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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA
INÊS DIEGUES SACALOSKI
Ética das Virtudes e educação em Aristóteles
São Paulo
2015
1
Inês Diegues Sacaloski
Ética das Virtudes e educação em Aristóteles
Dissertação apresentada por Inês Diegues Sacaloski. Como parte das exigências do programa de Pós
Graduação stricto sensu da Universidade São Judas Tadeu para a obtenção do título de mestre em filosofia.
Orientadora:
Profª. Drª Regina André Rebollo
São Paulo
2015
2
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Universidade São Judas Tadeu
Bibliotecário: Ricardo de Lima - CRB 8/7464
Sacaloski, Inês Diegues S119e Ética das virtudes e educação em Aristóteles / Inês Diegues Sacaloski. -
São Paulo, 2015.
93 p. ; 30 cm.
Orientador: Regina André Rebollo Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu,
São Paulo, 2015. 1. Aristoteles. 2. Educação - Filosofia. 3. Ética. I. Rebollo, Regina André. II. Universidade São Judas Tadeu, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia. III. Título
CDD 22 – 101
3
Dissertação “Ética das Virtudes e educação em Aristóteles”
Defendida em: ......../....../2015.
Nota: ......................................
Banca Examinadora
Profª Drª Cristina Agostini
Profº. Dr. Paulo Jonas Piva
Profº Dr. Paulo Henrique Fernandes Silveira
Profª Drª Sonia Maria Dion
_______________________________________________________________
Drª Regina André Rebollo
Universidade São Judas Tadeu, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Filosofia.
4
RESUMO
A dissertação, movida por indagações, algumas delas nascidas da prática em sala de aula e enquanto coordenadora pedagógica de escola pública em São Paulo pretende sustentar o quão é valiosa a Ética das virtudes de Aristóteles na formação do caráter no homem desde a tenra idade, para que o mesmo cumpra a sua finalidade do mundo que é ser feliz. Para Aristóteles o homem é um animal político cujas noções são possuídas em comum. E sendo a sua ética eudemonista, ou seja, aquela que admite ser a felicidade (eudaimonia) o fundamento da conduta humana moral, a finalidade da vida está relacionada à aquisição de virtudes. O nosso propósito é investigar na Ética a Nicômaco, contribuições de Aristóteles e sua ética das virtudes na ação pedagógica do cotidiano escolar nas crianças, desde cedo, e nos jovens, educados para determinadas hexeis (disposições) recebendo desde a mais tenra idade uma condução correta em direção a excelência, pois Aristóteles escreve que adquirimos a hexeis na habituação. Para tanto, investigaremos como o filósofo elabora o conceito de virtude e como apresenta o sujeito moral. Exploraremos também como Aristóteles concebe a educação na aquisição de virtudes.
Palavras-chave: Ética; Educação; Virtude.
ABSTRACT
The dissertation, driven by questions, some of them born of the practice in the classroom and as educational coordinator of public school in São Paulo intends to support how valuable is the Ethics of the virtues of Aristotle in the formation of character of man at an early age, so that it fulfills its purpose in the world that is to be happy. For Aristotle man is a political animal whose notions are owned in common. And with its eudaimonista ethics, that is,the one that admits being happiness (eudaimonia) the foundation of moral human conduct, the purpose of life is related to the acquisition of virtues. Our purpose is to investigate the Nicomachean Ethics, Aristotle and his contributions virtue ethics in the pedagogical action of everyday school life in children from an early age and the young, educated for certain hexeis (provisions) receiving from an early age a correct orientation toward excellence, as Aristotle writes that we acquire hexeis in habituation. Therefore, we will investigate how the philosopher elaborates the concept of virtue and how he presents the moral subject. We will also explore how Aristotle conceives the education in the acquisition of virtues.
Keywords : Ethics; Education; Virtue.
5
DEDICATÓRIA
Ao Robert, Roberta e Renata, esposo e filhas. Sem eles eu não teria
ultrapassado a primeira página. Com palavras de incentivo, com amor fizeram-
me acreditar que a travessia por um mar de dificuldades seria exequível,
quando isto me parecia absolutamente impossível.
À minha mãe, Maria Inês, a meu pai Daniel (in memorian) que por terem
existido virtuosamente em minha vida, fizeram de mim um ser humano melhor,
capaz da “excelência” como filha, irmã, amiga, esposa, mãe e educadora.
6
AGRADECIMENTOS
A Deus, que me ilumina e me guia em todos os momentos de minha
vida.
Ao Robert que pacientemente suportou o meu silêncio estendido por
horas de leitura e escrita. Com ele aprendi que o amor não necessita de
palavras.
Aos professores da Universidade São Judas Tadeu que muito
contribuíram com suas aulas na elaboração deste trabalho:
Profº. Dr. Floriano Jonas Cesar.
Profº. Dr. Hélio Gentil.
Profº. Dr. Franklin Leopoldo e Silva.
Aos professores, Profº. Dr. Paulo Jonas Piva, Profª Drª Cristina Agostini
agradeço pelas críticas certeiras e edificantes; pelas sugestões e incentivo que
fizeram este trabalho crescer. Suas orientações no exame de qualificação
contribuíram para a superação dos problemas de escrita e melhor
compreensão na leitura de vida.
Aos professores, Profº. Dr. Paulo Henrique Fernandes Silveira e Profª
Drª Sonia Maria Dion, minha gratidão.
Agradeço especialmente e com muito carinho à professora Drª Regina
André Rebollo, minha orientadora. Exemplo de “ser humano virtuoso” que com
seriedade e rigor mostrou sua generosidade em me acolher em todos os
momentos de dúvidas nesta longa caminhada da elaboração desta dissertação.
Aos professores de todas as épocas agradeço do fundo de minha alma.
7
SUMÁRIO
Resumo...............................................................................................................4 Abstract...............................................................................................................4 Dedicatória..........................................................................................................5 Agradecimento....................................................................................................6 Sumário...............................................................................................................7 Epígrafe...............................................................................................................8 Introdução............................................................................................................9
CAPÍTULO 1 A FINALIDADE DA VIDA HUMANA..................................................................14
1.1. Compreendendo a moral aristotélica: A Ética à Nicômaco.......................17
1.2. A eudaimonia...............................................................................19
1.3. O ergon (função) e o kalon (nobreza) da espécie humana.........27
1.4. As virtudes...................................................................................28
CAPÍTULO 2 RESPONSABILIDADE MORAL, LIBERDADE DE AÇÃO.................................32
2.1. As virtudes morais e as virtudes dianoéticas..............................................33
2.1.1. Hexis: disposição.......................................................................35
2.1.2. Mesotes: a doutrina do meio.....................................................41
2.2. Ação voluntária, involuntária e não voluntária, ações mistas.....................46
A) Escolha deliberada.......................................................................52
B) Phronesis – Prudência.................................................................57
CAPÍTULO 3 Acrasia...............................................................................................................64
3.1. Traços do caráter a se evitar......................................................................69
CAPÍTULO 4 Educação e experiência na conquista das virtudes..........................................74
CONCLUSÃO....................................................................................................82
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................87
8
EPÍGRAFE
Virtude
Ó opulenta e explêndida virtude Palácio luculento, quão sublime! Suavidade perene que redime
De ti preciso, mas muito amiúde.
Facho divino, fonte de saúde, Arroubo de poesia, fléxil vime!
Dá-me forças eternas com que anime Esta angélica crença que me ilude.
No livro divinal está escrito,
Caracteres dourados, que matiz! Que Deus dará o prêmio mui infinito
Que os anjos, a cantar, dizem: feliz!
E um trono nobilíssimo, bendito! Àqueles que a ti baixam a cerviz.
Daniel R. Diegues(1949).
(in memorian)
São Paulo
2015
9
INTRODUÇÃO
Com o intuito de realizar apresentação da dissertação, tecerei algumas
considerações sustentando que a ética das virtudes de Aristóteles é essencial
na formação do caráter do homem.
