INFÂNCIA E LINGUAGEM: EDUCAR OS COMEÇOS · Hanah Arendt e Giogio Agamben em interlocução com as...
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UNIVERSIDADE DE SANTA CRUZ DO SUL
Programa de Pós-Graduação
Mestrado Educação
Simone Berle
INFÂNCIA E LINGUAGEM: EDUCAR OS COMEÇOS
Santa Cruz do Sul, junho 2013
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Simone Berle
INFÂNCIA E LINGUAGEM: EDUCAR OS COMEÇOS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Educação da Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação.
Orientadora: Prof. Drª. Sandra Regina Simonis Richter
Santa Cruz do Sul, junho 2013
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Banca Examinadora
______________________________________ Drª Sandra Regina Simonis Richter – UNISC
Orientadora
_____________________________________ Dr. Felipe Gustsack - UNISC
_______________________________________ Drª Maria Carmen Silveira Barbosa - UFRGS
_____________________________________ Drª Marina Marcondes Machado - UFMG
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Eu tinha antes querido ser
os outros para conhecer o que
não era eu.
Entendi então que eu já
tinha sido os outros e isso
era fácil
Minha experiência maior
seria ser o outro dos outros:
e o outro dos outros era eu.
Clarice Lispector
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agradecimentos
Os agradecimentos que faço aqui são por ter conseguido colocar o ponto final
(mesmo que provisório) nessa pesquisa.
Certamente não poderei mensurar o tamanho da minha gratidão, ainda assim
quero registrar:
obrigada
pai e mãe, por compreenderem que ando me refazendo e, por isso, sou
inconstante;
Patrícia, Felipe, Luciana, por compartilharem uma infância;
João G. e João E., vocês são dois presentes que a vida me deu e estiveram muito
presentes nesse meu fazer pesquisa;
Márcia, pela amizade e companheirismo – que iniciou com o mestrado, mas não
termina com ele;
Sandra e Ângela, vocês são o motivo pelo qual essa dissertação existe!
PPGEdu UNISC, pela grande oportunidade em realizar essa pesquisa com a
bolsa de estudos da CAPES/PROSUP – Cursos Novos.
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Sumário
viajar
modo de apresentação ........................................................................................... 8
no meio: travesia .................................................................................................. 16
educação e linguagem ......................................................................................... 31
infância e linguagem ............................................................................................ 45
corpo no mundo e linguagem ............................................................................... 61
educação e infância ............................................................................................. 78
mistérios da linguagem ........................................................................................ 89
mar de histórias
modo de conclusão ............................................................................................ 101
referências.......................................................................................................... 109
anexo – Termo de Consentimento ..................................................................... 114
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resumo
Para afirmar a radical alteridade linguageira entre crianças pequenas e adultos esta dissertação tematiza a educação das infâncias focalizando a experiência da linguagem enquanto momento de intensas aprendizagens de um modo de conviver. A pesquisa não busca responder uma pergunta, mas enfrentar um problema que foi sendo constituído no processo mesmo de uma escrita tensionada pela convivência com as crianças em seus começos linguageiros, os quais apontam a inseparabilidade entre educação, infância e linguagem. Para tanto, problematiza a concepção de aprendizagem da linguagem enquanto produto da representação de um mundo constituído em polarizações metafísicas entre sujeito e objeto, entre corpo e mundo. Para ultrapassar tais polarizações propõe uma aproximação entre as fenomenologias de Maurice Merleau-Ponty, Hanah Arendt e Giogio Agamben em interlocução com as filosofias narrativas de Jorge Larrosa, Fernado Bárcena e Joan-Carles Mèlich. O objetivo é afirmar não apenas o direito das crianças à linguagem, mas reivindicar a responsabilidade dos adultos em garantir também seu direito a aprender o poder inventivo de instaurar modos de agir no mundo. Através da figura do ensaio, não persegue uma elucidação ao problema educacional posto pela aprendizagem da linguagem na infância, mas convida a docência da Educação Infantil a dotar o ofício pedagógico de sensibilidade para com a riqueza da experiência dos começos linguageiros. Nessa perspectiva teórico-metodológica, busca argumentos para defender a educação como acontecimento da vida a partir da compreensão de linguagem como processo interpretativo de composição de sentidos e de infância como experiência transcendental da linguagem. A interação entre adultos e crianças faz emergir a aprendizagem da convivência em um mundo compartilhado em alteridade de linguagem. Trata-se de pensar outros modos de conceber a infância, portanto de problematizar a educação de crianças pequenas ao evocar o compromisso ético da docência na educação infantil diante da vida que começa, ou seja, o intenso processo que é aprender a estar em linguagem, a começar-se no mundo.
Palavras-chave: infância; criança; educação infantil; experiência da linguagem; poética dos começos.
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abstract
To affirm the radical linguistic diversity between small children and adults this essay thematizes the early childhood education focalizing the language experience as a moment of intense learning of a way to live together. The research doesn't search for a question to answer, but to confront a problem that has been built in the process of a writing tensioned by the coexistence with the children in their linguistic beginning, which point the inseparability between education, infancy and language. For such, it problematizes the conception of language learning while a product of representation of a world built in metaphysics polarization between subject and object, between body and world. To exceed such metaphysics polarization it proposes an approach between Maurice Merleau-Ponty, Hana Arendt and Giogio Agamben phenomenologies in interlocution with the narratives philosophies of Jorge Larrosa, Fernando Bárcena and Jean-Carles Mèlich. The goal is to affirm not only the right of children to language, but to claim the responsibility of the adults in ensuring also their right to learn the inventive power of establishing ways of acting in the world. Through the essay's figure, it doesn't pursue an elucidation to the educational problem set by the linguistic learning in infancy, but invites the faculty of Children Education to endow the pedagogical office of sensibility towards the richness of the linguistic beginnings experience. In this perspective theoretical-methodological, it searches for arguments to defend the education as a life event from language understanding as an interpretative composition process of senses and of the infancy as a transcendental linguistic experience. The interaction between adults and children gives rise to the learning of the familiarity in a world shared in linguistic diversity. It‟s about thinking of different ways to conceive the infancy, therefore of problematizing the education of small children to evoking the ethic commitment of the faculty in early childhood education in front of the new life that begins, in other words, the intense process that is learning to be in language, to start yourself in the world. Key words: Infancy; children; early childhood education; linguistic experience; beginning‟s poetry.
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viajar
modo de apresentação
Quem não se mexe não aprende nada: aprender provoca a errância. Nenhuma aprendizagem evita a viagem. Michel Serres, 1993
O encontro com o pensamento de Michel Serres me instiga a apresentar
esta dissertação partindo das marcas de um percurso em pleno movimento. Para
o filósofo, “assim como o corpo assimila e retém as diversas diferenças vividas
durante as viagens e volta para casa mestiçado de novos gestos e de novos
costumes, fundidos nas suas atitudes e funções a ponto de fazê-lo acreditar que
nada mudou para ele, também o milagre laico da tolerância, da neutralidade
indulgente, acolhe, na paz, todas as aprendizagens, para delas fazer brotar a
liberdade de invenção e, portanto, de pensamento”.
O filósofo ao narrar a história de Arlequim, que retorna de suas viagens
lunares, não pode ignorar sua trajetória, ela estava marcada em sua carne. Tudo
aquilo que viveu o tornava aquilo que era, aquilo que não poderia mais dizer do
ser que não fosse a mistura, a mestiçagem entre o velho e o novo. A
transformação. Nessa mesma condição, apresento aqui as minhas marcas.
Marcas que se tornaram profundas, tatuadas durante o caminho e por isso não
podem mais ser ignoradas. Como processo de mudança, de desassossego, a
história que conto, ou que posso contar, também se mostra do modo como posso
inventá-la. Falo da liberdade de invenção na escrita, em que a mistura de cores e
palavras que vão tecendo a colcha de retalhos de minha história, do que até o
momento dessa escrita pude sentir e pensar, torne-se visível para ser
compartilhada. Aqui, quero ser mestiça.
Poderia dizer a minha trajetória de muitos modos, a partir de muitas
viagens, mas iniciarei de onde estou: no meio do caminho. Faço um recorte no
tempo para compor o que penso ser importante. Aprendi com Paul Ricoeur que
somos seres históricos, viver e ser, ser e viver é engendrar sentidos em uma
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história, uma narrativa que me conta, me significa e faz significar também. Quer
dizer, engendrar sentido no viver, vivendo. Habitar com sentidos o eu no mundo.
Somos seres temporais, históricos, e a relação que cada um de nós estabelece
com essa história, faz de cada um de nós um na multidão, a partir do modo como
cada um pode narrar a sua história, “dizer eu” (AGAMBEN, 2005).
Entre as inquietantes pré-concepções de um professor sábio, de um aluno
que precisa aprender muitos ensinamentos, de uma infância de crianças felizes e
a minha história como aluna de escola pública do interior do Rio Grande do Sul e
minha formação no curso de Pedagogia, surge a oportunidade acadêmica de
conviver com o grupo de pesquisa Estudos Poéticos1. A partir de um grande
conflito de ideias e expectativas, emergem relações e interrogações que fui
aprendendo a estabelecer e que me trouxeram aqui. Devaneios, paradoxos,
encontros, desencontros... travessia.
Travessia que para ser compartilhada e, acima de tudo, para existir, há que
ser dita e para dizer necessitamos de palavras que, paradoxalmente, não dizem
tudo. Há que se aprender a narrar para compor o indizível. Nesse sentido, essa
investigação diz respeito à inseparabilidade entre educação, infância e linguagem,
a qual vem se desenhando desde os estudos realizados junto ao projeto de
extensão Atividades Lúdico-pedagógicas com crianças de 8 a 11 anos e junto ao
projeto de pesquisa Experiência Poética e Aprendizagens na Infância2. Com
possibilidades de experiências distintas, porém complementares, durante a
extensão e a pesquisa pude viver a experiência de me tornar professora e o fazer
de uma professora. Experiência no sentido que lhe dá Larrosa (2002, 2004) como
aquilo que nos passa, nos acontece, nos toca e em Merleau-Ponty (1999b) como
abertura para aquilo que não somos. Vivi situações de caos, diferença,
sensibilidade, instabilidade, tensão, beleza, impossibilidade, incoerência,
encontro, desencontro. Situações intensas que engendraram em mim a paixão e
a curiosidade pelo tema educação e infância.
1 Grupo interdepartamental UNISC/CNPq formado pelos professores Dr. Norberto Perkoski
(coordenador), Ms. Ângela Cogo Fronckowiak e Dra. Sandra Regina Simonis Richter. 2 Ambos coordenados pela professora Dra. Sandra Regina Simonis Richter e vinculados ao grupo
de pesquisa Estudos Poéticos, nos quais atuei como bolsista voluntária da UNISC nos projetos de extensão e pesquisa desenvolvidos entre 2006 e 2009. Nesse período foram desenvolvidos relatórios anuais como compromisso assumido junto à Universidade.
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Estar com as crianças na extensão e na pesquisa me possibilitou alcançar
a compreensão que educar não é algo que alguém possa dar ao outro. Educar
não significa dar algo a alguém, não é adquirir algo de alguém, mas compartilhar
uma experiência com a infância. Aqui, infância diz respeito aos começos no
mundo e com o mundo,
“[...] por isso a educação tem a ver com a maneira como recebemos os novos e a novidade que trazem consigo. Por isso a educação é uma relação entre gerações, entre os velhos e os novos, entre os que já estão no mundo e os que vêm ao mundo, entre nossa mortalidade e seu nascimento”* (LARROSA, 2012, p. 13).
Trata-se de afirmar que educar pressupõe o outro: encontrar, compartilhar,
escutar. E por ser encontro, supõe travessia.
Essa escrita é fruto de um percurso de pesquisa que se iniciou ainda na
graduação, quando me tornei integrante de um grupo de estudos no qual fui me
desenhando pedagoga e pesquisadora ao atuar na extensão e na pesquisa.
Nesse percurso a temática das linguagens na educação da infância foi sendo
inflamada pelo debate contemporâneo de uma educação da infância com as
crianças.
O estudo, no grupo de pesquisa, de autores como Gaston Bachelard,
Maurice Merleau-Ponty, Paul Ricoeur, Paul Valèry e Jorge Larrosa transformaram
o modo como passei a conceber e a interrogar a relação entre infância e
educação. Melhor dizendo, a reflexão a partir da aproximação entre as
concepções fenomenológicas de imaginação criadora em Bachelard, corpo
sensível operante em Merleau-Ponty, ação narrativa em Ricoeur, poética em
Valèry, experiência e aprendizagem em Larrosa, passou a orientar meu interesse
de estudos como pedagoga ao apontarem para o mistério da linguagem na
composição de mundos.
O interesse em compreender como a interação entre adultos e crianças e
as crianças e seus pares podem gerar composições de mundos me conduziu ao
estudo da linguagem enquanto constituidora de modos de ser e estar no mundo.
Dito de outro modo, linguagem enquanto processo interpretativo de composição
de sentidos ou o modo como vamos aprendendo a nos contar, interpretar e
valorar o mundo em narrativas.
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O encontro com Paul Ricoeur3 e com Merleau-Ponty4 contribuíram para
problematizar discursos educacionais que abordam a sensibilidade e que, no
entanto, ignoram a sensibilidade em suas ações de apresentar a linguagem aos
que chegam. Enfrentar a linguagem como uma experiência de pensamento, como
diferentes modos de perceber o mundo, coloca a educação diante do desafio de
perseguir outros modos de pensar as infâncias: em dimensões e não em
estruturas, conceitos, representações. Em oposição à metafísica, o termo
dimensão5 é aqui utilizado no sentido que lhe dá Merleau-Ponty (1999b, p.202) ao
explicitar sua noção de mundo como “esse conjunto em que cada „parte‟, quando
a tomamos por si mesma, abre de repente dimensões ilimitadas – torna-se parte
total” aponta cada “parte”, apesar de incomunicável para as outras, fazendo parte
do todo enquanto rumo “para a abertura, o inacabamento, a indeterminação e a
transcendência na imanência do ser” (CHAUÍ, 2002, p. 121).
Na esteira da filosofia, não persigo uma elucidação ao problema
educacional posto pela aprendizagem da linguagem na infância, mas com textos
e o vivido com as crianças compor um pensamento educacional. Enquanto
pedagoga busco uma aproximação com a filosofia, mas também com a
lingüística, com a antropologia, com a sociologia, para pensar como podemos
alcançar maior tolerância com a experiência dos começos da linguagem na
infância, ou seja, com a alteridade entre adultos e crianças. Como afirma Jean
(1990, p. 37), o fenômeno da linguagem é tão complexo “[...] que se necessitam
várias ciências para compreendê-lo um pouco melhor: psicologia, psicanálise,
linguística, etc. A constante em todas essas disciplinas é a presença corporal, na
medida em que a língua, no nível mais elementar da fonação, é produzida pelo
corpo“*.
3 Monografia apresentada para conclusão do curso de Pedagogia: “Infância e educação: entre a
criança e o aluno”, 2009. Orientadora: Dra. Sandra Regina Simonis Richter. 4 Participação, em 2011, no Grupo de Estudos Merleau-Ponty & a Educação: Arte, fenomenologia
e infância, coordenado por Marina Marcondes Machado. 5 Contra a divisão metafísica entre o sensível e o inteligível Merleau-Ponty (1999b, p. 206) propõe
“substituir as noções de conceito, ideia, espírito, representação, pelas noções de dimensões, articulação, nível, charneiras, pivôs, configuração ...”. Para Chauí (2002, p. 113), “dimensão não é região nem esfera, não é multiplicidade do diverso cada qual com sua identidade positiva e à espera da síntese como atividade da consciência, mas é a pluralidade simultânea dos modos de ser que são puras diferenças de ser, que passam uns nos outos, comunicam-se e se entrecruzam. Cada dimensão é pars totalis , uma configuração que, em sua diferença, exprime o todo”.
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Nesse sentido, o objetivo desse estudo é convidar a docência da Educação
Infantil a dotar o ofício pedagógico de sensibilidade para com a riqueza da
inexperiência/experiência da infância a partir da consideração educacional aos
processos primais e vitais da base existencial e corpórea da cultura de inserção
no coletivo: a aprendizagem da linguagem e com ela os fazeres, os saberes, a
imaginação, a memória. Trata-se de afirmar não apenas o direito das crianças à
educação, mas reivindicar a responsabilidade dos adultos em garantir também o
direito das crianças aprenderem o poder linguageiro de instaurar modos de agir
no mundo.
Trata-se de enfrentar o desafio de propor um estudo que aborda a temática
da linguagem no campo da pedagogia enquanto fenômeno que emerge da
convivência entre adultos e crianças em espaços coletivos de vida, portanto de
linguagem. A intenção é destacar a relevância educacional de aprender a pensar
um tema que não pode ser “paralisado”, fixado em respostas definitivas, pois diz
respeito à vida e esta não é redutível nem a conceitos nem a categorias. Significa
acolher o mistério da linguagem enquanto fenômeno (MERLEAU-PONTY, 2012)
ou enquanto experimentum linguae6 (AGAMBEN, 2005) que pode ser interrogado,
mas não descortinado. Sempre estaremos diante do mesmo enfrentamento: “a
linguagem só permanece enigmática para quem continua a interrogá-la, isto é, a
falar dela” (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 197).
Para Larrosa (2003, p. 55), o que torna inquietante a discussão em torno
da linguagem é justamente o fato de que a linguagem é o horizonte de todas as
coisas. Apesar de ser um dos problemas mais obscuros para a reflexão, encontro
nas palavras do filósofo suporte para considerar que, em se tratando da
linguagem, há que discuti-la nas dimensões possíveis de narrar de diferentes
modos o viver.
Portanto, esta dissertação não surge de uma pergunta, mas de um
problema que foi sendo desenhado e redesenhado, constituído no processo
mesmo de sua escritura, para apresentar uma composição teórica enquanto
interpretação narrativa dos limites do percurso de estudos realizados. Aqui, a 6 Agamben (2005, p. 17), cita Wittgenstein para explicitar experimentum linguae: “E agora
descreverei a experiência de maravilhar-se com a existência do mundo dizendo: é a experiencia de ver o mundo como um milagre. Nesse momento sou tentado a dizer que a expressão justa na língua para o milagre da existência do mundo, mesmo não sendo nenhuma proposição na língua, é a existência da própria linguagem”.
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idéia de composição assume o sentido de interpretar em Mèlich (2012, p. 45) que
o afirma como abertura a uma possibilidade sempre incerta, não passível de ser
totalmente controlável nem planificada:
Interpretar é permanecer aberto a novidade, a natalidade. A verdadeira vida e fundamentalmente hermenêutica porque o próprio do ser humano é não ter nada próprio, sua definição é precisamente a falta de definição. O homem tem a necessidade de inventar-se, de constituir-se, de chegar a ser. Interpretar, por tanto, consiste em escapar de todo determinismo, de toda frase ou fase definitivas. Interpretar é interpretar-se, narrar-se, inventar-se.
7
Assim como para o artista, a composição opera sempre “no meio”: entre
conceitual e sensível, entre teoria e prática, entre razão e sonho. Estar “entre”
implica movimento8 ao operar no constante vaivém entre essas diferentes forças e
tensões nas quais o raciocínio sonha e o sonho raciocina (LANCRI, 2002). Para
enfrentar a complexidade do desafio que o tema impõe, opto por assumir o lugar
do meio que corresponde ao modo como posso movimentar-me e realizar a
travessia para trazer à tona uma experiência de pensamento, possível entre
tantas outras, que se detém no problema educacional posto pela aprendizagem
da linguagem na infância. Como pedagoga, não sou especialista no tema e minha
formação tampouco abrange conhecimentos que permitam abordá-lo com a
mesma profundidade ou especificidade de outros campos de estudos voltados
para a questão da linguagem. Pedagogia, em seu sentido etimológico de conduzir
crianças, supõe encontro linguageiro com o outro no mundo: é sempre relacional.
Para Charlot (2000, p. 53), conhecer diz respeito a estar junto, ou seja, diz
respeito à interação que se “elabora no próprio movimento através do qual eu me
construo e sou construído pelos outros”.
Estar com o outro, na relação pedagógica, ultrapassa uma expectativa de
ciência que busca analisar o que está fora, como um objeto a ser decifrado, antes
supõe intencionalidade nas escolhas éticas e estéticas que expressam um
compromisso político com a produção de saberes, de aprendizagens, de
experiências de pensamento plurais. Para Bárcena (2004), educação, arte e
poética não cabem ser abordadas a partir de experimentos e deduções
7 Texto original escrito em espanhol. Tradução livre, realizada pela pesquisadora.
8 Para Bachelard, nada é fixo para quem alternadamente pensa e sonha: “as sínteses me
encantam. Me fazem pensar e sonhar ao mesmo tempo. São a totalidade de pensamento e de imagem. Abrem o pensamento pela imagem, estabilizam a imagem pelo pensamento” (BACHELARD, 1994, p.81).
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verificáveis que pretendam uma conclusão como na teoria científica clássica, pois
a educação implica interações e contextos de singularidades. Em suas palavras,
“se pode dizer que a investigação pedagógica segue um modelo diferente ao de
outras ciências, ao centrar-se na compreensão de significados das experiências e
expressões humanas por meio da descrição e da interpretação”* (BÁRCENA,
2004, p. 92). O encontro com o outro – o alter – exige um movimento de
pensamento que é necessário aprender, pois diz respeito à alteridade. Aquilo que
o outro pode me mostrar, mesmo sem a intenção de mostrar, jamais poderia ver
se não fosse a partir do encontro com sua alteridade. Por isso, aprender para
Kohan (2003, p. 223) “é uma tarefa infinita. Não há nada prefigurado,
predeterminado, previsto a aprender; nada a aprender. Aprender é abrir os
sentidos ao que carece de ser pensado”.
Tanto a linguagem quanto a infância estão entre o dizível e o indizível, o
pensado e o impensado, como um excesso, sempre um pouco mais distante do
que o ponto onde acreditamos alcançá-las. Restará sempre, por trás de nossas
afirmações, mais vida do que estas podem fixar sob nosso olhar (MERLEAU-
PONTY, 2012). Diante do mistério do humano, o esforço dessa dissertação está
em compor uma experiência de pensamento a partir do contraste entre minhas
leituras e a convivência com as crianças para afirmar, com Merleau-Ponty (1999b,
p. 156), que interrogamos nossa experiência para saber como ela pode promover
a abertura ao que não somos. O mistério não é o que pretendemos eliminar, mas
o que podemos adentrar. Não para explicar, mas para acolher o convite à
iniciação de nós.
Após um percurso de escolhas, dúvidas, encontros e desencontros
teóricos, percebo a pesquisa como possibilidade de travessia a qual supõe estar
atento ao inesperado para enfrentá-lo, ao inusitado do que ainda não sei. Esse é
o meio do caminho, o lugar que me permite significar o vivido, e quem sabe,
transformar o viver. O que apresento aqui é o meu processo de aprender a pensar
os contornos, meus limites e limitações diante do tema, para interrogar e
especular como a pedagogia pode contribuir para pensar o problema da
aprendizagem da linguagem na educação das infâncias.
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Assim, no ensaio educação e linguagem busco problematizar a linguagem
enquanto representação de mundo. Para von Foerster (1996, p. 65) “a linguagem
e a realidade estão intimamente conectadas” e nessa conexão “costuma-se
afirmar que linguagem é a representação do mundo”. Diante disso o autor propõe:
“gostaria de sugerir o contrário: que o mundo é uma imagem da linguagem. A
linguagem vem primeiro; o mundo é uma consequência dela” (von FOERSTER,
1996, p. 65).
No ensaio infância e linguagem, para problematizar a histórica
compreensão de uma infância e de uma criança universal, busco em Agamben
(2010, p. 62) a compreensão de que
a infância age, com efeito, primeiramente sobre a linguagem, constituindo-a e condicionando-a de modo essencial. [...] Se não houvesse uma infância do homem, certamente a língua seria um „jogo‟, cuja verdade coincidiria com o seu uso correto segundo regras lógico-gramaticais.
Torna-se, a partir dessa perspectiva, necessário considerar a radical
alteridade linguageira entre adultos e crianças, ou seja, assumir a diferença da
experiência da linguagem nas interações entre adultos e crianças. Antes trata-se
de considerar que nessa diferença não há fragilidade ou impotência da criança.
O ensaio corpo no mundo e linguagem surge, então, como necessidade
teórica e prática de problematizar a cisão entre corpo e mente, sensível e
inteligível, para refletir “a experiência de habitar o mundo” em torno da
complexidade dos processos de aprender a coexistência no mesmo mundo -
aquele que já existe e aquele que será constituído - através de um corpo sensível
operante capaz de agir, imitar e jogar, desde a infância.
No rastro da reflexão anterior, o ensaio Educação e infância é composto
com a intenção de discutir a educação como acontecimento da vida, no qual a
interação entre adultos e crianças, marcada pela alteridade linguageira, faz
emergir a aprendizagem da convivência em um mundo compartilhado: em
linguagem.
No último ensaio, mistérios da linguagem, desejo compor o indizível, e
com ele mostrar o enfrentamento que encontro ao estudar a inseparabilidade
entre educação, infância e linguagem.
16
no meio: travesia
Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso? Guimarães Rosa Grande Sertão Veredas, p. 26
Esta dissertação apresenta uma reflexão em torno da íntima relação entre
educação, infância e linguagem. O interesse pela temática da linguagem na
Educação da Infância surge do meu percurso de formação acadêmica
desencadeado no curso de Pedagogia: entre a pesquisa e a extensão, a
fenomenologia e a poesia. Durante toda a graduação estive vinculada a um grupo
de estudos que focalizava a aproximação entre literatura e artes plásticas a partir
das concepções fenomenológicas de imaginação poética em Gaston Bachelard,
de corpo sensível operante em Merleau-Ponty e ação narrativa em Ricoeur9.
Abordagem que favoreceu pensar a educação da infância a partir do modo
relacional em que se articulam e desdobram encontros entre crianças-adultos,
criança-criança e criança-mundo.
Os estudos desenvolvidos nos projetos de pesquisa “Experiência poética e
aprendizagem na infância” (2006-2010) e “Dimensão poética das linguagens e
educação da infância” (2011-2012), em seu objetivo de contribuir com reflexões
no campo da educação de crianças pequenas, promoveu um lento processo de
apropriação de conceitos que permitissem pensar as especificidades que
envolvem processos educacionais com crianças pequenas. Especificidades que
9 RICHTER, Sandra R S; FRONCKOWIAK, A. C.; MOURA, D. R.; SILVA, P. T.; ROSA, S.; BERLE,
S.; SANTOS, M. I. Experiência poética e aprendizagem na infância. 2008. (Relatório de pesquisa); RICHTER, Sandra R S; FRONCKOWIAK, A. C.. Relatório Técnico Processo N. 477709/2007-09 CNPq. 2010.
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demandaram o distanciamento das generalidades da metafísica e a aproximação
com a fenomenologia. Não interessava ao grupo estudar a infância, a criança, a
educação, mas sim investigar conceitos e teorias a partir do que as crianças
podem nos mostrar, do que no campo educacional podemos aprender a interrogar
convivendo com as crianças.
Porém, conviver com crianças supõe utilizar uma linguagem adulta e é
impossível traçarmos nesta linguagem como uma criança sente e diz o mundo.
Portanto não se trata de falar pela criança ou traduzi-la, mas compreender que a
radical alteridade linguageira10 entre adulto e criança, aquela que os colocam em
distintas maneiras de interagir no e com o mundo, exige uma abordagem filosófica
enquanto experiência de pensamento que afirma a pluralidade de interpretações
ao negar modelos explicativos prévios11. É porque os que nascem têm a
possibilidade de começar algo novo que a infância é inerente aos começos e
demanda escuta ao novo, às vidas novas e às novas vidas. Por isso, para Larrosa
(2012, p. 14), a educação só pode ser uma relação com a infância, com um
começo, com uma vida nova, pois “venir al mundo es inseparable de venir al
lenguaje. El mundo y el leguaje constituyen lo único que los seres humanos
tenemos en común”. Para o autor, a tarefa pedagógica – enquanto tarefa de
adultos que, por já estarem no mundo e já estarem na linguagem, têm que
entregar o mundo e a linguagem aos que chegam – tem um duplo compromisso:
primeiro com as vidas que nascem e segundo com o mundo e com a linguagem.
