IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS - uel.br Pagano Peres Mol… · Es la primera escuela pública...
Transcript of IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS - uel.br Pagano Peres Mol… · Es la primera escuela pública...
1
IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA
08 a 10 de junho de 2016
GT8 Gênero, Educação e Escola
A experiência educacional do Bachillerato Popular Trans Mocha Celis na
visibilidade das travestis e transexuais em Buenos Aires/Argentina
Luana Pagano Peres Molina (Universidade Federal de São Carlos/ Universidad de Buenos Aires. Doutoranda no Programa
de Educação, Mestre em História Social, Especialista em Psicologia Aplicada à Educação e
Graduada em História)
2
IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS GT8 Gênero, Educação e Escola
A experiência educacional do Bachillerato Popular Trans Mocha Celis na visibilidade
das travestis e transexuais em Buenos Aires/Argentina
Luana Pagano Peres Molina1
Resumo: Esta pesquisa faz parte da tese em desenvolvimento pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos, em que se objetiva analisar e
refletir o processo de formação do Bachillerato Popular Mocha Celis, no ano de 2012, na
cidade de Buenos Aires/Argentina através da aplicação metodológica da etnografia. A
pesquisa parte de uma perspectiva pós-estruturalista e queer, e entende este espaço
educacional como uma iniciativa de proporcionar às travestis e transexuais a inclusão social
através do retorno ao sistema educacional no ciclo do ensino médio. Apresentam-se como
resultados alguns dos projetos pedagógicos pensados a partir da concepção de cidadania,
políticas públicas e da educação sexual às/aos estudantes com ênfase nas medidas
humanitárias e proativas no endossamento das práticas aos Direitos Humanos e a diversidade
sexual na Argentina.
Palavras-chaves: Diversidade Sexual; Educação Popular; Transgeneridade.
1 Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) / Universidad de Buenos Aires (UBA); Doutoranda no programa
de Educação, Mestre em História Social, Especialista em Psicologia Aplicada à Educação, Graduada em
História; [email protected].
3
Introdução
Es la primera escuela pública laica, gratuita y con perspectiva
de género del mundo. La idea es acceder a derechos, como la
educación, el trabajo, la salud, la vivienda, desde una mirada
integral para que todas las personas puedan finalizar sus
estudios.
Francisco Quiñones2
O Bachillerato Popular Trans Mocha Celis foi criado no ano de 2011 pelos
fundadores Francisco Quiñones e Agustín Fuchs e iniciou seu funcionamento/ano letivo
em 2012 com 15 estudantes. Esta iniciativa educacional refletiu o período de ascensão dos
direitos conquistados pela comunidade LGBTTTI – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,
Transexuais, Transgêneros e Intersexuais – a partir do início do século XXI nos governos
dos Kirchner.3
Os movimentos sociais argentinos passaram a organizar-se fortemente e se
reestruturam, a partir de meados dos anos de 1980 pós a ultima ditadura militar (1976-
1983), através de um discurso voltado aos direitos humanos e de reconhecimento as
necessidades das minorias sociais do país. O movimento feminista uniu-se aos movimentos
de direitos humanos e de diversidade sexual para alcançarem possíveis avanços sociais e
direitos que garantissem seu exercício de cidadania e liberdade. A teórica Dora Barrancos
define muito bem o contexto argentino nos ano de 1980, como:
[...] se cuenta la notable renovación y difusión de los estudios
feministas, los cambios epistemológicos, las transformaciones
de la historia social, el empinamiento internacional de la
historiografía de género, a lo que se unen los cambios de la vida
política y social argentina con el retorno a la democracia.
(BARRANCOS, 2004:49)4
A mobilização política se concentrou especialmente na cidade de Buenos Aires,
mas aos poucos foi atingindo outras regiões do país. Neste contexto de mudanças sociais e
2 Fundador e Diretor do Bachillerato Popular Trans Mocha Celis em Buenos Aires/Argentina e ativista do
movimento LGBTTIQ. 3 Estamos nos referindo ao governo de Nestor Kirchner e posteriormente a Cristina Kirchner, ambos presidentes
da Argentina nos anos de 2003 até 2015. 4 Tradução Livre: [...] se aponta a renovação e difusão dos estudos feministas, as mudanças epistemológicas, as
transformações da história social, a ascensão internacional da historiografia de gênero, ao que se unem as
mudanças da vida política e social argentina com o retorno da democracia.
