Kierkegaard - O Amor

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    Filosofazer. Passo Fundo, n. 29, jul./dez. 2006, p. 91 a 107 91

    EROS, PHILIA E GAPE EM KIERKEGAARDGilmar Zampieri1

    Como se poderia falar corretamente do amor, se Tu fosses esquecido, Deus do amor, dequem provm todo o amor no cu e na terra:

    Tu, que nada poupaste, mas tudo entregaste em amor;Tu que s amor, de modo que o que ama s aquilo que por permanecer em Ti! Como se poderia falar corretamente do amor, se Tu fosses esquecido, Tu que revelaste o que o a-

    mor; Tu, nosso salvador e reconciliador, que deste a Ti mesmo para libertar a todos!Como se poderia falar corretamente do amor, se Tu fosses esquecido!

    (S. Kierkegaard)

    Resumo: O artigo reconstri o argumento de Kierkegaard na defesa do amorcristo em constante relao com outras formas de tratamento do amor, sejaem relao ao eros platnico, seja em relao a philiaaristotlica, seja em relao ao amor romntico cantado pelos poetas. A novidade crist no tratamento doamor pensada filosoficamente sem nunca perder o horizonte do qual parte,qual seja, a perspectiva da f teolgica. Como resultado da argumentao,advm uma tica da alteridade pr -figurada bem antes das contemporneasfilosofias do outro.

    Palavras-Chave: eros, philia, gape, alteridade

    1 Mestre em filosofia pela PUCRS, professor no Centro Universitrio La Salle (Unilasalle),Canoas, RS.

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    veis: ou se cr ou no se cr nele. Mas, o fato de ser indemonstrvel no signi-fica que no exista e no seja verdadeiro. Ademais, se auto-enganaria quemno aceitasse essa verdade que une o tempo eternidade. Este o caso daque-le que s acredita vendo com seus olhos sensveis, tpicos do empirismo, queKierkegaard qualifica de racionalismo insolente. O amor aquela verdadeque existe antes de tudo e permanece depois que tudo acabou. Os que no seapercebem disso, se auto- enganam. Estes no se apercebem e no crem naverdade. Mas se auto- enganam tambm, diz Kierkegaard, aqueles que tomamuma inverdade por verdade, tomam a verdade por sua aparncia. Da mesma

    forma, aqueles que confundem o amor com o amor de si mesmo. Ambos osamores so conhecidos pelos seus frutos. Sim, o amor se conhece por seus fru-tos. O amor humano se conhece por seu fruto. O amor de Deus tambm. Oamor, no limite do humano, se conhece pela sua efemeridade e transitoridademelanclica. O amor humano, que o poeta canta, reduz-se eternidade doenquanto dura. O amor de Deus, o amor cristo, se conhece pela verdade daeternidade liberta da incapacidade de renunciar ao amor sensual de si. Aque-le, o amor de si, cantado; este, o amor a Deus, crido e vivido.

    O amor se conhece pelos seus frutos. Ora, se o amor se conhece pelosfrutos, tal como a rvore, ento pode-se ter a impresso de que no precisa sercrido. verdade que o amor se conhece pelos frutos, e isso uma prova con-tra o racionalismo insolente que simplesmente nega a existncia do amor.Pelo fruto se conhece a rvore; o amor da mesma forma. Mas, para Kierkega-ard, dizer que o amor se conhece pelos frutos dizer duas coisas: que ele sedeixa conhecer e ao mesmo tempo se retrai, morando no oculto, deixando-seconhecer nos frutos que o revelam (2005, p. 22). O amor mora no oculto e serevela nos frutos. No oculto do corao e no oculto da fonte donde brota omanancial do amor: o amor de Deus. No fundo do corao e na fonte do amor, Deus, o amor se oculta. Por isso a imperiosa necessidade de crer no amor.

