ITINERÁRIOS DE UMA PESQUISA SOBRE AS REFORMAS CURRICULARES ... · expressas nos Parâmetros...
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ITINERÁRIOS DE UMA PESQUISA SOBRE AS REFORMAS CURRICULARES
PARA O ENSINO DE HISTÓRIA (1998-2012): PROBLEMAS, AVANÇOS E
EXPECTATIVAS.
Kleber Luiz Gavião Machado de Souza1
Introdução
As reformas curriculares para o Ensino Médio envolvem algumas diretrizes já
conhecidas no cotidiano educacional quanto à seleção de conteúdos que devem (ou
deveriam) nortear os currículos brasileiros em suas diferentes instâncias e que estão
expressas nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), por
exemplo, na estruturação dos conteúdos articulados em torno da construção de conceitos,
padrão interdisciplinar, produção de condutas de indagação, compreensão das tecnologias
ligadas à área e competências como metas (Cf. CERRI, 2004, p. 220-222).
Os PCNEM apesar de serem vistos como um dos documentos orientadores dos
currículos no Brasil, mesmo sem qualquer papel de prescrição obrigatória, possuem o
respaldo de uma ampla base legal que vem sendo construída desde 1996, expressando
alguns dos princípios gerais na Lei de Diretrizes e Bases (1996) e nas Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (1998). É uma conexão legal que não pode
ser ignorada sob a alegação de que ela apenas deve nortear a produção dos currículos.
Transportando essas questões para a política do livro didático do Ensino Médio
(incluído aí o de História), os pesquisadores que já se debruçaram sobre a questão afirmam
que as políticas públicas de compra e distribuição de livros didáticos no Brasil têm se
mostrado um importante mecanismo de reajustamento e adaptação no mercado editorial (Cf.
GATTI JUNIOR, 2004; BEZERRA, 2006; MIRANDA 2004; LUCA, 2004 e 2006,
STAMATTO, 2007). A cultura avaliativa serviu para que as editoras melhorassem a
qualidade de suas coleções tanto na forma como no conteúdo, com intuito de manterem a
1Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGED/UFRN) na linha de
pesquisa História da Educação, Práticas Socioeducativas e Usos da Linguagem. Orientadora: Profª. Drª
Maria Inês Sucupira Stamatto. Bolsista CAPES.
competitividade em um mercado dependente dos recursos do programa (Cf. LUCA e
MIRANDA, 2004; Cf. STAMATTO, 2007, p.48).
As obras avaliadas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), de acordo
com os guias e editais do programa, devem estar em conformidade com a Constituição
Federal, LDB, DCNEM, entre outros2. A inobservância a esses dispositivos resulta em
exclusão da obra no processo avaliativo. Essa é uma informação importante que já nos
coloca com a ideia de que os livros não podem ser avaliados apenas em relação a sua
conformidade com editais, mas também em relação aos demais documentos que compõem
as reformas e políticas educacionais para a educação básica em análise retrospectiva.
Porém, os currículos são definidos também pelos instrumentos que o avaliam, como
o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) 3 , que também é visto como um dos
organizadores do currículo do Ensino Médio e um dos fatores que influem na dosagem dos
saberes históricos ensinados (Cf. CERRI, 2004, p.213-214). Nos editais do exame é
atribuída à responsabilidade de “criar referência nacional para o aperfeiçoamento dos
currículos do Ensino Médio” (INEP, 2010; 2011; 2012, p.2).
A função do ENEM, juntamente com o conjunto dos demais sistemas de avaliação,
é “aferir se os pontos de chegada estão sendo comuns”, buscando “o acompanhamento
permanente dos resultados, tomando como referência as competências básicas a serem
2 Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 10.639/2003, Resoluções e Pareceres do Conselho Nacional de
Educação, em especial, o Parecer CEB nº15/2000, de 04/07/2000, o Parecer CNE/CP nº 003/2004, de
10/03/2004 e Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004. 3 Em um brevíssimo histórico, o exame vem sendo realizado desde 1998 e atingiu grande popularidade a
partir de 2004, quando o Ministério da Educação (MEC) passa a conceder bolsas de estudo em instituições
privadas através do Programa Universidade para Todos (PROUNI) usando a nota obtida no exame como
critério de seleção (Cf. CASTRO, 2009, p.9). Durante os doze primeiros anos de existência, funcionou de
forma “terceirizada”, ou seja, todas as suas etapas de organização eram elaboradas e aplicadas por uma
fundação privada, a CESGRANRIO, que passou a executar desde a aplicação dos questionários
socioeconômicos, passando pela criação de uma base de dados sobre o exame, até a implementação de uma
metodologia própria para a correção das provas, a Teoria de Resposta ao Item (TRI). Tal quadro mudaria no
ano de 2000 quando a Fundação Carlos Chagas passa a dividir o trabalho com a CESGRANRIO (Cf.
