José Wilson de Andrade

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Vai graxa ai doutor? Há quanto tempo você não ouve essa pergunta? E tem gente que nem imagina que essa pergunta fosse tão popular alguns anos atrás. Eram os engraxates oferecendo seus serviços, nas ruas, nas praças, nas estações de trem ou até aeroportos mais famosos do mundo. Os tempos passaram, as modas mudaram.

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Vai graxa

ai graxa

ai graxa

doutor?

Há quanto tempo você não ouve essa pergunta? E tem gente que nem imagina que essa pergunta fosse tão popular alguns anos atrás. Eram os

engraxates oferecendo seus serviços, nas ruas, nas praças, nas estações de trem ou até aeroportos mais famosos do mundo. Os tempos passaram, as modas mudaram.

José Wilson de Andrade, 62 anos nem usa a frase para oferecer seus serviços, mas ele é um dos per-sonagens mais antigos da Praça do Mercado de Ati-baia exercendo sua habilidade maior que é engra-xar sapatos. Ele vem fazendo isso na mesma praça desde 1980. “Mas só fui cadastrado na Prefeitura em 1989”, diz, mostrando o documento legal que o au-toriza a trabalhar como autônomo. Deixa claro que foi obrigado a tirar o documento “para ninguém me encher o saco”, desabafa.

Fora José Wilson Atibaia tem mais dois engraxa-tes de ofício e na ativa. Um deles trabalha na esta-ção rodoviária, o outro José não lembra onde fica. Confessa que está na praça há 34 anos para manter dialogo com o povo que passa por lá. “Gosto de ouvir e falar. Saber das coisas boas e ruins, passar adiante, dar conforto para as pessoas”, filosofa.

“O que mais vê aqui na praça?”, pergunta o repór-ter. “Sem comentários”, responde. “Aqui se vê de tudo. O que mais choca é essa turma de pedintes querendo dinheiro para gastar em drogas ou na pin-gaiada.”

José escolheu ser engraxate para ganhar seu sus-tento depois de ter sofrido um acidente quando per-deu parte de uma perna. “Fui atropelado na rodo-

via Edgard Máximo Zamboto. Quem foi o culpado? Geralmente quem “faz o serviço” sempre diz que o culpado foi o outro. Já reparou que nunca ninguém é culpado por nada?” Cuidava de um sítio lá em Ja-rinu, plantava e colhia para vender na feira. “Um dia fui comprar carne seca para o jantar e não voltei. Fiquei três meses e dezoito dias na UTI e mais dois meses numa cama de hospital. Sai andando de mu-leta.

“Me mandaram embora dizendo não poderiam fazer mais nada por mim. Voltei a ser examinado e acabei no Hospital das Clínicas. Fiquei mais quatro anos internado. O acidente me danou todo, não foi só a perna, foi muita coisa dentro de mim. Não vi nem meu filho mais novo nascer.”

Nascido na cidade de Pacaembu, na chamada “Alta Paulista”, é casado com Vera Lúcia Marques Viana Andrade e teve dois filhos, André e Anderson. Hoje vive com sua mãe Josefina Santos de Andrade. Tem cinco irmãos. Seu pai, José Antônio de Andrade Fi-lho já faleceu.

“Fiquei sem ganhar um tostão e sem um pedaço da perna esquerda. Só depois de muito tempo consegui uma prótese.” Trabalhou um bom tempo no Mer-cado Municipal limpando os sanitários. “Não me dei bem.” Nessa época conheceu Andrezinho, uma lenda de Atibaia. “Fiz de tudo por ele, até consegui documentação para que ele se aposentasse. Depois levei o Andrezinho para família dele. Ele vem aqui todos os dias só para me dar bom dia”, orgulha-se. “Sou uma espécie de padrinho dele.”

