatar usted me dé caza, finja o cometa) un
crimen en A, luego un segundo crimen en B, a 8 kilómetros de A, luego un tercer crimen en
C, a 4 kilómetros de A y B, a mitad de camino entre los dos. Aguárdeme después en D, a 2
kilómetros de A y de C, de nuevo a mitad de camino. Máteme en D, como ahora va a
matarme en Triste-le-Roy.
_ Para la otra vez que lo mate – replicó Scharlach – le prometo ese laberinto, que consta
de una sola línea recta y que es invisible, incesante. (BORGES, 1941, p. 161)60
Verificamos claramente como Borges utilizou a aporia proposta por Zenão
de Elea, para magnificamente representar não somente o infinito, a eternidade,
mas o eterno retorno a que o universo caótico ordenado está submetido. Ressalte-
se ainda que Jorge Luis Borges não apenas utilizou esta aporia para dar forma a
um excerto de sua narrativa, mas também que a utiliza como fundamentação
durante toda a realização de sua obra, ora citando diretamente o próprio filósofo,
ora realizando construções estruturais semelhantes ou ainda utilizando-se do
pensamento filosófico do mesmo para nos propor reflexões e visualizações da
construção do seu pensamento sobre o tempo / eternidade / infinito / movimento
circular e eterno retorno.
Finalizo a análise do tempo, no breve recorte que foi proposto, mostrando
como em poesia a maestria de J.L.Borges, por vezes, também invoca e incita ao
leitor a mergulhar e deixar-se fluir na infinitude circular do tempo. Explícita (quando
trata o tema abertamente) e metaforicamente (através dos simbolismos como a
conjunção dos espelhos, o destino, o azar, o labirinto, entre tantos outros) o autor
recupera, ao longo de sua obra, o tempo e a eternidade que se unem numa
60 “_ Em seu laberinto há três linha a mais – disse por fim. – Eu sei de um labirinto grego que é uma linha única, reta. Nessa linha perderam-se tantos filósofos que bem pode perder-se um mero detetive, Scharlach, quando noutro avatar você me der caça, fina (ou cometa) um crime em A, logo um segundo crime em B, a 8 quilômetros de A e de B, no meio do caminho entre os dois. Aguarde-me após em D, a 2 quilômetros de A e de C, de novo no meio do caminho. Mate-me em D, como agora vai matar-me em Triste-le-Roy.. _Para a outra vez que o matar – respondeu Scharlach – prometo-lhe esse labirinto, que se compõe de uma só linha reta e que é invisível, incessante.” (ibid., p. 125 e 126)
42
gradação cujo fim/início nos proporciona a percepção do eterno retorno. É
necessário ainda recordar que o leque de intertextualidades e intratextualidades
que por vezes se demonstram claramente, também ocorrem nas entrelinhas de
seus escritos, ora prosa ora poesia ora ensaios críticos enfim, a sua obra
apresenta-se de modo desafiador para o inadvertido leitor:
OTRO POEMA DE LOS DONES 61
Gracias quiero dar al divino
Laberinto de los efectos y de las causas
Por la diversidad de las criaturas
Que forman este singular universo,
Por la razón, que no cesará de soñar
Con un plano del laberinto,
Por el rostro de Elena y la perseverancia de Ulises,
61 “Outro Poema dos dons” / “Graças quero dar ao divino / labirinto dos efeitos e das causas / pela diversidade das criaturas / que formam este singular universo, / pela razão, que não cessará de sonhar / com um plano do labirinto, / pelo rosto de Helena e a perseverança de Ulisses, / pelo amor, que nos deixa ver os outros / como os vê a divindade, / pelo firme diamante e a água solta, / pela álgebra, palácio de precisos cristais, / pelas místicas moedas de Ângelo Silésio, / por Schopenhauer, / que talvez tenha decifrado o universo, / pelo fulgor do fogo / que nenhum ser humano pode olhar sem um assombro antigo, / pela caoba, o cedro e o sândalo, / pelo pão e o sal, / pelo mistério da rosa / que prodigaliza cor e que não a vê, / pelas certas vésperas e dias de 1955, / pelos duros tropeiros que na planura / arreiam os animais e a aurora, / pela manhã em Montevidéu, / pela arte da amizade, / pelo último dia de Sócrates, / pelas palavras que num crepúsculo se disseram / de uma cruz a outra cruz, / por aquele sonho do Islã que abarcou / mil noites e uma noite, / por aquele outro sonho do