    Contudo, insiste Kierkegaard, a rvore se conhece pelos frutos. bemverdade que a rvore tambm pode ser conhecida pelas folhas, mas, se a rvore no produz fruto, ento as folhas podem ter enganado, passando-se pelo queno so. assim que se d tambm com a cognoscibilidade do amor. O amorpode tambm se dar a conhecer pelas palavras do amante, mas um sinalincerto. Isso no significa que se deva reter a palavra, ocultando o amor e aemoo visvel. Diz Kierkegaard: Teu amigo, tua amada, tua criana, ouqualquer pessoa que seja objeto de teu amor tem um direito a que tu o ex-primas tambm com palavras, quando o amor te comove realmente em teuinterior (2005, p. 26). E isto porque a emoo no propriedade de quem a

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    tem; ela pertence ao outro, a quem sua expresso cabe por direito, dado que, aemoo pertence a quem se comove, pertence ao outro. Isso tudo uma ma-nifestao do amor. Contudo, no pelas palavras que se conhece o amor,mas pelos frutos. O amor que s se reconhece pelas palavras ainda um amorimaturo e falso, se esses forem seus nicos frutos. Insistindo: o amor se conhe-ce pelos frutos.

    Mas, sero os frutos, as obras, sinal irrefutvel do amor? O sutil dialti-co Kierkegaard no deixa dvidas: no. Nenhuma palavra e nenhuma obra sinal irrefutvel do amor. Ambas necessrias, ambas insuficiente. Seno vejamos:

    No h nenhuma obra, nem uma nica, nem a melhor, da qual ousssemosdizer: quem faz isso demonstra incondicionalmente com isso o amor. Dependede como a obra realizada (2005, p. 26). Nisso volta a tese de que o amorest oculto no corao e depende do como a obra realizada. Nas obras decaridade, mais especiais, como dar esmola, visitar o enfermo, vestir o nu, aindano est demonstrado ou reconhecido o amor, pois podem se fazer obras deamor de maneira desamorosa, sim at mesmo egosta, e nesse caso a obra decaridade no uma obra do amor (2005, p. 28). Kierkegaard exemplifica etipifica algumas intenes e motivaes excusas que podem estar escondidas,no corao, nos atos de caridade:

    [...] talvez perturbado por uma impresso casual, talvez com uma predi-leo fruto de um capricho, talvez para se livrar, talvez olhando para olado, no no sentido bblico; talvez sem que deixasse a mo esquerdasaber o que ocorria mas por irreflexo; talvez pensando na sua pr-pria tristeza mas no na do pobre; talvez procurando seu alvio nofato de dar uma esmola em vez de querer aliviar a misria: de modoque a obra de caridade no teria sido afinal, no sentido mais alto, umaobra do amor (2005, p. 28).

    Portanto, a inteno e a maneira como o ato realizado determinam oamor e seu reconhecimento. Contudo, mesmo isso no suficiente para de-monstrar incondicionalmente a existncia ou a ausncia do amor. At pelocontrrio, pois a inteno sempre estar oculta e, como tal, em nada ajuda na

    demonstrabilidade do amor. Resta um nico caminho incondicional: crer noamor. Crer no amor contra o racionalismo insolente; crer no amor para alm daquele que exige ver os frutos do amor. Contra o racionalismo insolente preciso crer no amor, do contrrio sequer se perceber que ele est presente.Contra os que exigem ver os frutos preciso crer no amor para ver nos frutosalgo ainda mais belo do que so. Assim como a desconfiana pode perceber

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    uma coisa menor do que , tambm o amor confiante pode ver algo comomaior do que . Por isso, o ponto de partida s pode ser um: crer no amor.Esse o pressuposto de todo e qualquer elogio ao amor. sobre esse pressu-posto que Kierkegaard avana no seu elogio ao amor cristo.

    2. O amor cristo um escndalo: tu deves amar

    O amor cristo um escndalo. O amor cristo um escndalo porque,no limite do humano, cantado pelos poetas, seus baluartes, fazer do amor um

    dever uma contradio. Afinal, amar no um ato livre somente possvel sefor totalmente livre do dever? Contudo o cristianismo manda: amars o teuprximo como a ti mesmo (Mt 22,39). Deixemos de lado, por enquanto, apergunta por quem o prximo e o como a ti mesmo e nos concentremos naidia de que o amor cristo um dever e quais os frutos que se colhem dessedever.