MINHOTO, 2008, p. 74-75). Em 2009 é instituído o “novo ENEM”, que passa a utilizar as notas do exame
para a admissão nas IES públicas pelo país. A partir do ano de 2010, a aplicação do exame passou das mãos
do consórcio Carlos Chagas/CESGRANRIO para as do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP) do Ministério da Educação (MEC).
alcançadas por todos os alunos, de acordo com a LDB, as presentes diretrizes e as propostas
pedagógicas das escolas” (BRASIL, 1998, p.69-70).
O certame está contido dentro do quadro das políticas públicas de avaliação da
qualidade da educação brasileira (eximindo-se aqui de discutir os diferentes significados
que o conceito de qualidade pode levantar), materializado no Sistema Nacional de
Avaliação (SNA), um macrosistema que contém outros instrumentos nos diferentes níveis
de ensino, como o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), A Prova
Brasil, Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) Exame Nacional de
Desempenho do Ensino Superior (SINAES) e Avaliação de Pós-Graduação da Capes.
Os sistemas de avaliação tornaram-se elemento fundamental das reformas
educacionais empreendidas a partir dos anos 80 do século XX em diversos países. No caso
do Brasil, as bases foram oficialmente lançadas com a LDB de 1996 e uma das suas
incumbências, conforme o próprio texto indica no título IV (da organização da educação
nacional), é “coletar, analisar e disseminar informações sobre a educação” e “assegurar processo
nacional de avaliação do rendimento escolar” nos diferentes níveis e em “colaboração com os
sistemas de ensino, objetivando a definição de prioridades e a melhoria da qualidade” (BRASIL,
1996, p.29).
Dito isso, desde o primeiro semestre de 2013, temos estudado as relações entre
essas três políticas educacionais, aparentemente distintas, tratando especificamente das
adaptações e deformações que a disciplina História vem sofrendo nos últimos 15 anos de
reformas educacionais no Brasil. Escolhemos os conteúdos, na forma de conhecimentos,
competências e habilidades, com objetivo de investigar o grau de aquiescência dos livros
didáticos e provas do ENEM em relação aos PCNEM.
Em nosso projeto buscamos saber se os conhecimentos, competências e habilidades
dos Parâmetros para a História no Ensino Médio estão concretizados nos livros e nos
exames de escala? Além disso, quais as diferenças em matéria de conteúdos entre os livros
e questões do ENEM?
As fontes a serem cotejadas com os Parâmetros são os livros didáticos de História
avaliados e distribuídos pelo PNLD, bem como as provas do ENEM entre os anos de 1998
à 2012, retirando-se para a análise, especificamente, as questões de História.
Deteremos-nos especificamente sobre as sessões de atividades dos livros e nas questões do
exame. A escolha dos exercícios justifica-se pelo fato destes serem responsáveis por fixar,
adquirir, aprender, reter, aferir os conteúdos (Cf. CHERVEL, 1990, p.204). A sua
importância dentro das pesquisas sobre Ensino de História é por “indicar até que ponto os
manuais didáticos estão ou não de acordo com as prescrições oficiais” e também apresentar
“como tais prescrições modificaram a forma de elaborar, organizar e estruturar os exercícios,
bem como seu papel e suas finalidades para o ensino” (MOURA, 2011, p.24).
A hipótese que norteia o estudo é a de que os livros didáticos e as provas do exame,
enquanto dispositivos organizadores do currículo brasileiro apresentam dissonâncias em
relação aos conhecimentos, competências e habilidades expressos nos Parâmetros. Assim, a
ausência de currículos sistêmicos (para além da função norteadora), somada a negação dos
PCNEM, transfere para as matrizes do ENEM o papel de pautar o currículo brasileiro,
colocando em cheque a oficialidade da proposta oficial do exame em avaliar os saberes
específicos (Cf. CERRI, 2004; FREITAS, 2011; MINHOTO, 2009).