4
políticas, vale ressaltar que foi também na década de 1980 que ocorreu o “boom” da
epidemia da HIV/AIDS, o que elevou as novas discussões a respeito das orientações
sexuais, com a necessidade de se falar sobre as formas de prevenções nas práticas sexuais e
que exigiu do governo reconhecimento das novas formações afetivas e criação de
campanhas de conscientização para o uso de preservativos, como a camisinha. Desta
maneira, se fizeram visíveis às situações de vulnerabilidade, injustiça e desigualdade frente
à população LGBTTTI daquele período.
Ainda na década de 1980 surgiu a Comunidad Homosexual Argentina (CHA), um
das organizações sociais LGBTTTI cujo foco foi de reivindicar ações na área do direito à
livre escolha sexual, assimilando conjuntamente os discursos dos direitos humanos e ações
participativas, como: grandes passeatas, manifestos e mobilizações públicas em defesa da
democracia e reivindicações aos direitos das/os homossexuais (PECHENY, JONES, 2008).
Um exemplo dessa articulação ocorre em 1992 quando é organizado por Carlos Luis
Jáuregui, a primeira Marcha do Orgulho Gay, com a presença de aproximadamente 250
pessoas participantes e cujo tema central foi a Libertad, Igualdad, Diversidad. Os/as
organizadores da Marcha se posicionaram, neste momento, como interlocutores/as entre o
Estado, os meios de comunicação e a sociedade em geral para fazerem visíveis as
demandas da diversidade sexual e entrarem nas agendas públicas.
Essas chamadas “Políticas de Visibilidades” ocorreram no decorrer da década de
1980 e 1990 quando organizações sociais começaram a denunciar a falta de representações
positivas e de impactos sobre as condições das existências de gays, lésbicas, travestis e
transexuais. Percebe-se então que é necessária a criação de uma série de estratégias que se
articulem e que causem ganhos sociais. Manifestando-se publicamente, o movimento
LGBTTTI desafia a fronteira do público-privado acerca da sexualidade humana e
denunciam o discurso heterossexista dos grupos sociais privilegiados a partir de uma
linguagem de direitos humanos e de inclusão (MORENO, 2008).
A tarefa de promover uma valorização positiva da diversidade sexual e os avanços
de uma legislação igualitária foi elevando cada vez mais ao longo dos anos e aumentando
os números dos participantes da Marcha do Orgulho Gay. No início, o número de pessoas
trans, por exemplo, foi mínima e com poucas participações no evento, a cada ano a Marcha
passou a comportar uma grande multiplicidade de manifestantes com espaços para todas as
demandas do coletivo LGBTTTI, incluindo a presença de pessoas cada vez mais jovens.
(BARRANCOS, 2014)
5
A partir de uma maior abertura da sociedade e dos avanços sociais referentes à
comunidade LGBTTTI apresentou-se uma proliferação de outros grupos e organizações
em todo país, como por exemplo, Grupo de Lesbianas feministas Las Lunas y las otras
(1990); Grupo Autogestivo de Lesbianas (GAL); Transexuales por el Derecho a la Vida y
la Identidad – Transdevia (1991); Grupo de Investigación em Sexualidad e Interracción
Social – ISIS (1992); Colectivo Eros (1993); Travestis Unidas (1993); Asociación de
Travestis, Transexuales y Transgéneros de Argentina – ATTTA (1996); Federación
Argentina de Lésbianas, Gays, Bisexuales y Trans – FLGBT (2005).
Diante de todo este contexto da década de 1990, dos direitos humanos à
visibilidade, possibilitou-se o surgimento e fortalecimento do coletivo para pessoas
travestis e transexuais. Desde o início deste período, na capital Buenos Aires, surgiu um
agrupamento para a busca de direitos das travestis e denúncia de violência, estas que já
vinham para capital em fuga de áreas muito conservadoras e interioranas com forte
influência da Igreja Católica (BERKINS y FERNÁNDEZ, 2005).
