Jorge Palinhos Manter ao alcance e à vista das crianças e ... · esboços, um lápis, uma...
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Fevereiro de 2016
Manter ao alcance e à vista das crianças e adultos
A barba salpicada de branco ondulou pela sala
até ao seu dono se deter, abrir o banquinho
desdobrável e sentar-se. Depois de cofiar a
barba para ver se estava inteira, o dono fez
deslizar a mochila das costas pelos braços
abaixo e abriu-a para tirar um caderno de
esboços, um lápis, uma borracha. Empunhou o
lápis, levantou a face para o quadro e o corpo
foi-lhe sacudido por um espasmo de ansieda-
de. Mas o rosto era duro, fechado, de conquis-
tador.
A sala era branca, o chão cinza, mas a rapari-
ga de cabelos em cascata olhava o telemóvel.
Ergueu-o à posição vertical e ligou a câmara
de filmar. Com cuidado, apontou-o ao quadro,
à legenda, às paredes brancas, ao chão cinza,
às esquinas angulosas, a nós que ondulávamos
sobre os próprios pés, e depois virou costas.
De sorriso nos lábios, a ver os fantasmas no
ecrã.
A boca aberta é um poço viscoso onde me vou
enterrando lentamente. Já se me foram os pés,
tornozelos, joelhos e ancas. Sexo e nádegas
sorvidos num estalo da boca húmida. As
minhas mãos já acariciam aqueles lábios. Não
lhes tenho nojo. Não os desejo. Encosto-me à
parede mais longe do quadro, junto à esquina
mais escondida. Fecho os olhos. O quadro
desce-me à garganta.
A criança a correr faz uma elipse à sala em
passos curtos e rápidos, até que a cabeça se
dobra para o quadro e ela abranda. Dá mais
dois passos lentos, de olhos presos ao quadro,
para. Estica muito o pescoço para conseguir
ver o topo do quadro. Depois baixa a cabeça.
Pestaneja duas ou três vezes. Em seguida vira-se
e corre para outra sala, tão rápida como à
chegada.
Muitos anos depois, na margem de um papel
branco, ouvindo um professor chato, rabisca
cabeças em voo.
Está visto, pensou o homem de fato e gravata
a afastar-se. E depois, na dúvida, voltou atrás
para ler a legenda; voltou de novo para repa-
rar no pormenor do avião de que falava a
legenda; voltou ainda por não ter visto bem o
que havia debaixo do avião; tornou atrás por-
que o quadro estava a começar a tornar-se
côncavo aos seus olhos; a ser uma série de
quadros em fila, a baloiçarem à cadência dos
seus passos que avançavam e recuavam,
avançavam e recuavam, até o homem largar
numa corrida, com a cabeça entre as mãos e
os aviões a voar à sua volta num matraquear
de ossos.
O homem de casaco preto coçado avançou a
passo de guerra até junto da legenda. Leu-a. Olhou o quadro. Depois os olhos voltaram à
legenda. E em seguida ao quadro.
Abanou a cabeça com o escândalo de quem vê
o desconcerto do mundo e rosnou entre dentes:
O quadro está enganado.
A mulher de meia idade agitava a língua para o
quadro, como se lhe lambesse as cores. Metódi-
ca, começou pelo canto superior esquerdo e
seguiu em linha reta, qual serpente, para o lado direito do quadro, e depois baixo, e depois
esquerdo, depois direito.
Terminou a roçar a língua tenra pelos dentes
brancos e a vincar os lábios de gula.
Este folheto contém informação importante para si. Leia-o atentamente.
Jorge Palinhos nasceu em Leiria em 1977.
Escreve teatro, tendo
várias peças publica-
das, encenadas e pre-miadas em Portugal,
Espanha, França, Bél-
gica, Holanda. Alemanha e Brasil. É também autor de contos publicados em
antologias de ficção e revistas. É ainda
autor de guiões de curtas-metragens e docente do Ensino Superior, onde traba-
lha nas áreas da escrita e dramaturgia.
A ideia para estes textos foi-lhe genero-
samente inspirada por Cátia Terrinca e
Susana Sousa.
A rapariga de olhos em forma de amêndoa
afastou-se do namorado distraído para chegar à beira do quadro. Levantou a cabeça devagar
como se estivesse a ser filmada e cerrou os
dentes de medo, vendo as figuras tombarem do
quadro sobre si, sufocarem-na, calcarem-lhe
cada músculo até à cinza. Pé depois de pé,
recuou até junto do namorado, que continuava
distraído.
Estava imóvel, quase colado ao quadro. Era um
rapaz magro e dobrado, de melena demasiado grande e rosto demasiado pequeno. Abriu os
olhos, o nariz. Sentia o cheiro das tintas, a abó-
bada de cores. Fechou os olhos, abriu a boca.
Tanta vida lembrava-lhe um túmulo.
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