Diante do desafio educacional de estudar a linguagem como fundante das
interações do humano, portanto também das interações pedagógicas, os
enfrentamentos são inevitáveis. Um estudo que deseja “burilar” ou “especular” o
que há para saber da relação entre infância e aprendizagem da linguagem a partir
da pedagogia, não busca respostas, busca pensar com a provisoriedade das
composições. Considerando que a linguagem é o horizonte de todas as coisas, a
10
Maturana (1997; 1998) utiliza o termo “linguageiro” para enfatizar seu caráter de atividade, de comportamento e não de uma “faculdade” própria da espécie. 11
Para Bárcena (2012, p.68), “la filosofia no requiere solamente una comprensión (filosófica) por conceptos, sino también una comprensión no-filosófica, por afectos y perceptos”, portanto “[…] la filosofía podría demostrarse que es posible promover ideas, no desde una razón abstracta desvinculada del terreno pasional de la vida – de los acontecimientos -, sino desde experiencias concretas que reflejan los cambios culturales en los que nos hallamos inmersos, sin incurrir por ello en la lúdica banalidad atribuida al ingenio postmoderno más reciente, o en otras modalidades discursivas que se limitan a decir que lo que hay es lo que hay” (BÀRCENA, 2012, p. 65).
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pedagogia é um modo de ver esse horizonte. Nesse sentido, busco caminhos
para pensar a educação da pequena infância. Buscar caminhos, nesse estudo, é
permanecer aberto ao que possa emergir enquanto fenômeno da linguagem o
que para Mélich (2012) significa interpretar.
A ambiguidade que tenciona o estudo da linguagem, pois só pode ser
realizado pela linguagem, exige explicitar as opções metodológicas. Toda escolha
supõe um abandono. Na proposta inicial desse estudo sugeri três possibilidades
distintas de convivência com crianças em espaços coletivos de educação. O
desejo que unia as três sugestões estava na dificuldade em abordar a temática da
linguagem na infância e por isso, conviver com as crianças, me pareceu um
caminho que pudesse dar pistas para a reflexão.
Minha intenção inicial era fazer uma fenomenologia, uma descrição densa
a partir da convivência com crianças pequenas em um espaço de educação
coletiva. Ao acolher a contribuição dos professores pesquisadores que realizaram
e compartilharam suas leituras, vislumbrei, juntamente com a orientadora deste
trabalho, uma quarta possibilidade para desenvolver essa pesquisa em que a
convivência com as crianças me parecia imprescindível para seguir com esse
estudo, ou talvez eu tenha sido seduzida pela oportunidade de realizar uma
pesquisa fenomenológica com crianças, o que tornou a convivência com as
crianças imprescindíveis para essa “tarefa”. Porém, o que ocorreu foi o
“deslocamento” da compreensão do termo espaço de educação coletiva para
espaço coletivo de educação, ou seja, passei a considerar o viver um processo de
educação. Como parte do desafio que esse estudo me apresentou, surgiram duas
possibilidades que me permitiam estar com crianças e acolher esse outro olhar
para a educação: as Oficinas Poéticas12 e a convivência cotidiana com um bebê
em sua casa. Acolhi ambas as possibilidades.
As Oficinas Poéticas foram uma parceria entre a Universidade de Santa
Cruz do Sul – UNISC e uma Escola Municipal de Educação Infantil - EMEI da
rede de escolas do município de Santa Cruz do Sul - RS. Durante 6 encontros,
que ocorreram na Universidade e reuniram professores da rede, professores em
formação, pesquisadores e 25 crianças, com idades entre 4 e 5 anos, buscamos
12
Projeto de extensão desenvolvido no Memorial da UNISC no primeiro semestre de 2012, vinculado ao Núcleo de Educação Básica – NEB, ao Núcleo de Arte e Cultura NAC e ao projeto de pesquisa Dimensão poética das linguagens e educação da infância.
19
aprofundar a investigação em torno da imaginação poética e da educação da
infância. O projeto ofereceu encontros poéticos com a cor, o traço, a mancha, a
modelagem e a palavra no espaço de ateliê enquanto tempo de complexificar
outros modos de interagir para aprender a decifrar e interpretar a experiência
singular de co-existir. Os objetivos específicos foram desenvolver planejamentos
e realizar ações nas especificidades das artes plásticas e da poesia; favorecer
aprendizagens com crianças pequenas no âmbito da dimensão poética; contribuir
para os estudos teórico-metodológicos no campo da educação da infância;
estabelecer interlocução entre universidade e comunidade. A metodologia
sustentou-se num processo de interação propositiva intensa com as crianças e
envolveu, em primeiro plano, a oferta de ações planejadas em torno das artes
plásticas e da literatura no espaço e tempo do ateliê, em segundo, a ampliação de
repertórios das crianças e seus professores, para finalmente observar, registrar e
estudar como as crianças e seus professores interagem com linguagem plástica e
literária na dinâmica relação entre corpo, palavra e imagem.
Paralelamente, a convivência com um bebê foi se desenhando aos poucos.
Quando Vitor nasceu eu estava iniciando meus estudos no PPGEdu UNISC,
assim nós dois tínhamos algo em comum: a inexperiência diante da novidade de
um começo. De algum modo, tive que aprender a andar, aprender a falar,
aprender a conviver com o desconhecido. Mas o que de fato “trouxe” o bebê até
mim foi algo particular, que ocorre no interior do estado em municípios pequenos:
minha mãe passou a ser a babá do Vitor quando ele completou 1 ano de vida,
durante um turno do dia. Dessa maneira a convivência com o pequeno foi
aguçando o desejo em saber mais sobre a pequena infância.
Quando um bebê nasce, nasce também um contexto de vida que o acolhe,
a sua potência e a sua fragilidade mobilizam o entorno13. Com o Vitor não foi
diferente. Assim, acompanhei o menino durante aproximadamente 1 mês em sua
vida cotidiana. Convivi com ele na sua casa, com sua mãe, sua tia, seu irmão, seu
pai, pessoas que iam e vinham. O contexto de vida do bebê me pareceu bastante
particular, já que seus pais são trabalhadores autônomos. A mãe trabalha em 13
É necessário destacar que no município de Santa Cruz do Sul, assim como em muitos outros municípios do Brasil há uma carência de vagas na Educação Infantil. No ano de 2010, 2011 e 2012 as discussões em torno da educação de bebês como contexto de vida coletiva se intensificaram. Nesse período tive a oportunidade de participar dos estudos que mobilizaram o grupo de pesquisa Linguagens Cultura e Educação LINCE- UNISC e GEIN - UFRGS
20
casa, tem sua confeitaria e o pai, prestador de serviços, tinha seus horários de
trabalho bastante flexíveis, isso fazia com o que o menino convivesse muito com
a sua família.
A dinâmica de registro das Oficinas Poéticas e da convivência cotidiana
com o Vitor foi semelhante. Utilizei como recursos principais gravações de vídeos
e registro individual em diário. No caso das oficinas poéticas o grupo de pesquisa
estava mobilizado em registrar os encontros, além da gravação de vídeo, com
câmera fotográfica digital e diário in loco. Os registros da convivência com o bebê
eram realizados por mim, como suas ações demandavam muita atenção, por sua
agilidade e desprendimento (não se detinha muito tempo em uma determinada
ação), diante da sua fragilidade e possível necessidade da minha intervenção,
optei pela gravação de vídeo, e imediatamente após a notação em forma de
tópicos do ocorrido no período e o posterior desdobramento dessas informações
na elaboração do diário.
Novamente ocorreu uma grande ruptura no desenvolvimento dessa
dissertação. Mesmo pretendendo abordar a escola e os espaços coletivos de
aprendizagens, o encontro com o não saber sobre linguagem, me fez perseguir
uma reflexão que sustentasse as interrogações vividas com o bebê e as crianças
da EMEI. Assim optei, com a orientadora dessa pesquisa, em não trazer para o
texto os registros e as descrições do vivido com o bebê e as crianças como
fomento direto para sua elaboração final, mas a convivência com ambos como
“fundo” ou contraponto que tenciona o movimento da escritura que foi emergindo
a partir daquilo que nossas interações me interrogaram e permitiram pensar
acerca da temática de pesquisa proposta14. Assim, apesar de não trazer a
descrição do vivido, ela atravessa a escritura do texto na perspectiva “que todo
visível comporta um fundo que não é visível no sentido da figura” (MERLEAU-
PONTY, 1999b, p. 224) fazendo surgir uma composição entre figura e fundo na
qual “o sentido invisível é a nervura da palavra” (MERLEAU-PONTY, 1999b, p.
207).
A intenção desse estudo nunca foi dizer o que é linguagem nem mesmo
comprovar alguma teoria a partir do vivido com as crianças. Diante da intenção
14
Optei, porém, por produzir um arquivo digital para o leitor acompanhar algumas imagens deste fundo que tece a escrita da dissertação.
21
acadêmica em compartilhar estudos e ideias, foi necessário encontrar um
caminho para torná-los inteligíveis. Busco na especificidade da tarefa filosófica,
que para além de operar com conceitos, se detém no ofício da hermenêutica, a
inspiração para essa investigação. Trata-se de uma narrativa em que estudar “es
crear, inventar conceptos” (BÁRCENA, 2012, p. 67), enquanto criação de
pensamento.
Elaborar conceito, aqui, diz respeito elaborar um pensamento que deseja
inflamar o problema da aprendizagem da linguagem na infância. Polinizando a
discussão no campo da Pedagogia com ideias filosóficas, antropológicas,
sociológicas, busco pensar desde conceitos, desde uma transcendência, para
problematizar princípios absolutos, categorias e tendências homogeneizadoras
dos processos de aprender a entrar, a começar-se em linguagem. Educar, na
perspectiva de Larrosa (2012) não diz respeito à „aquisição de conteúdos
escolares‟, e por isso sugere levar em consideração que “talvez a educação tenha
a ver com dar vida à vida ou, o que é o mesmo, com dar vontade, desejo de
viver”* (LARROSA, 2012, p. 18). Portanto, pensar processos educacionais é
também pensar o humano em sua imprecisão do/no viver, é referir-se à abertura
para a pluralidade do humano, é buscar uma hermenêutica. O humano, nessa
linha de pensamento, não é categorizável. Nas palavras de Mèlich (2012, p. 45),
falar, pensar é interpretar e “interpretar é interpretar-se, narrar-se, inventar-se. […]
nunca pode haver uma interpretação absoluta, definitiva, última. Toda
interpretação é – e deve ser – passível de ser revisada, porque se não fosse
assim nos encontraríamos em um final de partida. A interpretação é infinita
precisamente porque cada interpretação é finita”*. Nessa compreensão, o que
apresento é o modo como pude organizar um pensamento que, diante dos meus
limites, desejei tornar os contornos menos fixos.
Assim, me coloco diante das incertezas, das fragilidades da provisoriedade
das verdades de uma filosofia narrativa que implica contar da minha relação, da
minha travessia. E na travessia dessa dissertação a concepção de educação foi
se reconfigurando ao mesmo tempo em que fui me reconfigurando. Fui, aos
poucos, tomando distância de concepções pedagógicas que “creem que as coisas
acontecem de forma sequencial, que vão por uma via de direção única, na qual a
ação de um sobre o outro se encadeia formando uma causalidade linear”*
22
(ROBIRA, 2010, p. 230) e me aproximando das obras e do pensamento dos
espanhóis Fernando Bárcena, Joan-Carles Mèlich e Jorge Larrosa por afirmarem
a educação como “processo ético de vida”.
Se para Larrosa (2012, p. 14) o mundo e a linguagem constituem o único
que os humanos têm em comum, para Mèlich (2012) ter algo em comum é herdar
uma gramática, uma linguagem, um modo de dizer o mundo, a vida. Sendo a
infância a possibilidade e a abertura para o novo, é também a possibilidade de
transgredir essa gramática e alterar o mundo (MÈLICH, 2012). Para o filósofo
torna-se importante a distinção entre mundo e vida. Mundo diz respeito ao físico,
ao simbólico, ao signo e ao normativo que é habitado por uma gramática. Uma
gramática é uma dimensão compartilhada do mundo. Uma gramática é um modo
de saber, ver e dizer o mundo, uma linguagem. Assim a gramática, o modo de
dizer, sempre pertence ao público, pois não sou eu que tenho uma linguagem,
mas sim nós temos uma linguagem. A linguagem forma parte de nós, do plural,
não do singular. No fundo, uma ordenação do mundo, o que o torna
compartilhado. A vida, a partir de uma gramática, diz respeito à transgressão, ao
imprevisível, ao acontecimento, pois é ela que me permite entrar em linguagem. E
o sentido de uma linguagem, é o modo como eu entro em relação com a vida,
mas também como a vida torna-se significativa para cada um, e isso pode mudar.
Se a linguagem é uma forma de vida, a nossa vida tem múltiplas
dimensões, afinal “o que se transmite não é o mundo. […] O que se transmite é,
antes, uma relação com o mundo”* e “essa relação com o mundo é inseparável
de uma relação com a linguagem”* (LARROSA, 2012, p. 16). A educação na
infância, portanto, implica uma relação com a linguagem, e não com o ensino da
linguagem, a valoração de um conteúdo e não um conteúdo estanque. Aprender
uma linguagem, uma gramática do mundo, será sempre uma experiência de
pensamento, pois diz respeito à infância do homem, aos começos do humano
(MÈLICH, 2012; AGAMBEN, 2005).
Essa escrita, portanto, é tensionada pela experiência de estar com as
crianças em seus começos linguageiros. Uma reflexão, que ao estudar, não
pretende explicar ou conceituar, muito menos traduzir, sua ação linguageira, mas
extrair da convivência com as crianças os paradoxos postos pelas interrogações a
mim lançadas por essa experiência relacional para compor um exercício de
23
pensamento com a fenomenologia e os princípios da complexidade pelo interesse
em ultrapassar as polarizações metafísicas entre sujeito e objeto, entre corpo e
mundo.
Distante da metafísica, ou em oposição, a educação torna-se processo
ético de vida (MÈLICH, 2012). A oposição seria a filosofia narrativa, proposta por
Mèlich (2012), Bárcena (2012), Larrosa (2003), aquela que crê vivermos em um
tecido, um emaranhado de histórias. Narrativas que incessantemente estão sendo
entrelaçadas umas nas outras a partir da convivência, da partilha de um mundo
que aprendemos/podemos contar/viver no coletivo. Assim o que há são histórias,
e por isso sempre estamos constituindo caminhos e, principalmente, sempre
estamos em caminhos, em movimento de transição: mudando (MÉLICH, 2012).
Diante dessa perspectiva, apresento a narrativa e a fenomenologia como um
modo de contar, de enfrentar o paradoxal desafio de estudar linguagem com
linguagem.
A diferença é justamente o paradigma. Não se trata mais de obedecer a um princípio de ordem (eliminando a desordem), de claridade (eliminando o obscuro), de distinção (eliminando as aderências, as participações e as comunicações), de disjunção (excluindo o sujeito, a antinomia, a complexidade), ou seja, obedecer um princípio que liga a ciência à simplificação lógica. Trata-se, ao contrário, de ligar o que estava separado através de um princípio de complexidade. (MORIN, 2002, p. 37)
Diante da simplificação que determina um único modo possível de viver, de
conceber o real, que ordena a ação sobre o mundo, Edgar Morin (1986) propõe, a
partir do paradigma da complexidade, pensar a inseparabilidade entre unidade e
multiplicidade, entre ordem e desordem. Ao invés de dividir e fragmentar o mundo
para pensá-lo, propõe abordá-lo em suas ambiguidades, as quais o pensador
julga serem complementares, concorrentes e antagônicas: se complementam e se
opõem de forma dialógica, pois o que se constitui também se altera, se regenera.
Entender que a desordem organiza é complexo, é estar na complexidade. A
dificuldade está em aprendermos a pensar os fenômenos simplificadamente pela
lógica causal do certo e errado, em aprendermos a crer que o cérebro ou intelecto
pensa e organiza o corpo. Porém, quando passamos a considerar a percepção15
15
“A percepção, que é acontecimento, abre-se a uma coisa percebida que lhe aparece como anterior a ela, como verdadeira antes dela. E, se reafirma sempre a preexistência do mundo, é justamente porque ela é acontecimento, porque o sujeito que percebe já está envolvido no ser por
24
em seu sentido de experiência do corpo no e com o mundo (MERLEAU-PONTY,
1999a, 1999b), pois “toda percepção é sempre ação” (MERLEAU-PONTY, 2012,
p. 119), compreendemos a complexa inseparabilidade entre corpo e mente e
podemos considerar a emergência da vida também a partir do caos enquanto
imprevisibilidade da ação do corpo no mundo.
Glosa – PERCEPÇÃO
Ao mesmo tempo é verdade que o mundo é o que vemos e
que, contudo, precisamos aprender a vê-lo. No sentido de
que, em primeiro lugar, é mister nos igualarmos, pelo saber,
a essa visão, tomar posse dela, dizer o que é nós e o que é
ver, fazer, pois, como se nada soubéssemos, como se a
esse respeito tivéssemos que aprender tudo
(MERLEAU-PONTY, 1999b, p. 16).
Meu corpo, como encenador da minha percepção, já
destruiu a ilusão de uma coincidência de minha percepção
com as próprias coisas. Entre mim e elas, há, doravante,
poderes ocultos, toda essa vegetação de fantasmas
possíveis que ele só consegue dominar no ato frágil do
olhar. Sem dúvida, não é inteiramente meu corpo quem
percebe: só sei que pode impedir-me de perceber, que não
posso perceber sem sua permissão; no momento em que a
percepção surge, ele se apaga diante dela, e nunca ela o
apanha no ato de perceber. [...] Antes da ciência do corpo –
que implica a relação com outrem –, a experiência de minha
carne como ganga de minha percepção ensinou-me que a
percepção não nasce em qualquer lugar, mas emerge no
recesso de um corpo. [...] As coisas verdadeiras e os corpos
que percebem não se situam, desta vez, na relação
ambígua que há pouco encontraríamos entre minhas coisas
e meu corpo. Uns e outros, próximos ou afastados, estão,
em todo caso, justapostos no mundo, e a percepção, que
talvez não esteja „em minha cabeça‟, não está em parte
alguma a não ser em meu corpo como coisa do mundo.
(MERLEAU-PONTY, 1999b, p. 20-21, grifos do autor).
campos perceptivos, por „sentidos‟, de maneira mais geral por um corpo feito para explorar o mundo (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 204, grifos do autor).
25
Encontro então a ligação, o fio condutor, um princípio de ordem para esse
estudo no ensaio16 enquanto “uma figura do caminho da exploração, do caminho
que se abre ao tempo em que se caminha” (LARROSA, 2003b, p. 112), pois foi
preciso considerar que a linguagem também diz respeito àquilo que não pode ser
dito, “falar do que provavelmente não se possa falar no sentido estrito, porque não
é redutível nem a conceitos nem a categorias”* (MÈLICH, 2012, p. 21). Aqui se
põe um dos paradoxos desse trabalho: pensar a linguagem exige mais do que
somente escrever, exige, talvez, mostrar. Assim, um estudo que se detém na
complexa relação entre educação, infância e linguagem, que necessita da própria
linguagem para poder dizer-se, não pode ser escrito com pretensão de explicar ou
sintetizar conceitos, mas pode perseguir uma composição de linguagem através
da figura do ensaio,
porque o ensaio se encontra mais próximo da intuição que da demonstração. Não „demonstra‟, simplesmente „mostra‟, vive a fragilidade, no fragmento, no aforismo, na vulnerabilidade, no instante, na singularidade […] Ensaiar é como dar um passeio, algo assim como perder-se nos caminhos de um bosque ou nas ruas de uma cidade, porque não é fácil saber perder-se, é mais fácil saber orientar-se…* (MÈLICH, 2012, p. 22)
O ensaio17 não almeja fixar conceitos em seu compromisso com a
temporalidade da vida e essa não tem uma verdade única. Na concepção de
Mèlich (2012, p. 23), “o ensaio não ensina os fracassos dos conceitos, porque
estes, e concretamente os metafísicos, não servem para compreender o sentido
do acontecer, da troca, do mal, do nascimento, da morte”*.
Glosa - ENSAIO
Se isso é possível [criar; inventar conceitos], então o ponto
de partida deste filosofar seria uma afirmação da
pluralidade humana das interpretações. Esta afirmação da
pluralidade interpretativa reclama um estilo de filosofia – de
pensamento e de escritura – acorde com seus propósitos;
16
Larrosa (2003b, p. 111) destaca que o ensaio “não tem pretensão de sistema ou de totalidade e tampouco toma totalidades como seu objeto ou sua matéria. O ensaio é fragmentário, parcial e seleciona fragmentos como sua matéria. O ensaísta seleciona um corpus, uma citação, um acontecimento, uma paisagem, uma sensação, algo que lhe parece expressivo e sintomático, e a isso dá uma grande expressividade”. 17
“O ensaio não procede nem por indução ou dedução, nem por análise ou síntese. Sua forma é orgânica e não mecânica ou arquitetônica, nisso se parece com as obras de arte, especialmente com a música e a pintura. O ensaio se situa, de entrada, no complexo” (LARROSA, 2003b, p. 112).
26
um que não toma o acontecimento como um caso mas, sim
como um desvio, uma linha de fuga e uma oportunidade
para pensar com maior radicalidade aquilo que no terreno
do dado escapa a ordem do discurso e a marcos de
explicação supostamente fixos e firmes. Esse estilo é o do
ensaio, e a vocação ensaística do discurso filosófico –
recordemos tanto a Montaigne como a Shopenhauer ou a
Nietzsche, por exemplo – nasce de um empenho –
certamente humilde mas ao mesmo tempo confiado, sem
ser ingênuo – por habilitar um espaço intermediário entre a
finitude da condição humana e uma interminável ânsia de
saber. O ensaio, assim, mais que pretender nega-la, se
sustenta na forma expressiva que busca fazer justiça a
complexidade do real, se empenha em articular especulação
e experiência cotidiana, como querendo dizer-nos que é a
partir dos lugares mais mundanos – sejam humanos ou
inumanos – onde começa a exigente tarefa que tem
destinada toda filosofia (também no terreno da educação): a
elaboração do conceito.*
(BÁRCENA, 2012, p. 66, grifo do autor).
Diante do posto, o interesse científico é promover abertura à discussão da
linguagem na educação de crianças pequenas não como algo a ser explicado ou
decodificado, mas enquanto aprendizagem de composição de um pensamento
educacional: “o ensaísta não define conceitos, mas desdobra e tece palavras,
precisando-as nesse desdobramento e nas relações que estabelece com outras
palavras, levando-as até o limite do que podem dizer, deixando-as à deriva”
(LARROSA, 2003b, p. 114). O ensaio apega-se aos textos e sustenta-se na sua
existência para garantir a densidade da tessitura das palavras, como elemento da
composição da escrita em sua incompletude e descontinuidade. Nessa
perspectiva, as glosas que emergem em cada ensaio que compõe essa
dissertação garantem o chão que sustenta a caminhada, pois “o ensaio necessita
de texto pré-existente, não para ser examinado mas para ter um solo onde correr”
(LARROSA, 2003b, p. 114).
Trata-se de perseguir uma experiência de pensamento e não uma verdade,
pois “ensaiar tem a humilde pretensão de mostrar o movimento da vida, e a vida
27
nunca está bem articulada”* (MÈLICH, 2012, p. 22) e, por isso, o ensaísta inicia
no meio e termina no meio: porque a vida é descontínua em suas irrupções18.
Cabe destacar que a termodinâmica de Ilya Prigogine19, com a “Teoria das
estruturas dissipativas”, já demonstrou que os sistemas vivos operam longe do
equilíbrio, desencadeando uma nova compreensão e conceitualização do tempo
que nos introduz no campo da incerteza e da indeterminação da vida
(CABANELLAS et al, 2007, p. 10). Trata-se do que Merleau-Ponty (2012, p. 140)
aponta ao afirmar que o agir do corpo no mundo, “(...) – não sob a condição de
alguma convenção prévia, mas pela eloqüência de seu próprio arranjo e de sua
configuração –, implanta um sentido naquilo que não tinha, e que portanto, longe
de esgotar-se no instante em que ocorreu, abre um campo, inaugura uma ordem,
funda uma instituição ou uma tradição...”.
Glosa – TERMODINÂMICA E TEMPO
Descobrimos que a irreversibilidade desempenha um papel
construtivo na natureza, já que permite processos de
organização espontânea. A ciência dos processos
irreversíveis reabilitou no seio da física a concepção de uma
natureza criadora de estruturas ativas e proliferantes. [...]
Encontramo-nos num mundo irredutivelmente aleatório, num
mundo em que a reversibilidade e o determinismo figuram
como casos particulares, em que a irreversibilidade e a
indeterminação microscópicas são regra
(PRIGOGINE; STENGER, 1991, p. 8).
A termodinâmica dos processos irreversíveis descobriu que
os fluxos que atravessam certos sistemas físico-químicos e
os afastam do equilíbrio podem nutrir fenômeno de auto-
organização espontânea, rupturas de simetria, evoluções no
18
No sentido de transbordamento, desbordamento, extravasamento (HOUAISS - Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa). 19
Ilya Prigogine ganhou o prêmio Nobel de Química em 1977 por suas contribuições à termodinâmica de não equilíbrio e pela teoria das estruturas dissipativas. Suas idéias inovadoras conduziram a repensar o papel do tempo, a visão sobre conhecimento e, particularmente, sobre as leis fundamentais da física que buscam explicar o universo. Seu enfoque centra-se em que sistemas instáveis (de não equilíbrio) estão na base da descrição microscópica do universo e, com isso, as leis da dinâmica precisam ser formuladas em nível estatístico nas quais a irreversibilidade e a seta do tempo surgem como elementos fundamentais e indissociáveis dos sistemas instáveis.
28
sentido de uma complexidade e diversidade crescentes. No
ponto onde se detêm as leis gerais da termodinâmica pode-
se revelar o papel construtivo da irreversibilidade; é o
domínio onde as coisas nascem e morrem ou se
transformam numa história singular pelo acaso das
flutuações e a necessidade de leis
(PRIGOGINE; STENGER, 1991, p.207).
Hoje a física não nega mais o tempo. Reconhece o tempo
irreversível das evoluções para o equilíbrio, o tempo ritmado
das estruturas cuja pulsão se alimenta do mundo que as
atravessa, o tempo bifurcante das evoluções por
instabilidade e amplificação de flutuações e mesmo esse
tempo microscópico que manifesta a indeterminação das
evoluções físicas microscópicas. Cada ser complexo é
constituído por uma pluralidade de tempos, ramificados uns
nos outros segundo articulações sutis e múltiplas. A história,
seja a de um ser vivo ou de uma sociedade, não poderá
nunca ser reduzida à simplicidade monótona de um tempo
único, quer esse tempo cunhe uma invariância, quer trace
os caminhos de um progresso ou de uma degradação. [...] A
descoberta da multiplicidade dos tempos não é uma
”revelação” surgida da ciência, de repente, bem ao contrário,
os homens de ciência deixaram hoje de negar o que, por
assim dizer, todos eles sabiam. É por isso que a história da
ciência que nega o tempo foi também uma história de
tensões sociais e culturais
(PRIGOGINE; STENGER, 1991, p. 213, grifo dos autores).
