Kim Jong-il (1941-2011), o Querido líder da (areia do...

4
Kim Jong-il (1941-2011), o "Querido líder" da (areia do Norte Amaury Porto de Oliveira UMausoleucraciau foi como Christopher Hitchens descreveu a Corei a do Norte, numa de suas últimas entrevistas. A referência sendo tanto à suntuosidade dos mitos de que costuma cercar-se a família reinante dos Kim, quanto ao travo fúnebre desses mitos. Típica do tratamento distorcido como se narram nascimentos e mortes na família Kim, foi a versão oficial do falecimento de Kim Jong-il (17-12-2011). Aparentemente, tudo indica que ele morreu na cama, mas descreveu-se sua morte numa via- gem de trem, ainda que a cobertura eletrônica do país pelos americanos não tenha registrado deslocamentos de comboios no horário correspondente. Na versão difundida com atraso de mais de dois dias, estava o líder em circuito de trabalho, quando fenômenos extraordinários (um pos- sante arco-íris circundando a terra e brilhos novos no firmamento) precederam a chegada à deter- minada estação. À população, infaustamente surpreendida, só coube chorar copiosa e histerica- mente, conforme mostrou a televisão. Nas narrativas oficiais, tanto o fundador da dinastia, Kim Il-Sung, quanto seu filho e sucessor, Kim Jong-il, tiveram o nascimento deslocado de local sem brilho para as faldas da montanha sa- grada de Paektusan, em eventos também marcados pela ocorrência de fenômenos sobrenaturais. O papel de Kim Il-Sung na luta contra o colonialismo japonês é exagerado ao extremo, e seus companheiros de guerrilha estão todos enterrados no monte Taesong, sobranceiro a Pionguian- gue, cada um fazendo jus a estrela de granito com o relato dos seus feitos e busto em bronze de tamanho natural. Bruce Cumings, um dos mais penetrantes analistas da Coreia do Norte, insiste no caráter monolítico que a família fundadora imprimiu ao regime. Tanto Kim Il-Sung quanto Kim Jong-il souberam cercar-se de oficiais e funcionários de alto escalão, solidamente dependentes da esta- bilidade e sobrevivência do sistema, fonte única dos seus privilégios. Nos anos 1980, Cumings ouviu de um diplomata soviético com grande trânsito em Pionguiangue que Kim Jong-il se Amaury Porto de Oliveira embaixador aposentado, especializou-se em assuntos asiáticos. Em sua carreira de 45 anos, serviu em vários postos, entre eles, Cingapura, onde chefiou a embaixada brasileira no período entre 1987 e 1990. 193 VOL 20 N" 4 MAR/ ABR/MAIO 2012

Transcript of Kim Jong-il (1941-2011), o Querido líder da (areia do...

Page 1: Kim Jong-il (1941-2011), o Querido líder da (areia do Norteieei.unesp.br/portal/wp-content/uploads/2012/04/Politica...Kim Jong-il (1941-2011), o "Querido líder" da (areia do Norte

Kim Jong-il (1941-2011),

o "Querido líder" da (areia do NorteAmaury Porto de Oliveira

UMausoleucraciau foi como Christopher Hitchens descreveu a Corei a do Norte, numa de suas

últimas entrevistas. A referência sendo tanto à suntuosidade dos mitos de que costuma cercar-se

a família reinante dos Kim, quanto ao travo fúnebre desses mitos. Típica do tratamento distorcidocomo se narram nascimentos e mortes na família Kim, foi a versão oficial do falecimento de Kim

Jong-il (17-12-2011).

Aparentemente, tudo indica que ele morreu na cama, mas descreveu-se sua morte numa via­

gem de trem, ainda que a cobertura eletrônica do país pelos americanos não tenha registradodeslocamentos de comboios no horário correspondente. Na versão difundida com atraso de mais

de dois dias, estava o líder em circuito de trabalho, quando fenômenos extraordinários (um pos­

sante arco-íris circundando a terra e brilhos novos no firmamento) precederam a chegada à deter­

minada estação. À população, infaustamente surpreendida, só coube chorar copiosa e histerica­mente, conforme mostrou a televisão.