inferno, / da torre do fogo que purifica / e das esferas gloriosas, / por Swendenborg, / que conversava com os anjos nas ruas de Londres, / pelos rios secretos e imemoriais / que convergem em mim, / pelo idioma que, há séculos, falei em Nortúmbria, / pela espada e a harpa dos saxões, / pelo mar, que é um deserto resplandecente / e uma cifra de coisas que não sabemos / e um epitáfio dos vikings, pela música verbal da Inglaterra, / pela música verbal da Alemanha, / pelo ouro que relumbra nos versos, / pelo épico inverno, / pelo nome de un livro que não li: / Gesta Dei per Francos, / por Verlaine, inocente como os pássaros, / pelo prisma de cristal e o peso do bronze, / pelas raias do tigre, / pelas altas torres de São Francisco e da ilha de Manhattan, / pela manhã no Texas, / por aquele sevilhano que redigiu a Epístola Moral / e cujo nome, como ele teria preferido, ignoramos / por Sêneca e Lucano, de Córdoba, / que antes do espanhol escreveram / toda a literatura espanhola / pelo geométrico e bizarro xadrez, / pela tartaruga de Zenão e o mapa de Royce,/ pelo cheiro medicinal dos eucaliptos, / pela linguagem, que pode simular a sabedoria, / pelo olvido, que anula ou modifica o passado, / pelo hábito, / que nos repete e nos confirma como um espelho, / pela manhã, que nos depara a ilusão de um princípio, / pela noite, sua treva e sua astronomia, / pelo valor e a felicidade dos outros, / pela pátria, sentida nos jasmins / ou em uma velha espada, / por Whitman e Francisco de Assis, que já escreveram o poema, / pelo fato de que o poema é inesgotável / e se confunde com a soma das criaturas / e jamais chegará ao último verso / e varia segundo os homens, / por Francês Haslam, que pediu perdão aos seus filhos / por morrer tão devagar, / pelos minutos que precedem o sono, / pelo sono e pela morte, / esses dois tesouros ocultos, / pelos íntimos dons que não enumero, / pela música, misteriosa forma do tempo.”(Borges, 1979)
43
Por el amor, que nos deja ver a los otros
Como los ve la divinidad,
Por el firme diamante y el agua suelta,
Por el álgebra, palacio de precisos cristales,
Por las místicas monedas de Ángel Silesio,
Por Schopenhauer,
Que acaso descifró el universo,
Por el fulgor del fuego
Que ningún ser humano puede mirar sin un asombro antiguo,
Por la caoba, el cedro y el sándalo,
Por el pan y la sal,
Por el misterio de la rosa
Que prodiga color y que no lo ve,
Por ciertas vísperas y días de 1955,
Por los duros troperos que en la llanura
Arrean los animales y el alba,
Por la mañana en Montevideo,
Por el arte de la amistad,
Por el último día de Sócrates,
Por las palabras que en un crepúsculo se dijeron
De una cruz a otra cruz,
Por aquel sueño del Islam que abarco
Mil noches y una noche,
Por aquel otro sueño del infierno,
De la torre del fuego que purifica
Y de las esferas gloriosas,
Por Swedenborg,
Que conversaba con los ángeles en las calles de Londres,
Por los ríos secretos e inmemoriales
Que convergen en mí,
Por el idioma que, hace siglos, hablé en Nortumbria,
44
Por la espada y el arpa de los sajones,
Por el mar, que es un desierto resplandeciente
Y una cifra de cosas que no sabemos
Y un epitafio de los vikings,
Por la música verbal de Inglaterra,
Por la música verbal de Alemania,
Por el oro, que relumbra en los versos,
Por el épico invierno,
Por el nombre de un libro que no he leído:
Gesta Dei per Francos,
Por Verlaine, inocente como los pájaros,
Por el prisma de cristal y la pesa de bronce,
Por las rayas del tigre,
Por las altas torres de San Francisco y de la isla de
Manhattan,
Por la mañana en Texas,
Por aquel sevillano que redactó la Epístola Moral
Y cuyo nombre, como él hubiera preferido, ignoramos,
Por Séneca y Lucano, de Córdoba,
Que antes del español escribieron
Toda la literatura española,
Por el geométrico y bizarro ajedrez,
Por la tortuga de Zenón y el mapa de Royce,
Por el olor medicinal de los eucaliptos,
Por el lenguaje, que puede simular la sabiduría,
Por el olvido, que anula o modifica el pasado,
Por la costumbre,
Que nos repite y nos confirma como un espejo,
Por la mañana, que nos depara la ilusión de un principio,
Por la noche, su tiniebla y su astronomía.