Experiências do cotidiano escolar relativas à vida ética foram responsáveis
por duas razões da escolha do tema. O resultado de exame minucioso realizado
ao longo dos anos dos problemas arrostados no dia a dia, concernentes a
condutas de pessoas nas situações de convívio, de escolhas no agir ético, na
falta de domínio das atitudes foram a primeira razão. A segunda razão, da
necessidade de encontrar soluções para estes problemas descritos. Tais razões
nos impulsionaram para uma busca de respostas na ética.
Somos a favor de uma sociedade livre e justa e por esta razão
defendemos que a escola tem um papel importante na formação da vida ética e
do homem virtuoso. A educação ética é um procedimento para toda a vida. Por
isso, falar de virtudes é dar voz a quem poderá contribuir para que sejamos
mais humanos e dignos. Aristóteles em sua obra “Ética a Nicômaco”1 (E.N)
aborda questões éticas centrais relacionadas ao caráter. Esta obra será o
centro e a fonte de toda a produção desta pesquisa, porque Aristóteles devota
boa parte de sua obra para discutir as virtudes. Ele definiu a virtude como um
traço característico manifestado nas ações habituais. A obra Ética a Nicômaco
de Aristóteles foi escolhida por nós, porque dentre as obras dele que a tradição
nos legou é das mais importantes a respeito do assunto; diz respeito a
problemas centrais na ética que giram em torno da responsabilidade moral,
liberdade da ação; constitui um arcabouço conceitual importante no
desenvolvimento do nosso propósito.
Pretendemos examinar na obra como Aristóteles contribui no forjamento
das virtudes desde a mais tenra idade.
Como afirma Broadie (2009, p. 314): “... muito do que ele tem a dizer na
E.N continua a formar o nosso pensamento sobre questões práticas”.
1 Consultamos duas obras: ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de Antonio
de Castro Caeiro. Editora Atlas. São Paulo. 2009 e Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Ross. Optamos pela obra de Antonio de Castro Caeiro para as citações.
10
Existem questões de relevância universal hoje que também faziam parte
do pensamento de Aristóteles em sua época e para as quais muito do que ele
escreveu soam como respostas atuais.
É, portanto, uma ideia considerável explorar como Aristóteles concebe a
educação na aquisição de virtudes, e isso demanda aprofundamento nessa
obra por meio de seus grandes intérpretes como: Marco Zingano, Ursula Wolf,
Marcelo Perini, Giovanni Reale, Antoine Hourdakis, Richard Kraut, Alberto
Alonso Muñoz e ainda outros que nos auxiliem no seu entendimento.
Zingano em sua obra Aristóteles: Ethica Nicomachea I 13-III8 / Tratado
da Virtude Moral oferece um belo trabalho para compreendermos as éticas do
filósofo. É interessante destacar que Zingano sustenta que a ética aristotélica é
uma ética da virtude; uma ética que desafia o princípio da codificabilidade
generalizada dos princípios práticos. Ela é avessa ao dever. Além disso, o
homem se torna bom por agir frequentemente de modo correto e, portanto, as
virtudes resultam das ações, das boas ações.
Wolf citando Barnes retrata no seu Prefácio que a Ética a Nicômaco:
[...] é um dos textos mais influentes e efetivos da história da filosofia. Nenhum dos outros escritos de Aristóteles teve tantos comentários, e são poucos ainda os textos antigos que continuam tão atuais em sua contribuição no que diz respeito ao conteúdo em questão. Em sua introdução à filosofia de Aristóteles, escreve Jonathan Barnes:“A Ética, pode ser lida na realidade como um documento histórico – como testemunho da situação da filosofia prática no quarto século antes de Cristo. Mas pode ser lida também como uma contribuição para o debate atual, e os filósofos modernos tratam Aristóteles sempre ainda como um brilhante colega” (Apud BARNES 1982, p. 87)
2.
Os filósofos modernos estudam muitas questões acerca da virtude,
como: a medida de nossa responsabilidade pelo nosso caráter e a vinculação
entre o caráter e a conduta do homem. Então perguntamos: é possível trazer a
Ética a Nicômaco de Aristóteles para a atualidade?
Sim, é possível. Em primeiro lugar porque Aristóteles nos diz:
[...] a sensatez diz respeito à justiça, à beleza, à bondade para o Humano, são estes mesmos os fins em vista dos quais o homem de bem deve realizar suas ações (E.N. 2009, VI, 12, 1137 a 23 – 24).
2BARNES, apud. WOLF, Úrsula. A Ética a Nicômaco de Aristóteles. Tradução Enio Paulo
Giachini. Edições Loyola. São Paulo: 2010. Prefácio, p.9.
11
Segundo,
Assim, também a sabedoria cria a felicidade, pois sendo parte da excelência total, torna quem a possui feliz, isto é, o acionamento da sabedoria é causa da presença da felicidade nele. Além do mais, o trabalho específico do Humano é cumprido, na medida em que é feito de acordo com a sensatez e a excelência do caráter. De fato, a excelência faz do fim um fim correto, e a sensatez abre o encaminhamento nessa direção (E.N.2009, VI, 12, 1141 a 5 – 10).
Ser virtuoso, ou pelo menos, aproximar-se de um agir virtuoso, com
sabedoria e prudência torna quem o possui “feliz”.
ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO
O objeto central do capítulo 1 vem a ser a finalidade da vida humana,
uma vez que a Ética a Nicômaco em seu Livro I inicia com o estabelecimento
da noção de felicidade sendo, neste sentido, uma ética eudemonista. A
felicidade é definida como uma certa atividade da alma segundo perfeita virtude
(E.N. 2009, I, 6, 1098 a 16 - 17). Definição que requer o estudo sobre a virtude e o
exame da natureza da virtude moral. Consideraremos a constelação conceitual
da doutrina feita por Aristóteles na Ética a Nicômaco: o sumo bem, a
eudaimonia (felicidade) e o kalon (o eticamente nobre) da espécie humana,
conceitos sustentados no Livro I da E.N. de suma importância para a
compreensão do modelo educativo na formação do caráter do homem, para
Aristóteles, que se traduz num modelo humanitário que conduz o homem à
felicidade. Além do estudo de noções-chave apresentadas por Aristóteles,
recorreremos a textos de comentadores que estabelecem um diálogo com o
autor.
No Capítulo 2, discorreremos sobre a responsabilidade moral, a
liberdade da ação. E ainda neste capítulo, as virtudes morais e virtudes
dianoéticas, a hexis (disposição), a mesotes (justa medida) explorando o papel
da razão e das emoções. Exporemos a teoria da alma em Aristóteles.
Investigaremos a ação voluntária, involuntária e não voluntária; as ações
mistas; a escolha deliberada e a phronesis (prudência) encontrados nos Livros
III, IV, V e VI. Por ser a chave da compreensão de toda a Ética de Aristóteles
12
estaremos atentos ao conceito fundamental de phronesis, excelência ou virtude
de uma das partes da alma capaz de razão, que pelo exercício dela, o ser
humano valoriza a vida e não qualquer vida, mas a vida boa.
No capítulo 3, a Acrasia (falta de domínio) do Livro VII; examinando
essas questões referentes a traços do caráter a serem evitados.
No capítulo 4, buscaremos compreender o que Aristóteles sugere para a
aquisição da responsabilidade moral e como o agente, considerando
circunstâncias sempre diferentes, decide moral e corretamente.
Finalizaremos com a argumentação de que a Ética a Nicômaco de
Aristóteles pode, ainda hoje, nos servir de referência no exercício de virtudes,
tendo como base as teses formuladas por Aristóteles principalmente pelo que
ele mesmo revelou:
Se é melhor obter assim a felicidade através de uma certa aprendizagem e preocupação do que ser feliz por sorte, é mais razoável obtê-la desse modo. Se os entes que existem de acordo com a natureza são de tal modo constituídos que existem da melhor maneira possível, e se assim também é com os produtos resultantes de uma qualquer perícia humana ou de qualquer outra proveniência, assim será, por maioria de razão, com o que é oriundo do fundamento supremo. Confiar o sublime e o mais excelente ao acaso seria completamente absurdo (E.N. 2009, I, 9. 1099 b 20 - 25).