Nas narrativas oficiais, tanto o fundador da dinastia, Kim Il-Sung, quanto seu filho e sucessor,

Kim Jong-il, tiveram o nascimento deslocado de local sem brilho para as faldas da montanha sa­

grada de Paektusan, em eventos também marcados pela ocorrência de fenômenos sobrenaturais.

O papel de Kim Il-Sung na luta contra o colonialismo japonês é exagerado ao extremo, e seus

companheiros de guerrilha estão todos enterrados no monte Taesong, sobranceiro a Pionguian­

gue, cada um fazendo jus a estrela de granito com o relato dos seus feitos e busto em bronze detamanho natural.

Bruce Cumings, um dos mais penetrantes analistas da Coreia do Norte, insiste no caráter

monolítico que a família fundadora imprimiu ao regime. Tanto Kim Il-Sung quanto Kim Jong-il

souberam cercar-se de oficiais e funcionários de alto escalão, solidamente dependentes da esta­

bilidade e sobrevivência do sistema, fonte única dos seus privilégios. Nos anos 1980, Cumings

ouviu de um diplomata soviético com grande trânsito em Pionguiangue que Kim Jong-il se

Amaury Porto de Oliveira embaixador aposentado, especializou-se em assuntos asiáticos. Em sua carreira de

45 anos, serviu em vários postos, entre eles, Cingapura, onde chefiou a embaixada brasileira no período entre1987 e 1990.

193 VOL 20 N" 4 MAR/ ABR/MAIO 2012

Page 2: Kim Jong-il (1941-2011), o Querido líder da (areia do Norteieei.unesp.br/portal/wp-content/uploads/2012/04/Politica...Kim Jong-il (1941-2011), o "Querido líder" da (areia do Norte

PASSAGENS

preparava para herdar a liderança, construindo uma rede de colaboradores cujas carreiras eram

por ele controladas. "Você pode voltar aqui no ano 2020, e verá que tudo terá marchado a conten­

to", afirmou o diplomata. Mas a vida não colaborou. O "Querido Líder" morreu antes e é fácil ver

que seu sucessor, Kim Jong-un, não teve tempo de preparar a própria equipe. Nem é evidente que

ele possua a habilidade para fazê-Io.

Será lícito, então, especular sobre crises políticas em Pionguiangue?

É inescapável verificar como o quadro com que vai defrontar-se agora o sucessor designado

difere das condições existentes no país, durante o processo de ascensão de Kim Jong-il. O espectro

social era pouco diversificado na Corei a do Norte, e as cabeças sofriam o bombardeio da pregação

do juche, uma doutrina de auto afirmação coreana, mistura de elementos marxistas e confucianos,

elaborada por Kim Il-Sung e difundida abundantemente, no país e em anúncios de páginas intei­

ras nos jornais do mundo.

Seu criador publicou mais de vinte livros sobre a teoria e Kim Jong-il ganhou fama como o

grande exegeta da obra do pai. Em 1980, no Sexto Congresso do Partido dos Trabalhadores, Kim

Jong-il foi oficialmente reconhecido como o herdeiro do poder, ao mesmo tempo em que entrava

para o comando do Birô Político e assumia os postos de secretário do Comitê Central e da Comis­

são Militar. O pai só morreria em 1994, e Kim Jong-il ia dispor de muito tempo para edificar sua

rede de apoios.

Começou também a ser visto como o responsável por várias ações do governo de Pionguian­

gue, em geral de tipo negativo. Seu nome e retrato passaram a aparecer na imprensa internacio­

nal, que transmitia a imagem de um indivíduo voluntarioso e tirânico, com uma história de ma­

nipulações terroristas.