A organização das travestis e transexuais começou a manifestar-se e suas principais
denúncias e argumentações voltou-se para a visibilidade das suas condições, dificuldade ao
acesso à saúde e pelo fim dos Edictos Policiales. Para Barrancos (2014:24) podemos
esclarecer os Edictos como [...] normas inconstitucionales, elaboradas por los propios
cuerpos de policía [...] daban capacidad a las fuerzas policiales para actuar en materiales
tales como la prostitución y [...] contra la franca perturbación de las buenas costumbres5.
De forma que, por exemplo, para as travestis, o ato de homens estarem usando roupas e
acessórios considerados femininos já era motivo de voz de prisão.
Ainda a respeito dos Edictos Policiales pode ser entendido como prisões
compulsórias (de 6 a 21 dias) com multas de ate 2100 pesos para quem saísse na rua com
roupas do sexo contrário. Acredita-se que no fim dos anos de 1980 e inicio dos anos de
1990 cada travesti já teria entre três ou quatro detenções mensais. Além da prisão havia
ainda as humilhações, agressões, os roubos, as propinas e violações. (BAZAN, 2010:458).
Para o acolhimento das trans na cidade de Buenos Aires, que vinham de diversas
regiões do país e pela necessidade de acabar com a ditadura policial contra este grupo,
surge o ativismo da Asociación de Lucha por la Identidad Travesti y Transexual (ALITT),
sendo uma das suas fundadoras, a pesquisadora e militante Lohana Berkins. Ao longo da
5 Tradução Livre: [...] normas inconstitucionais, elaboradas pelo próprio corpo de polícia [...] que davam
capacidade as forças policiais para atuar em materiais como a prostituição e [...] contra a franca perturbação dos
bons costumes.
6
década de 1990 as travestis e transexuais trouxeram ao espaço social e ao cenário público a
reivindicação por uma identidade e as denúncias a respeito do que esta comunidade vem
enfrentando a exclusão, a falta de reconhecimento social, a repressão social e a falta do
convívio familiar.
Apoiados em novos discursos, como a teoria queer, e com a força política crescente
dos movimentos sociais, a partir do início do século XXI a Argentina conquistou grandes
direitos para a população LGBTTTI, tornando-se referência internacional pela legalidade e
reconhecimento da diversidade sexual: A Lei da União Civil (2003), A Lei da Educação
Sexual Integral (2006), o Casamento Igualitário (2010), a Lei de Identidade de Gênero
(2012).
O avanço legislativo é notável, mas e os questionamentos referentes à reinserção
educacional da comunidade travesti e transexual? A transfobia no ambiente escolar foi e é
um dos principais motivos que levaram as pessoas trans a deixarem a escola, o que gerou e
gera dificuldades ao acesso profissional, reforçando a marginalização e cujos direitos são
negados, como seu próprio exercício a cidadania. Como então se adaptar a um espaço que
sempre se mostrou heteronormativo e excludente?
É neste contexto que o Bachillerato Popular Trans Mocha Celis foi fundado, um
centro educativo, no bairro Chacaritas em Buenos Aires, e o primeiro no mundo a ser
fundado na perspectiva dos estudos de gênero e sexualidade. Além de produzir mudanças
significativas na forma que a comunidade trans está inserindo-se na sociedade, observamos
possibilidades de acesso à educação e ao mercado de trabalho.
Metodologia
Foi delimitada como metodologia a visão etnográfica. A Etnografia tem como
característica analisar e objetivar o comportamento social do sujeito inserido em seu
cenário cotidiano, a partir da obtenção de dados qualitativos por meio de uma série de
observações.
O teórico Lapassade (2001:72) pontua que a observação participante inicia-se com
a chegada do/da pesquisador/a ao campo da investigação e as negociações que lhe
permitirão ter acesso ao espaço investigativo, no desdobramento da pesquisa, até por fim, o
termino do estudo. A esse respeito, nesta pesquisa, a observação participante aplicou-se
desde o primeiro contato por e-mail, a minha chegada à cidade e os contatos iniciais, o
início da participação no Mocha Celis, o reconhecimento do espaço nas primeiras visitas, e
7
de todo processo de que aos poucos me tornou uma “nativa” e que possibilitou- me
construir uma rede de relações naquele ambiente.