Católico, crê em Deus. “Se não fosse por Ele não estaríamos aqui.” José tem o que se pode chamar de uma aparência tranquila, bonita. Seu olhar de tris-teza e seu jeito de ser costumam comover as pesso-

as. “Não consigo dizer não pra ninguém.” Já ajudou muita gente além do Andrezinho...

Engraxar sapatos já foi um bom negócio. “Não fi-quei rico, mas nunca passei fome.” Bem vestido, usa camisas e calças bonitas e de bom gosto. Belos sapa-tos, sempre bem engraxados, claro... Aposentado, se complicou nessas coisas de empréstimo consigna-do. “Recebo quase nada.” Mas não se queixa. “Tive que ajudar alguém...” Gasta um dinheirão em remé-dios. “Remédio gratuito? Eles sempre dizem que não tem. Eu compro. Custa caro, mas eu pago e não fico devendo favor. Remédio gratuito é uma grande mentira. Não vou pedir para quem tem obrigação de servir e não serve...” Vive com sua mãe. “Ela me dá um quarto para ficar.”

Concorda com o repórter dizendo que o tênis atrapalhou muito a sua vida. “Começou com o tal de Kichute, um tipo de tênis usado para praticar espor-tes. O tênis veio depois. O sapato meio que caiu de moda.” José chegou a engraxar 60 pares de sapatos por dia. Cada par de sapatos engraxado custa 5 reais que seria, mais ou menos o valor que um engraxate cobrava tempos atrás. “Até que estava bom.” Hoje, ficando na praça das 9 às duas da tarde José engraxa, em média, 5 pares de sapatos. “Tem dias que mon-to meus apetrechos e saio sem ganhar nada.” José ainda tem que gastar “algum” para guardar cadeira e seus apetrechos ali pela praça. “Bem que a Prefei-tura poderia deixar a gente construir “uma casinha” ou qualquer coisa parecida com uma pequena banca só para engraxar sapatos. Isso existe nas grandes ci-dades, nos aeroportos, em importantes estações de trem da Europa”, conta. “Ficaria bem bonito...”

“Contemplador do mundo”, fica de olho no que acontece na praça. “Sou o repórter que não escreve.

Vejo, mas é bom nem contar. Ás vezes são coisas im-publicáveis. Aqui se vê de tudo, gente que bebe, dro-gas, sexo e rock´n roll”, brinca. Mas, não, não, não. Não foi José quem disse isso, foi o repórter... José diz que não conta nada... Vê, ouve, sorri, às vezes até chora, mas não é bobo de contar...

“A pior coisa que já vi por aqui foi a morte. Tinha acabado de engraxar os sapatos de um rapaz e ele foi abordado por um desses safados que rodam por aí. O safado pediu dois reais e o rapaz disse que não dava. Por causa desses dois reais acabou sendo mor-to pelo safado. Eles se puseram a discutir, foi, foi, foi até subirem no coreto. Quando vi os dois estavam se pegando a tapa, briga feia. O safado acabou jogando o rapaz do coreto lá pra baixo. Quebrou o pescoço na queda. Foi horrível. O rapaz morreu ali, na minha frente. Me abalei. Fiquei muito tempo sem vir pra praça.”

José é respeitado por todos, inclusive pelos “ha-bitantes” do lugar. “Sou obrigado a conviver com eles...” O melhor mesmo é não falar nada. “A cidade e os costumes mudaram muito. Você nem imagina o que se vê por aí...” Acompanha os filhos de longe. Sabe que estudaram e que estão formados. “Vez ou outra o mais velho, o André liga pra mim.”

Cara triste. Falar dos filhos dói. “Já tive vários mo-mentos alegres na gangorra da vida. Se passei pelo que passei foi porque tinha que passar. Desisti de pensar nos porquês. Deixo a vida me levar, igual a música.” Gosta de ficar ouvindo músicas da barraca que vende cds de cunho religioso.