    O amor cristo um escndalo porque um dever. Diz o mandamento:amars o teu prximo como a ti mesmo. Que o amar seja um dever o es-cndalo ou, como diz Kierkegaard, eis a aparente contradio (2005, p. 40). E,de fato, uma contradio, um escndalo, visto desde a lgica do amor natu-ral e espontneo. Um escndalo e uma contradio, ou um paradoxo, s poss-vel de ser aceito no mbito da f. Sim, pois o mandamento do amor umaultrapassagem do limite humano, irrompido pela revelao divina e s com-preendido na dinmica da f. Esse mandamento no poderia brotar do cora-o humano e, por isso, no limite do humano, uma contradio, um parado-xo, um escndalo. Se no limite do humano um escndalo, na dinmica darevelao divina uma novidade, no no sentido de novidadeiro, mas no sen-tido de que a partir dele tudo se tornou novo . A partir dele a eternidade entrana temporalidade e a revoluciona. Nada ser como antes. Fora tamanha spoderia vir de fora do humano; s poderia ser sobre-natural. O mandamentoque porta a novidade precisa ser pensado para no deix-lo cair no esqueci-mento, tpico das coisas que se tornam aceitas de gerao em gerao e, porfora do hbito, perdem seu poder detornar tudo novo . Engana-se quem acharque este mandamento j faz parte do ser do cristo. Isto seria real se, de fato,o cristo fosse cristo, ou se vivesse de fato o crstico. Mas, o prprio cristonecessita tornar- se cristo: ser cristo viver essa novidade. Ser o cristo,cristo? Achar que automaticamente, diz Kierkegaard, um auto-engano.No basta dizer que ; preciso ser efetivamente e, nesse sentido, o manda-mento no pode ficar na indiferena, pois atravs deletudo se tornou novo .

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    Para Kierkegaard, a novidade precisa ser assumida por cada um que entra nadinmica do cristianismo, para no deixar que o bem supremo caia numa es-pcie de coletividade indiferente, na negligncia de um hbito rotineiro(2005, p. 43).

    Tu deves amar. Kierkegard se pergunta e pergunta ao seu leitor: algumavez ocorreu de algum ler isso nos filsofos e poetas que tanto exaltaram oamor e a amizade? E no ocorreu alguma vez de pensar que as descries queos poetas e filsofos fazem do amor e da amizade so muito superiores ao tudevesamar? To pobre parece o mandamento em relao aos elogios que po-

    etas e filsofos fizeram ao amor e amizade. Mas, que ilus o, que auto-engano, essa impresso imediata. Na verdade, nada superior ao tu devesamar. Sua superioridade, que s pode vir de Deus e que arranca o homem dolimite humano e temporal, manifesta-se e comprova-se pelos dons que essedever assegura: a continuidade, a independncia e a proteo contra o desespero.

    A continuidade. O amor natural e espontneo, cujos porta -vozes so ospoetas, uma promessa de um amor, por isso o juramento feito um ao outro.O poeta s pode abenoar um amor que seja uma promessa, mesmo que en-quanto durar . Tem que ser eterno enquanto durar, seno o poeta no ser seuporta- voz. O poeta, esse sacerdote do amor natural e espontneo, toma o ju-ramento recproco dos amantes e dos amigos. Porm, do amor e da amizadenatural o poeta no diz nem exige que sejam eternos; exige que jurem ser fisum ao outro. Juram o amor por algo que maior do que eles? No, diz Kierke-gaard. Juram reciprocidade no amor e que o amor assim jurado perdure, tenhadurao eterna. Aqui, precisamente aqui, diz Kierkegaard, se apresenta a am-bigidade do amor e da amizade naturais e espontneos. Qual a ambigidade?A ambigidade est em que o poeta exige que o juramento de amor recprocoseja eterno, contudo se constitui sobre algo efmero e, por isso, exige juramen-to. Para que essa ambigidade desaparea e que o eterno seja de fato o maiselevado, preciso jurar pelo dever de amar. Mas isso o poeta no admite eno pode suportar. O juramento no pode ser feito por um dever acima dareciprocidade dos amantes. Com isso, diz Kierkegaard, o amor natural umailuso, pois no est conscientemente fundado sobre o eterno e por conta dis-so est sempre sujeito a alterar -se e a mudar. Est sujeito mudana e alte-rao porque no est fundado sobre o dever de amar. S o dever de amar, s quando o amar dever, s ento o amor est eternamente assegurado ecom isso livre da melancolia e da angstia pois no evidente que aquilo quedure neste instante tambm venha a durar no prximo instante (2005, p. 49) .