Estes aspectos apresentados possibilitam uma analise detalhada e aprofundada na
compreensão do significado das praticas e ações sociais. Ainda nessa perspectiva
metodológica da pesquisa, para Pereira e Lima (2010:4), a etnografia torna-se um plano
aberto e flexível, conforme o cotidiano é observado e descrito. Caracteriza-se pela
observação densa, criteriosa, detalhada, sobre o entorno sociocultural no qual os/as
participantes da pesquisa estão inseridos/as e destaca-se por formarem dois pilares
metodológicos: a interação prolongada entre o/a pesquisador/a e o/a participante da
pesquisa e a interação forjada no cotidiano do universo do/da participante.
O desenvolvimento da experiência no Mocha Celis, enquanto observadora, iniciou-
se em Junho de 2015 até Abril de 2016. A coleta de dados desdobrou-se através das
observações no ambiente escolar, com alguns encontros na disciplina Género e Educación
e apoiadas na confecção de um diário de campo.
Desenvolvimento
Para melhor compreensão do funcionamento deste sistema educacional, busco
apresentar uma breve conceituação do que são os Bachilleratos. A partir da grave crise
econômica vivenciada na Argentina no fim dos anos de 1990 e o início dos anos 2000
resultante da implosão do sistema neoliberal que prevaleceu no governo de Menem, as
classes populares passaram a pensar um tipo de educação autônoma, presentes nos
sindicatos e nas comunidades periféricas, para as minorias sociais e de caráter comunitário
(ARIEL, TERZIBACHIAN, 2012:519).
As autoras Ariel e Terzibachian (2012:529) definem os Bachilleratos como escolas
autogestionadas e populares. De forma que fazem parte de uma educação formal, mas que
ainda reivindicam sua autonomia frente ao Estado e obrigam que este reconheça as
diferentes realidades sociais em que estas escolas estão inseridas. Portanto, acredita-se que
o principal objetivo destes locais de ensino seja a educação popular e o empoderamento
das classes populares.
Os Bachilleratos Populares ressurgem das forças das assembleias de bairros, por
parte dos movimentos sociais e das estratégias para abrirem espaços que resolvam os
problemas educativos apresentados. Pensa-se em uma educação inclusiva, participativa e
8
que se ajuste as necessidades do grupo que se apresenta, perdendo, principalmente, as
características das estruturas rígidas e hierárquicas das escolas tradicionais.
Estas experiencias se proponen incidir en la reconstrucción del
espacio público después de años de desmantelamiento de las
prestaciones sociales del Estado. Expresan además los debates más
amplios en torno a la definición de la escuela pública, su matriz
liberal y la exclusión sufrida por los sectores populares. (GLUZ,
2010:56)6
Uma das principais características dos Bachilleratos é ser uma organização
institucional horizontal, ou seja, as decisões de seu funcionamento, projetos e conteúdos são
tomados pelas/os docentes e estudantes, em assembleias, e não de maneira hierárquica e
vertical como em escolas tradicionais. Afinal, não se trata de um/uma ter mais conhecimento
que o/a outro/a, mas sim, terem saberes diferentes e tratarem de compartilharem estes saberes
para a possibilidade da construção do aprendizado (GLUZ, 2010).
As próprias assembleias fazem parte do processo educativo, onde se debate e discutem
os temas em grupo, exercendo a democracia, refletindo e adotando posturas sobre as
diferentes questões. Como consequência desta prática, surgem novas relações sociais dentro
do âmbito escolar e sua cotidianidade. As/os docentes, em sua maioria, são militantes e
universitários/as em processo de formação, portanto, ainda há o desafio de construir um novo
rol de profissionais preparados para trabalharem novos currículos, com uma visão de
desenvolverem práticas para uma educação popular. (PAEZ, PUTERO, 2012)
Quanto aos conteúdos trabalhados, estes são divididos por áreas que estão a cargo de
parceiras/os pedagógicas/os, que são formados por dois ou mais docentes, no intuito de
realizarem os programas, planificações e sistematização para refletirem sobre o que se
realizou e o que se pretende realizar. Os projetos educacionais variam de acordo com as
necessidades das/os estudantes.
Deste contexto político e social na Argentina, juntamente com esta nova prática
educacional que se popularizou pelo país, teremos o surgimento de um Bachillerato trans. O
objetivo foi de criar um espaço educativo, público e gratuito, voltado às pessoas travestis,
transexuais, transgêneros, da Capital Federal e dos arredores, de maneira a garantir o acesso a
uma educação livre de discriminação pela orientação sexual e/ou identidade de gênero.