Tem fregueses que estão com ele desde o começo. “Dia desses veio um deles bem no dia em que nossa amizade completava 31 anos. Eu gravo essas coisas. Engraxei os sapatos e quando ele quis pagar eu dis-

se: hoje o senhor não paga nada, é o nosso aniversá-rio... Ele me abraçou, me deu um beijo e pediu que Deus nos ajudasse. Quer coisa melhor que isso? Tem um outro cliente que também está comigo há vinte e sete anos. Recentemente fiquei meio mal de saú-de e foram três meses sem poder vir trabalhar. Pois esse cliente ficou todo esse tempo sem engraxar os sapatos, amontoou tudo na casa dele. Um dia ele me ligou e perguntou: “Zé, você já está na praça?”, eu respondi que ainda estava em casa me recuperando. E ele disse: “Então vou levar meus sapatos na sua casa...”. Eu disse: “Não, não venha, pode ir na praça porque amanhã vou estar lá”. Quando cheguei, no dia seguinte, tinha um monte de sapatos empilha-dos no meu cantinho da praça... “Guardei tudo para você engraxar. Só você põe a mão em sapato meu”, disse... José não quis falar o nome do seu cliente, “ele sabe de quem eu estou falando...”.

Quem pensa que engraxar um sapato é a coisa mais fácil do mundo, está totalmente equivocado. “Exige muita técnica. Aprendi com um senhor cha-mado Joaquim, lá em São Paulo. Eu mal conseguia andar de muletas e descobri seo Joaquim engraxan-do na Estação da Luz. Ia sempre lá conversar com ele. E ele perguntou: “Quer aprender a engraxar?” eu disse que sim. Fiquei três meses na casa dele. En-sinou tudo e deixou que eu passasse uma semana trabalhando no lugar dele numa das seis cadeiras com seis banquetas existentes lá na Estação. Um dia chegou uma pessoa que era cliente dele e que mora-va em Atibaia. Ele disse pro cliente que eu também era de Atibaia. E o cliente me trouxe de volta para a cidade, não foi legal?”

Paz, amizades, é tudo o que ele mais quer da vida. “E a minha praça. Quando eu não venho pra cá meu

telefone não para de tocar. “quiéque houve? Você não vem trabalhar?” – perguntam. Sou o cara mais antigo da praça.” Quando cheguei o lugar era bem diferente. “Não tinha a Casas Bahia. Nem a Caixa, o Banco do Brasil, e o Santander, que era Banespa. Tinha música no coreto, era muito gostoso. Já tinha a Pernambucanas e a loja do seo Inácio, que são as mais velhas da praça. Lembro da loja do sr. Minoro, gostava muito dele. Onde está a Casas Bahia era a antiga e famosa Casa Garça. Vendia cereais.”

Personagem marcante da cidade José conhece muita gente e até vários prefeitos. “O único que sem-pre vinha e continua é o Maturana, o resto nem lem-bra da gente.” Cheio das verdades revela: “O Saulo só está lá porque ouviu o que eu disse pra ele quando ele perguntou: “o que é que que eu faço para virar esse jogo e ganhar a eleição?” Eu respondi: vai pra rua. Põe um carro de som aí na rua e fale pro povo o que você vai fazer. Mas, seja sincero e só fale a ver-dade... Três semanas depois de ter feito as carreatas ganhou a eleição como eu disse que ganharia...”

O repórter perguntou se o Saulo já agradeceu. “Nada. Mas eu também não ligo pra isso. Não que-ro agradecimento, quero é que esses caras ajudem quem precisa. Um dia desses fui lá pedir ajuda para comprar uma prótese nova e disseram que a Prefei-tura não tem verba... Nunca vi uma prefeitura não ter verba para ajudar um deficiente... Não, não fui procurar o Saulo. E acho que nem me deixariam entrar... Sei que um dia ele vai voltar, é só a eleição chegar...” José sorri um riso enigmático. Melhor o prefeito evitar de passar pela praça quando as elei-ções chegarem. Tanto quanto o povo José não gosta de quem se esquece dele... ■