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    Essa insegurana s pode ser ultrapassada se o amor for um dever queirrompe da eternidade transformando o tempo em continuidade eterna, almda durao, posto que chama. Quando o amor um dever, no h mais porque querer pr os amantes e os amigos prova. exatamente isso o que acon-tece com o amor natural e espontneo, constantemente passvel de se alterar.O pr prova uma expresso de segurana em face da insegurana que ocaracteriza, pois segundo Kierkegaard, aquilo que apenas se mantm, ns oprovamos, ns pomos prova. Mas, quando h o dever de amar, a no ne-cessria nenhuma prova, nem o atrevimento que o insulta ao querer prov-lo;

    a o amor superior a qualquer prova (2005, p. 50). Exige-se prova quandose relaciona a uma possibilidade e a possibilidade est em termos do pode ser,como tambm do pode no ser. S se requer pr prova aquilo que pode alte-rar-se, tpico do amor natural e espontneo, no fundado no dever de amar.A alterao pode ser de tal magnitude que o amor pode resultar no seu con-trrio, o dio. O amor que se tornou um dever, por sua vez, no se altera, sim-plesmente ama e jamais odeia a pessoa amada. Quem superior e mais forte?O amor que pode virar dio ou o amor que simplesmente ama? Kierkegaardresponde isso em forma de pergunta sem contudo deixar de ter uma posioclara: E quem mais forte: aquele que diz se no me amares ento eu teodiarei, ou aquele que diz mesmo se me odiares eu continuarei a te amar?(2005, p. 52).

    Kierkegaard, continuando a fenomenologia do amor imediato, naturale espontneo, que no est no domnio eterno do deves amar, diz que o a-mor cantado pelo poeta enfrenta duas possibilidades de alterao, das quais oamor do tu deves amar est imune: ocime e o hbito . O amor espontneo enatural pode transformar-se, alterar-se e passar da suprema felicidade para osupremo tormento, no cime. O cime uma doena do zelo que atormen-ta o amante pela possibilidade de no ser correspondido no seu amor. O ci-me uma doena porque o amante no vive na entrega simples e pura do a-mor; est preso s comparaes entre seu modo de amar e o amor retribudo.O ciumento no ousa confiar totalmente na pessoa amada e nem se entregatotalmente. A fim de no dar demais, vive o tormento da disperso e acabapor no amar na simplicidade. O hbito rotineiro uma forma de alterao doamor imediato, o mais sutil e prfido, pois se infiltra sorrateiramente e torna osamantes aborrecidos, desalentados e tristes. Contudo, se o amor se submeter transformao da eternidade, tornando-se um dever, no conhecer o hbito,isto porque o eterno jamais envelhece e jamais se torna um hbito rotineiro (KIERKEGAARD, 2005, p. 55).

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    A independncia. Somente quando for dever de amar o amor est eter-namente libertado, em feliz independncia. Kierkegaard trata aqui de um pa-radoxo. A liberdade fruto de um dever, o dever de amar. O amor naturalreclama para si a conquista da liberdade e no pode aceitar que um dever sejaa fonte da liberdade. O cristianismo, contudo, diz o contrrio, o dever deamar o nico que liberta. Frequentemente se diz que a lei amarra a liberda-de, mas, para o cristo, diz Kiekeggard, ocorre o contrrio, s a lei pode dar aliberdade. Sem a lei a liberdade pura e simplesmente nao existe, e a lei qued a liberdade (2005, p. 56). Estamos aqui diante de um paradoxo. Como

    pode a lei, o dever, ser a fonte da liberdade? Eis o escndalo para o amor natural, mas a verdade mais genuna do cristianismo. Essa verdade assim formuladapor Kierkegaard: o amor natural necessita do outro para amar e ser amado. Oamor natural exige reciprocidade. Se o outro lhe falta e diz: no posso maiscontinuar a te amar , ento a liberdade nesse caso ser tambm poder respon-der: ento eu tambm posso parar de te amar. Mas isso no a verdadeira inde-pendncia, pois se deve ou no continuar a amar depende de o outro quereram-lo ou no. Ao passo que quem tiver passado pela transformao da eter-nidade e tornado o amor um dever, a negativa do outro no redunda em umanegativa do amante; pelo contrrio, resulta na afirmativa: ento eu devo conti-

    nuar a te amar . Algum que no necessite da anuncia do outro para continuar amando no estar na verdadeira liberdade e independncia? S quem est nadinmica do dever de amar pode alcanar a liberdade e a independncia.