Em 1995, porém, a Asían Survey, revista da Universidade da Califórnia, publicou uma longa

resenha preparada por Banning Garret e Bonnie Glaser, de julgamentos sobre a Coreia do Norte

emitidos por acadêmicos chineses. Parte desses especialistas afirmava ser Kim Jong-il um dirigen­

te capaz, com duas décadas de bons serviços prestados ao seu governo, em particular no tocante

às relações com os EUA, área posta sob sua autoridade ainda no tempo do pai. Um dos analistas

insistia: "Kim Jong-il não é o incompetente descrito pela imprensa ocidental. Ele tem uma mente

clara e aguda, sabe o que quer e está habilitado a dirigir o país".As relações Pionguiangue-Washington estão no centro do precário equilíbrio estratégico em

que tem vivido, há mais de meio século, a Península Coreana. A pedra de toque é a incapacidade

das duas diplomacias de irem além do armistício que pôs termo à Guerra da Coreia, em 1953.

Negociado por militares dos EUA e da Coreia do Norte, sem a participação da Coreia do Sul,

o armistício força os nortistas a um contínuo exercício de brínkmanshíp, na esperança de trazerem

os americanos a negociar um tratado de paz.

Enquanto não houver esse tratado, o regime de Pionguiangue sente-se em risco de ser a qual­

quer momento esmagado pelo punho de ferro americano. Estudando o tratamento distinto dado

pelos EUA a países como o Iraque ou o Paquistão, por exemplo, o regime dos Kim parece ter

chegado à conclusão de que era recomendável dotar-se de poderio nuclear.

Passos foram dados nesse sentido, logo detectados pelos serviços especiais americanos. Con­

versações foram entabuladas, e o Governo Bush-pai concordou em retirar da Coreia do Sul o

armamento nuclear detido pelas tropas americanas ali estacionadas, em troca da adesão da Coreia

do Norte ao Tratado de Não Proliferação e da aceitação de inspetores da AIEA no seu território.

Em 1994, já sob o Governo Clinton, grave crise eclodiu, com os EUA acusando a Coreia do

Norte de estar processando plutônio, num reator moderado a grafite na localidade de Yongbyon.

194 POLfTICA EXTERNA

Page 3: Kim Jong-il (1941-2011), o Querido líder da (areia do Norteieei.unesp.br/portal/wp-content/uploads/2012/04/Politica...Kim Jong-il (1941-2011), o "Querido líder" da (areia do Norte

,KIM jONG-IL (1941-2011), O "QUERIDO lÍDER" DA COREIA DO NORTE

A intervenção armada dos EUA foi sustada à última hora, graças à missão de bombeiro assumidavoluntariamente pelo ex-presidente Carter.

Carter negociou diretamente com Kim Il-Sung um Acordo Quadro, assinado em Genebra em

outubro de 1994, pelo qual os nortistas concordaram em fechar o reator de Yongbyon, confiando

a inspetores da AIEA a guarda permanente dos bastões de combustível já irradiados, devidamen­

te acondicionados em caixões de granito lacrados. Kim Jong-il não figurou ostensivamente nas

negociações desse acordo, cuja aplicação ficou, no entanto, sob sua responsabilidade, posto que opai faleceu três semanas depois da partida de Carter.

Com toda a sua fragilidade política, o acordo de 1994 desanuviou durante um bom período

as tensões no Nordeste Asiático, dando em particular à Coreia do Sul e à China a oportunidade

de acelerar os respectivos desenvolvimentos econômicos. O presidente sulista Kim Dae-jung pôde

levar adiante sua "Política do Brilho do Sol", que esteve a ponto de concretizar a paz entre Pion­

guiangue e Washington, com a visita de Madeleine Albright, então secretária de Estado, à Coreia

do Norte e a expectativa de uma visita do próprio Clinton.

Essa aproximação foi cortada abruptamente, pela usurpação eleitoral ocorrida em dezembro

de 2000 nos EUA. Bush-filho, o novo presidente republicano, disse sem rodeios a Kim Dae-jung(março de 2001) ser contra a "Política do Brilho do Sol", uma tentativa de compreender as razões

da Coreia do Norte. Ele ia tratar esse país como membro do "Eixo do Mal".

Kim Jong-il soube transformar a atitude confrontacional dos EUA em importante fonte de

sustento para seu regime, através de bem dosadas provocações e negaças, que não somente lhe

foram rendendo ganhos materiais como foram também dando tempo para o avanço do programanuclear norte-coreano.