Essa dissertação sustenta-se nos pressupostos da fenomenologia
enquanto processo complexo que considera, com Maffesoli (1998, p. 114), que “o
mundo, sua retórica e seus efeitos são, essencialmente, plurais, não se prestam a
uma conclusão, mas sim a uma abertura. [...] Não devem, portanto, construir
objeto de demonstração, sejam quais forem as premissas, mas sim de uma
mostração”. O que demanda, para Maffesoli (1998, p. 114) “[...] não mais pensar a
vida social tal como ela deveria ser, ou tal como se gostaria que ela fosse mas,
sim, tal como ela é”. Assim, diz respeito ao inacabamento, à certeza provisória, à
retomada e à complexificação da ação de aprender e conhecer que, enquanto
29
verbos, carregam consigo a perspectiva que se opõe à ideia de conceito como
algo acabado e generalizado. Nesse sentido “a ‟ideia de horizonte‟ fica aberta e,
por conseguinte, permite compreender melhor o aspecto indefinido, complexo,
das situações humanas, de suas significações entrecruzadas de que não se
reduzem a uma simples explicação casual” (MAFFESOLI, 1998, p. 117). Ou seja,
diante do inacabado e do provisório, o que podemos é circunscrever ideias de um
campo de conhecimento, pois “[...] ao lado da brutalidade do conceito, que
entende esgotar aquilo de que se aproxima, esvaziando, em nome da eternidade,
o aspecto lábil das coisas, pode existir outra aproximação, muito mais acariciante,
atenta ao detalhe, aos elementos menores, numa palavra, àquilo que está vivo”
(MAFFESOLI, 1998, p. 125).
Opto pela ideia acariciante, pelo detalhe, pelos elementos menores. Por
isso preciso viver com as crianças. A valoração de vivido “[...] é o „como‟ que
permite que aquilo que anteriormente não era senão possibilidade se atualize e se
torne realidade” (MAFFESOLI, 1998, p. 119). A perspectiva que a narrativa em
Paul Ricoeur (2006) aponta diz respeito à constituição do humano diante de um
mundo narrado a partir de valorações que aprendemos a estabelecer, a partir do
viver, de compartilhar um mundo comum. O modo como vivemos, nos constitui e
nos permite constituir um mundo. Aprendemos também a nos constituir,
atualizando o vivido a partir da valoração a ele atribuído, enquanto experiência
linguageira de conviver.
Por isso a descrição de um fenômeno20 busca o retorno as coisas mesmas.
Em outras palavras, “[...] isto que existe pelo modo como existe” (BICUDO, 2000,
p. 73. Grifo do autor). O que posso ver, diante da fenomenologia, também diz
respeito ao contraste da minha história, das minhas valorações diante do outro,
de suas valorações. Não se trata de buscar um olhar de sobrevôo, que conceitue
20
Cfe. Abbagnano (2007, p. 510-511), na filosofia contemporânea, Fenômeno é aquilo que tanto aparece ou se manifesta ao homem em condições particulares quanto aquilo que aparece ou se manifesta em si mesmo. Apesar do termo fenomenologia – ciência que tem por objetivo ou projeto a descrição daquilo que aparece – remontar a filósofos como Lambert, Kant, Hegel, a noção hoje viva de fenomenologia enquanto movimento filosófico é a anunciada pelo filósofo austro-húngaro Edmund Husserl em Investigações lógicas (1900-1901) e tem como princípio o caráter intencional da consciência, em virtude do qual o objeto é transcendente em relação a ela e todavia presente “em carne e osso”. , o regresso aos fenômenos, ao modo de aparecer vivido antes de ser tematizado. Esse vivido não pode ser definido, apenas descrito. Nas palavras do filósofo francês Merleau-Ponty, “trata-se de descrever e não de explicar nem analisar” (1999a, p. 2)..
30
a criança ou as infâncias, mas a aproximação com a singularidade de uma
infância que cada criança constitui nas minúcias do viver.
A fenomenologia não pretende, ao descrever um fenômeno, compará-lo a
com a „coisa‟ descrita. Ao descrever supõe-se que há um pensamento, uma
interpretação. Trata-se, portanto, de uma postura fenomenológica. Esta aponta
que não há uma verdade, uma certeza, mas uma interpretação de um fenômeno,
de um real. Assim, “[...] a coisa não está além de sua manifestação e, portanto, é
relativa à percepção e dependente da consciência” (BICUDO, 2000, p. 73. Grifo
do autor). O fenômeno que aqui descrevo é meu próprio pensamento fazendo-se
no fazer da vida.
A percepção torna-se fundante, para Merleau-Ponty, da abertura para um
pensamento fenomenológico. “A Fenomenologia tem por meta ir-à-coisa-mesma
tal como ela se manifesta, prescindindo de pressupostos teóricos e de um método
de investigação que, por si, conduz à verdade” (BICUDO, 2000, p. 71). É
importante destacar que a fenomenologia, concentra seu rigor teórico na
descrição, em sua abertura para levar o outro a pensar um fenômeno. Colocar um
fenômeno diante dos olhos do outro também possibilita a abertura para que
muitas concepções dessa teoria se estabeleçam. Sendo assim, é difícil falar da
fenomenologia com pilares teóricos pré-estabelecidos. Opto, portanto, pela
fenomenologia de Merleau-Ponty não para “capturar” a experiência das crianças
pequenas com a linguagem, mas para desencadear um movimento de
“aproximação” à experiência linguageira como aderência de um corpo no mundo.
Um movimento de aprender a interrogar de outros modos ações educativas com
crianças bem pequenas.
31
educação e linguagem
Este ensaio aproxima educação e linguagem para problematizar a
abordagem educacional da linguagem como representação de um mundo
previamente dado. A intenção é resistir a uma concepção metafísica que
considera a homogeneidade da linguagem nos projetos educativos com crianças
pequenas em detrimento da alteridade radical que funda a interação linguageira
entre crianças e adultos. Tal desconsideração, para Larrosa (1998, p. 239), tem
algo em comum com todas as formas de totalitarismos, “com todos os rostos de
Herodes”: “eliminar a incerteza de um porvir aberto e indefinido, submeter a
alteridade da infância à lógica implacável do nosso mundo, converter as crianças
numa projeção de nossos desejos, de nossas ideias e de nossos projetos”.
Projetos nos quais as crianças são consideradas, nas palavras de Larrosa (1998,
p. 229), “esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres selvagens
que não entendem nossa língua”.
O que permanece como obscuro nas discussões que envolvem a educação
de crianças bem pequenas é o fato de não falarem como os adultos. Certo que
manifestam outros modos eficazes de interagir, mas enquanto não dominam a
fala – ou a língua – adulta o que aprendem ou podem aprender não é considerado
útil ou adequado para a vida comum ou, dito de outro modo, não se “enquadra”
nas expectativas dos adultos.
Talvez este seja o grande enfrentamento que as crianças pequenas
coloquem à pedagogia. Não se trata de julgar o que é adequado e o que é
inadequado, mas sim reivindicar para cada criança a tolerância adulta ao
acolhimento do tempo que necessita para aprender a apropriar-se da linguagem
dos adultos. Ou seja, a tolerância educacional à diferença temporal entre adultos
e crianças nos modos linguageiros de participar da vida pública. Porém, nesse
tempo necessário à conquista gradual da linguagem, como diz Merleau-Ponty
(1999b, p. 24), a criança já “compreende muito além do que sabe dizer, responde
32
muito além do que poderia definir, e, aliás, com o adulto, as coisas não se
passam de modo diferente”. A grande dificuldade pedagógica está em considerar
que, na alteridade da experiência temporal entre adultos e crianças, é o adulto
que não pode incorporar a linguagem: são sempre as crianças as primeiras a
aprenderem (AGAMBEN, 1999).
A preocupação com a temática da linguagem na educação infantil é
recente, emerge dos debates contemporâneos em torno de qual currículo para
crianças bem pequenas (BARBOSA; RICHTER, 2009) e vem sendo amplamente
discutida21 em diferentes contextos. Desde a nomenclatura, se proposta
pedagógica ou currículo, até oposições teóricas – da semiótica à filosofia – não há
consenso conceitual para a temática. Diante da amplitude da questão, e das
áreas de conhecimento que envolve, a divergência convive e configura múltiplos
pontos de vista com consequente diversidade de abordagens, exigindo
posicionamento nas decisões.
No campo da Pedagogia, em especial na educação infantil, o
posicionamento teórico acerca da especificidade ou do lugar das linguagem nos
projetos educativos quase inexiste. Segundo o documento Práticas cotidianas na
educação infantil - bases para a reflexão sobre as orientações curriculares
(BRASIL, 2009)22, “atualmente começam a emergir muitas propostas pedagógicas
pautadas em linguagens. Como essa é uma abordagem recente na educação
infantil, a apresentação das bases teóricas ainda é muito sucinta e as
compreensões diferenciadas” (BRASIL, 2009, p. 55).
21
Em 17 de dezembro de 2009 foi aprovada a Resolução CNE/CEB nº 5/2009 que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) revogando-se a Resolução CNE/CEB nº 01/1999. As novas diretrizes sustentaram-se em amplo debate no território nacional e a Consulta pública sobre orientações curriculares nacionais da educação infantil pode ser encontrada no Portal do MEC: http://portal.mec.gov.br/index.php?Itemid=1096&id=15860&option=com_content&view=article 22
O documento “Projeto de Cooperação Técnica - MEC e UFRGS – para Construção de Orientações Curriculares para a Educação Infantil” foi produzido a partir da análise de propostas pedagógicas para a educação infantil de vários municípios brasileiros; da análise das respostas dos pesquisadores nacionais ao questionário consulta sobre suas concepções de infância e de educação infantil; bibliografia anotada das recentes produções acadêmicas brasileiras sobre educação infantil; da voz de professores e militantes que atuam em defesa da educação infantil; da interlocução com bibliografia nacional e internacional divulgada nos últimos anos. Disponível em http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/relat_seb_praticas_cotidianas.pdf
33
Diante da recente necessidade pedagógica de pensar e elaborar uma
proposta curricular para a educação infantil, enquanto primeira etapa da
Educação Básica (LDBEN 9496/96), os bebês e as crianças bem pequenas
desafiam gestores, educadores e pesquisadores a pensarem os sentidos e as
intencionalidades das ações que orientam a recente condição de convivência
entre adultos e crianças bem pequenas em espaços de vida coletiva e que diz
respeito à possibilidade de “educar” na creche e na pré-escola. A educação
infantil, ao assumir tal possibilidade – ou responsabilidade – enfrenta o desafio de
resistir à tendência de estabelecer um currículo a partir
de conteúdos disciplinares, espelhados no ensino fundamental. Antes de adotar
modelos do Ensino Fundamental e simplificá-los se torna necessário discutir o
que será compreendido afinal como “conteúdo” na Educação Infantil. Se o debate
em torno do problema da aprendizagem da linguagem soa recente para a
Pedagogia, nos campos da Filosofia, da Linguística, da Sociologia, da
Antropologia, da Psicologia, essa temática já vem sendo amplamente debatida
em suas especificidades e interesses de área.
O problema posto pela educação da infância, diante da tradição conceitual
dos diferentes campos do conhecimento de conceberem linguagem enquanto
representação23 de mundo, “uma ilusão objetivista bem instalada em nós”
(MERLEAU-PONTY, 2012, p. 240), expõe a fragilidade das discussões no campo
da pedagogia em torno da aprendizagem da linguagem. A fragilidade pode ser
constatada pela ampla simplificação pedagógica dos termos narrativa, imitação,
ficção, lúdico, imaginação. Simplificação dada pela desconsideração da
experiência temporal do corpo nos processos de aprender a estar em linguagem.
No debate contemporâneo em torno de currículos para a educação infantil,
a aprendizagem da linguagem tende a assumir o lugar antes ocupado pelo ensino
de conteúdos através das áreas de conhecimento. Assim as “linguagens-
conteúdos” (linguagem sonora, linguagem plástica, linguagem matemática)
23
Chauí (2002, p. 6-7), ao comentar a obra de Merleau-Ponty destaca seu interesse por uma metafísica escondida sob a positividade científica e a idealidade filosófica para buscar “o que seu pensamento e o dos outros deviam à filosofia, não para pagar um preço pelo resgate, mas para avaliar o que o pensamento roubara de si mesmo ao pagar tributo à soberania da consciência e das representações. Diante do que chamava „o pequeno racionalismo do início do século‟, que esperava uma coincidência entre o real e as leis científicas ali encarnadas (...) não buscava refúgio no irracional, mas lutava por uma racionalidade alargada que pudesse „compreender aquilo que em nós e nos outros precede e excede a razão‟”.
34
passam a transpor conceitos e teorias ao nomeá-las de outra forma, não
configurando um posicionamento teórico capaz de redimensionar as ações
educativas na Educação infantil e Anos Iniciais. Desta forma mudam os nomes,
mas não as concepções que sustentam a hegemonia de uma racionalidade
sustentada na disjunção metafísica entre sujeito que conhece e objeto a ser
conhecido.
A segmentação e a desconsideração pela tensão envolvida nos processos
de aprender a estar em linguagem predominam no discurso e nas ações
cotidianas das escolas de educação infantil, instalando uma distancia quase
intransponível entre as crianças pequenas e “o” conhecimento. Permanece, nessa
perspectiva, a distancia entre a criança criativa que se expressa livremente
brincando e a criança aluno que precisa apreender o mundo em conteúdos
previamente determinados. Em ambas as situações as crianças estão expostas,
do ponto de vista pedagógico, à simplificação: ou de só expressar ou só receber
“o” saber. Os processos de aprendizagem sustentam-se nas relações de
instrução: ou do que pode expressar ou do que precisa responder. Simplificando,
desse modo, o poder de aprender a tornar inteligível o mundo a partir do poder
inventivo do humano manifesto pelas diferentes possibilidades de narrar o vivido.
Glosa – LINGUAGEM OU LINGUAGENS
[...] a ideia de oposição entre linguagem ou linguagens soa
como simplificadora de um importante campo de discussão,
que acima da ampliação de repertórios para além da
aprendizagem da palavra escrita, que deseja romper com a
cultura escolar que desconsidera o corpo encarnado no
mundo, um corpo que pensa e sonha, acaba por substituir
uma terminação por outra, um currículo por outro.
(RICHTER; BERLE, 2012, p. 2149)
Cada vez mais, na contemporaneidade, as primeiras aprendizagens
acontecem em espaços coletivos de educação, marcando a crescente
institucionalização das infâncias, o que torna ainda mais urgente ampliar o debate
em torno da opção por uma racionalidade, historicamente constituída no ocidente,
35
que opõe conhecimento formal e não formal, o útil e o inútil, o sério e o divertido,
o infantil e o adulto, a criança e o aluno, o corpo e a mente. Racionalidade que, ao
priorizar a conjunção “ou”, desconsidera que as primeiras aprendizagens também
dizem respeito ao modo como vivemos, nos organizamos e nos relacionamos no
coletivo. Enfim, que dizem respeito a um corpo socialmente constituído, mas não
determinado.
O desafio está em deslocar a concepção instrumental da função da
linguagem como representação, enquanto simples capacidade de uma mente
apartada do mundo, para uma abordagem na qual a linguagem é pensada como
uma dimensão do corpo socialmente informado (BOURDIEU, 1983) porque
aderido ao mundo (MERLEAU-PONTY, 1999a). Trata-se de negar a polaridade
entre sujeito e objeto ao afirmar o corpo como locus da cultura (CSORDAS, 2008,
p. 105). Aqui, a abordagem do corpo não como mero instrumento, corpo
significado, nem o corpo como lugar de inscrição da cultura, mas uma abordagem
“do corpo fenomênico, o corpo como locus da cultura, meio de sua
experimentação do „fazer-se humano‟ em suas múltiplas possibilidades”
(CSORDAS, 2008, p. 11).
Csordas (2008), a partir de duas teorias da corporeidade, a de Maurice
Merleau-Ponty e a de Pierre Bourdieu24, chama de “fenomenologia cultural” sua
proposta de compreender que “nosso ser corpóreo não é menos um produto da
cultura que da biologia”. Tal proposta exige outra compreensão tanto de corpo
quanto de cultura. Por um lado, se o corpo pode ser mostrado como base
existencial da cultura e do sujeito em vez de o simples substrato biológico de
ambos, o caminho estaria livre para a compreensão do corpo como não apenas
essencialmente biológico, mas igualmente religioso, linguístico, histórico,
cognitivo, emocional e artístico. Por outro lado, se até a linguagem pode ser
apresentada como o surgimento da corporeidade e não apenas da função
24
Para aproximar os temas da percepção e da prática como domínios do sujeito culturalmente constituído e assim sustentar um “consistente paradigma da corporeidade”, Thomas Csordas (2008, p. 104) realiza “um exame crítico de duas teorias da corporeidade: Maurice Merleau-Ponty (1962), que elabora a corporeidade na problemática da percepção, e Pierre Bourdieu (1977, 1984), que situa a corporeidade num discurso antropológico da prática”. O autor articula ambas as teorias, a partir do conceito de pré-objetivo de Merleau-Ponty e do conceito de habitus de Bourdieu,, para afirmar que “o corpo é a base existencial da cultura” (CSORDAS, 2008, p. 145) ao “mostrar que uma análise da percepção (o pré-objetivo) e da prática (o habitus) fundada no corpo leva ao colapso da distinção convencional entre sujeito e objeto” (CSORDAS, 2008, p. 146).
36
representativa do cogito cartesiano, o caminho estaria aberto para definir cultura
não só em termos de símbolos, esquemas, traços, regras, costumes, textos ou
comunicação, mas, igualmente, em termos de sentido, movimento,
intersubjetividade, espacialidade, paixão, desejo, hábito, evocação e intuição
(CSORDAS, 2008, p. 19).
A “fenomenologia cultural” de Csordas (2008) aproxima-se da
compreensão de cultura em Bauman (2012), pois ambos apontam a
complexidade da ambiguidade própria da conjunção “e”. Para Bauman (2012) a
ambigüidade que importa, a ambivalência produtora de sentido, o alicerce
genuíno sobre o qual se assenta a utilidade cognitiva de se conceber o hábitat
humano como o “mundo da cultura”, é entre “criatividade” e “regulação
normativa”. As duas idéias, diz Bauman (2012), não poderiam ser mais distintas,
mas ambas estão presentes – e devem continuar – na ideia compósita de
“cultura”, que significa tanto inventar quanto preservar; descontinuidade e
prosseguimento, novidade e tradição; rotina e quebra de padrões; seguir as
normas e transcendê-las; o ímpar e o regular; a mudança e a monotonia da
reprodução; o inesperado e o previsível. Significa, para Mèlich (2009, p. 79), que
“nascemos casualmente em um tecido de histórias, em uma cultura. Justamente
porque somos seres tanto naturais como culturais, homens e mulheres estamos
submetidos à persistência e a mudança, a adaptação e a transgressão”*. Somos
constituídos de ambivalências e paradoxos, pois entre o mundo e a vida, há o
mistério de viver. Viver é o inexplicável da vida, pois aí existe a possibilidade, a
abertura que nos torna únicos na humanidade. O mundo pode ser dito, mas a vida
“não se pode nomear, não se pode dizer […] porque a vida não é tanto o que um
faz senão, muito mais, o que lhe acontece”* (MÈLICH, 2012, p. 19).
A vida, para Mèlich (2012), nós padecemos. Herdamos uma natureza
biológica e cultural e entre o que somos e o que poderemos ser situa-se o tornar-
se humano. Não nascemos com a linguagem, nascemos com a capacidade de
entrar em linguagem, nos constituímos em linguagem, com a linguagem e
simultaneamente constituímos um modo compartilhado de estar em linguagem e
operar com a linguagem. É nesse sentido que somos seres históricos, porque
podemos constituir uma narrativa de vida, a partir de uma narrativa que já existe.
37
Mas é preciso destacar que a linguagem não é um instrumento da vida, mas a
possibilidade de uma narrativa de vida.
Trata-se de compreender que a linguagem não se reduz a ela. Há que se
considerar: posso falar sobre a pintura, mas não será pintura. Será um discurso
sobre a pintura. O pensamento pictórico não pode ser substituído pelo discurso da
pintura. Assim como cantar, dançar, desenhar... Essa afirmação vem dos estudos
de Heinz von Foerster (1996) que, diante da relação realidade-linguagem,
problematiza a produção de um discurso que considera que a linguagem é
predominantemente denotativa. Uma realidade que tende a criar uma linguagem,
ou, o modo como a realidade é demonstrada. Assim a linguagem permanece no
plano do oral e do escrito25. Entre signo e semântico, conotativo e denotativo a
grande questão para Foerster (1996, p. 65) é que “a linguagem e a realidade
estão intimamente conectadas” e nessa conexão “costuma-se afirmar que
linguagem é a representação do mundo”. Diante disso o autor propõe: “gostaria
de sugerir o contrário: que o mundo é uma imagem da linguagem. A linguagem
vem primeiro; o mundo é uma consequência dela” (FOERSTER, 1996, p. 65).
Consequência, pois a linguagem produz mundos na medida em que inventa
sentidos para a vida na convivência, a partir de narrativas, dos modos de viver,
dos hábitos.
Glosa - SENTIDO
“[…] pela terminologia „sentido‟ haveria que entender, como
mínimo, o que em sua acepção mais plana significa, ou seja:
„direção‟, „rumo‟. Direção e rumo de que os relatos e mitos
(muthos) que fundam, como narrativas simbólicas, o tempo
e a história da comunidade em que se vive dão conta,
oferecendo-nos linhas de direção e alternativas de transito.
25
Tal permanência legitima a divisão da linguagem em “verbal” e “não-verbal”, porém Le Breton (2009, p. 41-42) adverte que “a comunicação implica tanto a palavra quanto os movimentos do corpo e a utilização pelos atores tanto do espaço quanto do tempo. Tratar o enraizamento físico da palavra pronunciada, ou seja, a série de signos corporais que as acompanham como „comportamento não-verbal‟, seria tão natural quanto referir-se à noite como o „não-dia‟. Nada obstante, um julgamento de valor nisso se exprime: trata-se do desprezo da simbólica corporal, tida por subalterna em consequência de sua associação a uma simples e superficial glosa da palavra emitida, a qual seria preeminente na hierarquia do sentido. [...] O corpo não é o primo pobre da língua, mas seu parceiro homogêneo na permanente circulação de sentido, a qual consiste na própria razão de ser do vínculo social. Nenhuma palavra existe independentemente da corporeidade que a envolve e lhe confere substância”.
38
Além disso, por „sentido‟ poderíamos entender uma espécie
de „princípio de compreensibilidade‟, isto é, aquilo que
organiza e faz coerente um todo. Aqui o sentido é uma
qualidade de uma razão que compromete as disposições
intelectuais desde o ponto de vista do logos. Mas existe uma
terceira maneira de entender a terminologia „sentido‟: o que
faz coerente, desde o ponto de vista do eu e da
subjetividade de cada um, uma determinada posição, atitude
ou olhar sobre o mundo, ainda que não esteja em
correspondência com o significado estipulado desde outras
esferas ou instancias de objetivação externas ao sujeito. […]
é um modo de ver, de olhar, um modo de saborear, uma
forma de tocar ou sentir-se tocado pelo mundo. O sentido,
alcançado pelos sentidos, faz de nossa relação com o
mundo uma relação carnal, cheia de corpo e, por ele
mesmo, profundamente erótica. Desde o ponto de vista,
„verdade‟ – no sentido epistemológico – e „sentido‟ não tem
porque coincidir. *
(BÁRCENA, 2004, p. 30)
Se podemos inventar sentidos, “se alguém inventa algo, então é a
linguagem o que cria o mundo; se, em troca, alguém pensa que descobriu algo, a
linguagem não é mais do que uma imagem, uma representação do mundo.
Acredito ter podido demonstrar-lhes com isto que é a linguagem que gera o
mundo e não o mundo que é representado na linguagem” (FOERSTER, 1996, p.
66). Ao discutir a linguagem como representação, ou a permanência de um olhar
atemporal diante do mundo, Merleau-Ponty (2012, p. 242) diz: “ela me oferece
não a visão humana do mundo, mas o conhecimento que pode ter de uma visão
humana um deus não mergulhado na finitude”. Contrapondo a ideia de seres
finitos que coloca Mèlich (2012) - entre o nascimento e a morte, há a infinitude - a
linguagem enquanto representação do mundo, ou seja, “[...] para obter uma
observação do mundo que seja válida para todos” (MERLEAU-PONTY, 2012, p.
242), é necessário o infinito, é preciso estar acima ou além do humano.
Entretanto, se há algo além da linguagem, só podemos conhecer em
linguagem: entre signo e semântico, denotativo e conotativo, real e ficcional,
dizível e indizível. Ou seja, na complexidade das ambivalências e das
39
contradições. Pois uma linguagem diz algo ao mesmo tempo em que não diz. E o
não-dito e o que não se pode dizer está constantemente sendo reinterpretado e
diz respeito ao semântico, ao conotativo, ao ficcional. Porém, a reinterpretação
exige o signo, o denotativo e o real para ser compartilhada.
O pensamento metafísico, ao acreditar em uma realidade fixa, imutável,
acredita em uma linguagem autenticamente objetiva, a qual dá um sentido de
verdade e realidade ao mundo. Esse pensamento gera uma pedagogia metafísica
e educadores metafísicos. Isso quer dizer que acredita na possibilidade de
alguém poder mostrar, demonstrar, indicar “o” caminho. Há aqui, uma convicção
de que exista apenas um caminho correto a seguir. Há uma verdade que é “a”
verdade. Esse discurso crê no bom, no normal, no belo, no natural. E planta a
ideia de que as coisas são assim: uma realidade imutável, impossível de
transformar. Gera também um pensamento ontológico, epistemológico, moral,
político a partir de um pensamento metafísico que “opera siempre de la misma
manera: construye otros mundos, libres de espacio y tempo, unos mundos
absolutos y eternos” (MÈLICH, 2009, p. 80). A linguagem, o pensamento, tornam-
se a decodificação de um real sempre já posto, ou seja, desconsidera a potência
humana de narrar-se e inventar-se. Começar, nessa lógica, torna-se somente
continuidade, pois “[…] sempre se postula um „ponto de referencia‟ absoluto,
imóvel, que outorga certeza e confiança a vida, ao conhecimento, a ação”*
(MÈLICH, 2009, p. 80).
Para von Foerster (1996, p. 62), “muitas das nossas dificuldades em
compreender se devem a que constantemente tratamos como objetos que, em
realidade, são processos”. O autor chama atenção à “substantivação ou
nominalização” dos processos, dando um nome ou substantivando o verbo. Ao se
fixar um sentido para algo que é ação, “quando um verbo é transformado em num
substantivo, nos aparece de repente como se fosse um objeto” (FOERSTER,
1996, p. 62), que denota, demonstra, sendo muito útil para localizar funções. Essa
pode ser uma razão científica de compreender, uma necessidade que
historicamente se constitui no ocidente, diante da necessidade comprovar e
normalizar um conhecimento. Assim, demonstra-se como uma coisa é ou como
uma coisa funciona e é possível argumentar que isto é assim. A linguagem, e o
modo como operamos com ela está fortemente vinculada a essa noção de
40
“nominalização” (substantivação) enquanto argumentação para sustentar algo.
Essa noção constitui uma realidade que, por sua vez, dá suporte ao conceito. Em
consequência disso, diz von Foerster (1996, p. 63), “o conhecimento transforma-
se numa mercadoria: a informação pode ser comprada como qualquer outra
matéria prima”. Esta é a sua crítica à possibilidade de considerar a linguagem
apenas como nominalização (denotação). Para Merleau-Ponty (2012, p. 240),
trata-se de uma “ilusão objetivista” na qual “estamos convencidos de que o ato de
exprimir, em sua forma normal ou fundamental, consiste, dada uma significação,
em construir um sistema de signos tal que a cada elemento do significado
corresponda um elemento do significante, isto é, em representar”.