Pelo exercício faz toda a diferença habituar, desde cedo, virtudes porque
o homem se torna moralmente bom por ter agido com frequência e por um
longo tempo de modo correto. E um homem virtuoso se distingue dos outros
porque as suas ações demonstram total controle da razão, fundada na
possibilidade de dizer sim ou não, de fazer escolhas, de agir bem e
nobremente, pois a razão pode apreender o bem verdadeiro.
Portanto, no processo de formação da criança até a fase adulta ao
mesmo tempo em que está sendo orientada através de situações similares às
de um virtuoso vai habituando e aprendendo a agir corretamente e tomando
decisões por conta própria. A educação vai tornando a razão prática correta e é
a ética de Aristóteles uma ética da ação. Consideraremos em nossa pesquisa,
como já foi dito, obras nucleares de Aristóteles tais como: Ética a Nicômaco, A
Política. Outras referências incluem comentadores como: Zingano, Ackrill,
Aubenque, Broadie, e outros.
13
Vale lembrar que entendemos não ser de bom senso transportar
Aristóteles em relação direta com a contemporaneidade como se tudo o que
ele enunciou em seus tratados pudesse ser validado em nossa realidade. O
que importa é perceber de que modo as suas reflexões sobre a formação do
caráter do homem nos ajudam a compreender as possibilidades de práticas
intencionais, nas escolas, similares às de um virtuoso que possam ser vividas
pelos educandos no cotidiano escolar. Se Aristóteles pensou que a felicidade é
uma certa atividade da alma de acordo com uma excelência completa e a
aquisição da mesma se dá através do tempo, do exercício e do hábito, pode
ser interessante que a escola, como um lugar onde a vida acontece, possibilite
práticas intencionais, na aquisição de um agir sensato. E a escola pode
contribuir para esse aperfeiçoamento, por meio do hábito, por meio de
processos educativos. Sendo, portanto, possível afirmar que ética possui uma
relação com a pedagogia e os processos educativos são, também, processos
éticos. Cabe à escola, então, um educador que forme indivíduos capazes de
decidir em cada situação particular unindo o que deseja fazer com o que deve
ser feito. E para isso é necessário cultivar esse como fazer.
14
CAPÍTULO 1
A FINALIDADE DA VIDA HUMANA
Os fundamentos do ser e do agir são um tema obscuro, no entanto,
central para a compreensão da nossa existência. O contexto contemporâneo,
no qual se vive transformações não só científico-tecnológicas, mas também
nas formas de pensar a moral é, também, importante para a nossa
compreensão da finalidade da vida humana.
O homem, na sociedade contemporânea, vive numa realidade de
consumismo, individualismo, prazeres momentâneos. Sociedade esta centrada
nos interesses do indivíduo; tudo o que é estabelecido se desfaz muito
rapidamente e o comportamento das pessoas é decidido no contexto e nas
circunstâncias muitas vezes afastadas da vida ética. É neste cenário que
encontramos uma série de abusos, contravenções, injustiças, barbárie. A
sociedade capitalista que também contribuiu para gerar diferenças sociais e
econômicas excluiu pessoas, constituiu sujeitos descomprometidos, egoístas,
com objetivos focados exclusivamente nos interesses pessoais que
abandonaram responsabilidades morais e sociais. Pessoas, cujo ideal de
felicidade é a satisfação de interesses próprios, contudo escravas de modelos
de felicidade impostos e relacionados às prioridades do consumo e do lucro.
Com a realidade do século XXI, e observando o agir humano, na
tentativa de encontrar respostas e caminhos que nos conduzam a uma
mudança desta realidade nos coube questionar: qual é a finalidade da vida
hoje?
Não estamos certos de que o homem, hoje, se preocupe ou tenha tempo
para refletir sobre a finalidade da vida, uma vez que está absorto por uma
sociedade de dimensões assustadoras da barbárie. Mas, certos estamos de
que essas pessoas se sentem órfãs, pois as suas atitudes demonstram que
estão inseguras e desorientadas. Principalmente aquelas que estão
preocupadas com o futuro de seus filhos se a sociedade prosseguir com
práticas que afrontam o sentido de bem comum. É assustador, todo dia, nos
depararmos com as evidências nas situações reais de violência, injustiça,
hipocrisia, matança, traição, corrupção, desigualdade e imoralidade de pessoas
que se dizem seres humanos. Pois é esta a realidade que estamos vivendo,
15
que assola a nossa vida e da qual faz parte, não só o adulto, mas as crianças,
que se continuarem a viver esta realidade estarão muito longe de se tornarem
homens dignos, de bem, homens virtuosos e felizes.
Embora o homem viva em função de interesses próprios ele não vive
sozinho e muito menos se sente feliz sozinho. Como afirma Reale
(1994.p.124):
A natureza do homem demonstra que ele é absolutamente incapaz de viver isolado e, para ser si mesmo, tem necessidade de estabelecer relações com os seus semelhantes em todo momento da sua existência.
O homem depende do outro em algum sentido e o limite de ação do seu
“eu” é a existência do “outro”. Ou seja, o homem não se basta a si mesmo
necessita da família, de outras pessoas, tem necessidade de estabelecer
relações com os seus semelhantes para satisfazer suas necessidades da vida
em geral. O comportamento do homem e parte do seu discurso parece revelar
uma preferência por uma vida significativa. Uma vida peculiar ao ser humano,
diferente das plantas, dos animais. Uma vida que expresse a natureza
essencial do gênero humano. A sua função específica.
Faz-se necessário um repensar sobre tudo isso.
A finalidade da vida humana emerge da ação do homem. Ação
constituída de sentido, prazer, de bem estar. O fato é que o homem sempre
procura um bem. E este bem, a maioria o traduz como a felicidade.
Assegurar a compreensão do sentido da vida, sua finalidade, nos parece
de suma importância e nos instiga a retomar um fato extremamente importante
que Aristóteles notou há muitos séculos: o homem possui uma natureza
essencial, a razão; e uma finalidade essencial, o ergon (função) da espécie
humana.
Portanto, propomos uma retomada sobre a finalidade da vida humana
aos moldes de Aristóteles: ser bom e agir de maneira virtuosa. Em A Política,
para Aristóteles, o homem é por natureza um animal feito para a sociedade civil
porque ele quer viver bem, quer ser feliz e para viverem felizes os homens
estabelecem a sociedade civil:
16
O homem é por sua natureza, como dissemos desde o começo ao falarmos do governo doméstico e do dos escravos, um animal feito para a sociedade civil. Assim, mesmo que não tivéssemos necessidade uns dos outros, não deixaríamos de desejar viver juntos. Na verdade, o interesse comum também nos une, pois cada um aí encontra meios de viver melhor. Eis, portanto, o nosso fim principal, comum a todos e a cada um em particular (A Política. p. 53).
3
Argumentamos a favor da plausibilidade da ética das virtudes de
Aristóteles na formação do caráter do homem contemporâneo com base no
que o próprio filósofo diz sobre a função do Humano, o viver peculiar a ele,
uma vez que é o único ser capacitante de razão. E também a ideia de preparar
o homem para a vida prática, para a cidadania. Entendemos que ensinando um
“certo saber viver” que permita ao homem acertar no agir correto, a ação o
aproximará da felicidade. Afinal, o desejo do homem é ser feliz. É cumprir a sua
função bem e eticamente nobre (kalon). É praticar ações constituídas de
sentido, de prazer, de bem estar.
Há na obra de Aristóteles um ideal de beleza moral, de nobreza que está
muito longe do que se pode encontrar na moral dos dias atuais. Mas é esse
ideal que torna a leitura de sua obra muito valiosa e nos faz refletir a respeito
da grandeza da alma. Ele nos faz refletir sobre o tipo de pessoa que devemos
ter por objetivo tornar-mo-nos. Afirma que “a presença da excelência no
Humano permitirá restituir-lhe a sua função específica, a de se tornar em si
próprio excelente” (E.N.II, 5,1106 a 24 - 25). Afirma também: “É próprio da
sabedoria, tanto a de cada homem em particular quanto a de todo o Estado em
geral, dirigir suas ações e sua conduta para o melhor fim” (A Política. p. 59).