A investigação da simetria entre três políticas educacionais para o ensino de
História se faz relevante pela necessidade de discutir a possibilidade de criação de uma base
curricular comum para a disciplina, respondendo ao questionamento sobre “o que direito de
todo cidadão saber sobre o passado” (OLIVEIRA, 2011). Tomando de empréstimo as
reflexões de Gimeno Sacristán sobre o currículo, tal questionamento se materializa dentro
da teorização pedagógica na existência de uma maior preocupação sobre o como ensinar do
que pelo que se deve ensinar.
Se é evidente que ambas as perguntas devem ser questionadas
simultaneamente em educação, a primeira fica vazia sem a segunda. Um
vazio que é ainda muito mais evidente em toda tecnocracia
pseudocientífica que dominou e domina boa parte dos esquemas
pedagógicos. A consequência desta crítica é importante não apenas para
reconsiderar as linhas de investigação dominantes em educação, mas
também, e especialmente, a formação de professores (SACRISTÁN,
1998, p.30).
Teoricamente, o desenvolvimento da tese situa-se no entrecruzamento de estudos
historiográficos e educacionais, o que confere certo hibridismo à nossa proposta e mostra
que os estudos em ensino de História possuem um caráter altamente interdisciplinar.
Em primeiro lugar, circunscrevemos a pesquisa no âmbito da História das
Disciplinas Escolares, onde os saberes disciplinares não são apenas a vulgarização do
conhecimento científico referente (Cf. CHERVEL, 1990). Estamos nos inserindo também
nos estudos sobre a História do Ensino de História no Brasil, que, mesmo na variedade de
enfoques temáticos, ainda possui caráter fragmentado no tocante as iniciativas de pesquisa
(Cf. FREITAS, 2010, p.8). Uma terceira componente é a incorporação dos pressupostos
teóricos da História do Tempo Presente devido à contemporaneidade do nosso recorte
temporal e objeto, principalmente em relação a importantes momentos da história recente
da educação brasileira que o nosso trabalho aborda. É fato conhecido que as balizas
cronológicas nos estudos históricos do tempo presente são móveis e os que nela operam
“precisam rever continuamente a delimitação do seu campo de pesquisa” (RÉMOND,
2006, p.207).
No campo educacional, coadunamos com os autores ligados a análise das políticas
públicas em Educação ao afirmarem que mesmo com o tom prescritivo, os seus textos, na
forma de orientações, analises, relatórios, parâmetros são abertos o suficiente para
permitirem interpretações e reinterpretações que geram significados diversos dos esperados
(Cf. BALL e MAINARDES, 2011, p.11-53). Assim, “os documentos de políticas contêm
ambiguidades, contradições e omissões que fornecem oportunidades particulares para
debates no processo de sua implementação” e, além disso, “precisam ser lidos com e contra
os outros, ou seja, na sua articulação ou confronto com outros textos” (SHIROMA,
GARCIA e CAMPOS, 2011, p. 224).
Na prática, as políticas são frequentemente obscuras, algumas
inexequíveis, mas podem ser, mesmo assim, poderosos instrumentos de
retórica, ou seja, formas de falar sobre o mundo, caminhos de mudança do
que pensamos sobre o que fazemos. As políticas, particularmente as
políticas educacionais, em geral são pensadas e escritas para contextos
que possuem infraestrutura e condições de trabalho adequados (seja qual
for o nível de ensino), sem levar em conta as variações enormes de
contexto, recursos, de desigualdades regionais ou de capacidades locais
(BALL e MAINARDES, 2011, p.13).
Já em relação aos conceitos operacionais adotados na pesquisa, definimos as
políticas públicas como o “Estado em ação [...] implantando um projeto de governo,
através de programas, de ações voltadas para setores específicos da sociedade”. A
educação, dentro dessa definição, é uma política pública social que alia a responsabilidade
do estado, através da implementação e manutenção da política implementada a partir
decisões que envolvem órgãos públicos, diferentes organismos e agentes da sociedade na
perspectiva de “redistribuição dos benefícios sociais visando à diminuição das
desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico” (HOFLING,
2001, p.31).