Apostar na corrente objetivista é acreditar que “só há significação porque
um gesto sobresignificante foi ensinado” (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 240), ou,
dito de outra maneira, recorrer apenas a significações pré-existentes, acreditar em
uma linguagem comum universal que exclui a possibilidade de sua aprendizagem
enquanto processo que emerge da complexidade do encontro, da convivência
entre alteridades: humanos, adultos e crianças. Na perspectiva objetivista, a
criança necessita ser informada do mundo: sabê-lo para vivê-lo. No entanto,
Merleau-Ponty (2006, p. 230) nos alerta que
Atribuir à criança uma „representação do mundo‟ é certamente fazê-la semelhante demais ao adulto, no sentido de atribuir-lhe um conjunto de teses e explicações formalmente comparáveis a teses e explicações formalmente comparáveis a tese e explicações de adultos – e ao mesmo tempo diferente demais do adulto -, pois a experiência infantil, cristalizada em „representação do mundo‟, aparece como absolutamente estranha à do adulto e baseada em outra lógica.
Uma lógica que está se constituindo em linguagem e na linguagem, na
convivência e em convivência. Aprender uma linguagem é, para Mèlich (2012),
aprender uma gramática do mundo, um modo de conhecer e conceber o viver.
“Talvez não falar de „representação do mundo‟ na criança fosse a condição para
chegarmos a tomar consciência dessa aderência às situações dadas, que seria o
caráter essencial do pensamento infantil” (MERLEAU-PONTY, 2006, p.230). A
possibilidade de transgredir a linguagem, de ultrapassar os limites do que diz, do
que demonstra e do que denota, está na capacidade humana de conotar.
Há o sentido, a invenção, o novo. Há o mistério da vida. Nascer é
possibilidade do novo, diante do que já existe, uma história que será contada,
inventada a partir e com as histórias que já existem. Somos seres históricos e
41
finitos, históricos porque assim nos constituímos no coletivo e com o coletivo.
Finitos, porque essa história está entre o nascimento e a morte (MÈLICH, 2012).
Para Bárcena (2004, p. 49), o tempo da infância,
que é um tempo destinado a experiência e a aprendizagem é, sobre tudo, o tempo de uma aprendizagem da finitude, porque a finitude não é o que está condenado ao seu termo, mas sim o que promove a possibilidade de um inicio. O tempo do finito é o tempo de devir. É o tempo de um tempo inscrito em um dizer, não no dito. O tempo da finitude é o tempo referido as coisas que se dizem e as palavras que se pronunciam e que nunca são, em seu dizer e em seu fazer, sempre as mesmas. Se trata, então, de um tempo provisório, de um tempo em que as coisas no durão para sempre justo porque podemos fazer ou dizer outras novas coisas.*
Pensar a educação distante de uma teoria absoluta é considerar com
Mèlich (2012) e Bárcena (2004) a finitude do ser humano, entre o que pode ser
alterado e o que dura (o que permanece). Afinal “chegar implica aprender de novo
a falar e a olhar”* (BÁRCENA, 2004, p. 35). E aprender a falar e olhar, significar o
mundo e o estar no mundo, não pode ser previsto, planificado. Seria acreditar que
a linguagem é puramente signo, apenas denotação.
Glosa: FINITUDE
[…] finitude é sinônimo de vida.*
[…] a finitude não é a morte, mas sim a vida.*
Somos finitos porque vivemos e, portanto, porque nacemos
e herdamos, porque somos o resultado do azar e da
contingência, porque não temos mais remédio que eleger
em meio há uma terrível e dolorosa incerteza, porque somos
mais o que nos sucede (os acontecimentos) que o que
fazemos, projetamos ou programamos, porque vivemos
sempre em despedida, porque não podemos submeter ao
controle nossos desejos, nossas lembranças e nossos
esquecimentos, porque tarde ou cedo nos damos conta de
que o mais importante escapa aos limites da linguagem.
Para uma filosofia da finitude, então, o decisivo não pode
ser dito, nunca poderá ser dito, no mais alto grau se
mostrara no silencio das palavras, nos espaços em branco
da escritura. Para a finitude o que resulta interessante é […]
42
o outro, o radicalmente outro, isso que não é assimilável,
nem compreensível, nem adaptável, nem classificável, nem
ordenável… inominável.*
(MÈLICH, 2012, p. 15)
Assim, não pode haver uma teoria que resista à inconstância do humano.
Se a educação diz respeito à vida, às relações e às interações, negar a
possibilidade de que algo possa ser iniciado no mundo sem que alguém tenha
ensinado ou mostrado, é negar a natalidade, ou, o fato que o nascimento
inaugura um mundo: possibilidade de dizer esse mundo e torná-lo inteligível
(ARENDT, 2010). A natalidade inaugura uma condição que diz respeito à
pluralidade humana enquanto possibilidade de agir no mundo. A pluralidade é
condição inerente ao nascimento “porque somos todos iguais, isto é, humanos, de
um modo tal que ninguém jamais é igual a qualquer outro que viveu, vive ou
viverá” (ARENDT, 2010, p. 9). Para Arendt (2010), não há ação sem discurso, agir
é uma experiência narrativa, uma experiência de linguagem.
Aqui o termo linguagem é compreendido no sentido que lhe dá Mèlich,
como uma gramática do mundo. Um modo de dizer, de tornar o mundo inteligível.
Pois se a linguagem não se reduz a ela mesma, também não pode ser reduzida à
palavra: “a palavra diz o que diz, mas também sempre diz mais do que diz, diz de
outro modo, e ao dizer de outro modo inclui algo não dito, ou não dito de todo, e
mostra o que fica por dizer e o impossível de dizer… E isto é o mais importante”*
(MÈLICH, 2012, p. 21). Linguagem diz respeito ao modo de dizer, ao modo de
ser. E os modos de ser e dizer diferem entre crianças e adultos.
É da condição humana que cada criança que chega ao mundo tenha que
aprender um patrimônio cultural de nomes e de regras, de obrigações e de
interditos sociais que uma geração transmite à outra geração. Porém, apesar de
aparentemente trivial, torna-se necessário reafirmar com Agamben (1999) que,
antes de uma geração transmitir seja do que for à outra, tem de primeiro transmitir
a linguagem. Processo de transmissão da tradição nada ordinário de
aprendizagem, pois exige ser intencionalmente fundado pelos adultos e
gradualmente conquistado pelas crianças. Movimento de interação que garante o
processo vital de diferenciação entre as gerações, enquanto movimento entre a
43
tradição e a inovação. “É sobre esta diferença, sobre esta descontinuidade que
encontra o seu fundamento a historicidade do ser humano” (AGAMBEN, 2005, p.
64).
Assim, a compreensão de linguagem como desempenho de um modo de
estar no mundo (CSORDAS, 2008), enquanto invenção de sentidos na
convivência, emerge como resistência às abordagens educacionais que
negligenciam a riqueza existencial do ser-no-mundo (MERLEAU-PONTY).
Implica afirmar a responsabilidade educacional de considerar a inseparabilidade
entre corpo, mundo e linguagem enquanto ação que emerge da vida coletiva:
processo social e cultural de constituir-se humano com outros. Ou, experiência de
iniciar-se em linguagem, compartilhando mundos, inaugurando sentidos no
conviver.
Glosa – EXPERIÊNCIA E INICIAÇÃO
“A palavra experiência parece opor-se à palavra iniciação.
De fato, a primeira, composta pelo prefixo latino ex – para
fora, em direção a – e pela palavra grega peras – limite,
demarcação, fronteira –, significa um sair de si rumo ao
exterior, viagem e aventura fora de si, inspeção da
exterioridade. A segunda, porém, é composta pelo prefixo
latino in – em, para dentro, em direção ao interior – e pelo
verbo latino eo, na forma composta ineo – ir para dentro de,
ir em – da qual se deriva initium – começo, origem.
Iniciação pertence ao vocabulário religioso de interpretação
dos auspícios divinos no começo de uma cerimônia
religiosa, donde significar: ir para dentro de um mistério,
dirigir-se para o interior de um mistério. Ora, se o sair de si e
o entrar em si definem o espírito, se o mundo é carne ou
interioridade e a consciência está originalmente encarnada,
não há como opor experientia e initiatio. A experiência já
não pode ser o que era para o empirismo, isto é,
passividade receptiva e resposta a estímulos sensoriais
externos, mosaico de sensações que se associam
mecanicamente para formar percepções, imagens e idéias;
nem pode ser o que era para o intelectualismo, isto é,
atividade de inspeção intelectual do mundo. Percebida,
doravante, como nosso modo de ser e de existir no mundo,
44
a experiência será aquilo que ela sempre foi: iniciação aos
mistérios do mundo. „É a experiência que nos dirigimos para
que nos abra ao que não é nós‟, lemos numa nota de O
visível e o invisível. É exercício do que ainda não foi
submetido à separação sujeito-objeto. É promiscuidade das
coisas, dos corpos, das palavras, das idéias. É atividade-
passividade indiscerníveis. Abertura para o que não é nós,
excentricidade muito mais do que descentramento, a
experiência, escreve Merleau-Ponty em O olho e o espírito,
é „o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo,
de assistir por dentro à fissão do Ser, fechando-se sobre
mim mesmo somente quando ela chega ao fim‟, isto é,
nunca
(CHAUÍ, 2002, p. 161-162 grifos da autora).
45
infância e linguagem
Este ensaio aproxima infância e linguagem para problematizar discursos
educacionais sustentados na lógica linear e progressiva de um desenvolvimento
previamente marcado por etapas na escala dos saberes dos adultos e afirmar o
humano paradoxo de serem as crianças simultaneamente potentes e impotentes,
capazes e incapazes, porque desde antes do nascimento já estão em interação
com o mundo. Trata-se, com Merleau-Ponty (1991, 1999a, 1999b), de considerar
a temporalidade do corpo sensível operante (“eu posso”) que age no mundo e,
com Agamben (2005), a infância como abertura à potência da experiência da
linguagem que acompanha o adulto durante sua vida.
Glosa – “EU POSSO”
A potência falante que a criança assimila ao aprender sua
língua não é a soma das significações morfológicas,
sintáticas e lexicais: tais conhecimentos não são
necessários nem suficientes para adquirir uma língua, e o
ato de falar, uma vez adquirido, não pressupõe nenhuma
comparação entre o que quero expressar e o arranjo
nocional dos meios de expressão que emprego. As
palavras, os torneios necessários para conduzir mi8nha
intenção significativa à expressão, não são recomendadas a
mim, quando falo, senão [...] por um certo estilo de
linguagem de que provêm e segundo o qual se organizam
sem que eu tenha necessidade de as representar. Há uma
significação „linguageira‟ da linguagem que realiza a
mediação entre a minha intenção ainda muda e as palavras,
de tal modo que minhas palavras me surpreendem a mim
mesmo e me ensinam o meu pensamento. Os signos
organizados possuem seu sentido imanente, que não se
prende ao “penso”, mas ao “posso”
(MERLEAU-PONTY, 1991, p. 94).
46
Ora, essa certeza injustificável de um mundo sensível
comum a todos nós é, em nós, o ponto de apoio da verdade.
Que uma criança perceba antes de pensar, que comece a
colocar seus sonhos nas coisas, seus pensamentos nos
outros, formando com eles um bloco de vida comum, onde
as perspectivas de cada um ainda não se distinguem, tais
fatos de gênese não podem ser ignorados pelo filósofo,
simplesmente em nome das exigências da análise
intrínseca.[...] Falamos e compreendemos a palavra muito
antes de aprender com Descartes (ou descobrimos por nós
mesmos) que nossa realidade é o pensamento. A linguagem
onde nos instalamos, nós aprendemos a manejá-la
significativamente muito antes de aprender com a lingüística
(supondo-se que ela os ensine) os princípios inteligíveis
sobre os quais „repousam‟ a nossa língua e todas as
línguas. [...] muito precocemente, motivos, categorias
abstratíssimas funcionam nesse pensamento selvagem,
como bem o mostram as antecipações extraordinárias da
vida adulta na infância; podemos dizer que o homem total já
está ali. A criança compreende muito além do que poderia
definir, e, aliás, com o adulto, as coisas não se passam de
modo diferente.
(MERLEAU-PONTY, 1999b, p. 23-24).
Para resistir à convicção pedagógica no postulado da representação – o
que o “fora-objeto” apresenta e o “dentro-sujeito” re-apresenta como identidade –
torna-se relevante “negar uma visão politicamente dominante baseada no eixo
cronológico e no discurso racionalista de um processo psicológico progressivo
que coloca a criança num pólo zero e permite dividi-la em diferentes faixas – que
variam segundo as teorias – em direção ao fim da vida” (RICHTER, 2005, p. 187).
O discurso da infância deficitária em relação ao adulto sustenta uma narrativa de
ser criança que se configurou historicamente e legitimam teorias do conhecimento
e métodos pedagógicos que consideram o saber a partir da oralidade e da escrita.
Para Barbosa (2006, p. 76),
47
a criação da infância, juntamente com todas as suas posteriores subdivisões (lactância, primeira infância, segunda infância e puberdade), como uma etapa do desenvolvimento humano, inventou a caracterização de cada grupo etário e toda uma gama de ideias que sugerem formas de intervir junto a essas etapas por meio da psicologia evolutiva ou do desenvolvimento.
Torna-se pertinente destacar discursos que contam de uma “infância
universal”, linear, frágil, impotente, enraizados em teorias e crenças que justificam
um modo de ser, de viver, sustentados na crença racionalista de uma “criança
universal”, acima de qualquer pertencimento social, para problematizar as noções
de inocência, lazer e aprendizado para a vida adulta, instaladas a partir da
modernidade e mais próximas às dinâmicas das famílias burguesas (ARIÈS,
2006). Particularmente, para problematizar a generalizada sinonímia entre os
conceitos de infância e de criança. Se compreendermos infância como discurso
histórico composto por adultos a partir de expectativas de como deve ser a vida
neste momento de vida e criança como ser humano de pouca idade, como devir
humano em interação com outros aqui e agora, ambos os termos apontam
diferenças que permitem alcançar que ser criança não implica a experiência de
uma única infância.
Ariès (2006) contou a história da infância, na década de sessenta, a partir
da perspectiva pictórica, o que nos permite ter uma dimensão do seu olhar
histórico iconográfico para uma criança e de que infância esse olhar para essa
criança permite configurar. O historiador evidenciou a invenção moderna de uma
sensibilidade especial com relação à infância e a relevância de sua obra para a
educação está em destacar o processo histórico da severa distinção entre o
mundo das crianças e o mundo dos adultos, permanecendo o primeiro vinculado,
sobretudo, à necessidade de proteção. No entanto, é preciso considerar que se
trata da história da infância burguesa. Afinal em um período em que sobreviver
era quase um milagre para as crianças, o que se retratava na iconografia da
época, resgatada pelo historiador, não era a fragilidade das crianças, nem a
incerteza da vida.
Mesmo polêmica e passível de ser contestada em muitas direções, a obra
de Ariès (2006) desencadeou uma profusão contemporânea de saberes que
fazem da infância seu objeto de estudo: antropologias, biologias, direitos, estudos
culturais, medicinas, psicologias, sociologias da infância ao promover importante
48
abertura, na segunda metade do século XX, para a dimensão “esquecida” do
humano: a criança. Uma vida frágil e incerta, em que nascer não era
necessariamente ganhar a vida, sobreviver poderia ser mais surpreendente. Ao
focalizar um estudo na infância, o autor nos permite fazer uma caminhada
histórica na qual torna visível uma dinâmica de concepções das infâncias que,
assim como a humanidade, reconfiguram-se.
O discurso histórico da ideia de infância ingênua, que exige proteção
(“paparicação”), surge no rastro das denominações e ações que envolviam o ser
de pouca idade: em sua infinita fragilidade, não fala e é dependente do adulto; em
seus primeiros meses de vida, o modo como eram recebidos e acolhidos, muitas
vezes abandonados à própria sorte e distantes de um vínculo materno; os
espaços que poderiam ocupar, ora acompanhando o ritmo de vida dos adultos,
ora acompanhados por tutores. Diante da compreensão histórica do humano
(ARENDT, 2010), constituiu-se uma narrativa de infância universal na qual, talvez,
a noção mais conhecida – e reconhecida – para denominá-la seja in-fante, aquele
que não é falante (AGAMBEN, 2005, p. 62).
No campo da filosofia, Platão vislumbrou que a vida coletiva poderia ser
“preparada” para tornar-se uma Pólis desejada, a partir da ideia de reunião entre
ética e política o que forjou, de algum modo, a ideia de educabilidade do humano.
A insatisfação de Platão com a juventude de sua época levou-o a considerar que
“há uma conexão direta entre as qualidades de uma pólis e as dos indivíduos que
a compõem, qualidades que não estão dadas de uma vez por todas, mas que
dependem fortemente do contexto onde se desenvolvem” (KOHAN, 2005, p.27). A
criança, enquanto constituição do humano, na visão de Platão, estava
intrinsecamente ligada à visão de desenvolvimento da pólis, e assim é tomada
como o futuro da nação. Educá-las hoje, significa a pólis do amanhã.
No caso da Pedagogia, desde Comenius é possível estabelecer um marco
contundente com a educação formal que hoje conhecemos. Não por acaso em
Comenius encontramos registrada a preocupação com a educação da infância.
Autor da Didática Magna, Jan Amos Komenský, no século XVII, insatisfeito com o
método de educação da sua época, que chamou de confuso e irracional, buscou
sua inspiração na natureza, na qual, para o filósofo, tudo tem uma ordem, uma
49
organização que evolui naturalmente em ordem crescente. Julgou que essa
deveria ser a organização seguida pelo homem em sua vida. A ambição de
Comenius era da educação para todos e acreditava ser possível realizá-la a partir
de uma ordenação do conhecimento, do maternal à academia, dividida em quatro
estágios (NARODOWSKI, 2006, p. 64): do simples ao complexo, do menor para o
maior, em uma seqüência organizada de tempo e espaço. Assim, “o homem será
formado procurando, também, uma ordem adequada” (NARODOWSKI, 2006, p.
43). Essa ordem estaria inaugurando, segundo Narodowski (2006), as tecnologias
da educação bem como a escola como hoje a conhecemos.
Amplamente estudada pela medicina e psicologia, a noção de infância
constituiu-se a partir de um panorama da criança na chave teórica
desenvolvimentista. A influência histórica das teorias desenvolvimentistas
configura uma ideia de educação que predomina na cultura ocidental em que as
aprendizagens na infância são percebidas pelo senso comum a partir da
naturalização da ideia do déficit. Nessa perspectiva, a criança é concebida como
ser não-raciocinante em transição ao ser raciocinante adulto. Para tanto, precisa
ser preenchida com saberes, que a permitam alcançar a preparação necessária
para a convivência em sociedade. Convivência que é dada pela interação a partir
da fala e da escrita, o que coloca as crianças bem pequenas em outro patamar
conhecimento: deficitário em relação ao adulto, pois não representam
(raciocinam) o mundo.
Em contraposição às teorias empiristas e intelectualistas, Merleau-Ponty
(2006, p. 469) aposta que “na criança há coexistência de possibilidades”, e por
isso “as crianças pequenas não representam o mundo: elas o vivem”
(MACHADO, 2010, p. 21). Nosso corpo não está no espaço, ele é
espacialização, não está no tempo, ele é temporalização. Nesse sentido não
assumimos a superação de fases de desenvolvimento, mas sim “coexistimos”
em diferentes modos de estar no mundo e com o mundo. Nesse sentido, não
há a representação de um mundo, mas sim aprendizagem dos modos de dizer
o mundo. Na medida em que há necessidade de experimentar, contrastar,
estar no mundo e com o mundo, constituir temporalmente repertórios a partir
da possibilidade de aprender a escolher, viver torna-se aprender. Mas para
50
tomar decisões, é importante estar em pluralidades: viver é percurso singular
de constituir-se no coletivo. Assim é possível dizer com Bachelard (1988, p. 96)
que a infância dura a vida inteira, pois acontece como momento fundante do
humano. Tal compreensão redimensiona a perspectiva deficitária da infância e
ao redimensioná-la também se redimensionam as concepções de educação. É
porque gradualmente vai se instalando a compreensão de que, nas palavras de
Cohn (2005, p. 33), “a diferença entre as crianças e os adultos não é
quantitativa, mas qualitativa; a criança não sabe menos, sabe outras coisas”.
Simultânea à gradual compreensão de infância como ideia, como
concepção adulta situada na história, a criança passa a ser compreendida em
processo de apreensão e interpretação do mundo distinto do adulto. Aprender
é entrar em linguagem, compartilhar um mundo, torná-lo inteligível. A infância
do singular passa ao plural ao ser considerada as possibilidades das crianças
diferirem em sua abertura para o mundo. Barbosa (2007, p. 1065) destaca que,
talvez,
uma das mais importantes contribuições das ciências sociais e humanas para a educação é a de fazer emergir, nas crianças, as suas diferentes experiências de infância, mediadas por variações como: gênero, espaço geográfico, “classe social, grupo de pertença étnica ou nacional, a religião predominante, o nível de instrução da população etc.” (Sarmento, 2007), p. 29). As possibilidades das crianças de viverem as infâncias estão profundamente ligadas a estas referências contextuais. E, apesar da sua “recente inserção no mundo”, as crianças são capazes de observar, apreender e interpretar rapidamente este tipo de diferenciação social. A infância é parte de uma categoria geracional (Sarmento, 2006), onde também se fazem presentes as diversidades e as desigualdades da sociedade contemporânea.
Para Barbosa (2007, 1066), “a sociologia da infância, com os trabalhos de
Sarmento e Pinto (1997), James, Jenk e Prout (1998) e também a antropologia da
criança produzida por Silva, Macedo e Nunes (2005) e Cohn (2006) são
produções que vêm contribuindo para a construção e a configuração desta nova
noção”. Mas a contribuição radical, e que aqui interessa, vem do pensador
contemporâneo Giorgio Agamben ao afirmar que a infância não é uma idade e
tampouco um estado psicossomático. A existência de infância significa antes
potência de linguagem para inaugurar mundos porque o humano, por não se
identificar com o sujeito nem com a linguagem, porque não é sempre falante cinde
a língua una e “apresenta-se como aquele que, para falar, deve constituir-se
51
como sujeito da linguagem, deve dizer eu” (AGAMBEN, 2005, p. 64). Ao fazê-lo,
abre-se para ele a possibilidade da história.
Glosa – TODA POTÊNCIA É TAMBÉM IMPOTÊNCIA
Agamben (2006, p. 12), para pensar a potência do
pensamento, interroga “o que pretendemos dizer quando
dizemos: „eu posso, eu não posso‟?” e propõe pensar com
Aristóteles que “Este „eu posso‟ além de qualquer faculdade
e de qualquer savoir-faire, essa afirmação que não significa
nada, coloca o sujeito imediatamente diante da experiência
talvez, mais exigente – e, no entanto, ineludível – com a
qual lhe seja dado medir-se: a experiência da potência”
(AGAMBEN, 2006, p.13). A grandeza – mas também a
miséria – da potência humana está no fato de ela ser,
também e sobretudo, potência de não passar ao ato,
potência para as trevas. [...] O homem é o senhor da
privação porque mais que qualquer outro ser vivo ele está,
no seu ser, destinado à potência. Mas isso significa que ele
está, também, destinado e abandonado a ela, no sentido de
que todo o seu poder de agir é constitutivamente um poder
de não agir e todo o seu conhecer; um poder de não-
conhecer (AGAMBEN, 2006, p.20). A tese define, assim, a
ambivalência específica de toda potência humana, que, na
sua estrutura originária, se mantém relacionada com a
própria privação, é sempre – e em relação à mesma coisa –
potência de ser e de não ser, de fazer e de não fazer. É
essa relação que constitui, para Aristóteles, a essência da
potência. O ser vivo, que existe no modo da potência, pode
a própria impotência, e apenas dessa forma possui a própria
potência. Ele pode ser e fazer porque se mantém
relacionado ao próprio não ser e não-fazer. [...] Aquilo que é
potente de ser pode tanto ser quanto não ser (AGAMBEN,
2006, p.21). Toda potência humana é, cooriginariamente,
impotência; todo poder-ser ou -fazer está constitutivamente
relacionado, para o homem, com a própria privação. E essa
é a origem da incomensurabilidade da potência humana,
muito mais violenta e eficaz que aquela dos outros seres
vivos (AGAMBEN, 2006, p.22). Mas isso significa também
que o problema da potência não tem, para um grego – e
52
provavelmente com razão –, nada a ver com o problema da
liberdade de um sujeito
(AGAMBEN, 2006, p.23).
Agamben (2005, p. 63), a partir da semiótica de Émile Benveniste, sustenta
a potência da infância do homem enquanto ruptura entre língua e fala, entre
semiótico e semântico (no sentido de Benveniste), entre sistema de signos e
discurso. A experiência histórica do humano no mundo não produz uma
linguagem, mas constitui um percurso histórico de experiências, fruto do “ser
histórico” em que se faz humano na descontinuidade da linguagem. Para
Agamben (2005, p. 65),
o mistério que a infância instituiu para o homem pode de fato ser solucionado somente na história, assim como a experiência, enquanto infância e pátria do homem, é algo de onde ele desde sempre se encontra no ato de cair na linguagem e na palavra. Por isso a história não pode ser o progresso contínuo da humanidade falante ao longo do tempo linear, mas é, na sua essência, intervalo, descontinuidade, epoché. Aquilo que tem na infância a sua pátria originária, rumo à infância e através da infância, deve manter-se em viagem.
Esse percurso de experiências diz respeito a subjetividade de um “eu” que
se constitui no coletivo enquanto um corpo no mundo. Assim a infância do
homem, para Agambem (2005), só pode ser a experiência de começar-se em
linguagem. Experimentar-se no mundo e configurar-se no coletivo demanda o
encontro, a convivência, ambos marcados pela diferença entre língua e discurso,
a qual introduz a descontinuidade que funda a historicidade do humano.
Para Agamben (2005), se a infância é potência de iniciar-se em linguagem,
de aprender a formular um sentido para o viver, demanda valoração do mundo
que só ocorre no conviver, nas interações. Se nossa condição fosse outra, como
a dos animais, por exemplo, não haveria a necessidade de constituição de sentido
para estar em linguagem. Os animais nascem com seu instinto O humano é
capaz de operar com a linguagem ao atribuir valorações e compartilhá-las, pois
viver em coletividade exige compartilhar algo. Um ser novo no mundo tem a
oportunidade de reconfigurar o viver, pois iniciar-se em linguagem é, também
aprender a inaugurar uma ação no mundo. Ou seja, entrar em linguagem. A
infância do homem é a “origem transcendental da linguagem”, e “a experiência é o
53
mysterion que todo homem institui pelo fato de ter uma infância” (AGAMBEN,
2005, p. 63).
Torna-se pertinente considerar que as crianças têm outro modo de agir,
seus fazeres são próprios de criança porque há a necessidade de uma infância,
de um começo para o infante – àquele que não fala. Não fala porque não há um
repertório de sentidos, de palavras, de cheiros, cores, sabores, aromas, de
vividos. Há que se constituir um repertório de imagens do viver no e com o
mundo. Essa constituição aqui é tomada na inseparabilidade entre mundo, corpo
e linguagem, pois “assim como a infância destina a linguagem à verdade, também
a linguagem constitui a verdade como destino da experiência” (AGAMBEN, 2005,
p. 63). Cabe destacar que a verdade a que se refere Agamben (2005, p. 63) não é
algo que possa “ser definido no interior da linguagem, mas nem mesmo fora dela,
como um estado de fato ou como uma „adequação‟ entre este e a linguagem:
infância, verdade e linguagem limitam-se e constituem-se um ao outro em uma
relação original e histórico-transcendental26”.