    Assegurado contra o desespero. O amor imediato, natural, funda-se nodesespero. Quando ocorre o infortnio, ento o que acontece nada mais doque a manifestao daquilo que est desde sempre na sua base: o desespero.Quando o amor imediato vive feliz, ento o desespero apenas se oculta, espe-rando o momento certo do seu retorno. O que faz o amor imediato estar fun-dado no desespero o fato de, por carecer do eterno, querer fazer da paixoimediata uma paixo infinita. Mas, como o imediato e o infinito no podemser sintetizados, ento o amor imediato no tem outra lgica seno a do deses-pero. Diz Kierkegaard a esse respeito: Desespero consiste em carecer do eter-no; desespero consiste em no ter se submetido transformao da eternidadepelo tu deves do dever. O desespero pois, no consiste na perda da pessoaamada, isso infelicidade, dor, sofrimento; mas desespero consiste na falta doeterno (2005, p. 59). O desespero consiste na falta do eterno. No h amornatural que alcance o eterno. Por isso, sempre que se disser que se ama o ou-tro ser humano mais do que a si mesmo e mais do que a Deus, ama-se com afora do desespero. S o amor que passa pela transformao do tu deves

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    pode alcanar o eterno e se proteger do desespero. O amor fica proibido? Deforma alguma. O amor que passa pela transformao do eterno no probe;pelo contrrio, obriga a amar, visto ser um imperativo. O que fica proibido amar daquela maneira que no ordenada, amar querendo possuir o outro serhumano, pois quando este lhe falta ento advm o desespero. Para sair do de-sespero s amando segundo o mandamento que vem da eternidade: s assim oamor eterno. Nenhum consolo pode ser substituto do tu deves para livraro amor do desespero. Para quem ama segundo o tu deves no h morte ouseparao que faa cair no desespero. Segundo o autor: Aquele amor que

    passou pela transformao da eternidade, em se tornando dever, no est li-bertado dos infortnios, mas est salvo do desespero; no infortnio e na boafortuna igualmente a salvo do desespero (2005, p. 61). O amor que passoupela transformao da eternidade no elimina a dor e continua se entristecen-do diante das dores e perdas das pessoas amadas, mas no busca refgio emconsolos fceis, pois esses refgios no so seguros e levam ao desespero. Emqualquer situao, preciso preservar o amor e, para isso, s amando segundoa dinmica do tu deves. S o tu deves amar remove tudo o que h de male conserva o saudvel para a eternidade. S o tu deves amar salvfico epurificador. Qualquer outro consolo advindo da sagacidade e da experinciaser falso e, mais cedo ou mais tarde, recai no desespero. No h outra formade sair do desespero seno passando pela transformao do amor que vem daeternidade.

    3. O dever de amar o prximo

    O cerne do amor cristo est no dever de amar o prximo. a grandenovidade do cristianismo e no pode ser encontrado em outro lugar, sobretudo, no pode ser encontrado nos poetas e nos filsofos. H um abismo instranspo-nvel entre o amor cantado pelos poetas e louvado pelos filsofos e o amorrealizado por dever no cristianismo. Esse abismo no est em que o amor cristo oponha carne e esprito no sentido de que o carnal seja o corporal, o fsico. Esse dualismo, diz Kierkegaard, um mal-entendido. Quando o apstolo Pauloope o carnal ao espiritual o faz no horizonte do amor de si em oposio aoamor ao prximo. O carnal sinnimo de egostico. O espiritual sinnimode abnegao. O dualismo corpo e alma um mal-entendido.

    Agora, diz Kierkegaard, o amor de si, egosta, e o amor natural e a ami-zade, so diferentes s aparentemente. No fundo so a mesma coisa, pois oamor natural e a amizade so formas do amor de si. Por que so amor de si?

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    Porque tomam o outro como um outro eu, um outro si. O contraponto a esseamor natural e amizade cantados pelo poetas e louvados pelos filsofos justamente o amor cristo, o amor ao prximo, sem predileo e preferncia,amor abnegado.