6 Tradução Livre: Estas experiências se propõem incidir na reconstrução do espaço público depois de anos de
desmantelamento das prestações sociais do Estado. Expressam também os debates mais amplos em torno à
definição da escola pública, sua matriz liberal e a exclusão sofrida por setores populares.
9
O estudo do livro La gesta del nombre propio de Josefina Fernandez e Lohana Berkins
(2005) que inspirou a formação do Bachillerato Mocha Celis apresenta um informe sobre a
situação da comunidade travesti na Argentina em que aponta a média de vida das pessoas
trans em 35 anos e analisa as principais causas de morte, em primeiro lugar, a violência
policial, logo em seguida, as doenças sexualmente transmissíveis e intervenções cirúrgicas
como produto da inacessibilidade deste coletivo ao sistema de saúde público. Enquanto que
na educação, este mesmo informe aponta que o nível de evasão da comunidade travesti
duplica a proporção da população geral (maiores de 15 anos) que não terminaram seus
estudos. Por isso a importância de se pensar em políticas públicas e de reconhecimento para
um grupo que é tão vulnerável.
Según datos ofrecidos por la organización, un 85% del colectivo
trans no terminó el secundario. Un 79% está en situación de
prostitución. La esperanza de vida es de 35 años, la mitad que la
media en Argentina. Este proyecto es una opción concreta de
integración y de aprendizajes, frente a la falta de una respuesta
educativa estructural por parte del Estado. En nuestro país la
formación primaria y secundaria es obligatoria. Paradójicamente,
es el mismo sistema, dominado por una perspectiva heterosexual y
patriarcal el que excluye a miles de jóvenes por su identidad de
género. (QUIÑONES, 2011:2)7
O nome do espaço educacional Mocha Celis foi escolhido em homenagem prestada à
travesti argentina Mocha Celis, que ficou conhecida no Bairro de Flores, devido à brutalidade
de sua morte em decorrência de três tiros que recebeu na cabeça. A travesti homenageada
Mocha Celis não sabia ler nem escrever por isso sempre pedia para lerem seus documentos.
Algumas companheiras, no período em que esteve presa8, começaram a alfabetiza-la, porém
ela faleceu antes de completar seus estudos.
A Escola desenvolve diariamente atividades no horário da uma da tarde até às seis e
meia, com turmas referentes aos três anos do ensino médio/secundário. Como incentivo e
colaboração para participação dos/as estudantes, estes/as inscrevem-se em vários programas
disponíveis em nível federal e estadual como bolsistas. E após os três anos do programa, além
7 Tradução Livre: Segundo dados oferecidos por organizações, 85% do coletivo trans não terminou o secundário.
E 79% estão em situação de prostituição. A esperança de vida é de 35 anos, a metade que a média na Argentina.
Este projeto é uma opção concreta de integração e de aprendizagens, frente à falta de uma resposta educativa
estrutural por parte do Estado. Em nosso país a formação primária e secundária é obrigatória. Paradoxalmente, é
o mesmo sistema, dominado por uma perspectiva heterossexual e patriarcal o que exclui milhares de jovens por
sua identidade de gênero. 8 Nos anos de 1990 estava em plena vigência à normativa dos Códigos de Faltas e Contravenciones que
sancionava as pessoas que exibissem publicamente roupas de outro sexo. Era uma época de repressão e
detenções as pessoas travestis.
10
da certificação do ensino médio/secundário obtém um título técnico de “Perito Auxiliar em
Desarollo de las Comunidades”.
Este Bachillerato pretende ofrecer una respuesta a este círculo de
violencias desde la educación popular, rescatando los saberes
propios del colectivo trans* y canalizándolos en el armado de
proyectos cooperativos. A su vez el título que entregará (Perito/a en
el Desarrollo de las Comunidades) permite continuar estudiando en
cualquier Universidad o Instituto Superior, tanto público como
privado (QUIÑONES, 2012, p. 1)9
Esta iniciativa educacional é a primeira no mundo fundada a partir da perspectiva de
gênero e sexualidade, portanto se decidiu incorporar estas temáticas em todas as disciplinas,
como por exemplo, no inglês se ensina vocabulário LGBT, em matemática a ler os números
de alguma analise clínica de casos pertinente à problemática da sexualidade e em história se
fala de minorias, o movimento social LGBTTTI e sua formação e Direitos Humanos.