Na variedade de enfoques para se compreender o ensino de História, a nossa escolha
se deu pela análise de seus conteúdos, na forma de conhecimentos, competências e
habilidades. Porém, a definição de que conteúdo é tudo aquilo que se ensina em uma
disciplina escolar (Cf. CHERVEL, 1990, p. 177) é demasiado obscura. Portanto, os
conteúdos são aqui definidos como “conjunto de conhecimentos ou formas culturais cuja
assimilação e apropriação pelos alunos é considerado essencial para o seu desenvolvimento
e socialização” (COLL; POZO; SARABIA; VALLS, 2000, p.12)4.
Quanto às nossas fontes, trabalhamos com algumas definições que ajudam a
compreendê-las. O ENEM, por exemplo, é um exame interdisciplinar que tem como
objetivo avaliar “o desempenho individual do aluno ao término do ensino Médio, visando
aferir o desenvolvimento das competências e habilidades necessárias ao exercício pleno da
cidadania” (CASTRO, 2009, p.9). Enquanto forma curricular, o exame pode ser
enquadrado dentro do conceito de currículo avaliado proposto por Gimeno Sacristán
(1998), visto que, a avaliação continuada do currículo, materializada na forma de exames e
4 Utilizamos essa definição operacional devido a falta de espaço para adentrar em um debate mais amplo
sobre a definição dos conceitos conhecimentos, competências e habilidades dentro do quadro teórico da
psicologia espanhola (COLL, SARABIA, POZO e VALLS, 2000). Tais meandros dessa categorização serão
discutidos de forma mais abrangente durante a explanação da pesquisa.
provas propostos por professores ou mesmo instituições, é parte do seu processo de sua
consolidação dentro de um sistema educacional (Cf. SACRISTÁN, 1998, p. 118).
A avaliação do currículo é parte de sua trajetória dentro da instituição
escolar. O currículo que é selecionado dentro da instituição escolar é
aquele enfatizado dentro dos procedimentos de controle e avaliação. A
avaliação do currículo atua como uma pressão modeladora da prática
curricular (SACRISTÁN, 1998, p.311).
Em relação ao livro didático, adotamos a sua definição enquanto
um artefato impresso em papel, que veicula imagens e textos em formato
linear e sequencial, planejado, organizado e produzido especificamente
para uso em situações didáticas, envolvendo predominantemente alunos e
professores, e que tem a função de transmitir saberes circunscritos a uma
disciplina escolar (FREITAS, 2007, p.13).
Mas apesar da operacionalidade de tal definição, não podemos esquecer também a
complexidade e os sentidos plurais que podem ser atribuídos a esse objeto, que, inscrito no
componente maior da história da cultura, para além de uma dimensão mercadológica, é
também o sustentáculo dos conteúdos educacionais e métodos de ensino, transmissor de
valores, representações, ideologias e suporte do contraditório ato que é a leitura (Cf.
BITTENCOURT, 2008, p. 14 -15).
Os avanços da pesquisa
Desde o início das atividades relacionadas ao desenvolvimento da tese já podemos
falar em alguns avanços significativos no quadro da pesquisa. O primeiro passo foi a leitura
de alguns dos documentos que forneceram as bases legais para as reformas empreendidas
no Ensino Médio a partir de meados da década de 1990, como os já citadas a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional - 9.394/96 (LDB), Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio - Parecer CEB nº 15/98 (DCNEM), Parâmetros
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) e as Orientações Educacionais
Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNEM+). Além disso,
realizamos um levantamento na literatura sobre as políticas educacionais a partir da década
de 1990 que mudaram a configuração do Ensino Médio e do Ensino de História no Brasil.
Os resultados dessas discussões estão expressos em dois artigos lançados durante as
atividades do ano de 2013. Em Parâmetros curriculares nacionais, livros didáticos e
exame nacional do ensino médio: o debate sobre o dito e o prescrito (1998 - 2012) cujo
objetivo foi uma síntese de algumas leituras realizadas nos últimos meses sobre as políticas
educacionais e reformas curriculares que alteraram a configuração do ensino de História
nos últimos 15 anos, mais especificamente no Ensino Médio (Cf. SOUZA e STAMATTO,
2013).