Analisar a contribuição de Aristóteles, então, implica conhecer
inicialmente a ideia do filósofo sobre a finalidade da vida, o para quê viver, pois
compreendemos assim, a moral aristotélica. Quando o homem reconhece a
necessidade de estabelecer relações com o outro, de que necessita dele não
só para garantir as condições de uma vida em geral, mas para garantir as
condições de uma vida perfeita, uma vida moral, sai de seu egoísmo e vive
conforme o que é verdadeiramente bom, dando assim, sentido à sua vida.
3 ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo. Martins Fontes.
2002.
17
Para Aristóteles toda a ação aspira a um bem; deve haver um fim último
para o agir; e esse fim é a felicidade.
1.1. Compreendendo a moral aristotélica – a ética nicomaquéia
O objetivo do trabalho é apresentar a ética nicomaquéia e sua
constelação conceitual. No desdobramento deste capítulo discorreremos sobre
a eudaimonia (felicidade) o kalon (o bem ético) da espécie humana e o ergon
humano.
Aristóteles escreveu quatro grandes obras dedicadas à ética: Magna
Moralia (M.M), Ethica Eudemia (E.E), Etica a Nicômaco (E.N) e Sobre virtudes
e vícios. Segundo Zingano (2008, p.9), a Magna Moralia parece tratar de um
curso de ética proferido por Aristóteles e a sua transcrição teria sido feita após
a sua morte, dado que explicaria detalhes do grego, mais próximo do demótico
do que do clássico ateniense. A Ethica Eudemia é considerada uma versão da
ética de Aristóteles editada por seu discípulo Eudemo de Rodes. Segundo
Zingano originalmente conteria livros comuns da E.N. Como ocorreu o
desaparecimento dos livros IV, V e VI da E.E por alguma desventura eles
teriam sido substituídos pelos livros correspondentes da E.N. Em outros
trabalhos a esse respeito, como os de Anthony Kenny, as opiniões diferem.
Pensa-se que os livros comuns originariamente pertenciam à E.E e foram
transpostos com algumas adaptações (ZINGANO, 2008, p.10).
Não vamos nos ocupar com a Magna Moralia ou com a Ethica Eudemia
nem mesmo com a Sobre virtudes e vícios, porque a nossa investigação irá se
concentrar na Etica a Nicômaco, obra representante da moral aristotélica que
está em consonância com o nosso argumento de que ainda hoje a contribuição
da ética das virtudes de Aristóteles se faz necessária e essencial na formação
do caráter do homem.
A Etica a Nicômaco revela uma maior maturidade filosófica e mais
primor na argumentação de Aristóteles. É sua obra mais conhecida desde a
Antiguidade. Talvez tenha sido escrita após o seu regresso a Atenas, onde
fundou o Liceu. Há controvérsias a respeito do título “Ética a Nicômaco”. Uns
dizem que foi em honra ao pai de Aristóteles que se chamava Nicômaco;
outros, em honra de seu filho com o mesmo nome.
18
Na obra, Aristóteles inicia com a noção de eudaimonia e por isso é uma
ética eudemonista, ou seja, aquela que admite ser a felicidade o fundamento
da conduta ética humana. Como afirma Aristóteles em outra obra:
(...) a felicidade consiste na ação, a melhor vida, tanto para o Estado inteiro como para cada um em particular, é, sem dúvida, a vida ativa. Ademais não devemos, como alguns imaginam, restringir a vida ativa apenas às ações que terminam fora, nem aos projetos que nascem da ocasião. Ela abarca também as meditações que tratam dessas ações e desses projetos e que, além do contentamento que por si mesmos proporcionam, ainda tornam a execução mais perfeita (A Política. p.64).
Aristóteles define a felicidade como uma atividade da alma, o que nos
remete diretamente às ações que o homem faz ou deixa de fazer.
Nas palavras do próprio Aristóteles:
A felicidade parece, por conseguinte, ser de uma completude plena e autossuficiente, sendo o fim último de todas as ações possíveis. Mas talvez pareça ser algo já de assente o dar-se à felicidade o sentido de <<o melhor de tudo>>; é, por isso, desejável que seja dito de um modo mais claro qual é a sua essência. Tal pode suceder eventualmente se se captar qual é a função específica do Humano (E.N. 2009, I, 7.1097 b 20-25).
A felicidade, portanto, baseada na ideia de que o homem possui uma
função própria, ligada à sua essência, a vida ativa, segundo a razão.
É que o viver parece ser comum também aos vegetais e o que é procurado é o viver peculiar do Humano. Tem, pois, de se fazer abstração da função vital de nutrição e de capacidade de crescimento. Segue-se uma certa função vital perceptiva, a qual parece ser comum ao cavalo, ao boi e a todo o ente vivo. Resta, então, uma certa forma de vida ativa inerente na dimensão da alma, que no Humano é capacitante de razão (E.N. 2009, I, 7. 1098 a 1-5).
O Estagirita louva a razão no sentido de que esta torna as ações
perfeitas. E a função do homem é buscar esse bem, a felicidade, de forma
excelente.
19
1.2. A eudamonia
Aristóteles abre o Livro I da Ética a Nicômaco com aquilo que o ser
humano almeja como fim último de todas as coisas que realiza, quer na ação
prática, quer através das suas habilidades, quer pelo conhecimento ou ciência,
quer na realização dos seus desejos, anseios, objetivos ou decisões tomadas,
ou seja, o que ele nomeia como certo Bem. Aristóteles coloca o Bem na base
do seu pensamento ético. O Bem para ele é um fim a ser atingido:
Toda perícia e todo processo de investigação, do mesmo modo todo o procedimento prático e toda a decisão, parece lançar-se para um certo bem. É por isso que tem sido dito acertadamente que o bem é aquilo por que tudo anseia (E.N. 2009, I, 1. 1094 a 1 - 2).
Há três teses aqui: a) toda ação aspira a um bem; b) deve haver um fim
último para o agir, um fim ótimo; c) esse fim decisivo é a eudaimonia o bem
viver humano (WOLF, 2010, p. 21).
As palavras de Aristóteles fazem distinção entre as duas modalidades
da ação humana: ações que tem um fim em si mesma e as que têm como fim a
produção de uma obra. Ele afirma que são diversas as ações práticas, bem
como o são diversas as habilidades do homem e as ciências e que, portanto,
assim também são diversos os fins.
Estabelece uma diferença entre os fins e indica dois tipos de fins para as
ações humanas: uns são as atividades, os próprios exercícios ativos (ações) ou
o trabalho específico de cada ser humano; outros fins são os produtos que
resultam das habilidades do trabalho específico do homem. E exatamente em
razão da qualidade da perícia de cada um é que Aristóteles atribui valores
diferentes para os fins. Ele faz uma distinção entre os fins das habilidades que
ele nomeia de “superiores” daquelas habilidades “subordinadas”. E afirma que
os fins das habilidades superiores são preferíveis aos fins das perícias
subordinadas porque os fins das subordinadas são perseguidos em vista dos
fins superiores. Aristóteles assim exemplifica: “a fabricação de rédeas e todas
as outras perícias que produzem instrumentos hípicos estão subordinadas à
arte de montar cavalo” (EN, 2009,I, 1. 1094 a 10 - 14).
20
Como afirma Aristóteles, há um fim último que almejamos e esse fim
será, segundo ele, o Bem. Na verdade, o sumo Bem. O que ele quer sugerir é
que na realidade há um bem que é o melhor de todos:
Se, por conseguinte, entre os fins das ações a serem levadas a cabo há um pelo qual ansiamos por causa de si próprio, e os outros fins são fins, mas apenas em vista desse; se, por outro lado, nem tudo é escolhido em vista de qualquer coisa (porque, desse modo, prosseguir-se-ia até o infinito, de tal sorte que tal intenção seria vazia e vã), é evidente, então, que esse fim será o bem e, na verdade, o bem supremo (E.N. 2009, I, 2. 1094 a 18 – 20).