Longe de esmagar o adversário, Bush chegou ao fim do seu governo vendo o regime de Pion­guiangue internacionalmente reconhecido, e na verdade blindado, como detentor da bomba

atômica. Estimulados pela China, os outros três vizinhos da Coreia do Norte (Rússia, Japão e

Corei a do Sul), mais os próprios EUA, tinham iniciado um esforço de integração positiva do re­

gime de Pionguiangue no Nordeste Asiático, nas chamadas "negociações hexapartites". Esta é a

situação externa herdada agora por Kim Jong-un. Vejamos um pouco quais são suas chances noplano interno.

O segmento militar do regime parece sob controle, favorecido pela prática de Kim Jong-il de

dar prioridade absoluta aos assuntos das Forças Armadas. Kim Jong-un utilizou a delonga no

anúncio da morte do pai para emitir ordens de retorno às bases a todas as brigadas militares.

E seu tio e principal assessor, Jang Song Taek, passou a usar uniforme de general. Ele e a mulher

são membros da troika que tutela o herdeiro, apoiados no prestígio de que já gozavam sob Kim

Jong-il e na aura de filha do fundador do regime, que envolve a tia, Kim Kyong Hui. Contestações

de origem militar não estão no horizonte, mas o país mudou muito.

Em janeiro de 2011, Le Monde Diplomatique publicou extensa e rica reportagem do jornalista

Philippe Pons, mostrando uma Coreia do Norte bem diferente da que se apresentou a Kim

Jong-il, quando ele assumiu o poder em 1994. O principal fator das profundas mutações ob­serváveis vinha sendo o crescente entrosamento econômico da Coreia do Norte com a China

em transformação.

Por mais que se aperfeiçoe o policiamento da fronteira, não cessam as idas e vindas clandes­

tinas de migrantes e contrabandistas, possibilitando o fluxo de celulares e de receptores de rádio

e televisão. Informações e mensagens circulam continuamente e ampliam-se as camadas de norte­

-coreanos desabusados da propaganda oficial.

195 VOL 20 N' 4 MAR/ ABR/MAIO 2012

Page 4: Kim Jong-il (1941-2011), o Querido líder da (areia do Norteieei.unesp.br/portal/wp-content/uploads/2012/04/Politica...Kim Jong-il (1941-2011), o "Querido líder" da (areia do Norte

PASSAGENS

No nível intergovernamental, os chineses têm procurado estimular os norte-coreanos a toma­

rem o caminho das reformas econômicas, sem premência de reformas políticas. São conhecidas

duas visitas de Kim Jong-il a regiões chinesas, organizadas com o propósito de interessá-Io nos

êxitos da China. A adoção do modelo chinês tem deixado, porém, a desejar, e ao que se diz em

razão da relutância de Kim Jong-il diante do desafio, apesar do entusiasmo pelo assunto demons­

trado pelo cunhado, Jiang 50ng Taek. 5e for verdadeira essa versão, as reformas em causa terão

uma nova oportunidade, haja vista a maior influência adquirida por Jiang 50ng Taek na nova

composição governamental em Pionguiangue.

Mesmo implementadas pela metade, as reformas econômicas têm criado um quadro social di­

versificado, descrito por Philippe Pons. Além do emiquecimento e do consumismo de quadros su­

periores do partido único; de burocratas e gestores dos setores privilegiados; e da alta hierarquia

militar, toda uma nova classe de atores - negociantes, agiotas, intermediários de todo tipo - adquire

dinamismo próprio e passa a influir nos destinos do regime, sem elos com a elite tradicional.

O regime ainda dispõe do poder repressivo, mas começa a perder o controle de uma parte das

atividades econômicas, com relação às quais aumenta o peso da China. No plano político, a gran­

de preocupação dos chineses parece ser não deixar que sobrevenham explosões desestabilizado­

ras, que os deixem de repente às voltas com um dilúvio de refugiados.

É possível, no entanto, detectar sinais do interesse de Pequim em ajudar na abertura bem me­

dida de Pionguiangue, ao século XXI. De preferência sem a reunificação precipitada da Península.

Fevereiro de 2012

196 POLfTlCA EXTERNA