As/os estudantes realizam projetos com enfoques na literatura, cooperativismo,
matemática, noções digitais, memória, educação sexual. O currículo está dividido por
departamentos como: Area Cosmologica (para o departamento de Ciências Naturais e Exatas),
Areas Sociales (para o departamento de História e Formação de Cidadania), Area Lenguaje
(departamento de Línguas e Literatura).
Além disso, possuem uma área chamada de Area Formativo Ocupacional com um
Departamento de Orientació en Formativo Ocupacional com disciplinas em Formação
Ocupacional. Este módulo se baseia em outro programa do Ministério do Trabalho da Nação
chamado de “Programa Jóvenes com Más y Menor Trabajo” em que se desenvolve a
importância da inclusão do trabalho, começando com um perfil do trabalhador e depois com a
elaboração de um currículo, passando por leis trabalhistas e orientações de entrevistas.
E também ainda há uma disciplina de Educação e Gênero ministrada pela diretora
acadêmica Vida Morant. Nesta disciplina se tem como base o currículo implantado da
Educação Sexual Integral, para as/os estudantes desenvolverem atividades vistas como
ferramentas para expressarem suas emoções e sentimentos, respeitando a si e ao outro a partir
de um entendimento acerca da sexualidade humana e da diversidade sexual, construindo e
reconstruindo conceitos, ressignificando ações de cuidado da saúde e do corpo.
9 Tradução Livre: Este bachillerato pretende oferecer uma resposta a este círculo de violências desde a educação
popular, resgatando os saberes próprios do coletivo trans y canalizando-os no esquema de projetos cooperativos.
Além do título que possibilitará (Perito/a no desenvolvimento das comunidades) permite continuar estudando em
qualquer Universidade ou Instituto Superior, tanto público como privado.
11
De acordo com o projeto pedagógico da disciplina (2015) o enfoque é abranger e
debater as noções, os tabus e as ideias que envolvem e cercam as construções de gênero e
sexualidade. Neste processo os debates perpassam temáticas como: a prostituição, a
identidade de gênero, sexualidade na adolescência, discriminações e preconceitos, abuso
sexual, violências simbólicas, papéis sexuais, orientações sexuais, entre outras categorias.
O recorte para este trabalho faz parte do acompanhamento de quatro aulas da
disciplina de Gênero e Educação nos mês de Setembro de 2015. As aulas ocorreram na
quinta-feira com a turma do 3o. ano e a proposta da aula foi o desenvolvimento de um projeto
para confecção de um Spot Publicitário dentro da temática da diversidade sexual. O objetivo
da proposta da professora Vida Morant foi de que as/os estudantes teriam autonomia para
construírem uma campanha publicitária que conscientizasse sobre a diversidade sexual
humana e também ensinasse conceitos como orientação sexual e identidade de gênero para
um público que não tivesse conhecimento dessas conceitualizações, de maneira a valorizar o
combate às práticas de homofobia e transfobia.
Para isso a professora exemplificou o que eram spots publicitários com “peças” que
foram utilizadas durante as campanhas do movimento LGBTTTI de Buenos Aires no período
da campanha para o casamento igualitário e Lei de Identidade de Gênero. Conforme vemos
alguns dos exemplos das peças publicitárias a seguir:
Fonte 1: Campanha Casamento Igualitário.
Disponível em:
http://www.falgbt.org/matrimonio-igualitario/
09/05/2016.
Fonte 2: Campanha Lei de Identidade de Gênero.
Disponível em: http://www.falgbt.org/ley-de-
identidad/ 09/05/2016.
Na primeira aula, a professora apresentou as instruções para o processo de
desenvolvimento da atividade: os spots poderiam (ou não) ser em grupos e sua apresentação
deveria ser entre 2 a 3 minutos. Poderia ser um vídeo gravado e editado, cartazes ou para as
12
pessoas que não teriam como gravar poderiam encenar como propaganda ali mesmo no
espaço e no horário da aula.
Após a explanação, esta aula dividiu-se em dois momentos: a explicação do que era
um Spot Publicitário e a retomada de alguns conceitos já trabalhados sobre a diversidade
sexual que poderiam ser abordados nos trabalhos, como: identidade de gênero, homofobia,
transfobia, orientação sexual. A partir destas instruções ocorreram as divisões dos grupos e
nas próximas duas aulas as/os estudantes prepararam seus materiais.