O começo da linguagem, a infância do homem para Agamben (2005), a
partir de Benveniste, diz respeito à relação de aprendizagem na infância enquanto
cisão, hiato na constituição de um discurso. Constituir um discurso, para o autor,
só pode ocorrer no tempo da história, pois é a constituição de uma narrativa em
que o discurso não está isolado na pura significação – semiótico (o signo). A
constituição de uma narrativa com sentido exige o coletivo, pois o semântico (o
discurso) é a composição de modos de dizer que precisa ser compreendida e não
somente reconhecida (AGAMBEM, 2005, p. 75). Um percurso histórico do
humano no mundo exige romper com o “mundo fechado” do signo. É preciso
valorar e significar o viver para estar em linguagem: compreender para
reconhecer.
26
“Aquilo que Wittgenstein, no final do Tractatus, põe como limite „místico‟ da linguagem não é uma realidade psíquica situada aquém ou além da linguagem, nas névoas de uma suposta „experiência mística‟, mas é a própria origem transcendental da linguagem, é simplesmente a infância do homem” (AGMBEN, 2005, p. 63)
54
A infância age, com efeito, primeiramente sobre a linguagem, constituindo-a e condicionando-a de modo essencial. Pois o próprio fato de que exista uma tal infância, de que exista, portanto, a experiência enquanto limite transcendental da linguagem, exclui que a linguagem possa ela mesma apresentar-se como totalidade e verdade. Se não houvesse a experiência, se não houvesse uma infância do homem, certamente a língua seria um “jogo”, cuja verdade coincidiria com o seu uso correto segundo regras lógico-gramaticais. Mas, a partir do momento em que existe uma experiência, que existe uma infância do homem, cuja expropriação é o sujeito da linguagem, a linguagem coloca-se então como o lugar em que a experiência deve tornar-se verdade. (AGAMBEN, 2005, p. 62)
Não se trata de uma verdade porque não há uma pureza da linguagem, ela
sempre se estabelece entre subjetividades, entre composições, entre narrativas,
entre ambiguidades, pois é condição constituinte e constituidora do humano. Por
isso sempre estará em processo de reconfiguração. Temos então muitas
verdades pois são frutos de interpretações do mundo, modos de dizer, modos de
compreender o mundo, extraídos da experiência do viver na coletividade. A
infância do homem é a infância da linguagem: começar no mundo um mundo,
uma verdade. Verdade que, para Agamben (2005), é extraída da cisão entre
língua e discurso, em que a “decisiva consequência que a infância exerce sobre a
linguagem” é que ela instaura “aquela cisão entre língua e discurso que
caracteriza de modo exclusivo e fundamental a linguagem do homem”
(AGAMBEN, 2005, p. 63, grifo do autor). Nesse sentido não é a língua em geral
que caracteriza o homem e o diferencia entre os seres vivos, mas, novamente, a
ruptura entre “língua e fala, entre semiótico e semântico (no sentido de
Benveniste), entre sistema de signos e discurso” (AGAMBEN, 2005, p. 63).
O signo, na perspectiva de Benveniste (1976), significa; o discurso
comunica semanticamente. “O semiótico (signo) deve ser reconhecido; o
semântico (o discurso) deve ser compreendido. [...] O semiótico caracteriza-se
como uma propriedade da língua, o semântico resulta de uma atividade do locutor
que coloca em ação a língua” (AGAMBEN, 2005, p.67). O signo é meio, é o ducto,
é a língua, o sistema, a semiologia. Discurso “é a língua enquanto assumida pelo
homem que fala, e sob a condição de intersubjetividade, única que torna possível
a comunicação linguística” (BENVENISTE, 1976, p. 293). O signo pode prescindir
da subjetividade, ele pode ser somente um código, a soma de informações
preestabelecidas. Mas a subjetividade não pode prescindir do signo, ele é a
concretude da língua.
55
É necessário, então, estar em interação para que esse processo de
significação aconteça. Pois, “no homem produziu-se uma separação entre a
disposição para a linguagem (estamos prontos para a comunicação) e o processo
de atualização desta virtualidade” (AGAMBEN, 2005, p. 73). A atualização requer
repetir, elaborar, organizar, reordenar, reorganizar. Nascemos prontos para a
comunicação, no entanto o modo como isso ocorre está vinculado ao modo como
aprendemos a estabelecer um mundo: entre natureza e cultura27. Para cindir com
o signo, é necessário tempo no mundo, é necessário atuar no e com o mundo
para tornar-se do mundo.
O “signo semiótico existe em si, funda a realidade da língua, mas não
comporta aplicações particulares; a frase, expressão do semântico, nada é senão
particular” (AGAMBEN, 2005, p. 67). O particular é o que nos singulariza, no
coletivo. Assim é necessário o signo para compor uma língua, mas para compor
um discurso é necessário mais do que uma língua. É preciso significar a língua. E
para viver, é preciso ter sentido. Não se trata de superar signo, ou de defender o
discurso em detrimento do signo, mas sim afirmar a impossibilidade de que exista
uma linguagem sem a complexa correlação entre ambos.
Pode-se transpor o semantismo de uma língua ao de uma outra, „salva veritate‟: é a possibilidade de tradução; mas não se pode transpor o semiotismo de uma língua ao de uma outra: é a impossibilidade de tradução. Toca-se aqui a diferença entre semiótico e semântico. (AGAMBEN, 2005, p. 67)
O ser humano é dotado da potencialidade de interagir e, a partir disso, no
conviver sua ação, sua interação vai rompendo com a concretude do real (signo,
língua). “Babel, ou seja, a saída da pura língua edênica e o ingresso no balbuciar
da infância (quando, dizem-nos os linguistas, a criança forma os fonemas de
todas as línguas do mundo), é a origem transcendental da história”. A criança em
sua abertura para a novidade do mundo, da necessidade em vincular-se ao novo
mundo, diante do êxodo do corpo da mãe que o recém nascido enfrenta, inicia
sua inserção em outro mundo. É necessário estabelecer sentidos, experienciar
para singularizar-se e para participar desse mundo. Agamben (2005, p. 65)
destaca que “experienciar significa necessariamente, neste sentido, reentrar na
infância como pátria transcendental da história”, pois é aí que se institui o
indizível, o conotativo, o singular. A convivência com o outro permite que se diga
27 Ver Agamben, 2005, p. 72.
56
eu, pois diante de todos os fonemas de todas as línguas do mundo, aprendemos
o que o outro compartilha, aprendemos uma gramática do mundo (MÈLICH,
2012). Uma gramática do mundo diz respeito à ampliação da concepção de
linguagem, pois supõe evocar a superação da redução de sua denominação ao
que pode ser dito ou escrito. Para Larrosa (2005, p.26) “[…] el lenguaje no es sólo
algo que tenemos sino que es casi todo lo que somos, que determina la forma y la
sustancia no sólo del mundo sino también de nosotros mismos, de nuestro
pensamiento y de nuestra experiencia".
A relação adulta com o saber não difere da criança pela sua capacidade,
mas sim por sua experiência. A criança, se comparada ao adulto, é inexperiente
na sua relação com o mundo e com as coisas do mundo, mas também é, como os
adultos, sensível ser pensante em formação, porque ambos estão em processos
temporais linguageiros. Para Larrosa (2004, p. 185) a infância é a “absoluta
heterogeneidade em relação a nós e ao nosso mundo”. Nesse sentido, para o
filósofo, na medida em que se torna um mistério para nós, que
encarna o surgimento da alteridade, a infância nunca é o que sabemos (é o outro dos nossos saberes), mas por outro lado, é portadora de uma verdade à qual devemos nos colocar à disposição de escutar, nunca é aquilo apreendido pelo nosso poder (é o outro que não pode ser submetido), mas ao mesmo tempo requer nossa iniciativa; nunca está no lugar que a ela reservamos (é o outro que não pode ser abarcado), mas devemos abrir um lugar para recebê-la (LARROSA, 2004, p. 186)
O que nos coloca em relação com os pequenos é justamente a
necessidade de acolher o novo. Para Arendt (2010) o novo não é apenas o
nascimento de um novo ser, é também natalidade. É ela que irrompe com modos
de ser e estar no mundo. Essa seria “a essência [do problema] que, na educação,
é a natalidade, o fato de os seres humanos nascerem no mundo” (ARENDT,
2010, p. 23).
Acolher o novo para torná-lo parte de um mundo partilhado, exige do adulto
uma abertura para o indizível, afinal a criança, em sua inexperiência, ainda não se
comunica através da palavra. “En la educación se transmite un mundo simbólico a
través de los relatos y las narraciones, un mundo atravesado de ficción que es
necesario para que el ser humano pueda configurar su identidad” (BÁRCENA;
MÈLICH, 2000, p. 101). Esse é o compromisso da educação, sua abertura para
acolher que “[...] o modo como distintas maneiras de dizer nos poe em distintas
57
relações com o mundo, com nós mesmos e com os outros” (LARROSA; SKLIAR,
2005, p.26). Cada linguagem mapeia o mundo de modo diferente (STEINER,
2005). Ampliar nossa dimensão de saber implica ampliar o repertório de relações
com o mundo, pois não ensinamos a linguagem, mas a relação com a linguagem,
com o saber.
A criança, em seus começos, o humano em sua infância, é capaz de
romper com a estabilidade do signo, pois traz consigo, ao nascer, a possibilidade
de começar. Em outras palavras a infância rompe com o signo pois traz a
descontinuidade para a vida. É capaz de configurar, reconfigurar, significar e
resignificar, assim como nós adultos, porém, em seu momento fundante
estabelece um discurso que é comum – história da humanidade –, mas na mesma
proporção distinto e configurador de um modo ser. Um discurso que se constitui
na história, entre o tempo vivido e o tempo narrado, entre o real e o ficcional, na
experiência de conviver. Afinal, “como infância do homem, a experiência é a
simples diferença entre humano e linguístico. Que o homem não seja sempre já
falante, que ele tenha sido e seja ainda in-fante, isto é a experiência” (AGAMBEN,
2005, p. 62). Experiência de constituir-se em linguagem, constituir um repertório
linguageiro que imanta o mundo e as coisas do mundo de sentidos. Assim como a
infância é a origem da linguagem, é também a origem da experiência, já que a
última é o que fomenta a significação ou, nas palavras de Agamben (2005), a
compreensão da linguagem. A experiência, fruto da ação do humano no mundo, é
a possibilidade de compartilhar invenções de sentidos no mundo. Portanto, a
infância não é natural, universal e nem pode ser antecipada.
O que a criança significa, a partir de suas experiências, constituirá seu
repertório e dará sentido a sua existência. Mas para isso precisa de tempo. A
criança, em suas aprendizagens, passa por um lento processo de temporalização,
seu tempo é de repetição, em que cada vez que faz de novo, faz diferente, e
diferente é um fazer que se aprimora no tempo. Assim, o tempo torna-se condição
necessária do aprender.
Esse, para Larrosa (2002), é o sujeito da experiência, aquele que consegue
fazer coisas com as palavras, que consegue dar sentido ao que se passa, ao que
somos e ao que nos acontece. Como relacionamos as palavras e as coisas, de
58
como nomeamos o que vemos ou o que sentimos e de como vemos ou sentimos
o que nomeamos. E nomear não é apenas uma questão de nomenclatura ou
conjunto de termos. Larrosa (2002, p.21) coloca “que as palavras determinam
nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras,
não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir
de nossas palavras”. Do sentido que elas têm para nós, um sentido singular, já
que somos sujeitos únicos, singulares, porém nos constituímos no coletivo e com
o coletivo.
Para Agamben (2005, p. 68) “o humano propriamente nada mais é que
esta passagem da pura língua ao discurso; porém esse trânsito, esse instante, é a
história”, o modo como aprendemos a narrar, a configurar a linguagem em um
discurso. O que diferencia o humano dos seres vivos não é a língua, mas como
ele pode operar com a linguagem, como ele pode estar em linguagem, pois “os
animais, de fato, não são destituídos de linguagem; ao contrário, eles são sempre
e absolutamente língua” (AGAMBEN, 2005, p. 64). Uma língua una, anistórica e
não em composição, por isso “[...] os animais não entram na língua: já estão
sempre nela” (AGAMBEN, 2005, p. 64).
Nesse sentido, a experiência possibilita a ampliação de um repertório
linguageiro capaz de gerar reelaborações que complexificam e significam as
aprendizagens da criança. Reelaborar para a criança supõe reiterações que não
são meras repetições, mas sim processos de resignificar experiências que
complexificam o vivido. Por isso, Larrosa (2002, p.27) pode afirmar que o saber
da experiência é
[...] o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da experiência não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece.
O eu, a singularidade, rompe com a uniformidade de uma língua. Na
perspectiva que coloca Agamben, um discurso é estabelecido pela interação, pelo
encontro, pela ação de um corpo no mundo, que constitui um mundo de
significados e significações no corpo: valorações. Sentido que é incessantemente
reconstituído por um corpo sensível no mundo, que constitui um mundo no corpo.
Para Merleau-Ponty (2012), o corpo sensível é feito da mesma matéria que o
59
mundo, o corpo em sua ação mundana, assim como significa o vivido, também
promove a abertura para o mundo na tomada de decisões, na imprevisibilidade de
começar-se no coletivo. De constituir-se em linguagem, em que humano e
linguagem, são da mundaneidade. Operar com a língua, é estar em linguagem. O
que é prescindir uma língua e um discurso. A necessária cisão entre língua e
discurso, surge como a possibilidade de aprender com o outro entre diferenças e
semelhanças: entre o ser humano - igual - e o ser socialmente informado–
singular (CSORDAS, 2008). Ser singular é admitir que “[...] a natureza do homem
é cindida de modo original, porque a infância nela introduz a descontinuidade e a
diferença entre língua e discurso” (AGAMBEN, 2005, p. 64). A cisão de que trata
Agamben requer a ação no mundo, que a partir da experiência de abertura para o
imprevisível, possibilita a constituição de uma singularidade. Larrossa (2006, p.35)
destaca que
a experiência é sempre do singular, não do individual ou do particular mas sim do singular. E o singular é precisamente aquilo do que não pode haver ciência, mas sim paixão. A paixão é sempre do singular porque ela mesma não é outra coisa que o apego pelo singular. Na experiência, então, o real nos presenta em sua singularidade. [...] Além do mais, se a experiência nos dá o real como singular, então a experiência nos singulariza.*
Se a experiência é sempre de algo que não se sabe, a narrativa é memória
do que já se sabe matizada pelo modo como se narra ou como é possível narrar.
A narrativa, portanto não é linguagem, mas sim o processo de constituir-se em
experiência no tempo e no espaço, em uma história coletiva, configurando uma
singularidade no mundo e com o mundo. Merleau-Ponty (1999b, p. 16) diz que
“ao mesmo tempo é verdade que o mundo é o que vemos e que, contudo,
precisamos aprender a vê-lo”, aprender a habitá-lo. Aprender a tornar-se singular
no todo, para a ele pertencer. Essa é a marca da subjetividade para Larrosa
(2002), àquela que constituímos no mundo e com o mundo, o saber que
ultrapassa a informação. Em seus escritos traz a palavra e a voz enquanto
constituintes de subjetividade: uma engendra a outra. Por isso sustentamos
também a complexidade da linguagem com o estudo do autor quando diz “a voz,
para dizer brevemente, não é outra coisa que a marca da subjetividade na
linguagem”* (LARROSA, 2008, p.2). Assim utilizo a noção de subjetividade em
Larrosa para referir e afirmar diferentes modos de dizer o mundo, de subjetivar o
mundo: em dimensões.
60
Para Serres (2004, p. 43) a “aprendizagem mergulha os gestos na
escuridão do corpo; aliás, os pensamentos também; saber é esquecer”. Entrar em
linguagem, cindir semiótico e semântico, é o mesmo que ultrapassar o signo, é
significá-lo, sabê-lo, para operar em linguagem. É linguajar e linguajar é inaugurar
um mundo no mundo. Uma história, na história. É misturar uma história na outra,
é tramar um fio com outro fio. Viver é processo incessante de aprender a refazer-
se, assim como refazer-se é processo incessante de viver. Só podemos retomar
porque já existe uma história, uma duração que, misturada com a experiência de
cada um, que dura, e constitui uma memória do/no corpo, existe a possibilidade
de reconfiguração, de rearranjar e reconfigurar mundos. A memória é a
metamorfose. Portanto os modos de dizer sempre terão algo de outro.
Por se tratar de uma percepção do mundo é que a infância dura a vida
inteira. A percepção na infância é dos começos, das primeiras vezes. E é aí que
reside também a maior alteridade entre adultos e crianças: “não é simplesmente
uma impossibilidade de dizer: trata-se, antes, de uma impossibilidade de falar a
partir de uma língua, isto é, de uma experiência – através da morada infantil na
diferença entre língua e discurso – da própria faculdade ou potência de falar”
(AGAMBEN, 2005, p. 14). A alteridade está na impossibilidade do adulto aprender
a linguagem: ele já sabe, somente a criança é que pode aprender. Para isso é
preciso espera, é preciso tempo no mundo para experimentar sentidos no viver,
pois o humano não pode entrar na língua como sistema de signos sem a
transformar radicalmente em semântica, sem a constituir em discurso. Para
Merleau-Ponty (1991, p. 43), “o sentido é o movimento total da palavra, e é por
isso que nosso pensamento demora-se na linguagem. (...) na medida em que nos
abandonamos a ela, a linguagem vai além dos „signos‟ rumo ao sentido deles”.
Por isso, crianças e adultos compartilham as mesmas palavras, mas colocam
sentidos distintos: é a relação com a (in)experiência da linguagem.
61
corpo no mundo e linguagem
A histórica cisão entre corpo e mente consolidou, no pensamento ocidental,
a cisão entre saber útil e saber inútil, entre saber intelectual e saber manual, entre
aquele “que pensa” e aquele “que faz”, a teoria e a prática. A partir da história do
conhecimento é possível destacar a configuração de corpo como “pensamento”
desenfreado e a mente como “pensamento” racional. O corpo é a manifestação
do tempo, da irracionalidade, da impulsividade, das paixões. Configura-se na
modernidade ocidental uma racionalidade da palavra que considera o corpo como
meio de expressão do espírito. A modernidade europeia foi configurando uma
educação para o corpo e para o espírito: o corpo dominado pela mente garante
uma civilidade. Nesse panorama, as crianças pequenas, ainda sem o domínio da
palavra, permanecem no plano da irracionalidade. A expressão é dada por um
corpo com suas paixões civilizadas.
Para destacar a possibilidade pedagógica de acolher outros modos de
conceber processos de aprender a estar em linguagem na infância que não
apenas aqueles sustentados na lógica causal e intelectual (“mental”) da
racionalidade escriturística, ensaio uma reflexão em torno da “experiência de
habitar o mundo28 por meio de nosso corpo” (MERLEAU-PONTY, 1999b, p. 37),
ou seja, em torno da complexidade dos processos de aprender a coexistência no
28 Para Merleau-Ponty (1999b, p. 24), o mundo não é nem representação, nem ponto
de vista e nem espaço sociocultural contingente e relativo, pois “(...) é o mesmo
mundo que contém nossos corpos e nossos espíritos, desde que se entenda por
mundo não apenas a soma das coisas que caem ou poderiam cair sob nossos olhos,
mas também o lugar de sua compossibilidade, o estilo invariável que observam, que
unifica nossas perspectivas, permite a transição de uma a outra e nos dá o sentimento
– quer se trate de descrever um pormenor da paisagem quer de pôr-nos de acordo
sobre uma verdade invisível – de sermos duas testemunhas capazes de sobrevoar o
mesmo objeto verdadeiro ou, ao menos, de mudar nossa situação em relação a ele,
assim como podemos, no mundo visível no sentido estrito trocar nossos pontos de
permanência”.
62
mesmo mundo através de um corpo sensível operante capaz de agir, imitar e
jogar. Desde o nascimento.
O desafio está em abordar a ambivalência entre hábito e jogo, repetição e
inovação, isto é, entre “criatividade” e “regulação normativa” como “a
ambivalência produtora de sentido, o alicerce genuíno sobre o qual se assenta a
utilidade cognitiva de se conceber o habitat humano como o „mundo da cultura‟”
(BAUMAN, 2012, p. 18), pois diz respeito não só ao agir mas aos fazeres29
comuns, à ação do corpo transformativo no mundo. Significa compreender com
Cohn (2005, p. 35), que “as crianças não são apenas produzidas pelas culturas
mas também produtoras de cultura” ao elaborarem sentidos e compartilharem
plenamente suas experiências do e no mundo com os adultos. A autora destaca
que as crianças só podem elaborar sentidos porque “partem de um sistema
simbólico compartilhado com os adultos” e negá-lo seria tornar o mundo de
ambos incomunicáveis30 (COHN, 2005, p. 35). Trata-se, para Bauman (2012, p.
20-22), em sua revisão do conceito de cultura, do “paradoxo que surge no
universo do discurso cultural entre autonomia e vulnerabilidade” diante do esforço
ordenador do pensamento em superar, enquanto exigência lógica de lidar no
mesmo conceito com a incompatibilidade de “duas forças mutuamente estranhas
e não relacionadas”, a “contradição da „vida real‟ entre o autônomo e o vulnerável:
entre a tarefa da autoconstituição e o fato de ser constituído”.
A infância coloca essa contradição à educação: é apenas na linguagem e
através da linguagem que o humano constitui autonomia para designar-se como
“eu”31. Se infância é tanto ausência quanto busca de linguagem, só um in-fante se
constitui em sujeito da linguagem e é na infância que ocorre essa descontinuidade
especificamente humana entre o dado e o adquirido, entre a natureza e a cultura
29
Para Arendt (2010, p. 156-157), “a característica do fazer (fabricação/produção) é ter um começo definido e um fim definido e previsível, e esta característica é bastante para distingui-la de todas as demais atividades humanas. A ação, embora tenha um começo definido, jamais tem um fim previsível. O fazer, ao contrário da ação, não é irreversível: tudo o que é produzido por mãos humanas pode ser destruído por elas”. 30
Para Cohn (2005, p. 35-36), as crianças têm uma “relativa autonomia cultural”. Considera adequado “falar de culturas infantis”, mas adverte para fazê-lo com cuidado “para não incompatibilizar o que as crianças fazem e pensam com aquilo que outros, que compartilham com ela de uma cultura mas não são crianças, fazem e pensam”. 31
“Como infância do homem, a experiência é a simples diferença entre humano e linguístico. Que o homem não seja sempre já falante, que ele tenha sido e seja ainda in-fante, isto é a experiência” (AGAMBEN, 2005, p. 62 grifos do autor).
63
(AGAMBEN, 2005, p. 56). Por isso, para Arendt (2010, p. 17), a natalidade, na
qual se enraíza a ação32 no sentido de iniciar, de imprimir movimento a algo,
“pode constituir a categoria central do pensamento político, em contraposição ao
pensamento metafísico”, pois nascer é começar-se no mundo, mas também
começar um mundo, na simultaneidade histórica da continuidade de um mundo já
constituído. Constituir-se em linguagem, na perspectiva merleau-pontyana é
mergulhar na experiência humana: histórica porque dura, social e cultural porque
pode ser refeita. Para Merleau-Ponty (1991, p. 39), “essa espécie de círculo que
faz com que a língua se preceda naqueles que a aprendem, ensine-se a si
mesma e sugira a própria decifração talvez seja o prodígio que define a
linguagem”.
Em Steiner (2005, p. 109), “dar origem à linguagem é uma necessidade
inerente da humanidade”, nascemos capazes de estar em linguagem, no entanto
precisamos ser iniciados em uma cultura da linguagem. Por isso os começos são
fundantes de um modo de estar no mundo. Nas palavras do autor, a linguagem
“muda tão rapidamente e em tão diferentes formas como a própria experiência
humana” (STEINER, 2005, p. 45). É pelo fato de que precisamos ser iniciados na
linguagem que ela
[...] é literalmente criativa. Cada ato de linguagem tem um potencial de inovação, uma capacidade para iniciar, para delinear ou construir a „antimatéria‟ (a terminologia da física de partículas e da cosmologia, com sua inferência de „outros mundos‟, sugere com precisão a inteira noção de alteridade). (STEINER, 2005, p. 247)
Ultrapassar o sistema de regras e tornar a linguagem significativa é
aproximar o novo do velho, é romper com a oposição entre signo e semântico:
compartilhar um mundo. Para isso a linguagem necessita do corpo operante no
mundo e com o mundo, necessita viver experiências mundanas que permitam a
valoração, a aprendizagem conotativa da linguagem, para só então poder operar
com a linguagem: linguajar. Para operar com a linguagem, é preciso uma relação
de intimidade com o mundo e os modos de percebê-lo, de vincular-se ao mundo e
32
Para Arendt (2010, p. 191), “O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isto, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo. Desse alguém que é singular pode-se dizer, com certeza, que antes não havia ninguém. Se a ação, como início, corresponde ao fato do nascimento, se é efetivação da condição humana da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade, isto é, do viver como ser distinto e singular entre iguais”.
64
as coisas do mundo, iniciar-se cultural e socialmente na vida, o que não quer
dizer que essa seja a situação da criança. Só há um começo porque há a
ausência de algo que precisa ser constituído.
A criança, diante do adulto é inexperiente, ela não aborda o mundo a partir
de uma linguagem já compartilhada entre os que aqui já estão. Ela terá que
aprender a constituir uma linguagem, se apropriar de uma gramática do mundo,
diria Mèlich (2012), aquela compartilhada pelo seu coletivo. Para tanto, terá que
aprender a constituir sentidos33 e não apenas palavras para poder compartilhar
um mundo consentido. Compor sentidos, para além de um signo, é conceber que
“cada gesto comunicativo tem um resíduo privado” (STEINER, 2005, p. 70), pois
diz respeito à narrativa de um processo.
Para Steiner, a linguagem é formadora de humanidade, é formadora do
indizível, e isso significa que o que nos iguala também nos diferencia. O que nos
torna humanamente capazes de compartilhar um mundo, também nos torna
capazes de alterar esse mundo. O autor afirma que “a língua de uma
comunidade, por mais uniformes que sejam seus contornos sociais, é um
agregado inesgotavelmente múltiplo de átomos de fala, de significados pessoais
em último caso irredutíveis” (STEINER, 2005, p. 71). Não entramos nos sentidos
somente com palavras, e não dizemos somente com palavras. Há o corpo
sensível e sua ação, o atuar com os outros no mundo, inseparável do discurso34
que revela “quem se é”, enquanto fenômeno da aparência de mostrar-se ante os
demais – outros que vêem e são vistos, que percebam e sejam percebidos –
enquanto igualdade e distinção entre humanos (ARENDT, 2010).
Em Arendt (2010, p. 15), a ação enquanto esfera política de “compartilhar
palavras e atos” (2010, p. 210), de atuar juntos na vida pública, corresponde à
condição humana da pluralidade pelo fato de que humanos vivem na Terra e
habitam o mundo. Quando humanos estão com outros, nem “pró” nem “contra” os
outros, mas no gozo da convivência humana, a inseparabilidade entre ação e
discurso torna-se reveladora do “quem” em contraposição a “o que” porque “na
ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas 33
Enquanto “una especie de „principio de comprensibilidad‟, esto es, aquello que organiza y hace coherente un todo” mas também “hace de nuestra relación con el mundo una relación carnal, llena de cuerpo y, por ello mismo, profundamente erótica” (BÁRCENA, 2004, p. 30). 34
“sem o discurso, a ação deixaria de ser ação, pois não haveria ator; e o ator, o agente do ato, só é possível se for, ao mesmo tempo, o autor das palavras” (ARENDT, 1999, p. 191).
65
identidades pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao mundo humano,
enquanto suas identidades físicas são reveladas, sem qualquer atividade própria,
na conformação singular do corpo e no som singular da voz” (ARENDT, 2010, p.
192).