Já no artigo Reformas curriculares da disciplina história no ensino médio
brasileiro: alguns consensos da pesquisa (1999-2012) identificamos os consensos e o
entendimento dos pesquisadores sobre o caráter dessas mudanças. Ao contrário de uma
considerável produção que discute o caráter e o alcance das reformas no Ensino
Fundamental, no nível Médio o debate ainda é reduzido (Cf. SOUZA, 2013).
Invertendo a ordem e discutindo primeiramente a literatura, constatamos que a
discussão sobre as transformações da disciplina História no contexto das reformas
curriculares orbita mais sobre o que deveria ser a escola e o currículo do que efetivamente
sobre como ele é incorporado pelos atores, ou seja, é muito mais uma discussão política do
que empírica. Obviamente não estamos defendendo que a primeira deva ser sobreposta pela
segunda. O lócus privilegiado de análise são as prescrições do currículo oficial
materializado nos PCNEM de História.
Os trabalhos apontam os mascaramentos, a rigidez travestida de flexibilidade, a
desconsideração de reinvindicações históricas, os novos modelos produtivos no bojo das
reformas, a perda da especificidade disciplinar, a crítica a pedagogia das competências, etc.,
mas com poucas investigações sobre contextos locais,, mesmo sabendo que a pesquisa
sobre currículo ressalte a diversidade desse objeto e as suas diversas possibilidades de
apropriação. Assim, percebemos que os especialistas em ensino de História coadunam com
as teses propostas pelos pesquisadores em Educação que discutem as reformas curriculares
que atingiram a produção dos currículos no Brasil a partir da década de 1990.
Nos documentos procuramos pontos que fundamentassem e reforçassem a
pertinência de nossa análise. Em primeiro lugar, por que estudar as tão “nefastas”
competências e habilidades? A explicação é que, apesar da suposta ausência de caráter
prescritivo nos documentos curriculares brasileiros, “o que é obrigatório pela LDB ou pela
Resolução nº 03/98 são os conhecimentos que estas disciplinas recortam e as competências
e habilidades a eles referidos e mencionados nos citados documentos” (BRASIL, 2000, p.
18). Por isso, os conhecimentos, competências e habilidades são a “última fronteira” de
exigência para a educação nesse nível de ensino, e, portanto, o lócus privilegiado para
observar a apropriação das políticas curriculares nos últimos.
Assim, nosso recorte temporal, está entre os anos de 1998 a 2012 que poderemos
observar a apropriação das prescrições governamentais em relação aos conteúdos históricos
e expectativas de aprendizagem presentes nos livros didáticos e Exame Nacional do Ensino
Médio. Situamos o início da pesquisa no lançamento das DCNEM, que orientaram as
reformas neste nível de ensino, além de ser o primeiro ano de realização do ENEM. Já o
marco temporal final está situada em 2012, por ser o ano em que a função das Diretrizes, de
acordo com o art. 2º da Resolução da Câmara de Educação Básica (CEB), de 30 de janeiro
do citado ano, passa a ser “orientar as políticas públicas educacionais da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos municípios na elaboração, planejamento, implementação
e avaliação das propostas curriculares das unidades escolares públicas e particulares que
oferecem o Ensino Médio” (BRASIL, 2012, p.20).
Outro ponto que a leitura dos documentos nos permitiu esclarecer foi o papel
específico da disciplina História dentro das Ciências Humanas e suas Tecnologias 5 ,
5De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, o papel das Ciências Humanas e
suas Tecnologias é desenvolver, através dos conhecimentos, competências e habilidades da área,
“consciências críticas e criativas, capazes de gerar respostas adequadas a problemas atuais e a situações
novas. Dentre estes, destacam-se a extensão da cidadania, que implica o conhecimento, o uso e a produção
histórica dos direitos e deveres do cidadão e o desenvolvimento da consciência cívica e social, que implica a
consideração do outro em cada decisão e atitude de natureza pública ou particular” (BRASIL, 2000, p.21).
principalmente se pensarmos que o ENEM, em suposta conformidade com as Diretrizes e
Parâmetros do Ensino Médio, adota nas questões o padrão interdisciplinar, que é uma das
características epistemológicas das reformas curriculares. A justificativa é a de
assegurar uma educação de base científica e tecnológica, na qual conceito,
aplicação e solução de problemas concretos são combinados com uma
revisão dos componentes socioculturais orientados por uma visão
epistemológica que concilie humanismo e tecnologia ou humanismo numa
sociedade tecnológica (BRASIL, 1998, p.19).