Um grupo quis falar sobre o que era a Lei da Educação Sexual implantada em 2006,
outro grupo falou sobre o que era a Lei de Identidade de Gênero de 2012, outros dois falaram
sobre homofobia e transfobia, e por fim, mais dois grupos apresentaram a temática da
transexualidade. A maioria recorreu à biblioteca para buscarem materiais e referenciais
teóricos para tornar as narrativas bem coerentes, com uma linguagem clara e objetiva,
justamente adaptada a um modelo de spot publicitário.
No último dia foram apresentados dois vídeos: um sobre relatos do dia a dia de um
transexual em um ambiente escolar tradicional sofrendo Bullying dos/as colegas de sala de
aula com gracinhas e piadinhas sobre sua identidade e perseguições no intervalo, o que fez
com que o estudante retratado deixasse a escola; o outro grupo recriou no vídeo um momento/
ato de transfobia, onde duas amigas, uma travesti e outra transexual, foram juntas tomar café
em uma cafeteria famosa na cidade e tiveram situações de discriminações por meio de olhares
e comentários de outros/outras clientes e do próprio garçom que as atenderam de maneira
grosseira. Outros grupos apresentaram cartazes: um sobre o combate à homofobia com os
dizeres “A homossexualidade não é uma enfermidade. A homofobia sim.” e outro sobre a
importância da Lei de Identidade de Gênero que diz “Nós éramos invisíveis, não existíamos,
agora com a Lei 26.743 – Lei de Identidade de Gênero – somos alguém, agora existimos e
temos identidade”:
Fonte 3: Elaborada pela autora. 17/09/2015
Fonte 4: Elaborada pela autora. 17/09/2015.
13
O interessante desta atividade foi o envolvimento que as/os estudantes
apresentaram na confecção dos spots como também na própria apresentação, em que
retrataram muitas vivências particulares das suas realidades. Como vemos na dificuldade
da convivência no ambiente escolar, a aceitação da sociedade em relação às identidades
trans, a violência gerada pela homofobia fundada em um discurso patológico a respeito das
orientações sexuais homossexuais, gays e lésbicas, e por fim, exaltando as mudanças
geradas a partis da Lei de Identidade de Gênero criada no ano de 2012.
A Lei de identidade de gênero deu um passo essencial à dignidade trans: o do
reconhecimento da identidade baseada exclusivamente na autodeterminação. Tornou-se
pioneira em todo o mundo ao deslocar o discurso médico e transferi-lo unicamente para o
discurso dos Direitos Humanos, para a noção de identidade. A Lei No. 26.743 que autoriza
travestis e transexuais a escolher seu sexo no registro civil. A norma estabelece que
qualquer pessoa possa solicitar a retificação de seu sexo no registro civil, incluindo o nome
de batismo e a foto de identidade. Com a vigência da medida, a mudança de sexo não
necessita mais do aval da justiça e do laudo psiquiátrico para reconhecimento, e o sistema
de saúde deve incluir operações e tratamentos para a adequação ao gênero escolhido.
(ARGENTINA, Lei 26.743, Art. 2, 2012)
Por fim, apontamos uma das atividades realizadas no Mocha Celis, dentro de uma
perspectiva de Gênero e Sexualidade, em uma disciplina com base curricular para se
desenvolver estas temáticas de maneira emancipatória, positiva e transformadora. A
proposta do Bachillerato Popular Mocha Celis é um espaço educacional que visa o
combate de qualquer forma de discriminação, colocando –se como uma reconstrução, uma
nova possibilidade do sistema educativo que historicamente resultou-se excludente.
Considerações Finais
São diversas as violências cometidas contra as pessoas LGBTTTI, em diversos
espaços sociais, inclusive o escolar. Por isso, um dos desafios enfrentados para quem lida com
educação e políticas públicas educacionais é refletir sobre a evasão escolar desse coletivo, em
especial às vivências das pessoas trans.
Este Bachillerato busca oferecer e desenvolver uma resposta a um círculo de
violências simbólicas que ocorrem no cotidiano escolar que marginalizam minorias,
resgatando principalmente os saberes próprios do coletivo trans e transformando-os em um
projeto cooperativista, de cidadania e reinserção laboral.