É importante ressaltar que nas suas obras Aristóteles relaciona os temas
éticos aos políticos e em virtude disto ele julga que o bem verdadeiro é o
mesmo tanto para o homem como para a cidade.
(...) mesmo que haja um único bem para cada indivíduo em particular e para todos em geral num Estado, parece que obter e conservar o bem pertencente a um Estado é obter e conservar um bem maior e mais completo. O bem que cada um obtém e conserva para si é suficiente para se dar a si próprio por satisfeito; mas um bem que um povo e os Estados obtêm e conservam é mais belo e mais próximo do que é divino ( E.N. I, 2. 1094 b 8 a 12).
Aristóteles assevera ser necessário buscar um bem para o homem na
sua vida ativa. Esse bem está no campo da prática. Não é algo abstrato, nem
conceitual. É algo que dá sentido a existência humana no lugar próprio de
ocorrência, ou seja, na sociedade. Ele aponta para a importância de um bem
último, o mais excelente para a vida do homem.
Na medida em que o homem busca em tudo o que faz um bem e esse
bem é assim tão importante quanto um tesouro, ele tem importância decisiva
para uma vida humana boa, é o seu objetivo final. Como o próprio filósofo
escreveu: “não alcançaremos mais facilmente o que é devido, se, tal como
arqueiros, tivermos um alvo a apontar, a perseguir?” (E.N. 2009,I, 2. 1094 a
25). E por ser assim tão importante Aristóteles nos alerta que devemos
conhecer as características essenciais do que poderá ser esse sumo Bem e
assim buscá-lo eficientemente em todas as ações, ciências e perícias. Temos
aqui um “princípio constitutivo da racionalidade prática”, como bem expõe
21
Lawrence em “O bem humano e a função humana” (KRAUT, 2009, p.42). Ou
seja, conhecer as características desse bem humano é uma demonstração da
racionalidade do homem que busca não apenas um bem para si, mas o maior e
o melhor bem.
O que poderá ser, então, o sumo bem? Para Aristóteles parece ser a
felicidade.
Quanto ao nome desse bem, parece haver acordo entre a maioria dos homens. Tanto a maioria como os mais sofisticados dizem ser a felicidade, porque supõem que ser feliz é o mesmo que viver bem e passar bem (E.N. 2009, I, 4. 1095 a 15 – 20).
Cabe notar que ele não ignora no indivíduo os seus interesses ou os
bens individuais, mas acredita que é possível conquistar um bem maior que
seja o fim para todos. Aristóteles pensou a vida humana como algo que se
desenrola na pólis (cidade). Para ele a cidade é o ápice que encerra os valores
do homem. Reconhecemos neste ponto um princípio importante da ética e da
política de Aristóteles. Este princípio se refere à educação, ou seja, na
formação do homem ensinando-o a querer a melhor coisa da vida que possa
ser útil para todas as pessoas.
Sabemos que na sociedade atual alguns homens não se preocupam
com bens que possam ser úteis para todas as pessoas. Isso ocorre em
consequência do seu pensamento egoísta ético, individualista, resultante de
uma total indiferença aos valores que dizem respeito à vida social. Influenciado
pelas prioridades de uma sociedade consumista, pouco ou nenhum espaço
atribui para uma reflexão sobre um sumo bem que possa ser útil para todas as
pessoas, embora o ser humano de hoje também deseje uma vida boa e bem
sucedida. Por isso é muito importante conhecermos como Aristóteles pensou a
vida humana uma vez que acreditamos que a educação pelas virtudes poderá
conduzir o homem à felicidade.
Ao iniciar a Ética a Nicômaco Aristóteles discorre sobre um fim último
para o “agir”, que ele chama de bem. Em seguida, introduz um termo que
amplia o sentido deste bem: o sumo bem.
Isso leva a uma interpretação de que Aristóteles sugere ser esse bem o
melhor de todos; um bem final que caracteriza uma vida humana boa e
abrange todos os bens humanos possíveis. Wolf traz elementos importantes
22
para esclarecer a respeito e não podemos deixar de transcrever a citação que
segue:
Suponhamos que na vida de uma pessoa haja três fins a que ela aspira por causa deles mesmos, por exemplo, honra, riqueza e formação. A fim de que sua aspiração não fique no vazio, bastaria que ela realizasse um, dois ou até os três fins sem ligação entre eles (Wolf, 2010. P. 27). Suponhamos que o sumo bem que ela deseja realizar no todo de sua vida seja a honra; então deveria subordinar os fins da riqueza e da formação ao desejo da honra; aspirar a eles, portanto, apenas na medida em que representam meios que ajudam a alcançar o fim último (WOLF, 2010, p. 28).
É necessário entender o que seja o bem para Aristóteles:
Talvez fosse melhor examinar o sentido do bem universal e passar em revista as dificuldades levantadas acerca do modo como ele é enunciado, ainda que uma tal tarefa nos seja penosa, porque aqueles que introduziram as <<ideias>>são nossos amigos (E.N. 2009, I, 6. 1096 a 11).
Aqui fica claro que Aristóteles se refere à doutrina platônica do Bem
Supremo. Ele examina criticamente essa doutrina:
Além do mais, uma vez que <<bem>> se diz de tantos modos quantos se diz <<ser>> - porque ele é dito na categoria da substância, como, por exemplo, Deus e o poder de compreensão, também, na categoria da qualidade, como, por exemplo, as excelências; na categoria da quantidade, como , por exemplo a moderação; na categoria da relação, como, por exemplo o útil; na categoria do tempo, como, por exemplo, o momento oportuno, e ainda na categoria do espaço, como, por exemplo, as estadias saudáveis etc. - , é evidente que não há nenhum bem comum, universal e uno, porque se assim fosse, não poderia ser predicado de todas aquelas diferentes categorias, mas teria que existir apenas de acordo com uma única ( E.N. 2009, I, 6. 1096 a 25 - 30).
Não é admissível, para Aristóteles, que se pense em um bem que seja
uno para todas as situações e, portanto, há a necessidade de se buscar um
bem para o homem na vida ativa. Essa vida ativa é a razão da existência do
homem.
Aristóteles afirma que parece haver um acordo entre a maioria das
pessoas quanto ao nome desse bem:
23
Tanto a maioria como os mais sofisticados dizem ser a felicidade, porque supõem que ser feliz é o mesmo que viver e passar bem (E.N. 2009, I, 4. 1095 a 20).
O filósofo introduz aqui o conceito de eudaimonia, como fim último ou o
melhor dos fins. Podemos afirmar que o bem último, mais desejável pelo
homem é a eudaimonia. É para alcançar a felicidade que o humano realiza
atos bons. Trata-se de , segundo o filósofo, “viver bem e agir bem”. As
expressões não significam que as coisas vão bem para uma pessoa e que ela
se sente bem no sentido passivo, mas para Aristóteles deve possuir aspectos
ativos e por isso a eudaimonia tem que denotar uma vida humana ativa e
durante toda a sua duração.
Segundo Wolf, o significado de eudaimonia não corresponde ao nosso
conceito de felicidade hoje. “Nossa palavra “felicidade” é por demais pálida;
além disso, ela pode ser empregada tanto para a felicidade interior como para
a felicidade como sorte fortuita” (2010, p. 28). Nós, de certa forma,
organizamos e planejamos nossas vidas almejando a felicidade, e ou, o bem
viver. O significado de eudaimonia para Aristóteles é o bem viver e bem agir,
bem viver e bem conter-se.
Entretanto, o sentido de eudaimonia é do mesmo modo divergente na
opinião das pessoas e o filósofo percebeu isso. Para que pudéssemos
compreender esse sentido ele sugere que comecemos a partir da observação
atenta das formas de viver a vida.