    O que acontece no amor de si, que se volta sobre si mesmo, que se fe-cha em si mesmo, tambm acontece no amor natural e na amizade que se do-bram sobre si mesmos pela paixo preferencial e pela amizade de predileo. Omecanismo mais sutil, mas o mesmo. No amor de paixo natural e na ami-zade o outro ou aparece como um outro eu, um outro si, ou como um intruso

    do qual a manifestao do cime exemplar. Sobre isso Kierkegaard provo-cativo: Experimenta: coloca entre o amante e a pessoa amada, como deter-minao intermediria, o prximo, que se deve amar, coloca entre o amigo eseu amigo, como determinao intermediria, o prximo, que se deve amar: etu instantaneamente vers o cime (2005, p. 74). Ora, o verdadeiro outro, oprximo, o primeiro tu , como Kierkegaard gosta de chamar, justamente adeterminao intermediria da abnegao que se introduz entre o eu e o eu doamor de si, ou o eu e o outro eu do amor natural e da amizade. Se essa deter-minao intermediria aparece na forma de cime, ento tanto o amor natural quanto a amizade so formas de egosmo, mesmo que sutil. E isso s o cristia-nismo pode perceber, pois parte de uma outra perspectiva: o dever de amar oprximo.

    Mas isso no tudo e nem o fundamental na caracterizao do amornatural e da amizade como formas de egosmo. Kierkegaard diz que a preferncia e a predileo do amor natural e da amizade requerem que o amado e o amigosejam admirados. A admirao um elemento essencial para que o amor na-tural e a amizade se constituam. No h preferncia e predileo se no hou-ver admirao. Essa a dinmica do amor natural e da amizade. Com o prxi-mo, contudo, isso no acontece, pois, no dizer de Kierkegaard, o prximojamais foi representado como objeto de admirao, o Cristianismo jamais ensi-nou que se deva admirar o prximo devemos am -lo (2005, p. 74). No este, pura e simplesmente, o perigo do amor de si: que tenhamos como objetode amor algum que admiramos? Amar os que nos amam e nos querem bem,no isso o que fazem tambm os pagos? E no exatamente a que o deverde amar o prximo se distingue do paganismo? E mais, ser amado por algumadmirado no se contituir numa relao que, em ltima anlise, cai no egostico ?

    Freud, que no poeta nem filsofo e que nasceu quando Kirkegaard jestava morto e, portanto, no era interlocutor desse, sintetizou de forma para-digmtica a lgica do amor natural e da amizade. Pelo que representa no es-

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    clarecimento do que Kierkegaard chama de amor natural e amizade, em opo-sio ao amor ao prximo, veja -se o que diz Freud, que no poderia ser maisclaro: Um amor que no discrimina me parece privado de uma parte de seuprprio valor, por fazer uma injustia a seu objeto, e, em segundo lugar, nemtodos os homens so dignos de amor (2002, p. 57). Amar a todos ilimitada-mente e indiscriminadamente, segundo Freud, cometer uma injustia com oamado, pois no amor o que interessa a justia. Dizer que seria uma injustiasignifica dizer que o outro tem que merecer o amor que lhe devoto. Nessa l-gica, nem todos merecem ser amados. Supe -se que alguns meream desprezo

    por no serem dignos de ser amados. Certamente, segundo a lgica de Freud,que em ltima anlise a lgica do amor natural e da amizade, o filho maisnovo da parbola do filho prdigo no mereceria mais o afeto do pai e, nessecaso, o filho mais velho estaria certo em repreender o pai por lhe ofertar umbanquete no retorno. E o que dizer de Pedro, que negou trs vezes a Jesus?Certamente no era mais digno do seu amor. Bem se v que outra a lgicaescandalosa do amor cristo, do dever de amar o prximo.

    Em contrapartida ao amor natural e amizade, o amor ao prximo oamor da abnegao que expulsa tanto o amor de si quanto o amor de predileo. No dever de amar o prximo no h lugar para a predileo e a preferncia doobjeto nico. O amor de abnegao tambm tem um s e nico objeto, o pr-ximo. S que esse nico no um nico ser humano, como no amor preferen-cial, pois o prximo so todos os homens. O que cantado e louvado pelopoeta como o mximo do amor natural amar infinitamente uma nica pes-soa ao ponto de querer morrer por ela, ou ter um punhado de amigos bons,admirados e fiis expulso no louvor cristo atravs do dever de amar aoprximo ilimitadamente, inclusive, para escndalo completo, o inimigo. Oamor de abnegao s possvel pelo dever e, por isso, o mandamento ordena:ame o teu prximo como a ti mesmo .