O corpo nunca se ausenta de nós, o que sempre somos é corpo, pois “[…]
sempre contamos com ele; nunca deixamos de estar presentes no mundo através
dele; melhor ainda: constantemente, em tudo o que pensamos, fazemos e
sentimos, somos presença corporal”* (DUCH; MÈLICH, 2005, p. 147). O corpo, na
perspectiva merleau-pontyana é um sensível entre os sensíveis, no qual se faz
uma inscrição de todos os outros, ou então, uma coisa entre as coisas, porém no
mais alto grau enquanto um sensível que é dimensional por si próprio: meu corpo
é sensível para mim mesmo (MERLEAU-PONTY, 1999b). Há uma reflexão
reversível nele mesmo, pois meu corpo é visível e vidente35, é tocante e é tocado,
é voz e fala, porque entre todas as coisas, eu posso me ver e ser visível, posso
me tocar e tocar, posso me ouvir e me fazer ouvir. Eu tenho consciência de mim.
Eu sou um corpo habitado por uma consciência encarnada, e por isso somos
intersubjetivos, “[…] em realidade, nosso corpo é o encarregado de desenhar e
dar vida a um mundo”* (DUCH; MÈLICH, 2005, p. 149).
Se para Merleau-Ponty somos um corpo no mundo, um corpo atuante, para
Mèlich (2009, p. 79) somos corpóreos e, portanto efêmeros: “«Temos» um corpo
e somos corpo, somos corporeidade: tempo e espaço, história e contingência,
natureza e cultura”*. Ambos os autores afirmam que corpo, mundo e linguagem
são inseparáveis na ação de constituir-se humano. A ação no mundo, diante da
abertura do humano para o novo, é o encontro com significações de uma cultura,
uma sociedade e seus hábitos, afinal cada língua mapeia o mundo diferente, pois
“cada língua constrói um conjunto de mundos possíveis e uma cartografia de
35
Conceito de carne e quiasma (reversibilidade): “A noção merleau-pontyana de carne não é alheia ao uso corrente do termo, pois corresponde em parte ao que a fenomenologia chama „corpo vivido‟ ou „corpo animado‟, isto é, o corpo que percebe e se move, deseja e sofre; mas ele se afasta do sentido habitual na medida em que visa não a diferença entre o corpo-sujeito e o corpo-objeto, mas, antes, inversamente, a matéria comum do corpo vidente e do mundo visível, pensados como inseparáveis, nascendo um do outro, um para o outro, de uma „deiscência‟ que é a abertura do mundo. Portanto, a carne nomeia própria e fundamentalmente a unidade do ser como “vidente-visível” (DUPOND, 2010, p.9).
66
memória” (STEINER, 2005, Prefácio). É o encontro de elementos novos com
antigos, coexistência da tradição com a inovação.
Encontro na antropologia de Thomas Csordas (2008)36 contribuição para
pensar o corpo socialmente constituído no mundo por sua abordagem da
corporeidade partir da premissa do corpo como sujeito da cultura, e não como
objeto a ser estudado em relação à cultura, para afirmar que “o corpo é a base
existencial da cultura” (CSORDAS, 2008, p. 102; p. 145). O antropólogo norte-
americano desenha um paradigma da corporeidade a partir da aproximação entre
a fenomenologia da percepção em Merleau-Ponty e o discurso antropológico da
prática em Pierre Bourdieu devido a ambos sustentarem seus estudos no corpo
como “chave” para problematizarem dualidades incômodas: no domínio da
percepção a do sujeito-objeto e no domínio da prática a estrutura-prática.
Se o conceito de habitus em Bourdieu mudou o foco inicial no corpo como
fonte de simbolismo ou meio de expressão para uma compreensão do corpo
como lócus da prática social, Merleau-Ponty destaca uma fenomenologia do
corpo vivido que reconhece a corporeidade como a condição existencial na qual a
cultura e o sujeito se fundam. Cabe destacar, com Csordas (2008, p. 368), que o
paradigma da corporeidade “não significa que as culturas têm a mesma estrutura
da experiência corporal, mas que a experiência corporificada é o ponto de partida
para analisar a participação humana em um mundo cultural”, contribuindo para
sugerir que a corporeidade não precisa se restringir à análise subjetiva
geralmente relacionada à fenomenologia, mas também torna-se relevante para as
coletividades sociais.
A fenomenologia de Merleau-Ponty, em sua crítica ao empirismo e ao
intelectualismo37, problematiza tanto a cisão entre corpo e consciência (mente)
quanto entre sujeito e objeto ao afirmar que o corpo é um contexto em relação ao
mundo: “isso quer dizer que meu corpo é feito da mesma carne que o mundo (é
36
No capítulo dois do livro “Corpo/Significado/Cura”, Csordas (2008, p. 101-146) propõe “A corporeidade como um paradigma para a Antropologia”. 37
Merleau-Ponty (1999a, p.53-56) critica o empirismo e sua antítese intelectualista ao afirmar que um e outro tomam por objeto de análise o mundo objetivo sendo ambos incapazes de exprimir a maneira particular pela qual a consciência perceptiva constitui seu objeto pois “ambos guardam distância a respeito da percepção, em lugar de aderir a ela”. Em relação à linguagem afirma que “ultrapassa-se tanto o intelectualismo quanto o empirismo pela simples observação de que a palavra tem um sentido” (MERLEAU-PONTY, 1999a, p. 241 grifo do autor).
67
um percebido)38” (MERLEAU-PONTY, 1999b, p. 225). Sensível exemplar porque
sensível para si, o corpo é simultaneamente sujeito e objeto: “toco-me tocante,
meu corpo efetua „uma espécie de reflexão‟. Nele, por ele, não há somente
relação em sentido único daquele que sente com aquilo que sente: a relação
inverte-se, a mão tocada torna-se tocante, e sou obrigado a dizer que o tato está
espalhado em meu corpo, que o corpo é „coisa que sente‟, „sujeito-objeto‟”
(MERLEAU-PONTY, 1991, p. 184). Para Chauí (2002, p. 143), pela primeira vez,
na história da filosofia, a consciência perde a soberania e a novidade radical está
em transformar ou renovar a própria ideia de reflexão ao apontar “que esta é
inacabamento, iminência, duplicação interminável, concordância sem
coincidência”.
Ao distanciar-se da concepção ocidental de corpo “objeto”, amplamente
estudada pela medicina e pela ciência, Merleau-Ponty recusa a relação que opõe
alma-corpo, consciência-mundo, homem-natureza. O filósofo considera a
consciência encarnada num corpo, um corpo humano, habitado e animado por
uma consciência. Assume assim, o complexo fenômeno humano do viver, em que
visível e invisível, dito e não dito, dizível e indizível são condições constitutivas de
um corpo que pensa. Isso porque não somos pensamento puro, somos corpo,
mas também não somos uma coisa, porque somos consciência. “Através do
corpo, a consciência está no mundo, mas, ao mesmo tempo, o mundo se mostra
através da consciência”* (DUCH; MÈLICH, 2005, p. 147). Corpo e mente, emoção
e razão, sensível e inteligível, operam em complementaridade e não em oposição.
Se o corpo é habitado por uma consciência, o mundo não é meramente
causal e factual: o mundo é o lugar onde vivemos, estamos no mundo e somos
rodeados pelas coisas. Para o filosofo “as coisas e o meu corpo são feitas do
mesmo estofo” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 89) e a percepção do mundo é o
modo originário de um corpo aderido ao mundo. Mundo onde coexistimos e nos
tornamos seres históricos no que o filósofo chama de dimensão mundana: somos
38
“A carne do mundo não é explicada pela carne do corpo, ou esta pela negatividade ou pelo si que a habita – os três fenômenos são simultâneos – (...) A carne do mundo não é sentir-se como carne minha – é sensível e não sentiente – chamo-a, não obstante, carne para dizer que ela é pregnância de possíveis (...) A carne do mundo é Ser-visto, i. e.,Ser que é eminentemente percipi, e é através dela que se pode compreender o percipere: o percebido que se chama meu corpo aplicando-se ao resto do percebido (...) (MERLEAU-PONTY, 1999b, p. 227).
68
tempo e espaço. Temporais, pois nos constituímos em uma perspectiva histórica,
seres históricos; espaciais, pois habitamos o mundo e habitar é significar39. Dado
o caráter temporal da ação no mundo, todo atuar requer o complemento do relato,
da narração: a ação é narrativa e é narrável porque toda ação é encarnada e
parte de uma vida que se entrelaça com outras vidas.
Assim somos seres históricos, pois nos constituímos em uma perspectiva
histórica em que tempo e espaço compõem uma narrativa: a coexistência entre
humanos. A historicidade, para Merleau-Ponty, está justificada no fato de que nós
temos consciência de um futuro e a lembrança de um passado o que implica
constituir uma narrativa do viver ou habitar a linguagem. Vir ao mundo ou “o fato
de possuir um corpo com capacidades perceptivas é uma mostra evidente da
radical abertura do ser humano ao mundo”* (DUCH; MÈLICH, 2005, p. 146), da
novidade e da possibilidade de inaugurar sentidos. Nossas percepções estão
orientadas para uma realidade mundana e vinculadas a ela.
Merleau-Ponty, em seus estudos sobre a percepção, toma o corpo como
ponto zero da origem radical da percepção “para definir e reduzir ao essencial
minha própria „finitude‟ e para articular meu „ser-e-estar-no-mundo‟”* (DUCH;
MÈLICH, 2005, p. 145). Assim o corpo é o ancoradouro de uma subjetividade no
mundo cotidiano, que em um tempo e espaço
determina decisivamente minha situação na trama das relações sociais, no alcance de meus projetos, na realidade reduz ao essencial meus inacabados e, a frequentemente, contraditórios processos para compreender o mundo que me rodeia*. (DUCH; MÈLICH, 2005, p. 145)
Para o filósofo é inegável que a mente se encontre no corpo e, assim, o
conhecimento é conquistado a partir do que Merleau-Ponty chama de “esquema
postural corpóreo”, pois “a capacidade do ser humano como agente encontra-se
essencialmente „encarnada‟”* (DUCH; MÈLICH, 2005, p. 145).
Percebemos o mundo e nos tornamos parte dele “através de nossas
capacidades para atuar sobre ele”* (DUCH; MÈLICH, 2005, p. 146). O corpo
reflexiona, e há um estreito paralelismo entre “ter um mundo”, “perceber um
39
Para Merleau-Ponty (1999a, p.263), “é preciso reconhecer essa potência aberta e indefinida de significar – quer dizer, ao mesmo tempo de apreender e de comunicar um sentido – como um fato último pelo qual o homem se transcende em direção a um comportamento novo, ou em direção ao outro, ou em direção ao seu próprio pensamento, através de seu corpo e de sua fala”.
69
mundo” e a “condição adverbial”* (DUCH; MÈLICH, 2005, p. 146), estar no mundo
não é banal, é condição humana para significar o viver, constituir-se em
linguagem. Nascer, vir ao mundo está condicionado à ação de começar-se.
Assim,
a linguagem não constitui uma função isolada do ser humano, mas que, através do vivido pelo corpo próprio, é ao mesmo tempo a afirmação do mundo dos objetos – e, evidentemente e por cima de tudo, do outro – e a afirmação de um mesmo em relação com eles.* (DUCH; MÈLICH, 2005, p. 150)
A consciência encarnada, o “eu posso”, “de um ser que se faz fazendo: eu
me constituo na simultaneidade em que constituo um mundo. Constituir um
mundo é inseparável de constituir-se. A linguagem exige experiência mundana: o
copo atuante provoca o mundo e é provocado pelo mundo.
O corpo torna-se o centro da experiência mundana, pois é “o veículo ativo
e perceptivo da existência humana”*. A partir do corpo se constituirá um repertório
que dará sentido à “gramática” do mundo (MÈLICH, 2012), isto é, tornará
inteligível o viver. Não nascemos com linguagem, nascemos com a capacidade de
entrar em linguagem. A primeira reflexão é realizada pelo corpo sensível aderido
ao mundo. A partir do pensamento merleua-pontyano, é possível afirmar que a
consciência aprende a refletir com o corpo40. A criança aprende a pensar
complexificando o viver, vivendo, convivendo. O corpo agindo no mundo – nas
práticas sociais - ensina o pensamento a pensar (MERLEAU-PONTY, 1999a).
Compor esse mundo, para o recém-chegado, significa constituir e
constituir-se em um repertório de sentidos, que emerge a partir de experiências
da e na ação mundana. Na radical alteridade entre crianças e adultos,
compartilhamos a narrativa histórica de um mundo, constituído a partir da
valoração das práticas sociais e da necessidade não apenas de dizer essa
valoração mas de repeti-la. Para Bourdieu (1983, p. 105), o social e o cultural
estão intrinsecamente vinculados ao hábito e ao habitus. Enquanto
40
“(...) a consciência projeta-se em um mundo físico e tem um corpo, assim como ela se projeta em um mundo cultural e tem hábitos: porque ela só pode ser consciência jogando com significações dadas no passado absoluto da natureza ou em seu passado pessoal, e porque toda forma vivida tende para uma certa generalidade, seja a de nossos hábitos, seja a de nossas „funções corporais‟. Enfim, esses esclarecimentos nos permitem compreender sem equívoco a motricidade enquanto intencionalidade original. Originariamente a consciência é não um „eu penso que‟, mas um „eu posso‟ (MERLEAU-PONTY, 1999a, p. 192).
70
o hábito é considerado espontaneamente como repetitivo, mecânico, automático, antes reprodutivo do que produtivo [...] habitus é algo que possui uma enorme potência geradora. [...] é um produto dos condicionamentos que tende reproduzir a lógica objetiva dos condicionamentos mas introduzindo neles uma transformação; é uma espécie de máquina transformadora que faz com que nós „reproduzamos‟ as condições sociais de nossa própria produção, mas de uma maneira relativamente imprevisível , de uma maneira tal que não se pode passar simplesmente e mecanicamente do conhecimento das condições de produção ao conhecimento dos produtos [...].
O que nos diferencia de todo o mundo, mas nos iguala em comunidade.
Para Bachelard (2007, p 69): “costuma-se dizer que o hábito está inscrito no ser.
A nosso ver, seria melhor dizer, empregando a linguagem dos geômetras, que o
hábito está exscrito ao ser”. O hábito vai sendo forjado na medida em que a
criança, ao atuar no mundo, convive. O hábito exige a experiência temporal de
estar em relação com o mundo. Pois, “[...] o indivíduo, na medida em que é
complexo, corresponde a uma simultaneidade de ações instantâneas; só
reencontra a si mesmo na proporção em que essas ações simultâneas
recomeçam” (BACHELARD, 2007, p.70).
O hábito que se configura socialmente é o lugar do sucesso, um lugar
seguro, um modo seguro de agir, ser, viver, no entanto, o jogo é característico de
experimentar estratégias de desenvolvimento de soluções de conflitos. É na
repetição, na reiteração que o hábito se constitui. No entanto o que há de
mimético nessas ações, ou, nas ações de retomada, reiteração o que há de
lúdico? Afinal, para Merleau-Ponty, a criança imita o resultado final, não o
percurso. Será a imitação uma ação lúdica de resignificar o viver?
Glosa - HÁBITO
Um hábito particular é um ritmo sustentado, no qual todos os
atos se repetem igualando com bastante exatidão seu valor
de novidade, mas sem jamais perder esse caráter
dominante de ser uma novidade. A diluição do novo pode
ser tamanha que às vezes o hábito pode passar para o
inconsciente. Parece que a consciência, tão intensa no
primeiro ensaio, se perdeu ao se repartir entre todas as
repetições desnecessárias. Mas, ao se economizar, a
novidade se organiza; ela inventa no tempo em vez de
71
inventar no espaço. A vida já encontra a regra formal numa
regulação temporal; o órgão se constrói pela função; e, para
que os órgãos sejam complexos, basta que as funções
sejam ativas e frequentes. Tudo equivale sempre a utilizar
um número crescente dos instantes que o Tempo oferece.
(BACHELAD, 2007, p. 70-71).
Para penetrar todos os sentidos da ideia de hábito, é
preciso associar dois conceitos que parecem à primeira vista
se contradizer: a repetição e o começo. Ora, essa objeção
se desvanecerá se observarmos que todo hábito geral –
claro e consciente – que é a vontade. Assim sendo, de bom
grado definiríamos o hábito, tomado no sentido pleno por
esta fórmula que concilia os dois contrários que a crítica se
apressou em opor: o hábito é a vontade de começar a
repetir a si mesmo
(BACHELAD, 2007, p. 78 grifos do autor).
Na esteira da filosofia, para Huizinga (2010), o que nos torna seres
culturais é a possibilidade de jogar com linguagem, o que só é possível em sua
complementar ambivalência: dizível e indizível, real e ficcional, corpo e mundo,
ação e narrativa. O jogo torna-se um fenômeno cultural, na medida em que é
fundante da cultura, ou seja é uma condição humana. É a partir dele que
constituímos uma cultura e uma história - o contínuo e o descontínuo do viver -,
constituímos uma valoração do mundo que é significada no viver. Trata-se da
valoração em que faz e se faz, nas palavras de Merleau-Ponty (2006), um ser-no-
mundo que, em sua ação é capaz de transformar-se e transformar o mundo e o
modo como viver.
Glosa – JOGO
As grandes atividades arquetípicas da sociedade humana
são, desde o início, inteiramente marcadas pelo jogo. Como
por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e
supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder
72
comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe
permite distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em
resumo, designá-las e com essa designação elevá-las ao
domínio do espírito. Na criação da fala e da linguagem,
brincando com essa maravilhosa faculdade de designar, é
como se o espírito estivesse constantemente saltando entre
a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda a
expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora
é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o
homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado da
natureza.
(HUIZINGA, 2010, p. 7)
Esta parece ser a grande lição da infância: aprender uma
felicidade não disciplinada, aprender novas relações entre
as coisas e entre os objetos do mundo, aprender a jogar
com a razão, ou entender o mecanismo da razão como jogo.
Aprender a vincular o lúdico con a lucidez. As lições da
infância podemos aprender se aprendemos a estar no
tempo do puro acontecer quando sabemos abrir-nos aos
acontecimentos. *
(BÁRCENA, 2004, p. 122)
Para Huizinga (2010, p. 10), as manifestações sociais são consideradas as
mais elevadas formas de jogo. O jogo transcende a racionalidade, do contrário
essa não seria uma prática comum entre os animais, por isso considera “o jogo na
cultura, como elemento dado existente antes da própria cultura” (HUIZINGA,
2010, p. 6). “O adjetivo lúdico é um derivado por etimologia popular do substantivo
latino ludos (que significa “jogo” entre muitos outros significados). Designa tudo
que é relativo ao jogo, ócio, entretenimento ou diversão“ 41. Mas para Huizinga
(2010, p.5) o lúdico também designa “tensão, alegria e divertimento”, o jogo, que
é característica do ser vivo e fundante da cultura do humano, registra sua “forma
significante” e não apenas como qualidade de uma ação, mas como característica
41
Tradução livre da etimologia de lúdico, disponível no Dicionário de etimologia. Vide referências.
73
íntima do ser humano. Portanto também diz respeito à aprendizagem da
linguagem, ao modo como operamos em linguagem.
O caráter de interação entre as crianças, por mais que o imitativo os
aproxime do comportamento do adulto e da cultura que o rodeia, tem um caráter
diferenciado. Da linguagem à ação narrativa de constituir-se no mundo, não é só
a aprendizagem da palavra que emerge desse processo cultural e social. Para
Maturana (2004, p. 124)
saber é fazer e fazer é saber. Porém, a ação e o comportamento surgem da operação da corporeidade do organismo, de acordo com sua estrutura no momento de sua ação ou conduta. E a estrutura de um organismo é, a cada instante, o presente de sua história biológica, num devir epigenético que começa em sua concepção. Por isso, ninguém pode agir ou comportar-se fora do domínio de possibilidades que sua corporeidade implica. O subconjunto dos atos e condutas possível que um organismo desenvolve de fato ao longo de sua história individual, depende de como ele vive essa história. Desse modo, uma criança necessariamente chegará a ser, em seu desenvolvimento, o ser humano que sua história de interações com sua mãe e os outros seres que o rodeiam permitir, dependendo de como sua corporeidade se transforme nessas interações. O ser humano que um ser humano chega a ser vai se construindo ao longo da vida humana que ele vive.
Machado (2001) traz a discussão que Maffesoli faz da questão constitutiva
de uma identidade social a partir do que é culturalmente constituído e constitutivo.
São as pessoas e a capacidade de alterar o viver que constituem a história de um
lugar, mas seria ingênuo achar que e a história de um lugar não constitui as
pessoas. Para Machado (2001, p. 76) há algo que transcende o real, “o imaginário
de Paris faz Paris ser o que é”, ou seja, “uma construção histórica, mas também o
resultado de uma atmosfera e, por isso mesmo, uma aura que continua a produzir
novas imagens” (MACHADO, 2001, p. 76). Isso, para Maffesoli diz respeito ao
imaginário coletivo, uma narrativa de mundo compartilhada. O que há de comum
no coletivo, ou da necessidade de algo em comum para existir uma coletividade.
Cabe destacar, aqui, a perspectiva das conversações que sugere Maturana
(2004), está inscrita no encontro linguageiro que permite compartilhar, ações e
emoções, no viver e diz respeito também aos fazeres que nos permitem sustentar
um modo de estar no mundo. As ações que se tornaram hábitos na vida do
humano, compõem uma crença, um cotidiano social e cultural de atividades e
afazeres, que para Maturana (2004, p. 31), “ocorrem como conversações e redes
de conversações”. Ações como caçar, pescar, construir, cuidar, fabricar,
74
cozinhar... ”como atividades humanas, são diferentes classes de conversações”
ou “distintas redes de coordenações de coordenações consensuais de ações e
emoções” (MATURANA, 2004, p. 31). Assim, “diferentes culturas são redes
distintas e fechadas de conversações, que realizam outras tantas maneiras
diversas de viver humano como variadas configurações de entrelaçamento do
linguajear com o emocionar” (MATURANA, 2004, p. 33).
Àquilo que não se pode explicar, conceituar e generalizar, mas ao mesmo
tempo é inseparável da condição humana, torna-se um frágil campo de estudos,
ficando fora do privilégio da ciência. Linguajar, nesse sentido, diz respeito ao
indizível, que não pode ser explicado, conceituado e generalizado, mas pode ser
narrado. É a partir dessa dimensão que a linguagem se amplia para além dos
muros conceituais simplificadores do aprender a estar no mundo.
Complexificando o modo de pensar e admitindo que a linguagem não possa dar
conta de uma totalidade, considero uma dimensão possível para pensar a
educação de crianças pequenas, também além dos muros conceituais escolares.
Já o imaginário coletivo, que Machado (2001) discute a partir de Maffesoli
“é sempre comunicação” porque diz respeito à “comunhão”, enquanto articulador
do emocional e da técnica. A técnica, diz o sociólogo, “é um artefato”, um modo
de operar, uma ação. Já o emocionar está vinculado ao modo como essa ação é
gerada, o como, um discurso. Assim, ação e técnica, razão e emoção, palavra e
discurso, geram uma narrativa do viver e para o conviver. Quem sou e como
cheguei a ser quem sou. Um indivíduo que se constitui no coletivo, pelo que pode
ser compartilhado, um imaginário coletivo, que emerge de ações de
coordenações de coordenações consensuais de ação e emoção (MATURANA,
2004), discurso e narrativa coletiva.
Aquilo que faz de uma ação, de um pensar, de um ser e de um estar uma
singularidade e não uma verdade está na possibilidade de estar em linguagem
com o outro, partilhar, jogar. “Não podemos afirmar o que seria o sujeito sem suas
referências mundanas e os outros. Os outros são parte do eu” (GEBAUER e
WULF, 2004, p.118). Assim, o eu é uma dimensão do todo, que como o mundo,
se tornam complementares. Conjugar o viver significa distanciar-se de uma
certeza, mas conviver com as certezas e poder escolher ou então misturar-se a
75
elas. Nesse sentido problematizo a substantivação - “o” conhecimento, “a”
linguagem, “o” saber, “a” criança, “a” infância - como verdades únicas por
desconsiderar modos improváveis de viver. A “relação mundana”, para Gebauer e
Wulf (2004, p. 118) diz respeito ao entrecruzamento de “atividades recíprocas: um
sujeito que tem que se constituir, mantém relações com um mundo que já existe
como formado e estruturado, e que por sua vez constitui o sujeito”. Pensar o
humano é evocar as diferenças como próprias dos fazeres da vida, do ser e estar
com.
Assim o vigor dos fazeres, do agir, do pensar, do ser e estar não pode
estar em um único modo de agir, de pensar, de ser e de estar. Afinal “o sujeito
não sofre os efeitos do meio ambiente e dos outros de forma passiva, mas refere-
se a eles e integra-os na sua ação” (GEBAUER; WULF, 2004, p.118). Desse
modo, o adulto compartilha com a criança modos de estar no mundo,
convenções, hábitos, linguagem; uma narrativa do mundo. E, a partir de
referências “deve constituir-se e gerar um mundo na ação”, ou seja, “o eu, como
os outros, é uma categoria aberta, pensada de maneira tal que ambos os lados se
constituem mutuamente” (GEBAUER; WULF, 2004, p. 118).
A repetição não é apenas um modo mecânico que imita o viver. Antes é um
modo de apropriar-se, enquanto “tipos de relações humanas particulares e que se
transformam historicamente” (GEBAUER; WULF, 2004, p. 37). Mas geralmente o
conceito de mímesis é limitado às áreas da arte, da estética e ao significado de
imitação, no entanto para Gebauer e Wulf (2004), o sentido é mais amplo e
abarca também “fazer-se parecido”, “trazer algo à representação”, “expressar” e
“pré-encenar”. Bárcena e Mèlich (2000, p. 67-68) destacam que
nossa capacidade para atuar em um cenário público de pluralidade repousa, pois, no fenômeno da aparência, sobre o que tão reiteradamente insiste Arendt. Atuar é mostrar-se ante aos demais, é aparecer. O ser que se expressa através da ação o faz através de sua forma, de sua figura, de sua aparência. Necessita fazer-se visível. No âmbito dos assuntos humanos, ser e aparecer coincidem.*
Por assim dizer, a capacidade mimética desempenha uma função em
quase todas as áreas humanas da ação, da imaginação, do falar e do pensar, e
representa uma condição imprescindível à vida social (GEBAUER; WULF, 2004).
A capacidade mimética está vinculada a “um conhecimento do mundo por
meio do corpo, um connaissance par corps (BOURDIEU, 1992) que já ganha suas
76
primeiras cognições acerca da regularidade do mundo, da sua criação material e
da correspondência com outros” (GEBAUER; WULF, 2004). O que diz respeito às
relações que o sujeito mantém e estabelece com o outro, no mundo e com o
mundo, “particularmente de níveis de desenvolvimento primários marcados por
atos de ajustamento, „refazimento‟, incorporações do já achado e de imitação de
fenômenos” (GEBAUER; WULF, 2004, p. 37). Transcendendo a noção “do
reproduzir, do copiar, do imitar objetos reais por meio da não realidade”, Gebauer
e Wulf (2004, p. 21) trazem à tona a necessidade de um real para constituir-se
humano no mundo. Há que se constituir um repertório de vida, cultural e social
para tornar-se parte e partícipe de um mesmo mundo. A ação de repetir e de
imitar permite considerar a necessária convivência entre humanos não para
socializar-se, mas para manter-se humanos a partir do que nos torna humanos: a
aprendizagem da linguagem. Afinal “nascemos casualmente em um tecido de
histórias, em uma cultura. Justamente porque somos seres tanto naturais como
culturais, homens e mulheres estamos submetidos a persistência e a mudança, a
transgressão”* (MÈLICH, 2009, p. 79).
A tomada de decisão, muito antes de ser racional é corporal, linguageira.