Segundo Aristóteles, há três formas principais de viver a vida: a primeira,
usando das próprias palavras do filósofo, suposta “pela maioria dos homens e
os mais vulgares” de que o bem e a eudaimonia consistem no prazer e no
gozo; a segunda dedicada à ação política e a terceira dedicada à atividade
contemplativa:
[...] a maioria dos homens e os mais vulgares de todos supõem que o bem e a felicidade são o prazer; é por esse motivo que acolhem de bom grado uma vida dedicada à sua fruição. [...] em segundo lugar, a que é dedicada à atividade contemplativa. A maioria dos homens parece estar completamente escravizada e preferir uma vida de animais de pasto. Encontrar um sentido aparente para suas formas de vida, porque muitos dos que detêm o poder têm paixões idênticas àquelas por que passou Sardanapalo. Os que são sofisticados, contudo, e se dedicam à ação prática, supõem, antes, ser a honra (E.N. 2009, I, 5.1095 b 14 - 25).
24
Ele lamenta que a maioria das pessoas se perca no caminho que lhes
promete o prazer, na busca da eudaimonia e mais, lamenta que essas pessoas
encontrem uma maneira aparente para as suas formas de vida, além de serem
escravizadas por esse sentido aparente do bem, o que faz com que as
mesmas escolham o gozo como sendo o bem. Sendo assim, parece que o erro
tem origem no excesso de prazer.4 Ao iniciar a discussão acerca do prazer
Aristóteles afirma:
Pensa-se que o prazer é uma das possibilidades extremas mais profundamente domiciliadas na nossa natureza. Esse é o motivo pelo qual educamos os mais novos a saberem guiar-se, quando se encontram expostos ao prazer e ao sofrimento. Por outro lado parece de uma importância extrema para a realização da excelência do caráter o sentir prazer e aversão a respeito do que é devido (E.N. 2009, X, 1. 1172 a 16 – 24).
As pessoas que escolhem apenas o prazer parecem ignorar o fato de
serem racionais.
A segunda forma de viver, para os que são sofisticados e se dedicam à
ação prática parece ter como fim a honra e se reconhece naqueles que se
dedicam à vida política, criticada pelo próprio Aristóteles como sendo um bem
superficial, exterior e não o fim último, porque parece ser incompleto. Os
homens que anseiam a honra, o fazem porque querem uma prova de que são
bons, de que possuem virtudes. Mas a honra pertence, segundo o filósofo,
mais a quem a concede do que a quem a recebe. O filósofo critica também
aqueles que dedicam sua vida a acumular riquezas:
A vida dedicada a obtenção de riqueza é de certa forma uma violência e a riqueza não será manifestamente o bem de que estamos à procura, porque é meramente útil, portanto, enquanto útil, existe apenas em vista de outra coisa diferente de si (E.N. 2009,I, 5. 1096 a 6 - 9).
Na opinião dele apenas serve para buscar coisas que valem como meios
e não como fins. Ele diz não ser a riqueza o bem de que estamos à procura,
porque é meramente útil, portanto, enquanto útil, existe apenas em vista de
outra coisa diferente de si. Ou seja, é um meio para se chegar a um fim.
4 Aristóteles não nega a importância do prazer.
25
A felicidade nem mesmo seria como indicam os platônicos, o
transcendente, pois para Aristóteles não se trata de um bem transcendente e
sim um bem imanente realizável pelo homem e para o homem. “Platão admite
que haja apenas uma única Ideia do bem desvinculada da realidade da
experiência, que apenas essa Ideia é perfeita e duradoura e que todos os
outros bens são bons pela participação aproximativa nessa Ideia.” (Wolf, 2010,
p. 30). Porém, Aristóteles não pensa assim. Para ele não se pode realizar uma
ideia do bem desvinculada do mundo da experiência.
Em terceiro lugar, a forma de vida dedicada à atividade da contemplação
pura. A atividade desta dimensão pertence a melhor parte do humano: o poder
de compreensão e a suprema forma de eudaimonia.
Parece-nos que o bem, com sentido comum, não existe, afirma o
filósofo. Para cada um há um fim, ou seja, há uma multiplicidade de fins e
escolhemos alguns em vista de outros. Ora, há fins que são perseguidos como
meios para outros fins.
Aquele fim que é escolhido por si próprio e nunca como meio é o fim
absoluto, a eudaimonia, conclui Aristóteles.
Demais, entendemos ser mais completo aquele fim que nunca é escolhido por causa do outro por comparação com aqueles fins que são escolhidos simultaneamente em vista de si próprios e em vista de outros fins. Na verdade, simplesmente completo é aquele fim que é sempre escolhido segundo si próprio e nunca como meio em vista de qualquer outro. Um fim desde gênero parece ser, em absoluto, a felicidade (E.N. 2009, I, 7. 1097 a 30).
O bem absoluto é completo; basta-se a si mesmo e é o fim último de
todas as ações possíveis, aquilo que por si só torna a vida digna de ser vivida,
à qual nada falta. O objetivo de Aristóteles é demonstrar que a eudaimonia
(felicidade) é o fim último do agir humano. Enquanto bem não pode ser meio
para se alcançar outro objetivo. É o fim último.
Para Aristóteles a felicidade não é fruto de sorte e sim de esforços
humanos. O bem mais excelente deve ser buscado no âmbito da prática. Ele
pensa na felicidade como fruto do agir próprio do homem, de sua essência, de
uma função própria do humano. A felicidade é autossuficiente, fim último de
todas as ações possíveis.
Qual seria, então, a essência da eudaimonia?
26
Para Aristóteles, talvez encontremos a resposta a esta pergunta se
conseguirmos captar a função (ergon) específica do homem:
Ou será que haverá certas funções e procedimentos práticos específicos para o carpinteiro e para o sapateiro e nenhuma função para o Humano enquanto Humano, dando-se antes o caso de existir naturalmente inoperante? Ou não será que, tal como parece haver uma certa função própria dos olhos, das mãos e dos pés, em geral, de cada uma das partes do corpo humano, terá também de se supor que há uma certa função do Humano para além de todas elas? Qual poderá ser ela, então? É que o viver parece ser comum também aos vegetais e o que é procurado é o viver peculiar do Homem (E.N. 2009, I, 7.1097 b 30 - 35).
Esse viver peculiar do homem, segundo Aristóteles é certa forma de vida
ativa inerente na dimensão da alma que no Humano é capacitante de razão.
É neste ponto que surge o horizonte teórico da eudaimonia aristotélica.
O homem almeja um bem, ele busca esse bem na realidade da sua vida ativa.
A felicidade é esse bem, segundo Aristóteles; a função do Humano é buscar
esse bem de forma excelente. Ou seja, viver como seres humanos de forma
excelente, virtuosamente. Esse modo de ser não nasce com as pessoas e por
isso Aristóteles afirma ser a excelência dupla, como disposição teórica
encontra no ensino a sua formação e desenvolvimento, por isso requer
experiência e tempo; e como disposição ética resulta de um processo de
habituação. “Daqui resulta evidente que nenhuma das excelências éticas nasce
conosco por natureza” (E.N. 2009, II, 1. 1103 a 20).
O ergon pode consistir-se na própria ação.
O nosso próximo passo é entender o que seja a função específica
(ergon) do homem, “caso haja uma função específica que lhe seja própria”
(E.N. I. 7. 1097 b 30 - 31). Aristóteles parece conceber a essência da
eudaimonia como a atividade da alma e a ação de acordo com a razão de uma
maneira virtuosa. O homem busca esse bem, a eudaimonia na vida ativa e a
sua função é buscá-la da melhor maneira possível, de forma excelente. Ou
seja, a maneira de buscar a felicidade, o agir tem de ser nobre segundo a
razão: (...) uma certa forma de vida ativa inerente na dimensão da alma que no
Humano é capacitante de razão (E.N. 2009, I, 8. 1098 a 3 a 5).
27
1.3 O ergon humano
O ergon humano é a maneira de estar vivo que é peculiar ao ser
humano. Afinal, diz Aristóteles, viver é comum às plantas, aos animais que
assim como nós, também crescem e se alimentam; bem como, assim como
nós possuem sensações. O que se procura é algo peculiar ao Homem. Uma
vida que seja uma expressão da natureza essencial do gênero humano, isto é
a razão. Uma vida capaz de reflexão. Eis o desafio a que Aristóteles se propõe:
encontrar o ergon, a função específica do homem.