14
Alguns dos prêmios recebidos pelo Bachillerato desde 2012 foram: Declaración de
interés en la promoción de los Derechos Humanos por la Legislatura de la Ciudad Autónoma
de Buenos Aires; Subsidios del Ministerio de Educación de la Nación- Auspicio del INADI;
Reconocimiento oficial del Ministerio de Educación de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires;
Mocha Celis desenvolve e representa ações no âmbito político, educacional e social
que se tornaram igualmente indispensáveis na luta e nos esforços ao combate as
discriminações. Ações que nos orientam por princípios que propõem atitudes críticas,
dialógicas e humanitárias. Entendidas como permanentemente abertas para negociar e
reconstruir sentidos, desestabilizar relações de poder e doutrinas opressivas, bem como
subverter lógicas concentradoras de recursos e geradoras de novas modalidades de opressão.
Referências
AREAL, S. TERBIZACHIAN, M. F. La experiencia de los Bachilleratos Populares en la
Argentina. In: Revista Mexicana de Investigación Educativa. Vol. 17, 2012. pp. 513-532.
ARGENTINA. Lei n. 26.743, de 9 de maio de 2012. Establécese el derecho a la identidad de
género de las personas. Boletín Oficial de la República Argentina, Buenos Aires, 24 maio
2012. Disponível em: http://www1.hcdn.gov.ar/BO/boletin12/2012-05/BO24-05-2012leg.pdf.
Acesso em: 01 Jul. 2015.
ARGENTINA. Frente Nacional por la Ley de Identidad de Género (FNLIG). Projeto n.
8.126_D-2010. Disponível em: http://frentenacionaleydeidentidad.blogspot.com.ar Acesso
em: 07 Jul. 2015.
BACHILLERATO Popular Mocha Celis. Link de acesso: http://www.mochacelis.com.ar/ no
dia 08/07/2014 às 16:06 hrs.
BARRANCOS, Dora. Géneros y sexualidades disidentes en la Argentina: de la agencia por
los derechos a la legislación positiva. In: Cuadernos Intercambio sobre Centroamérica y el
Caribe. Vol. 11. No. 2. Julio - Diciembre, 2014. pp. 17-46.
____________ . La diferencia sexual y el Código de Convivencia en la Ciudad Autónoma de
Buenos Aires. Notas para la historia de la regresión de derechos. In: Revista Mora. No. 11.
2005. pp. 202-205
BAZÁN, Osvaldo. Historia de la homosexualidad en la Argentina. De la conquista de
América al siglo XXI. Buenos Aires: Marea. 2004.
BERKINS, L. La gesta del nombre propio: Informe sobre la situación de la comunidad travesti en
la Argentina. CABA: Ediciones Madres de la Plaza de Mayo, 2013.
15
GLUZ, Nora. Por una educación más democrática: Bachilleratos Populares. In: Voces en el Fenix.
No.3, 2010. Disponível em: http://www.vocesenelfenix.com/content/bachilleratos-populares
Acesso em: 07. Nov. 2015.
LAPASSADE, George. L' observation participante. In: Revista Europeia de Etnografia da
Educação. 1. 2001. pp. 9 – 26.
MORENO, Aluminé. La invisibilidad como injusticia. Estrategias del movimiento de la
diversidad sexual. In: PECHENY, Mario, FIGARI, Carlos, JONE, Daniel. Todo sexo es
político: estudios sobre sexualidad en Argentina - 1a ed. Buenos Aires: Libros del Zorzal,
2008. pp. 217-244.
PAEZ, Daiana, PUTERO, Lorena. Los Bachilleratos Populares: Educando para otra
economía. In: Revista Voces en el Fenix. No.38. 2012. pp. 84-91.
PECHENY, Mario, FIGARI, Carlos, JONES, D. Todo sexo es político: Estudios sobre
sexualidades en Argentina. Buenos Aires: Libros del Zorzal. 2008.
PEREIRA, Vanderléa, LIMA, Maria da Glória Soares Barbosa. A Pesquisa Etnográfica:
Construções metodológicas de uma investigação. In: Anais VI Encontro De Pesquisa Em
Educação Da UFPI: Piauí, 2010.
QUIÑONES, Francisco. Justificación de la necesidad socio-cultural que motiva la creación
de este Bachillerato Popular. Julho, 2011.