Por el valor y la felicidad de los otros,
45
Por la patria, sentida en los jazmines
O en una vieja espada,
Por Whitman y Francisco de Asís, que ya escribieron el
poema,
Por el hecho de que el poema es inagotable
Y se confunde con la suma de las criaturas
Y no llegará jamás al último verso
Y varía según los hombres,
Por Frances Haslam, que pidió perdón a sus hijos
Por morir tan despacio,
Por los minutos que preceden al sueño,
Por el sueño y la muerte,
Esos dos tesoros ocultos,
Por los íntimos dones que no enumero,
Por la música, misteriosa forma del tiempo.
(BORGES, 1969)
Como dito anteriormente, os conceitos de tempo, eternidade e eterno
retorno não somente se manifestam na narrativa do nosso autor, mas também
podem ser identificados nos seus ensaios e na sua composição poética.
Identifiquemos, portanto, de que modo se concretiza esta realização de forma a
identificar no poema “Otro poema de los dones” a realização dos temas propostos
no decorrer deste trabalho.
Vemos como se configura claramente a sua relação intrínseca com a imagem
labiríntica cujos efeitos e causas nada mais é do que a ordenação do mundo
caótico, e como tal o ciclo de repetição de um caos que pressupõe a ordem:
“Gracias Quiero Dar al divino / Laberinto de los efectos y de las causas / por la
diversidad de las criaturas / que forman este singular universo”. Ainda temos a
contraposição entre a unidade e a multiplicidade, tema tão caro ao nosso autor,
que por vezes chegará a abominar os espelhos e a própria paternidade numa
tentativa de fugir da monstruosa multiplicação e defenderá o uno e eterno. A
46
imagem labiríntica é aproximada ao ato de sonhar, em que tal ato é em si mesmo
a representação do movimento cíclico infinito, recordemos o proposto sonhador /
sonhado / sonhador.
Citará, no decorrer deste poema, filósofos e pensadores, que sem dúvida
participaram da formação dos alicerces da escrita borgeana e a sua
concretização, tais como: Ángel Silesio (cuja doutrina se baseará no mestre
Eckhart de Hochheim, que propõe uma mística baseada na metafísica e como tal
a descoberta da unidade e da infinitude, do abismo, do esvaziamento de Deus);
Schopenhauer (cujo mundo “real” está constituído da mesma substância do
mundo dos sonhos); Sócrates (filósofo que teve como principal seguidor Platão e
nos brindou a percepção da eternidade e do eterno retorno) e ainda Swendenborg
(filósofo sueco que proporá o vislumbramento simultâneo do céu e do inferno,
representando incessantemente suas inquietudes religiosas e metafísicas,
postulará que o tempo é em si uma aparência ilusória).
Retomará também a cultura oriental: “Por aquel sueño del Islam que abarco
/ Mil noches y una noche.” Referência direta a cultura Helenística, a qual floresceu
sob as concepções aristotélicas e desenvolveu correntes neoplatônicas. A
compilação a que Borges se refere é “As mil e uma noites” (compilação feita pelo
suposto contista Abu abd-Allah Muhammed el-Gahshigar, no século IX e sua
primeira tradução foi realizada no ano de 1704 por Antoine Gallant), mas há aqui
novamente uma notável contraposição entre a multiplicidade e a unidade: ‘mil
noches y una noche’, contraposição esta que nos remete novamente a
concretização da unidade do múltiplo, sem uma demarcação temporal que no
limite nos promove a noite una e eterna.