    Mas, quem o prximo de que fala o mandamento? Kierkegaard escla-rece esse ponto em vrios lugares de seu texto As obras do amor , mas particu-larmente num lugar ele definitivo. Diz:

    Quem ento o meu prximo? A palavra manifestamente formada apartir de estar prximo, portanto, o prximo aquele que est maisprximo de ti do que todos os outros, contudo no no sentido de umapredileo; pois amar aquele que no sentido da predileo est maisprximo de mim do que todos os outros amor de si prprio no fa-zem tambm o mesmo os pagos? O prximo est ento mais prximode ti do que todos os outros. Mas ele est tambm mais prximo de ti

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    do que tu mesmo para ti? No, ele no o est, mas ele est justamente,ou deve estar justamente to prximo como tu mesmo. O conceito doprximo propriamente a reduplicao da tua prpria identidade, oprximo o que os pensadores chamariam de o outro, aquele no qual oegostico do amor de si posto prova (2005, p. 36).

    O que os pensadores chamam de o outro , este o prximo. O prximono o outro eu, mas o primeiro tu. Esse primeiro tu , em si, uma multiplici-dade, pois o prximo significa todos os homens. Contudo, diz Kierkegaard, emoutro sentido, basta um nico homem para que tu possas praticar a lei. O

    prximo ameaa assim o amor de si tanto quanto possvel; se h apenas doishomens, o segundo homem o prximo, se h milhes, cada um deles o pr-ximo (2005, p. 37).

    O prximo, o primeiro tu, merecedor de amor incondicional por umanica razo: igual a ti diante de Deus. Por nenhuma outra razo ele deve seramado, nem por sua cultura, pobreza, humildade, etc. A igualdade diante deDeus no tem nada a ver com a igualdade da reciprocidade, correspondncia e admirao requerida no amor natural e no amor de amizade. S pela igualdade diante de Deus teu prximo e essa igualdade incondicional. Diz Kierkegaar d:

    O prximo no a pessoa amada, pela qual tu tens a predileo dapaixo, e nem mesmo teu amigo, por quem tu tens a predileao da pai-xo. O prximo no , de jeito nenhum, se tu s algum culto, a pessoaculta, com quem tu compartilhas a igualdade da cultura pois com oprximo tu compartilhas a igualdade dos homens diante de Deus. Oprximo no , de jeito nenhum, algum que mais distinto do que tu,isto , ele no o prximo na medida em que mais distinto do que tu,pois am-lo por ser ele mais distinto pode bem facilmente ser uma pre-ferncia, e nesse sentido amor de si mesmo. De maneira alguma o pr-ximo algum que mais humilde do que tu, isto , na medida em queele mais humilde do que tu ele no o prximo, pois amar algumporque ele mais pobre do que tu bem pode ser condescendncia dapreferncia, e nesse sentido amor de si mesmo. No, amar ao prximo igualdade (2005, p. 81).

    Esse prximo, o primeiro tu pode parecer ainda indeterminado e abstra-to, mas Kierkegaard no permite que se faa uma leitura abstrata do outro, doprximo. O outro, o prximo, o primeiro tu, o individual concreto, de carnee osso. O outro o individual concreto com todas as suas mazelas, suas virtu-des e seus defeitos. O outro o outro que se v. No como gostaramos quefosse, com as qualidades da beleza, inteligncia e graa que levariam a recair

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    no amor preferencial , mas como ele de fato . O dever de amar, ao mesmotempo que universaliza, pois o dever recai sobre todos os homens, tambmindividualiza e materializa, na medida em que se deve amar o outro que ve-mos, assim mesmo como ele . Kierkegaard afasta -se definitivamente de Pla-to e de Aristteles atravs do critrio do dever amar o outro que se v. Noabre mo do particular concreto, do que se v, como faz Plato em direo aobom e belo, em direo s qualidades ideais que abrem mo do emprico con-creto e nem fica no limite do amor de amizade por prazer, interesse ou virtude,como faz Aristteles. A novidade do amor cristo sem precedentes. Nisso

    fica demarcada definitivamente a diferena entre o eros platnico e a philia aristotlica em relao ao gape cristo. Sem falar da diferena substancialcom o amor cantado pelos poetas pelas razes j vistas.