Não há o descolamento do pensar e do agir, mas um agir que pensa e um pensar
que age. Estar em linguagem também é estar em singularidade, singularidade
que se constitui na convivência linguageira, nas conversações. Para Gebauer e
Wulf (2004, p. 118) “o eu não poderia surgir sem o outro; o eu contém de antemão
também aquilo que está diante dele” O que aprendemos culturalmente,
humanamente constitui um repertório de sentidos e significados que nos permitem
transitar, apesar do social, individualmente em linguagem.
A criança nasce com uma abertura para o mundo, para o inusitado e suas
primeiras aprendizagens, a narrativa de mundo é que configura essa abertura
para a experiência da linguagem, para o sentido que ao mundo atribuímos. Assim,
as narrativas podem ser muitas, e as aprendizagens, por sua vez, também:
limitadoras ou ampliadoras de conotações do mundo. Uma narrativa não deixa de
ser um modo de viver e de compreender o mundo, ser e estar no mundo,
compartilhar e conviver com os outros. Isso “postula que a tradução está formal e
pragmaticamente implícita em cada ato de comunicação, na emissão e na
77
recepção de cada um e de todos os modos de significar, sejam elas
compreendidas no mais amplo sentido semiótico ou em trocas mais
especificamente verbais. Compreender é decifrar. Alcançar a significação é
traduzir” (STEINER, 2005, Apresentação). Envolve percepção. Aproximar o signo
linguístico do sentido que minha experiência permite conotar, valorar. Assim,
escutar e falar ou falar e escutar, sempre supõe traduzir: seja o que se pensa e é
dito em palavras, seja o que se ouve das palavras e se pensa com elas. Para
Larrosa, não pensamos com pensamentos, mas com palavras e o sentidos que
lhe atribuímos.
Aprendemos, portanto a valorar e conotar o mundo estando no mundo,
aderidos às coisas do mundo. Valorar e atribuir sentidos ao vivido exige
experimentar o mundo, significar o indizível para poder compartilhar e conviver.
Portanto, nessa perspectiva, superamos a ideia de educação para crianças
pequenas como forma de socialização. Para Charlot (2000, p. 54), “a educação
não é socialização de um ser que não fosse já social: o mundo, e com ele a
sociedade, já está sempre presente”. Assim, torna-se pertinente abordar a
linguagem a partir da compreensão de que não há linguagem sem relação
corporal que possibilite significar, valorar sentidos. Um corpo que pensa, que
aprende ludicamente a operar com o linguajar. Entre ação e narrativa, o modo
como nos tornamos pertencentes ao mundo, é o modo como participamos do
mundo.
78
educação e infância
Este ensaio aproxima educação e infância para discutir a educação como
acontecimento da vida. Processo em que a interação entre adultos e crianças, em
alteridade linguageira, faz emergir a aprendizagem da convivência em um mundo
partilhado, ou seja, em linguagem. Nesse sentido, educação e infância é
composição narrativa de começar-se e recomeçar-se no mundo. Os processos de
aprender a habitar a alteridade entre língua e discurso exige temporalização de
aprendizagens que, na agir, no fazer, o humano experimenta possibilidades
constitutivas de um repertório de vida.
Glosa - TEMPO e INFÂNCIA
Notemos que a infância não é apenas uma questão
cronológica: a infância é uma condição da experiência. É
preciso ampliar os horizontes da temporalidade. Os gregos,
aqui também, podem nos ajudar. Em grego clássico há mais
de uma palavra para referir-se ao tempo. A mais conhecida
entre nós é chrónos, que designa a continuidade de um
tempo sucessivo. Aristóteles define chrónos como „o número
do movimento segundo o antes e o depois‟, na Física (IV,
220a); percebemos o movimento, o numeramos e a essa
numeração ordenada damos o nome de chrónos. [...] Outra
é Kairós, que significa „medida‟, „proporção‟, e, em relação
com o tempo, „momento crítico, „temporada‟, oportunidade
(Liddell e Scott, 1966, p. 859). Uma terceira palavra é Aión
que designa, já em seus usos mais antigos, a intensidade do
tempo da vida humana, um destino, uma duração, uma
temporalidade não numerável nem sucessiva, intensiva (id.,
ib., p. 45). [...] o próprio da criança não é ser apenas uma
etapa, uma fase numerável ou qualificável da vida humana,
mas um reinado marcado por outra relação – intensa – com
79
o movimento. No reino infantil o que é o tempo não há
sucessão nem consecutividade, mas a intensidade da
duração. Uma força infantil, sugere Heráclito, que é o tempo
aiónico.
(KOAHN, 2004, p. 54-55)
O agir no mundo implica um começo e, iniciar algo é fazer emergir a
potência entre a ação e a narrativa (o que e como) para tornar inteligível o viver.
Na criança, é a corporalização da experiência, temporalização do viver. “Nascer é
chegar”* (BÁRCENA, 2004, p. 35). Uma criança chega ao mundo, e
imediatamente está vivendo a sua infância. A condição biológica primeira do
humano é ser criança e o modo como esse começo é vivido, configura uma
infância. Diante da pluralidade dos modos de ser criança, a infância torna-se tão
diversa quanto a plural condição cultural - característica do humano – permite.
Diz-se então que a infância é, assim como a condição cultural, uma invenção
humana de mundo para um ser que ainda está por inventar-se em e com
linguagem. Diante disso, Bárcena (2004, p. 63, 2004) sustenta que “nascer a uma
vida não é só biologia, mas sim biografia”*. Bárcena e Mèlich (2000, p. 93)
destacam o pensamento de Paul Ricoeur para afirmarem que “construímos nossa
identidade narrativamente, ou o que é o mesmo, através das leituras históricas e
de ficção por meio das quais vamos, uma e outra vez, compondo nosso
personagem”*.
Nos constituímos desde uma história em que a ação no mundo demanda
constituir sentido, para tornar-se ”[...] narrador como resultado do processo
humano de produção do significado” (BÁRCENA, 2004, p. 193). Isso ocorre a
partir da aprendizagem da linguagem enquanto constituição de mundo com
outros, e não mera nomeação. Aprendizagem que diz respeito à necessária ação
de estabelecer sentidos com o coletivo a partir de uma linguagem, ou seja, de
aprender um modo de dizer o mudo, operando com sentidos da linguagem.
Portanto, aqui, a ação é tomada na perspectiva da formação de si, de
narrar-se, pois iniciar-se no mundo exige iniciativa, ação que ultrapassa a tarefa
de fazer coisas. A ação, para a filósofa seria desnecessária para a vida do
homem “se os homens não passassem de repetições interminavelmente
80
reproduzíveis do mesmo modelo, todas dotadas da mesma natureza e essência,
tão previsíveis quanto a natureza e a essência de qualquer outra coisa”
(ARENDT, 2010, p. 16). O que singulariza a natureza humana, portanto, é a ação
humana no e com o mundo, pois diz respeito aquilo que acontece na relação
entre corpo, mundo e linguagem. A ação, nessa chave teórica está
intrinsecamente ligada à condição humana da natalidade que diz respeito à
tomada de decisão de iniciar um gesto-palavra no mundo e por isso vir ao mundo
e acolher o recém-chegado implicam pluralidade: misturar igualdade e diferença.
Como diz Arendt (2010, p. 188),
Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossemos diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender. Com simples sinais e sons, poderiam comunicar suas necessidades imediatas e idênticas.
Para a filósofa a singularidade do humano vem à tona na inseparabilidade
entre ação e discurso, enquanto “modos pelos quais os seres humanos se
comunicam uns aos outros” em oposição à “mera existência corpórea” (ARENDT,
2010, p. 189) que também “depende da iniciativa, mas trata-se de uma iniciativa
da qual nenhum ser humano pode abster-se sem deixar de ser humano”
(ARENDT, 2010, p. 189). É por isso que o homem pode viver sem trabalho e sem
acrescentar nenhum objeto útil ao mundo das coisas, no entanto sem a ação e o
discurso não há a vida humana, isso é o que nos distingue das outras formas de
vida. “É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano” (ARENDT,
2010, p. 189). A ação passa a ser a formação de si, devir histórico de si.
Nesse sentido o nascimento evoca inventar a si e ao mundo, já que “inventar
o mundo é aprender a nomeá-lo de novo através de palavras que abrem fraturas
nele”* (BÁRCENA, 2004, p. 47). Além de herdar um mundo, ao nascer, também
damos um novo sentido ao mundo que é o sentido que cada um pode
estabelecer. Isso não quer dizer que cada ser novo no mundo, queira mudar o
mundo, mas sim que cada ser no mundo, constitui a sua relação com o mundo.
Nas palavras de Mèlich (2012), aprender uma gramática do mundo é aprender um
modo de olhar, de saber, de compartilhar, mas também aprender a transgredir, a
de ir além, a configurar, a reconfigurar essa gramática.
81
Ao nascermos, chegamos ao mundo
demasiado desvalidos, demasiado confusos e desorientados. Mas precisamente porque o mundo não está dado ao humano de uma vez por todas, porque deve comprovar-se, o mundo é uma promessa, ou um conjunto de promessas cujo cumprimento ninguém pode garantir.* (BÁRCENA, 2004, p. 51)
Para o filósofo, nascer “primeiro, supõe uma saída ao exterior, uma saída do
refugio cálido do maternal, e além disso supõe uma entrada no incerto, porque o
mundo não é algo dado, mas algo que deve descobrir-se, experimentar-se,
provar-se”* (BÁRCENA, 2004, p. 50). Tornar-se humano exige o esforço de dizer
Eu (AGAMBEN, 2010), ao aprender uma gramática no e com o mundo e torna-lo
significativo no conviver. Isso ocorre a partir da linguagem, que nos aproxima (um
mundo comum) e nos diferencia (quem eu sou em um mundo partilhado) uns dos
outros. Somos iguais e distintos porque simultaneamente a linguagem nos
constitui e é constituída por nós. Ação e narrativa significam, assim, a
inseparabilidade entre corpo e palavra na ação lúdica de aprender a tornar o
mundo inteligível a partir da interlocução linguageira.
O que ocorre com a palavra, não ocorre com o traço, não ocorre com o
volume, não ocorre com a cor. São diferentes modos de narrar, que, no entanto
confluem e podem se misturar. As crianças facilmente misturam modos de dizer –
ou narrar - mas nós, adultos, insistimos na segmentação. Na intenção de que
aprendam cada especificidade para depois misturar o que sabem de cada uma.
No entanto, o que se constitui é a segmentação do linguajar e não a interlocução
com a sua pluralidade, com a possibilidade de experimentar-se nas diferentes
formas de dizer-se e dizer o outro. Afinal “a subjetividade que se forma no
cruzamento entre a ação e o relato, mostra o quem e não somente o que eu sou”*
(BÁRCENA; MÈLICH, 2000, p. 77). A narrativa surge para Hannah Arendt como
fundante do indivíduo cultural e social, portanto da alteridade, que parte do
pressuposto que todo homem, ser social, interage e interdepende. A alteridade
seria, então, um importante aspecto da pluralidade já que
82
[...] é a razão pela qual todas as nossas definições são distinções e o motivo pelo qual não podemos dizer o que uma coisa é sem distingui-la da outra. [...] Só o homem, porém é capaz de exprimir essa diferença e distinguir-se; só ele é capaz de comunicar a si próprio e não apenas comunicar alguma diferença - como sede, fome, afeto, hostilidade ou medo. No homem, a alteridade, que ele tem em comum com tudo que existe, e a distinção, que ele partilha com tudo que vive, tornam-se singularidade, e a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres singulares. (ARENDT, 2010, p. 189)
Por isso, viver não é banal. Na perspectiva de Matura (1998), viver é
aprender e aprender é viver. Aprender é condição da vida, em que ação e
narrativa significam a inseparabilidade entre corpo e palavra na ação social e
cultural de constituir-se em uma pluralidade mundana, em que “o que nos
caracteriza é o fato de que temos que aprender a „conduzir‟ nossa vida”*
(BÁRCENA, 2004, p. 51). Por isso não bastam os signos, para dizer há que
aprender também o indizível do viver. O indizível diz respeito à valoração do que
somos e o que nos acontece, ou, dito de outro modo, a valoração de um mundo é,
incessantemente, constituir-se constituindo sentidos.
Um começo sempre poderá ser recomeçado, retomado, mas enquanto
começo, nas palavras de Mèlich (2009, p. 80) “jamais é um começar totalmente
de novo”*. Essa é a característica do aprender na pequena infância, que podem
ser retomado enquanto resíduo da experiência do vivido, em que a experiência
primeira é fundante. Assinalo o maior compromisso que a educação tem com as
crianças pequenas: as primeiras aprendizagens. Uma criança, depois que
caminha, não tornará a engatinhar; uma criança depois que fala a primeira
palavra, não tornará a balbuciar. A ação, o agir é irreversível, apenas o feito pode
ser desfeito (ARENDT, 2010, p.157). As primeiras aprendizagens alteram também
os ensaios e as tentativas, transformam modos de experimentar o viver, trazem
outras perspectivas do humano. “[...] Se nascer é entrar de cheio na possibilidade
de fazer uma experiência com o mundo, essa experiência entranha sempre um
certo risco, um certo perigo, uma certa inquietude”* (BÁRCENA, 2004, p. 50).
Supõe realizar escolhas e tomar decisões diante do „eu posso dizer‟ ou „eu posso
não dizer‟ diante do agir no mundo. Os começos, nessa perspectiva, tornam-se
fundantes do humano, pois para este “[...] não lhe é suficiente nascer para vir ao
mundo: além disso deve aprender a conduzir sua vida mediante a arte de
83
inventar-se a si mesmo”* (BÁRCENA, 2004, p. 50). Diante disso, os começos
podem ser ensinados, mas a composição, as mudanças não.
A educação, então, é entendida como ação que se dá no encontro, em que a
coexistência temporal faz emergir o fenômeno educativo, que não é de
fabricação, mas de ação. Ação narrativa entre adulto e criança, em que
compartilham experiências de igualdade e diferença na mistura temporal do viver
em comunidade. Afinal, é no encontro narrativo entre adultos e crianças, que
ambos tornam o mundo passível de ser compreendido e o humano passível de
aprender a ser outro, por experimentar-se como outro na convivência. Portanto,
começar-se exige compartilhar sentidos para compor mundos. Constituir um real
exige interagir, conviver. Exige um corpo no mundo.
Em sua exposição ao aberto, o corpo é o lugar onde ocorre o acontecimento de existir. É o lugar que se abre ao que da lugar nele, para o acontecimento: gozar, sofrer, nascer, morrer, pensar, rir… O corpo é um acontecimento da existência, a materialização mesma do existir, da pura exposição. É, pois, ponto de partida e de chegada na trama do tempo vivido.* (BÁRCENA, 2004, p. 191)
Tempo vivido, tempo de experimentar-se, de expor-se no mundo. Para
Larrosa (2009, p. 14), o princípio da experiência está intrinsecamente ligado à
alteridade,
não ha experiência, portanto, sem a aparição de um alguém, ou de um algo, ou de um isso, de um acontecimento em definitivo, que é exterior a mim, estrangeiro a mim, estranho a mim, que está fora de mim mesmo, que não pertence ao meu lugar, que não está no lugar que eu lhe dou, que está fora de lugar.* (LARROSA, 2009, p. 15)
Ou seja, a outra coisa que eu digo, sei, sinto, penso, posso ou quero, é o
outro dos outros. Em suas palavras: “que não sou eu” e que significa “outra coisa
que eu”* (LARROSA, 2009, p. 14).
A experiência exige uma relação com algo ou alguém em que eu, e o que
sou, está necessariamente implicado enquanto possibilidade transformadora.
Uma relação entre eu e o outro, que simultaneamente envolve afetar-se, ou a
possibilidade de afetar-se (LARROSA, 2009, p. 20). Nessa perspectiva “[...] a
experiência não se faz, mas sim se padece”* (LARROSA, 2009, p. 18). Trata-se
então, pensando com Larrosa, como, em relação com o outro [preciso dizer que o
mundo também é o outro], eu sou capaz de transformar aquilo que sou. Ou “[...] o
modo como em relação com os pensamentos” do outro “posso formar ou
84
transformar meus próprios pensamentos”* (LARROSA, 2009, p. 21). A educação
também é ato político e social de comprometer-se com o outro, comprometer-se
com o tempo que o outro necessita para aprender a viver, aprender a aprender-
se. A infância não é
[…] um mero estado inacabado do que o estado adulto seria em sua finalidade própria e acabada. Não se trata de ver a infância como preparação para nada, como meio, pois então o que faríamos não passaria de ser se não uma infância construída e inventada como mecânica para justificar nosso saber pedagógico e nossas ações educativas.* (BÁRCENA, 2004, p. 117).
Pensar a infância enquanto tempo dos começos não é pensá-la em sua
provisoriedade, em seu vazio a ser preenchido pedagogicamente, isso seria
reduzi-la a um saber, uma disciplina, um conteúdo, uma instituição. Mas sim
poder considerar que a criança está aí aprendendo a habitar um tempo e um
espaço. Assim, a infância é o tempo da experiência porque é inerente à
natalidade, à possibilidade de iniciar algo, de configurar o estar no mundo, pois
“primeiro vem a experiência e logo as palavras que encontramos para nomeá-la”*.
Tornar-se humano é fazer-se fazendo, com o outro, afinal “o relato da vida de
alguém deve ser escrito por outros, por outras pessoas e por outros relatos que
teceram o universo simbólico no qual se vive” (BÁRCENA; MÈLICH, 2000, p. 79).
Torna-se importante pensar o tecido linguageiro enquanto resíduo da interação
em que “a ação humana, pois, e em especial a ação educativa, se deve entender
como uma ação suscetível de ser narrada, de criar uma historia digna de ser
contada”* (BÁRCENA; MÈLICH, 2000, p. 92).
Uma história sempre será uma narrativa compartilhada, isso porque
compartilhamos um mundo, uma história cultural e social, assim as narrativas dos
pequenos têm a ver com as narrativas dos adultos. Uma mistura na qual
as histórias de nossa existência, que são o resultado da ação e do discurso, mostram e configuram uma identidade, a nossa, que não é o resultado de uma decisão pessoal. A ação e o discurso se encontram, em seu fluir, em seu fluxo de vivencias, experiências, relatos (mitos, contos, alegorias), e só existem em eles e a partir deles. Somos os protagonistas da história de nossa vida, mas não seus autores. No máximo coautores.* (BÁRCENA; MÈLICH, 2000, p. 79)
Então, o modo como narramos as crianças, também tem a ver com o modo
como elas se constituem. “O agente da ação – o ator – mostra quem é porque
existem outros que o nomeiam e relatam sua história, uma vez que há
desaparecido”* (BÁRCENA; MÈLICH, 2000, p. 69), afinal fazemos parte da
85
história da humanidade e de uma comunidade social, nossa história, que seria
global, é narrada de diferentes modos: poético, ficcional, imagético,
comportamental, verbal, sonoro, ... Nosso corpo, nosso ser, aprende a estar no
mundo, a significar e tornar familiar o mundo em que vivemos. “A autentica
identidade se desvela, então, finalmente, como identidade do personagem em
uma biografia que ele não escrive, no entanto é seu personagem. Não é o autor,
mas o personagem”* (BÁRCENA; MÈLICH, 2000, p. 69). Uma aprendizagem que
é aderida ao devir constituído na atuação, na interação: na composição de um
personagem.
Assim “nos educamos em um mundo que nos é narrado”*, na condição que
uma história, constituída por uma cultura, já existe e é a partir dessa história que
outras nascerão. Isso exige ação no mundo, aquela que nos faz experimentar
coisas e nos torna capazes de constituir narrativas. Então, não é suficiente que
nos narrem um mundo, mas sim que a partir de nossas experiências e ações no
mundo possamos aprender narrar nosso próprio mundo. Pois
a ação revela o eu” e “a identidade de uma perssoa só se pode revelar na ação, na história de uma vida, no relato, na narração, mas a história de uma vida nunca aparece em sua totalidade até que está cuncluida. Enquanto o ator vive, a novidade e a imprevisibilidade da ação segue aberta.* (BÁRCENA; MÈLICH, 2000, p. 81).
Nessa relação, para Hannah Arendt (2010), a educação também cumpre
um papel social: educar para lembrar. Educar na história, para constituir uma
narrativa de vida com sentido, constituidora de sujeitos a ela pertencentes,
agentes. Por isso, a filósofa considera a interlocução entre a ação – que é da
ordem do imediato, factual – e a narrativa – que é do histórico, acontecimento –
uma confluência que compõe a vita activa (ação, labor e trabalho) e faz do
humano um ser histórico. A identidade, na perspectiva de Hannah Arendt e Paul
Ricoeur, é a constituição da relação entre agente e paciente, ação e discurso.
Isso porque a “característica comum à ação e ao discurso é a presença do outro”*
(BÁRCENA; MÈLICH, p. 81), essa necessária relação faz do humano um ator
social que é agente e paciente, realiza e recebe a ação, assim constitui sua
identidade: entre a ação e o discurso.
86
Dizer a identidade de um indivíduo ou de uma comunidade é tratar de dar resposta a pergunta: quem fez esta ação? Esta pergunta pelo «quem» é a pergunta pela identidade. Mas se trata da identidade do «agente», quer dizer, do possível produtor, por assim dizer, das ações. Normalmente damos resposta a esta pergunta nomeando-o, chamando-o por seu nome. O nome próprio não confere identidade. E, inclusive, o nome próprio ainda não nos oferece uma resposta plenamente satisfatória.* (BARCENA; MÈLICH, 2000, p.92)
A educação é, então, entendida como ação que se dá na “pluralidade,
imprevisibilidade, fragilidade e, finalmente, narrativa”* (BÁRCENA; MÈLICH, 2000,
p. 81), em que o encontro, o fenômeno educativo, não é de fabricação, mas de
ação que, para a filósofa, reúne o ator e o narrador:
o “ator” não é capaz de alcançar o pleno sentido de sua ação, o „narrador‟ sim o é. O outro narra minha ação e eu narro a ação do outro. Ainda que as histórias sejam os resultados inevitáveis da ação, não é o ator, mas o narrador, quem capta e “faz” a história.* (BÁRCENA; MÈLICH, 2000, p. 81).
Na educação da infância predomina um discurso organizado para se
„chegar a algum lugar‟, desconsiderando-se o percurso em que as aprendizagens,
as relações, se constituem na convivência com o outro. Na contemporaneidade a
preocupação com a educação está focada em preparar cidadãos para o mercado
de trabalho, ensinar habilidades, que dizem respeito aos valores de uma
dimensão dessa sociedade, a econômica. Uma formação que opta por polarizar
ação e discurso, focar a informação e não a experiência dos começos. O que
surge é a adesão a discursos que se configuram na superficialidade das
informações, e geram superficiais ações, e assim sucessivamente.
Desacompanhada do discurso, a ação perderia não só o seu caráter revelador como, e pelo mesmo motivo, o seu sujeito, por assim dizer: em lugar de homens que agem teríamos robôs mecânicos a realizar coisas que seriam humanamente incompreensíveis. Sem o discurso, a ação deixa de ser ação, pois não haveria ator; e o ator, o agente do ato, só é possível se for, ao mesmo tempo, o autor das palavras. A ação que ele inicia é humanamente revelada através de palavras; e, embora o ato possa ser percebido em sua manifestação física bruta, sem acompanhamento verbal, só se torna relevante através da palavra falada na qual o autor se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer (ARENDT, 2010, p.191).
A segmentação da linguagem configura, na atualidade, a organização dos
espaços de educação coletiva preocupados com a individualidade e o caráter
específico de cada linguagem e de determinados modos de agir e relatar. Mas a
segmentação que condiciona o cotidiano das crianças precocemente
escolarizadas vai se ampliando na medida em que a necessidade de controle e
87
organização do tempo e do espaço é imposta pelo adulto. Assim, as crianças
aprendem cada vez mais um discurso singular, homogêneo e massificador: “faça
o seu”, “cada um com o seu”, “isto é assim”, “você não sabe fazer”, “agora é hora
de desenhar”, “agora é hora de cantar”, etc. Tal opção ou compreensão
pedagógica se opõe à fenomenologia de Merleau-Ponty ao conceber a criança e
suas aprendizagens negligenciando a inseparabilidade entre corpo, mundo e
linguagem.
Torna-se, então necessário reafirmar: para se tornar “alter”, para poder
estar no lugar do outro, é preciso estar com o outro, em pluralidades. Esse o
nosso compromisso com os novos que chegam: garantir que as narrativas de vida
não sejam reduzidas a um discurso único. Que ritmos, linguagem, modos de ser e
estar no mundo, de significar e expressar, possam ser conjugados sem serem
menosprezados ou minimizados por sua não uniformidade, que as diferentes
formas de dizer e conviver sejam tão legítimas quanto a palavra escrita.
A objetivação e individualização dos sujeitos, para Arendt (2010), é fruto da
descontinuidade da coletividade, das significações que não são partilhadas em
sociedade. O mundo que uma criança tem o direito de conhecer, de narrar e de
interpretar não é o mesmo mundo que nós vivemos: a subjetivação se constitui
em comunhão com o mundo e com a possibilidade de constituir mundos. O que
de comum há em nossa existência é o saber cultural e mutável da coletividade
mundana, que já existia antes de nascermos e continuará existindo após a nossa
morte e, a única forma de ter acesso à herança linguageira e cultural é pela
aprendizagem (ARENDT, 2010). É no encontro narrativo entre adultos e crianças,
que ambos tornam o mundo passível de ser compreendido e o humano passível
de aprender a ser outro para experimentar-se como outro. Por isso
[...] é preciso afirmar, na especificidade da educação infantil, um currículo sustentado nas relações, nas interações e em práticas educativas intencionalmente voltadas para as experiências concretas da vida cotidiana, para a aprendizagem da cultura, pelo convívio no espaço da vida coletiva e para a produção de narrativas, individuais e coletivas, através de diferentes linguagens (BARBOSA; RICHTER, 2009, p. 25).
Educar, portanto, é a construção de um relato de uma identidade, de uma
vida, de uma biografia. A ação tem lugar no presente, enquanto a história diz
respeito aos fatos e aos acontecimentos. É na mistura lúdica entre as dimensões
88
linguageiras do viver, entre presente e passado, no jogo entre modos de estar no
mundo e com o mundo, que emerge o sentido do viver. Para jogar com a
linguagem é preciso jogar com sentidos. Por isso a narrativa exige a ação, exige
um labor, não basta apenas adotar discursos, é preciso operar com os sentidos
do discurso, com a inquietude da linguagem.
O que é mais inquietante para a educação é que falar e entender, escrever e ler não são só habilidades instrumentais. Por isso aprender linguagens não é só adquirir ferramentas para a expressão ou para a comunicação. O que é inquietante é que a lenguagem não é só um sistema de signos utilizado para a representação da realidade ou para a expressão do sentido. Por isso a lenguagem não é só um objeto de ensino (entre outros objetos) nem um meio entre outros para a educação.* (LARROSA, 2003a, p. 61)
Tempo de acontecimento, que não pode ser previsto, mas que pode
determinar a experiência, a vivência do ser no mundo. Tempo descontínuo,
imprevisível, inusitado,
[...] é um tempo-todo, uma criança que joga, onde o jogo expressa, precisamente, o que todo jogo contém: a ocasião, o estado de exceção, o acontecimento imprevisto, o instante original, certamente, o que surge com surpresa e ruptura a continuidade do tempo […].* (BÁRCENA, 2004, p. 80)
A criança é o descontínuo no contínuo, é a irrupção do imprevisível, é a
possibilidade de uma narrativa, uma história a ser reinventada a partir do que já
existe, uma história, uma cultura, uma sociedade.
A educação tem o compromisso ético com processos de aprender.