A possibilidade capacitante de razão manifesta-se de duas maneiras:
“uma, através da obediência ao sentido orientador, a outra, quando já o possui,
através da ativação do seu poder de compreensão” (E.N. 2009, I, VII. 1098 a 5).
Esse poder faz com que o ser humano faça escolhas acertadas para o bem
agir.
Então, segundo Aristóteles, a nossa função peculiar estaria relacionada
com o exercício, a ação propriamente dita, de uma espécie de vida que inclui
inteligência prática e virtude moral. Mais precisamente, na perfeita atuação
dessa atividade. No conjunto harmonioso de todas as virtudes.
“A felicidade parece, por conseguinte, ser de uma completude plena e
autossuficiente, sendo o fim último de todas as ações possíveis” (E.N. 2009, I, 7.
1097 b 22 – 30). O bem adquirido no exercício da função específica do humano.
Aristóteles parece conceber, então, a essência da eudaimonia, desse
bem humano, como a atividade da alma e as ações de acordo com a razão de
uma maneira virtuosa. A distinção entre o homem e os outros seres vivos é
exatamente que o homem vive no exercício de sua razão e na capacidade de
falar e pensar.
O aprofundamento de Aristóteles na questão o leva a definir tal atividade
humana em vista de uma perfeição própria do homem, uma vez que a sua
função é uma atividade da essência racional, em uso de suas faculdades da
alma.
E o filósofo complementa:
Se, então, a função do Humano é uma atividade da alma de acordo com o sentido ou, pelo menos, não totalmente discordante dele; se, demais, a função que um determinado indivíduo particular exerce é genericamente a mesma que exerce o virtuoso nessa atividade (como acontece com a diferença verificada entre um simples tocador de
28
cítara e o executante virtuoso desse instrumento o mesmo se passando a respeito de outras atividades), apenas acrescentando à função em causa a superioridade conformada pela excelência (isto é, a função do tocador de cítara é apenas a de tocar cítara, mas a do virtuoso é a de a tocar virtuosamente), se assim é, isto é, se admitimos que a função do Humano é uma certa forma de vida, se, por sua vez, essa forma de vida é uma atividade da alma e uma realização de ações conformada pelo sentido; se, a função do homem sério é a de cumprir estas funções bem e nobremente, e se, finalmente, admitirmos que uma ação é bem realizada se for cumprida de acordo com a sua excelência específica – nessa altura, então, o bem humano é uma atividade da alma conformada por uma excelência, e se houver muitas excelências, será conformada pela melhor e mais completa (E.N. 2009, I, 7. 1098 a 9 - 19).
Aristóteles nos diz que é feliz o homem que age durante toda a sua
existência no pleno exercício das suas virtudes. Esse bem é completo, perfeito
e autossuficiente, porque o homem não precisará de mais nada para ser feliz.
Se tornando esta maneira de viver prazerosa e digna de admiração:
(...), contudo, quem faz gosto nas coisas belas, encontra-se com a própria natureza bela que é a delas. São deste gênero as ações realizadas de acordo com a excelência, de tal sorte que estas ações são em si próprias um gosto para quem assim as leva a cabo. A sua existência não precisa de mais nenhuma forma de prazer como ornamento, pois tem o prazer em si própria. Acresce ao que foi dito que não há nenhum homem de bem que não se regozige com ações nobre; nem nenhum homem justo poderá dizer que não se regozija com o modo justo de agir, nem ninguém livre que não se rogozije com as ações realizadas livremente, e do mesmo modo para outras ações realizadas conforme às suas excelências específicas (E.N. 2009, I, 8. 1099 a 13 a 20).
A partir destas afirmações do filósofo estabelece-se a arete (virtude)
humana, a excelência de sua função própria.
1.4 As virtudes
O filósofo mostra que pode haver diversas dessas virtudes e que o
exercício delas deverá ocorrer durante todo o tempo da vida. “Tem ainda de ser
acrescentado:<<durante todo o tempo da vida>>, porque uma andorinha não
faz a Primavera, nem um só dia bonito” (E.N. 2009, I, 7. 1098 a 19 -20).
Isto significa que os que agem corretamente durante toda a vida serão
aqueles que alcançarão as coisas belas e boas.
29
Aristóteles parece ter afirmado que o fato de alcançarmos o que
aspiramos em última instância, a eudaimonia, coincide com o fato de agirmos
de acordo com a função do ser humano: ser bom. Então, ser feliz é exercitar
plenamente as virtudes.
O sentido estabelecido para eudaimonia por Aristóteles é certa atividade
em exercício de acordo com a virtude. Por exemplo: o médico pode gerar a
saúde, mas com o mesmo saber poderia provocar a doença.
Há uma dificuldade levantada por Aristóteles, a saber: se a eudaimonia é
objeto de aprendizagem ou habituação, obtida por disciplina, se chega até nós
por um destino divino ou por acaso. Mas ele próprio considera esta dificuldade
própria para outro tipo de investigação e assevera que:
Mesmo que não seja enviada por um deus, mas surja através da excelência e de certa aprendizagem ou disciplina,é das posses humanas mais divinas que há. De fato, o prêmio e o fim da excelência parecem ser o supremo bem – ser qualquer coisa de divino e de bem aventurado (E.N. 2009, I, 9.1099 b 15 - 20).
Salienta estar ao alcance de todos que não estejam incapacitados para
a excelência através de aprendizagem e preocupação. Para ser feliz, como já
foi dito, é necessário excelência completa e existência completa. Aprendemos
fazendo. Faz parte da natureza humana aprender e aperfeiçoar-se.
Portanto, o autêntico sentido do sumo bem não está no acúmulo de bens
exteriores, não está nos prazeres corporais, nem mesmo nos que se referem à
honra, mas só nos prazeres da alma, já que é nela que consiste o verdadeiro
homem. Assim afirma Aristóteles:
Os bens têm sido distribuídos por três classes, por um lado, os chamados bens exteriores, por outro, os que concernem à alma humana e, por último, os do corpo próprio. Nós dizemos que os bens que respeitam a alma humana são bens de um modo mais autêntico e de uma forma mais extrema. Mas são as ações e o exercício das atividades que dizem respeito à alma humana que dizemos ser a felicidade (E.N. 2009, I, 7. 1098 b 14 - 17)
É evidente a intenção de Aristóteles ao determinar a felicidade como
bem do homem, o fim da ação do homem conforme a razão e demonstrada
através de sua vida virtuosa, um cidadão que realiza ações nobres. Podemos
ver que Aristóteles terá afirmado: “o fato de alcançarmos o que queremos e
30
aspirarmos, em última instância , o fim final ou o melhor dos bens, a
eudaimonia, é idêntico ao fato de sermos bons enquanto homens, ou de
agirmos de acordo com esse ser-bom” (Wolf, 2010, p.39).
Para finalizar, a compreensão da ética do pensamento de Aristóteles
depende de compreendermos a sua teoria da composição psicológica do
homem, a sua Teoria da alma.
Passemos a compreender a virtude humana, não a do corpo, mas a da
alma.5 Mas, que é a alma, para Aristóteles?
Reale comenta:
Para responder a esta pergunta, Aristóteles remete-se à sua concepção metafísica hilemórfica da realidade. Todas as coisas em geral são compostos de matéria e forma, sendo a matéria, potência e a forma, enteléquia ou ato. Isso vale, naturalmente, também para os seres vivos. Ora, observa o Estagirita, os corpos vivos têm vida, não são vida e, portanto, são como o substrato material e potencial do qual a alma é forma e ato (REALE, 2007, p. 78).
Para definir alma, Aristóteles nos remete para os chamados escritos
exotéricos (diálogos e introduções) cujos enunciados sobre o tema podem ser
aplicados agora para melhor compreensão. A alma, para os gregos, não é algo
composto de partes, mas a totalidade, o princípio vital do corpo. Apenas no
conceito é que a alma pode ser dividida em partes.