    Uma palavra sobre o amor a uma pessoa falecida. Para Kierkegaard, oamor a uma pessoa falecida o que h de mais desinteressado e, como tal,afigura-se como um paradigma para compreender o amor cristo. Kierkegaarddedica um captulo inteiro ao tema no seu texto As obras do amor. O ttulo docaptulo A obra do amor que consiste em recordar uma pessoa falecida. A tese simples e por demais clara. Se o amor verdadeiro, o amor cristo, um amordesinteressado, um amor de abnegao, ento o amor que consiste em recor-dar uma pessoa falecida , entre as obras desse amor, a mais desinteressada. Seo amor a uma pessoa falecida permanece fiel, a encontramos o modelo doamor desprendido, pois no h por parte do falecido nenhuma possibilidadede retribuio.

    A retribuio no amor manifesta -se em vrios sentidos: atravs de umganho ou vantagem; do amor correspondido; da gratido; da devoo, etc.Aquele, porm, que est morto no retribui em sentido algum. H no amor auma pessoa falecida um paralelo com o amor dos pais com os filhos. Os paisamam os filhos antes mesmo de virem existncia e bem antes de serem cons-cientes de si, isto , quando ainda so no -entes. Ora, o amor a um falecido um amor a um no-ente, a um ningum, como diz Kierkegaard. Contu-do esse paralelo no absoluto. Os pais amam um filho que ainda no veio existncia ou ainda no consciente de si porque depositam nele uma recon-fortante expectativa de que um dia possa lhes retribuir todo o amor a ele de-votado. Segundo Kierkegaard, no inconsciente dos pais ressoa uma esperana:Nossa criancinha tem pela frente bastante tempo, longos anos; mas duranteesse tempo todo, ela nos proporciona tambm alegrias, e sobretudo, temos aesperana de que ela um dia recompensar nosso amor e, se no fizer nadamais, alm disso, pelo menos tornar feliz nossa velhice (2005, p. 391).

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    O morto, ao contrrio, no traz nenhuma retribuio. Diferentementede uma criana, no h por que esperar pelo crescimento futuro de uma pes-soa falecida, pois o seu futuro cada vez mais um distanciamento e um nada.Uma pessoa falecida no alegra quem a recorda como a criana alegra a mequando esta lhe pergunta quem ela mais ama e a criana responde:a mame .O morto no retribui. O morto indiferente. O morto um ningum , um no -ente , dele no se pode esperar nada e, portanto, recordar dele o amar maisdesinteressado possvel. Em qualquer relao entre vivos sempre pode haveralgum tipo de esperana, expectativa de um para com o outro, mas em relao

    a um falecido, essa expectativa nula. Por isso, Kierkegaard diz que a obra deamor que consiste em recordar uma pessoa falecida uma obra do amor maislivre que h (2005, p. 392). O falecido no impe qualquer tipo de coao. Acriana grita, o pobre mendiga, a viva importuna, a misria violenta, etc.Mas o falecido no tem armas, no tem meios, no tem foras, no tem coa-o. O falecido no se introduz na recordao como a criana no seu grito enem constrange e reclama uma ao como a misria visvel. Se mesmo assim ofalecido amado e recordado, essa ser a prova do amor mais livre possvel.Oamor a uma pessoa falecida o amor mais livre e desinteressado possvel.

    Por fim, o amor a uma pessoa falecida s verdadeiramente amor se forfiel eternamente. A fidelidade no se expressa no choro enquanto o corpo do ca-dver ainda estiver aquecido. Isso pode ser cena de despedida. O amor verdadeiropara com um falecido s pode ser avaliado se no alterar a intensidade do amante,pois o amado no mais se alterar e no envelhecer. Conclui Kierkegaard, Aobra de amor que consiste em recordar um falecido , pois, uma obra do amordesinteressado, mais livre e mais fiel. Vai ento e exerce-a; recorda o falecidoe aprende justamente assim a amar as pessoas vivas de modo desinteressado,livre, fiel (2005, p. 399).

    4. Para uma tica da alteridade

    Kierkegaard ficou estigmatizado como um filsofo ensimesmado, ummelanclico incapaz de sair de si e autor de uma filosofia marcadamente inti-mista, beirando o individualismo e o solipsismo. No percorremos o todo dafilosofia de Kierkegaard e de seus intrpretes para demonstrar ou desconstruiressa concepo. Apenas indicamos um caminho possvel de leitura de As Obrasdo amor que aponta para uma tica positiva que aqui chamamos de tica daalteridade. tica da alteridade? Sim, tica da alteridade. Bem antes de Levinas, encontramos em Kierkegaard a formulao explcita de uma tica da alterida-

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