A proposição do eterno retorno também se fará sentir nos versos seguintes:
“Por aquel otro sueño del infierno, / De la torre del fuego que purifica... / “. O fogo
possui caráter ambivalente e J. L. Borges não ignora tal fato, se por um lado a
característica do fogo é em sua essência o ser destruidor, aparecendo como o
elemento fundamental utilizado para castigar dentro da concepção cristã do
inferno, por outro lado é considerado como o elemento capaz de promover a
regeneração, ou seja, o fogo permitirá a morte mas também o renascimento,
47
proporcionando então o perpétuo retorno. Ou ainda: “Por el idioma que, hace
siglos, hablé en Nortumbria”, reiteradamente teremos a visão daquele que em si
engloba todos os demais, repetição contínua. Lembremos que por diversas vezes
Borges nos propõe o absoluto, como representante do movimento cíclico do
eterno retorno. Esta proposta se concretiza ainda em “Por aquel sevillano que
redactó la Epístola Moral / Y cuyo nombre, como él hubiera preferido, ignoramos,
/” ou “Por Séneca y Lucano, de Córdoba, / Que antes del español escribieron /
Toda la literatura española “. Este absoluto invoca, sem margem de dúvidas, a
filosofia Aristotélica, nessa tentativa de conglomerar o ser e o não-ser do tempo,
este como totalmente desprovido de substância que alcança o seu ápice no
niilismo. O escritor sem nome assim como o sonhador em “Las Ruinas Circulares”
nos remete mais uma vez a proposição de que todos os homens são apenas uno
e eterno e que no extremo podemos relacioná-lo também com “La Biblioteca de
Babel” onde teremos que um livro contém todos os livros.
A aporia de Aquiles e a Tartaruga é retomada neste poema e colocada ao
lado do infinito proposto por Josiah Royce. Este sugeriu um mapa da Inglaterra
que contivesse o mapa do mapa, que contivesse o mapa do mapa e assim
sucessivamente e infinitamente. “Por la tortuga de Zenón y el mapa de Royce,”,
esta colocação lado a lado não está isenta de intenção, ambas remetem ao
caráter infinito do tempo-espaço e o eterno retorno, movimento cíclico e infinito.
Não se abstém de repetir suas concepções com alusões distintas e afirma a
ilusória sensação de início. Ilusória, pois não há início / fim uma vez que estamos
submersos num ciclo temporal, no continuum retorno. “Por la mañana, que nos
depara la ilusión de un principio”, e reforça esta concepção afirmando
categoricamente esta impossibilidade de que algo / alguém tenha fim: “Y no
llegará jamás al último verso”.
Pensamos uma vez mais que este poema seria quiçá um jogo de
adivinhação, assim como aquele proposto no conto “El jardín de senderos que se
bifurcan”62, cuja palavra principal não poderia ser dita, mas chegamos ao fim desta
62 ibdem nota 4
48
composição e foi-nos revelado a inquietude metafísica que engloba o todo: “...
misteriosa forma del tiempo.”
Concluímos, portanto que a construção da narrativa borgeana (ressalte-se
que não somente a narrativa) é perpassada não somente pela temática do tempo
que se desdobra na infinitude temporal e no movimento circular do eterno retorno,
mas é em si mesma edificada de forma a nos proporcionar a interação com a
mesma, incitando ao leitor a ter cumplicidade e a integrar-se ao texto. Ou seja,
não se satisfaz apenas em propor literariamente a eternidade e seu movimento
cíclico, vai aquém e constrói o movimento circular que tem como início / fim a sua
própria obra.
49
REFERÊNCIAS
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BORGES, Jorge Luis. Ficciones. [S.I]: Ed. Emecé, 2000. 208 p.
BORGES, Jorge Luis. Ficções. 5. ed. São Paulo: Editora Globo, 1989. 156 p.
BORGES, Jorge Luis. La esfera de Pascal. Buenos Aires: Ed. Emecé, 1960.
BORGES, Jorge Luis Borges. Nova Antologia Pessoal. [S.I.]: Ed. Sabiá Limitada,
1979.
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas II. Buenos Aires: Ed. Emecé, 1974.
CLARET, Martin. (Coord.). O pensamento vivo de Jorge Luis Borges. Ed.
Ilustrada. São Paulo, 1987. 126 p.
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
733 p.
NIETZSCHE, Friedrich. La filosofía en la época trágica de los griegos. Disponível
em:<http://www.nietzscheana.com.ar/la_filosofia_en_la_epoca_tragica.htm>
Acesso em: 23 jun 2006.
NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. 2. ed. São Paulo: Editora Ática, 1995.
84p.
Piglia, Ricardo. Borges: el arte de narrar. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP,
1999. (Trabalho apresentado o evento Borges 100, realizado pela Área de
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