As palavras dos PCNEM, que possuem expectativas de aprendizagem específicas
para cada uma das disciplinas, incluindo a História, tentam tranquilizar aqueles que temem
a perca da especialidade dizendo que:
Ressalve-se que uma base curricular nacional organizada por áreas de
conhecimento não implica a desconsideração ou o esvaziamento dos
conteúdos, mas a seleção e integração dos que são válidos para o
desenvolvimento pessoal e para o incremento da participação social. Essa
concepção curricular não elimina o ensino de conteúdos específicos, mas
considera que os mesmos devem fazer parte de um processo global com
várias dimensões articuladas. O fato de estes Parâmetros Curriculares
terem sido organizados em cada uma das áreas por disciplinas potenciais
não significa que estas são obrigatórias ou mesmo recomendadas
(BRASIL, 2000, p.18).
Porém, para dar coerência ao estudo, foi necessário resolver uma controvérsia
metodológica, que dizia respeito à possibilidade de separar e analisar questões específicas
de História em um exame que parte da divisão por áreas de conhecimento, como é o caso
do ENEM. Assim, é possível extrair questões que possam ser especificamente relacionadas
à disciplina História? É possível separá-las do conjunto das Ciências Humanas e suas
Tecnologias? A resposta pode ser encontrada nos próprios parâmetros, como é salientado
no texto dos PCNEM+:
As linguagens, as ciências e as humanidades continuam sendo
disciplinares, mas é preciso desenvolver seus conhecimentos de forma a
constituírem, a um só tempo, cultura geral e instrumento para a vida, ou
seja, desenvolver, em conjunto, conhecimentos e competências. [...] Para
quem possa temer que se estejam violando os limites disciplinares,
quando estes se compõem de conhecimentos e competências, vale lembrar
que as próprias formas de organização do conhecimento – as disciplinas –
têm passado por contínuos rearranjos. Muitas disciplinas acadêmicas e
muitos campos da cultura são resultados de processos de sistematização
recentes de conhecimentos práticos ou teóricos, reunindo elementos que,
em outras épocas, estavam dispersos em distintas especialidades.
(BRASIL, 2002, p.14-15).
Dessa forma, a possibilidade de separação disciplinar nas políticas curriculares aqui
discutidas nos foi dada pelos próprios documentos das reformas do Ensino Médio. Em
vários trechos de documentos, ressalta-se que, apesar do padrão interdisciplinar, não há
intenção de sufocar a particularidade de cada disciplina.
Especificamente no ENEM, esse aspecto foi discutido e analisado em dois artigos
lançados durante as atividades de pesquisa desenvolvidas no primeiro semestre deste ano.
No primeiro, A história do tempo presente no exame nacional do ensino médio
(1998-2012): um mapa de conceitos, competências e habilidades, buscamos mapear o
espaço ocupado pelo tempo presente no ENEM, especificamente nas questões de História
do exame inseridas no quadro das Ciências Humanas e suas Tecnologias, bem como os
principais conceitos, competências e habilidades exigidas (Cf. SOUZA e STAMATTO,
2014a). No segundo, O espaço das disciplinas na reconfiguração curricular do ensino
médio brasileiro: o Enem e a história, a proposta foi a investigar a disciplina História nas
Matrizes de Referência do Exame Nacional do Ensino Médio 6 (Cf. SOUZA e
STAMATTO, 2014b).