Aprender uma gramática do mundo e entrar na linguagem não significa decifrar,
determinar como as coisas serão, mas aprender como se faz para inventá-la e
reinventá-la. Isso demanda tempo dos adultos para estar com as crianças,
demanda espera ao imprevisível que a pluralidade do humano evoca em sua mais
íntima condição de vida: a interação no mundo.
89
mistérios da linguagem
Glosa: PALAVRA
A palavra diz o que diz, mas também sempre diz mais do que diz, diz de outro modo, y ao dizer de outro modo inclui algo no dito, ou não dito de todo, e mostra o que fica por dizer e o impossível de dizer… E isto é o mais importante.
(MÈLICH, 2012, p. 21)
Glosa: DITO E NÃO DITO
A. 1a
Ver vídeo “Potinho”
Ver vídeo “Au au”
90
Glosa: SER INCOMPLETO
A pessoa é um ser incompleto, inacabado, é projeto e tarefa a ser realizada. Conforme Ortega y Gasset: „Viver é constantemente decidir o que seremos‟. Ao nascer, somos apenas uma esperança. Aquilo que nos foi dado devemos desenvolver pelo resto da vida, por meio da liberdade. É uma busca permanente de resposta. As coisas, os animais nascem completos, inteiros, „cevados‟, prontos. A pessoa é transcendência e liberdade. Aberto ao infinito, inquieto e insatisfeito com o que é, por isso mesmo, imprevisível.
(STRASSER, 2010, p. 15).
Glosa: ERRÂNCIA
A. 1a
Ver vídeo “Tampinha I” e
“Tampinha II”
91
Glosa: PENSAR E AGIR
Como nosso pensamento exprime ações tanto virtuais quanto reais, ele encontra seu ponto culminante no momento exato da decisão. Em particular, não há sincronia alguma entre a idéia, o pensamento de agir e o desenvolvimento efetivo da ação. A concentração de uma ação num instante decisivo constitui assim, ao mesmo tempo, a unidade e o absoluto dessa ação. O gesto acabará então da maneira que puder, entregue como está a mecanismos subalternos não-vigiados; para o comportamento temporal o que importa é começar o gesto – ou melhor, permitir-lhe que comece. Toda ação é nossa graças a esse consentimento. Ora, esse consentimento, reflexo da ação, concebida inteiramente como a realização de uma possibilidade, desenvolve-se numa atmosfera mais leve que a ação real. A realização é menos opaca que a realidade. Há, portanto, acima do tempo vivido, o tempo pensado. Esse tempo pensado é mais aéreo, livre, mais facilmente rompido e retomado. É nesse tempo materializado que estão as invenções do Ser. É nesse tempo que um fato se torna fator. Qualifica-se mal esse tempo ao dizer que ele é abstrato, pois é nesse tempo que o pensamento age e prepara as concretizações do Ser.
(BACHELARD, 1998, p. 24)
Glosa: ENCONTRO
T. 4A
Ver vídeo “Sombra I”,
“Sombra II” e “Sombra
III”
92
Glosa: RITMO
Do passado histórico, ensina-nos ainda Gaston Roupnel, o que é que permanece, o que é que dura? Apenas aquilo que tem razão para recomeçar. Assim, ao lado da duração pelas coisas, há a duração pela razão. Ocorre sempre deste modo: toda duração verdadeira é essencialmente polimorfa; a ação real do tempo reclama a riqueza das coincidências, a sintonia dos esforços rítmicos. Não seremos seres fortemente constituídos, vivendo num repouso bem assegurado, se não soubermos viver em nosso próprio ritmo, reencontrando, a nosso modo, o impulso de nossas origens à menor fadiga, ao menor desespero.
(BACHELARD, 1998, p. 8) duração
Se o que dura mais é aquilo que recomeça melhor, devemos assim encontrar em nosso caminho a noção de ritmo como noção temporal fundamental.
(BACHELARD, 1998, p. 8) duração
Para durarmos, é preciso então que confiemos em ritmos, ou seja, em sistemas de instantes. Os acontecimentos excepcionais devem encontrar ressonâncias em nós para marcar-nos profundamente.
(BACHELARD, 1998, p. 9) duração
Glosa: RITMO E DURAÇÃO
G. 4a 7m
Ver vídeo “Princesa”
95
Glosa: HÁBITO
Cumpre, pois, apreender o hábito em seu crescimento para captá-
lo em sua essência; ele é assim, por seu incremento de sucesso,
a síntese da novidade e da rotina, e essa síntese é realizada
pelos instantes fecundos.
(BACHELARD, 2007, p. 67)
Glosa: INSTANTES
96
Imagens extraídas do painel coletivo confeccionado com as crianças durante as Oficinas Poéticas e do Filme de
animação Príncipes e Princesas.42
42
OCELOT, Michel. Príncipes e Princesas (Princes et Princesses). França: Versátil Home Vídeo, 1999.
97
Glosa: REPETIÇÃO E COMEÇO
(…) de muito bom grado definiríamos o hábito, tomado no sentido pleno, por esta fórmula que concilia os dois contrários que a crítica se apressou em opor: o hábito é a vontade de começar a repetir a si mesmo.
(…) A repetição que o [hábito] caracteriza é uma repetição que, instruindo-se, constrói.
(BACHELARD, 2007, p. 78)
Glosa: INTUIÇÃO
(…) uma intuição não se prova, se vivencia. E se vivencia multiplicando-se ou mesmo modificando-se as condições de uso.
(BACHELARD, 2007, p. 14)
Glosa: MODOS DE FAZER
N 4a 10m
99
G 4a 7m A. 4a 9m
Glosa: METAMORFOSE
Para que a lagarta se converta em borboleta, deve encerra-
se numa crisálida. O que ocorre no interior da lagarta é
muito interessante; seu sistema imunológico começa a
destruir tudo o que corresponde à lagarta, incluindo o
sistema digestivo, já que a borboleta não comerá os
mesmos alimentos que a lagarta. A única coisa que se
mantém é o sistema nervoso. Assim é que a lagarta se
destrói como tal para poder constituir-se como borboleta. E
quando esta consegue romper a crisálida, a vemos
aparecer, quase imóvel, com as asas grudadas, incapaz de
desgruda-las. E quando começamos a nos inquietar por ela,
a perguntar-nos se poderá abrir as asas, de repente a
borboleta alça vôo.
(MORIN, 1996, p. 286)
Ver vídeo “Mão Mancha I”
“Mão Mancha II”
101
mar de histórias
modo de conclusão
No Mar de histórias de Haroun43, aquele que fazia do homem que bebesse
de sua água um Contador de Histórias, existia um sem-fim. O sem fim era assim:
no mar muito mais do que peixes, tinham histórias, e cada história era conduzida
por um fio narrativo. Quando um fio de história se juntava a outro fio de história,
nascia outro fio de história. O outro fio de história, quando encontrava outro fio de
história, fazia nascer outra da outra história. E assim, entre cada fio de história e
de outro fio de história e de outro do outro fio de história, nascia o mar sem fim.
Com os muitos fios teóricos para tramar essa narrativa, o fim é provável
que seja como o mar de Haroun: sem fim. Como não chegamos ao fim, e
justamente no meio é que estou, apresentei a composição temporária que pude
fazer com os meus fios. Trama que agora exige recomeçar, retomar, outros
começos para aquilo que já existe. Tramar, escrever, essa artesania com palavras
é uma composição entre o vivido e o inesperado, o inusitado. Estar entre o velho
e o novo, entre certezas e interrogações é conviver com a possibilidade de
atualizar e significar o vivido, dar sentido ao viver. Pesquisar se “trata de operar
no constante vaivém” entre diferentes registros (LANCRI, 2002, p. 19). Cada fio
tem uma história, mas entre um fio e outro emergem possibilidades para recontar
uma história. Uma artesania tecida por fios do linguajar.
Esse incessante movimento que faz do aqui e agora um presente, “bebe”
dos “cacos” (RICOEUR, 1968) de um passado e da aspiração de um futuro. Um
futuro que é constituído pelo vigor da ação do humano no mundo aliada a sua
histórica trajetória. Surge um incessante movimento em que um mundo constitui
um humano e humanos constituem mundos, configuram uma história social, uma
43
Romance escrito pelo ensaísta e autor de ficção indiano Salman Rushdie.
102
sociedade, um modo de viver coletivamente. Para Arendt (2010), essa é a
condição política do humano, pois para a filósofa a ação nunca está descolada de
um discurso, de uma narrativa. Assim, o modo como nos constituímos tem a ver
com o modo como somos narrados e como narramos o outro, como narramos o
mundo para o outro: sons, cores, sabores, gestos, gostos, desgostos. Hoje
percebo o quanto podemos tocar o outro a partir de narrativas, de modos
linguageiros que podem ser compartilhados para aprendemos a significar o que
nos significa no coletivo. Aprender, nessa perspectiva é processo interminável,
pois diz respeito ao modo como convivemos, ao modo como experimentamos os
nossos limites, como vamos estabelecendo nossos contornos.
Diante do processo histórico de hierarquização dos valores econômicos
que levam a uma crescente tecnização nos modos de viver, talvez a tarefa
educacional seja a de resistir e dizer:
não, as palavras não são feitas para designar as coisas. Elas existem para nos situar entre as coisas. Se as vemos como designações, se mostra que se tem a ideia mais pobre de linguagem. A mais comum também. É este o combate, desde sempre, do poema contra o signo, David contra Golias. Golias, o signo (MESCHONNIC, 2001, p. 295)
44.
Para Henri Meschonnic (2001, p. 296) o importante é resistir à
representação ensinada, à convenção canônica. Para o autor a dimensão poética
diz respeito ao momento de uma escuta, e o signo não faz senão nos dar a ver.
Diz mais, o signo “é surdo e torna surdo”.
Assim, este ensaio conclusivo pretende ultrapassar a escrita já produzida
no sentido de que entre o intervalo de seu começo e a provisoriedade de sua
conclusão emerge a necessidade de mais uma vez redimensioná-lo. Repetir para
reorganizar. Considero importante esse movimento em mim, pois diz respeito ao
modo como venho me apropriando do tema em estudo: a linguagem. Tema tão
relevante quanto obscuro para a educação da infância, pois diz respeito ao
mistério do humano. Como disse Merleau-Ponty (2012, p. 197) “a linguagem só
permanece enigmática para quem continua a interrogá-la, isto é a falar dela”.
Assim esta conclusão tem como expectativa complementar, algumas lacunas que
encontrei no conjunto de ensaios que compõem o texto dissertativo.
Antes, porém, cabe reafirmar que se o estudo que realizei não parte de
uma pergunta, também não busca respostas definitivas, mas a relevância da
44
Tradução livre de Sandra Regina Simonis Richter.
103
reflexão pedagógica estabelecida na inseparabilidade entre educação, infância e
linguagem. E o modo como pude fazer essa complexa relação, foi
fenomenológico. Mas, por assim dizer, Alberto Heller (2006, p. 12) lembra que há
tantas fenomenologias quanto fenomenólogos, por isso, mais importante do que
optar por uma “‟corrente‟ fenomenológica, seja essa corrente husseliana,
heideggeriana, merleua-pontyana, ou outra, é compreender a fenomenologia
como movimento histórico”. Nesse sentido, muitas foram as reinvenções na
organização da escrita. Talvez a mais definitiva tenha sido após a viagem de
estudos realizada à Espanha45. Uma viagem que propiciou uma semana de
intensos estudos com o professor Mèlich da Universidad Autónoma de Barcelona
- UAB que, apesar da brevidade do encontro, me conduziu a redimensionar a
composição escrita, pois já não era possível ignorar o que passei a pensar.
Reorganizei minhas concepções, pois a experiência da linguagem, “antes de ser
um saber, é uma vivência, que é o tema por excelência da fenomenologia”
(HELLER, 2006, p. 13). Como afirmam Contreras e Lara (2010, p. 18),
Investigar a experiência educativa é arriscar-se na investigação, rompendo a fixação metodológica, lançar-se a experiência (não recolher experiências, senão mergulhar nela) para ver o que acontece, o que nos diz, o que podemos aprender. Buscar formas de dizer que permitam vislumbrar, fazendo do leitor um receptivo ativo, que completa o significado, que se vê convidado a pensar, não a recompilar informação.
Assim, o que afinal apresentei é uma experiência de pensamento que
emergiu da convivência com as crianças nas “Oficinas Poéticas” do projeto de
pesquisa Dimensão Poética das linguagens e educação da infância e a
convivência cotidiana com um bebê em sua casa. Experiência desencadeada pela
proposta de estudar a temática da linguagem na infância e o modo como pude
organizar esse pensamento. Tal convivência configurou o “fundo”, o contraponto
que tensionou o movimento da escrita. Assim, apesar da opção em não trazer a
descrição do vivido para o texto, ele atravessa sua escritura na perspectiva “que
todo visível comporta um fundo que não é visível no sentido da figura”
(MERLEAU-PONTY, 1999b, p. 224) fazendo surgir uma composição entre figura e
fundo na qual “o sentido invisível é a nervura da palavra” (MERLEAU-PONTY,
1999b, p. 207).
45
Viagem de estudos realizada em dezembro de 2013, que contou com um período de estudos com o professor Joan-Carles Mèlich, em Barcelona e um período de estudos de língua espanhola, em Valladolid.
104
Na intenção de compor uma interpretação narrativa dos limites do percurso
desse estudo, encontrei um princípio de ordem na figura do ensaio enquanto
“uma figura do caminho da exploração, do caminho que se abre ao tempo em que
se caminha” (LARROSA, 2003b, p. 112), pois foi preciso considerar que a
linguagem também diz respeito àquilo que não pode ser dito. Trata-se de “falar do
que provavelmente não se possa falar em sentido estrito, porque não é redutível
nem a conceitos nem a categorias” (MÈLICH, 2012, p. 21). Aqui se põe um dos
paradoxos desse trabalho: pensar a linguagem exige mais do que somente
escrever. Exige, talvez, também mostrar. Assim, um estudo que se detém na
complexa relação entre educação, infância e linguagem, que necessita da própria
linguagem para poder dizer-se, não pode ser escrito com pretensão de explicar ou
sintetizar conceitos, mas pode perseguir uma composição de linguagem através
da glosa, da conversa com textos, das citações. A existência do texto garante a
densidade da tessitura das palavras, como elemento, como composição da
escrita em sua incompletude e descontinuidade. “O ensaio necessita de texto
preexistente, não para ser examinado, mas para ter um solo onde correr”, para
garantir o chão que sustenta a caminhada (LARROSA, 2003 b, p. 114).
Encontrei na figura do ensaio (que pertence tanto à filosofia quanto à
literatura e à história) o amparo para sustentar o estudo da linguagem enquanto
constituidora de modos de ser e estar no mundo. Dito de outro modo, linguagem
enquanto processo interpretativo de composição de sentidos ou o modo como
vamos aprendendo a nos contar, interpretar e valorar o mundo em narrativas. O
ensaio não almeja fixar conceitos em seu compromisso com a temporalidade da
vida e essa não tem uma verdade única. É considerar o valor heurístico e
especulativo de um pensamento em movimento, em transito (GAGNEBIN, 2001).
Assim, os ensaios surgiram para resolver a dificuldade em enfrentar
questões que considerei centrais, obscuras ainda, sem tornar a verdade ou a
realidade como base do pensamento, nem mesmo o vivido como comprovação de
uma hipótese investigativa.
Trata-se de enfrentar o desafio de finalizar um estudo que abordou a
temática da linguagem no campo da pedagogia enquanto fenômeno que emerge
da convivência entre adultos e crianças em espaços coletivos de vida, portanto de
linguagem. A intenção foi destacar a relevância educacional de aprender a pensar
105
um tema que não pode ser “paralisado”, fixado em respostas definitivas, pois diz
respeito à vida e esta não é redutível nem a conceitos nem a categorias. Significa
acolher o mistério da linguagem enquanto fenômeno (MERLEAU-PONTY, 2012)
que pode ser interrogado, mas não descortinado.
Enfrentar a linguagem como uma experiência de pensamento, enquanto
diferença nos modos de perceber o mundo, coloca a educação diante do desafio
de perseguir outros modos de pensar as infâncias: em dimensões e não em
estruturas, conceitos, representações. Em oposição à metafísica, o termo
dimensão46 foi aqui utilizado no sentido que lhe dá Merleau-Ponty (1999b, p.202)
ao explicitar sua noção de mundo como
esse conjunto em que cada „parte‟, quando a tomamos por si mesma, abre de repente dimensões ilimitadas – torna-se parte total” aponta cada “parte”, apesar de incomunicável para as outras, fazendo parte do todo enquanto rumo “para a abertura, o inacabamento, a indeterminação e a transcendência na imanência do ser. (CHAUÍ, 2002, p. 121).
Para problematizar ou resistir às polarizações metafísicas entre sujeito e
objeto, entre corpo e mundo, aproximei as fenomenologias de Maurice Merleau-
Ponty, Hanah Arendt e Giogio Agamben com as filosofias narrativas em Jorge
Larrosa, Fernado Bárcena e Joan-Carles Mèlich. Tal aproximação permitiu
compreender a relevância de ultrapassar o pensamento metafísico, o das
polarizações, aquele que crê na transcendência da linguagem enquanto
experiência passível de ser descolada da vida, da finitude, da morte, do corpo, do
tempo, para alcançar a infância como experiência transcendental da linguagem,
ou seja, a infância é a condição da linguagem. É por isso, por sempre recomeçar,
por ser a infância do humano, que a linguagem não permanece imutável.
O pensamento metafísico, ao acreditar em uma realidade fixa, imutável,
conforma a linguagem como objetiva, a qual dá um sentido de verdade e
realidade ao mundo. Esse pensamento gera uma pedagogia metafísica e
educadores metafísicos. Isso quer dizer que acredita na possibilidade de alguém
poder explicar, demonstrar, indicar “o” caminho, “a” linguagem, “a” infância. Há,
46
Contra a divisão metafísica entre o sensível e o inteligível Merleau-Ponty (1999b, p. 206) propõe “substituir as noções de conceito, idéia, espírito, representação, pelas noções de dimensões, articulação, nível, charneiras, pivôs, configuração ...”. Para Chauí (2002, p. 113), “dimensão não é região nem esfera, não é multiplicidade do diverso cada qual com sua identidade positiva e à espera da síntese como atividade da consciência, mas é a pluralidade simultânea dos modos de ser que são puras diferenças de ser, que passam uns nos outos, comunicam-se e se entrecruzam. Cada dimensão é pars totalis , uma configuração que, em sua diferença, exprime o todo”.
106
nessa perspectiva, uma convicção de que exista apenas um caminho correto a
seguir. Há uma verdade que é “a” verdade. Esse discurso crê na unidade do bom,
do normal, do belo, do natural, da criança, da infância, da educação, da
linguagem. Planta a ideia de que as coisas são assim, sempre foram e serão
assim: uma realidade imutável, impossível de transformar. Gera também um
pensamento ontológico, epistemológico, moral, político a partir de um pensamento
que opera sempre da mesma maneira: “constrói outros mundos, livre de espaço e
tempo, mundos absolutos e eternos” (MÈLICH, 2009, p. 80). A linguagem,
enquanto experiência de pensamento, torna-se então a decodificação de um real
sempre já posto, ou seja, desconsidera a potência humana de narrar-se e
inventar-se. Começar, nessa lógica, torna-se somente continuidade, pois “[…]
sempre se postula um „ponto de referência‟ absoluto, imóvel, que define certeza e
confiança à vida, ao acontecimento, à ação” (MÈLICH, 2009, p. 80).
O insistente desejo em transcender a vida, nos coloca diante da metafísica
e de demasiadas generalidades. Aqui o grande desafio a enfrentar nesse trabalho
foi abordar e discutir o tema linguagem na educação das infâncias sem conceituá-
la de forma generalizada, mas compreendê-la na complexidade do humano em
suas contradições entre o autônomo e o vulnerável, entre a tarefa da
autoconstituição e o fato de ser constituído (BAUMAN, 2012, p. 20-22). Tratou-se
de considerar, com Mèlich, que somos finitos: nascemos e morremos e o que
emerge desse intervalo é o viver.
Porém, o fio condutor da dissertação foi dado pelo pensamento de
Agamben em sua afirmação filosófica que a infância do homem é a aprendizagem
da linguagem. Em sua perspectiva, só existe infância porque há a necessidade de
entrar em linguagem. Não nascemos com linguagem, nascemos com a
capacidade de entrar em linguagem. Só por isso a infância torna-se fundante do
humano. É por isso também que, para Bachelard (1988), a infância “dura a vida
inteira”. A questão está, portanto, em discutir os começos no mundo, em uma
coletividade.
Mostrou-se impossível nesse trabalho evitar as repetições e os ziguezages,
uma vez que a complexidade do tema exigiu entrelaçar – e explicitar – a
inseparabilidade entre infância, educação e linguagem. O excesso de citações e a
diversidade de autores decorreu da complexidade e delicadeza imposta pela
107
temática da linguagem no campo da educação, o que me faz relacionar, em
alguns momentos autores e teorias conflitantes e contraditórios entre si. Mas
considerei necessária tal interlocução para a composição, pois também foi
necessário chamar a atenção para o que não pode mais ser ignorado no campo
da educação de crianças pequenas: a abordagem linear da linguagem, sob forma
de conteúdos, aquisição, ensino.
Se para Mèlich (2012), aprendemos uma gramática do mundo, um modo
de dizer, um modo de tornar o mundo inteligível, a linguagem torna-se o modo
como aprendemos essa gramática. Assim, o conjunto de ensaio que apresentei
não dizem de linguagens ou múltiplas linguagens, passíveis de serem isoladas e
distinguidas em oral, escrita, visual, gestual, ou seja, em “verbal” ou “não verbal”
porque “o corpo não é primo pobre da língua, mas seu parceiro homogêneo na
permanente circulação de sentido” (LE BRETON, 2009, p. 42). Para Mèlich,
linguagem diz respeito ao modo de dizer, de ser. E os modos de dizer e de ser
diferem entre adultos e crianças.
Para Larrosa (2001, p. 70), a linguagem é o horizonte de todas as coisas.
Para Agamben (2005), a infância é a condição humana para a aprendizagem da
linguagem. Tais afirmações me conduziram a perseguir argumentos que
sustentassem a linguagem como prioridade na educação das infâncias. Nesse
sentido, o objetivo desse estudo foi convidar a docência da Educação Infantil a
dotar o ofício pedagógico de sensibilidade para com a riqueza da experiência da
infância a partir da consideração educacional aos processos primais e vitais de
inserção no coletivo: a aprendizagem da linguagem e com ela os fazeres, os
saberes, a imaginação, a memória.
As opções teórico-metodológicas exigiram assumir que é a infância o
tempo da inserção na linguagem, e que o que ocorre na infância jamais tornará a
ocorrer: uma criança, depois que aprende a andar, não torna a se deslocar
engatinhando, a criança, depois que aprende a falar, não torna a balbuciar. A
criança é a condição da linguagem. Nas palavras de Agamben (1999, p. 93),
[..] é por isso que um adulto não pode aprender a falar: foram as crianças e não os adultos, as primeiras a acender à linguagem; e, mau grado os quarenta milênios da espécie homo sapiens, aquilo que constitui mais precisamente a espécie humana das suas características – a aprendizagem da linguagem – permaneceu estreitamente ligado a uma condição infantil e a uma exterioridade: quem acredita em um destino específico não pode, verdadeiramente, falar.
108
Para o autor, a infância é fundante de um modo de narrar o mundo, de
adjetivar o mundo, de dizer o mundo: esse modo inegavelmente é condição
linguageira: a multidimensionalidade de dizer o mundo.
Ao final constato não ter estudado a infância, a educação, a linguagem,
mas a impossibilidade de separá-las. Conviver com as crianças me levou a
considerar a dimensão da complexidade existente na experiência de aprender a
estar em linguagem, pois diz respeito à composição de um modo de viver, de um
modo de estar no mundo, que é aprendido na convivência com o outro. Esse é o
compromisso ético da educação. O compromisso do adulto com as crianças que
estão vivendo intensamente começos no mundo. Considero então que elas têm o
direito de experimentar-se nesse mundo em sua multidimensionalidade corpórea
que é sempre linguageira, o direito a aprender a conjugar, a operar uma
gramática do mundo. Afinal elas estão aprendendo intensamente a compor um
mundo, também. A radical alteridade entre crianças e adultos é a linguagem.
Nessa perspectiva, constatei também, com o estudo desenvolvido nessa
dissertação, a relevância de interrogar fenomenologicamente um processo
escolarizante de conhecer as coisas, a vida, um processo simplificador de
experienciar a linguagem na educação das infâncias, ou seja, na educação
infantil. O estudo aqui realizado aponta que a pedagogia da infância pode resistir
a esta simplificação. Isso exige uma mudança no pensamento pedagógico ao
investir em uma positividade que contrasta com a ideia de negatividade que
sustenta processos escolarizantes. A pedagogia pode mudar modos de estar em
linguagem com as crianças. Pode aprender a promover abertura para a
experiência da alteridade e, com as crianças, aprender a constituir e reconstituir
sentidos no e com o coletivo mundano porque pode transformar sua linguagem. 47
47
*Tradução livre, realizada pela autora.
109
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anexo – Termo de Consentimento
UNIVERSIDADE DE SANTA CRUZ DO SUL/UNISC
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Prezados Pais e/ou Responsáveis
Como integrante do grupo de pesquisa Estudos Poéticos e Linguagens, Cultura e Educação, ambos da Universidade de Santa Cruz do Sul, investigamos a imaginação poética e os processos de aprendizagem na infância. Nossos estudos envolvem o acompanhamento de crianças em seus percursos de exploração de diferentes materialidades e linguagens. Desse grande grupo de pesquisa, faz parte o estudo intitulado INFÂNCIA E
LINGUAGEM: EDUCAR OS COMEÇOS, o qual busca aprofundar os estudos da
aprendizagem da linguagem com as crianças pequenas, para contribuir com o campo da
educação da infância. A aproximação com as crianças em seu cotidiano contribuirão para
o desenvolvimento desse estudo.
Por isso, solicito sua autorização para: estar com o seu filho durante as Oficinas
Poéticas realizadas na Universidade de Santa Cruz do Sul; utilizar as imagens
(fotografias e vídeos), diálogos e trabalhos gerados nos encontros com as crianças para
apresentações em eventos, publicações em livros e revistas da área educacional, como
também na mídia virtual. A utilização do material será com fins acadêmicos de produção
e divulgação de conhecimentos no campo de estudos da educação.
A intenção é alcançar resultados que possam contribuir para a formação docente e a melhoria do atendimento institucional da criança em nosso país. Garantimos aos participantes que: receberão resposta a qualquer pergunta ou dúvida acerca dos procedimentos, riscos,
benefícios e outros assuntos relacionados com a pesquisa;
poderão retirar seu consentimento e deixar de participar do estudo a qualquer momento, sem que isso lhe traga prejuízo;
não terão gastos financeiros com a participação no estudo.
A pesquisadora responsável pela pesquisa pode ser contatada da seguinte forma:
Simone Berle, aluna do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNISC, fone (51) 81783819, email: [email protected].
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115
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Pelo presente Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, eu,
_____________________________________ (nome legível do pai, mãe ou responsável
pela criança), portador do documento de identidade RG
nº_____________________________ou CPF nº_______________________ declaro que
autorizo a utilização das imagens e produções
de______________________________________(nome da criança) em publicações e
apresentações científicas na área da educação, assim como na mídia virtual, pois fui
informado, de forma clara e detalhada, livre de qualquer forma de constrangimento e
coerção, dos objetivos, da justificativa e dos procedimentos que serão realizados, assim
como dos benefícios que poderão ser alcançados, todos acima listados. Se possível,
solicitamos um telefone de contato da família (residencial ou celular), para futuro contato,
se assim for necessário: ___________________ .
___________________________________
Assinatura do Pai/Mãe ou Responsável