A investigação comparada das matrizes de conhecimentos do exame mostrou que,
nas três versões existentes do documento, há um espaço disciplinar evidente para os saberes
disciplinares da História. Tanto na matriz de 1998 (uma lista de habilidades), como nas
versões de 2009 e 2011 (organizadas por áreas), as competências e habilidades trabalham,
em sua grande maioria em prol do reforço de conteúdos conceituais tipicamente trabalhados
pela pesquisa em ensino de História, como tempo, fonte, interpretação, memória, rupturas
6 As competências e habilidades estão dispostas em uma matriz de conhecimentos, que, segundo os relatórios
pedagógicos do exame, tem como documentos norteadores a LDB, os PCN e as Diretrizes do Conselho
Nacional de Educação sobre a Educação Básica e os textos da Reforma do Ensino Médio (cf. INEP, 2007,
p.32).
e mudança. Além disso, na Matriz das Humanidades, há a consideração da historicidade de
conceitos ligados à prática da ética e da cidadania. Em relação ao papel exercido pelo
exame na reconfiguração da disciplina, existe uma reduzida produção que investigue os
efeitos do exame na organização e seleção dos currículos da disciplina em nível nacional e
nos estados.
Em relação à literatura, para uma gama de autores, que considero majoritária na
interpretação, o exame é visto como uma política avaliativa meritocrática, homogeneizante
e ranqueadora do sistema educacional. Aponta-se a contradição entre o papel centralizador
do estado na elaboração e avaliação das políticas públicas, o que interfere diretamente na
autonomia docente, e a postura descentralizadora na sua aplicação, delegando ao corpo
escolar a responsabilidade sobre a execução (Cf. BERGAMIN, 2013; OLIVEIRA, 2006).
Assim,
a avaliação ganha destaque e se converte em instrumento imprescindível
às reformas educacionais, articulando-se aos demais aspectos da política
educativa, visando não apenas a um maior controle do Estado no que se
refere ao currículo e ao sistema escolar, mas também ao controle dos
recursos destinados à educação. Em outras palavras, figura como
instrumento de “gestão” dos sistemas educacionais (MINHOTO, 2009, p.
32).
Aponta-se também que o conhecimento histórico no ENEM é empregado de forma
acessória na avaliação das competências e habilidades. Os enunciados das questões já
possuem informações que facilitam a sua resolução sem a articulação dos conhecimentos da
disciplina (Cf. CERRI, 2004, p.223-225). Na prática docente, o exame age de forma
determinante da prática pedagógica e avaliativa do professor de História do Ensino Médio e
o maior impacto acontece nas escolas da rede pública estadual pela possibilidade de
obtenção de bolsas para o ensino superior. O exame, do caráter avaliativo conquistou então
papel seletivo dos alunos que estão no final da educação básica (Cf. OLIVEIRA, 2006,
p.125), e estaria muito mais próximo do formato dos antigos vestibulares do que da
possibilidade de contemplar os objetivos contidos nos Parâmetros, embasados na
“construção da identidade e do desenvolvimento de noções básicas como a de diferença,
semelhança e tempo histórico” (BERGAMIN, 2013, p.22-23)
A contribuição comum dos artigos produzidos, para além dos aspectos específicos
do exame, foi o de definir alguns procedimentos metodológicos para a análise das questões
do ENEM, o que ajudou a convencionarmos alguns procedimentos que pretendemos
utilizar para o desenvolvimento da tese. Em primeiro lugar, buscamos alguns elementos nas
matrizes publicadas em 2009 e 2011, extraindo indícios para a seleção das questões e das
competências e habilidades próprias para a disciplina.
Conclusões
Conforme pode ser observado durante a leitura do trabalho, não tratamos
detalhadamente da metodologia a ser empregada na análise, pois, estamos revendo
cuidadosamente alguns dos procedimentos a serem adotados pela pesquisa nos próximos
semestres. Os próximos “mergulhos” a serem realizados visam justamente uma melhor
definição e explicitação de algumas bases metodológicas da tese, principalmente no tocante
as possibilidades de contato entre as expectativas de aprendizagem dos PCNEM e as
matrizes de referência do ENEM. Além disso, adentraremos a literatura sobre as
competências para extrair um entendimento mais preciso de uma das principais bases das
reformas curriculares brasileiras. Por fim, pretendemos adentrar também nas
especificidades que marcam a apropriação por parte dos livros didáticos dos aspectos
relacionados às reformas. De qualquer forma, mesmo com a consciência de que ainda
temos bastantes lacunas a serem explicadas, acreditamos ter cumprido a função desse
trabalho, que foi o de socializar com a comunidade de pesquisadores do Ensino de História
o andamento das atividades e dispor os nossos resultados preliminares aos diferentes
olhares.
Referências
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_________. Edital de convocação para inscrição no processo de avaliação e seleção de
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