Uma das partes da alma é incapacitante de razão, enquanto que a outra
é capacitante de razão.
A parte da alma que é incapaz de razão, Aristóteles explica que é aquela
parte que o homem tem em comum com as plantas, os animais, responsável
pelo crescimento e desenvolvimento nutricional destes seres.
Há outra natureza da alma que se mostra ser não racional, mas que
participa de certa forma da razão. Essa parte contém os apetites, desejos
sensações que funcionam como certa resistência à racionalidade. Mas que por
participarem de certa forma da razão possibilitam obediência a ela. É chamada
pelo filósofo de faculdade desiderativa e está bem constituída quando obedece
a razão. A parte da alma incapaz de razão é, então, dupla e uma dessas partes
5 No contexto da ética nicomaquéia e não no De Anima.
31
domina, por assim dizer os impulsos, desejos, sensações. A esta, Aristóteles
chama de “virtude ética”.
E a parte da alma capacitante de razão Aristóteles chama de “virtude
dianoética ou racional”:
A possibilidade de excelência será também dividida em conformidade com esta diferença. Dizemos que umas excelências são teóricas e outras éticas. A sabedoria, o entendimento e a sensatez são disposições teóricas; a generosidade e a temperança são disposições éticas (E.N. 2009, I, 12. 1103 a 3 - 7).
Aquela que o filósofo chama de “virtude ética” é a que justifica as
inúmeras razões de nossa motivação para o desenvolvimento desta pesquisa
em busca de respostas para uma educação ética de base no meio educacional
e que se constitua num exercício das virtudes para a construção da excelência
moral do homem.
Hoje, cada um de nós tem o desejo de se sair bem em todas as ações,
de se realizar, ser bem sucedido tanto pessoalmente quanto profissionalmente.
Mas, como atingir essa realização? O que é essa realização? E em que
consiste esse se realizar, ser bem sucedido?
As respostas parecem não se distanciar tanto do que Aristóteles propõe
na sua ética: a melhor coisa é alcançar a eudaimonia.
Não encontraremos essas respostas em Aristóteles porque ele não se
preocupa em como conduzimos a nossa vida, mas orienta-nos em como atingir
a felicidade. E isso inclui disposição e virtudes. Assim sendo, o presente estudo
abordará agora o que o próprio Aristóteles ordena como prioridades na
educação: a formação do jovem baseada no hábito, ou seja, acostumar-se a
isto ou aquilo desde muito cedo pode fazer toda a diferença. Aristóteles deixa
claro que os jovens precisam de algo que norteie as suas ações.
Com efeito, não é uma diferença de somenos o habituarmo-nos logo desde novos a praticar ações deste ou daquele modo. Isso faz uma grande diferença. Melhor, faz toda a diferença (E.N. 2009, II, 1. 1103 b 20).
Vimos, no capítulo I, um conjunto ético sobre o agir virtuoso fonte da
eudaimonia, própria da excelência humana e que não é fruto de sorte, mas de
esforços humanos. Agora, passemos a apresentação do Capítulo II.
32
CAPÍTULO 2
RESPONSABILIDADE MORAL, LIBERDADE DA AÇÃO.
Aristóteles afirma que: “as atividades a que nos dedicamos fazem de nós
o que somos”. E acrescenta que “o ignorar que as disposições do caráter
nascem do exercício de uma atividade é próprio de alguém completamente
estúpido” (E.N. 2009, III, 5. 1114 a 10).
O que significa que o homem tem plena liberdade de ação, pois está em
seu poder o agir bem como também está em seu poder o agir
vergonhosamente. E, portanto, é responsabilidade do homem a escolha que
faz, a ação final.
Aristóteles sustenta que todas as ações resultantes da escolha do
homem são voluntárias.
Segundo Aristóteles, uma ação voluntária é muito mais do que um ato
voluntário porque o tipo de ações que o homem escolhe praticar é o que
denota o seu caráter.
Sendo assim, o homem é responsável pela virtude e pelo vício porque
pode decidir.
A ação que resulta de uma escolha pressupõe cuidado, cálculo, reflexão
por parte do homem o que exige tempo e experiência. Desse modo é
necessário investigar o que são ações voluntárias, em que consiste a escolha e
outros conceitos desenvolvidos por Aristóteles na formação do caráter do
homem.
A afirmação sobre a liberdade de ação e a responsabilidade de nosso
caráter, Aristóteles deixou muito claro em E.N. 2009, III, 5. 1114 a 9 quando
diz: “As atividades a que nos dedicamos fazem de nós o que somos”.
Somos responsáveis pelo nosso caráter.
33
2.1 As virtudes éticas e as virtudes dianoéticas
Aristóteles inicia sua exposição afirmando que nenhuma das virtudes
éticas, dado que são numerosas, nasce conosco por natureza, mas através de
um processo que requer experiência e tempo. Resultam da habituação que
pode ser aperfeiçoada:
Sendo a excelência dupla, como disposição teórica [do pensamento compreensivo] e como disposição ética, a primeira encontra no ensino a maior parte da sua formação e desenvolvimento, por isso que requer experiência e tempo; a disposição permanente do caráter resulta, antes, de um processo de habituação, de onde até terá recebido o seu nome, <<hábito>>, embora se tenha desviado um pouco da sua forma original (E.N.2009, II, 1. 1103 a 14).
Ele tem uma posição muito clara sobre o problema de se as virtudes
podem ou não ser ensinadas; como afirma categoricamente: virtude é objeto da
prática, do exercício, e surge ou provém do hábito:
As excelências, então, não se geram em nós nem por natureza, nem contra a natureza, mas por sermos constituídos de tal modo que podemos, através de um processo de habituação, acolhê-las e aperfeiçoá-las (E.N. 2009, II, 1. 1103 a 25).
As excelências são adquiridas por nós porque temos a condição de
possibilidade, ou seja, as colocamos em prática porque ao praticar as ativamos
o que significa que mesmo que não as tivéssemos ativado estariam à nossa
disposição. O homem possui a capacidade de receber as virtudes. Recebe-as
como potência e as desenvolve como atividade, no agir. Como diz Aristóteles:
“Fazer é aprender” (E.N. 2009, II, 1. 1134 a 30). A disposição é dependente
das ações. E é importante destacar que, segundo o filósofo, é a partir do
exercício das mesmas atividades que a excelência é gerada ou destruída. Ou
seja, é a respeito das mesmas situações que se definem comportamentos
contrários.
Ele distingue as virtudes éticas das virtudes dianoéticas ou intelectuais.
Com isso, enquanto que as virtudes éticas resultam de um processo de
habituação, as virtudes intelectuais encontram no ensino a maior parte da sua
formação e desenvolvimento.
34
A virtude moral se desenvolve em nós em função da qualidade de
nossas ações. Portamo-nos de modos diferentes, mas o decisivo é que o
caráter provém das ações que, por hábito, são repetidas. As disposições
virtuosas originam-se das atividades similares às virtuosas. Ora, se as ações
forem sempre boas geram bons comportamentos. Temos aqui, como sustenta
Zingano (2008, p. 96), claramente, a tese da precedência do ato com relação
às disposições. É muito importante atentar ao que concerne às ações, o como
devemos praticá-las. As ações são decisivas para a qualidade das disposições
permanentes do caráter. Ter qualidade na prática faz muita diferença no agir
segundo a reta razão, pois o agente “têm de olhar para as circunstâncias em
vista da ocasião e da oportunidade do momento” (E.N. 2009, II, 2. 1104 a 10).
É necessário considerar que as disposições do caráter são de tal
natureza que podem ser destruídas por defeito (escassez ou falta) ou por
excesso. Mas são conservadas pelo meio entre esses dois extremos. Para
melhor compreensão Aristóteles exemplifica:
O excesso de exercícios físicos, por exemplo, e a falta deles destroem o vigor físico. De modo idêntico a ingestão em demasia ou insuficiente de líquidos e de alimentos sólidos destrói a saúde. Contudo, a medida proporcional produ-la, aumenta-a e conserva-a (E.N. 2009, II, 2. 1104 a 15).
É, portanto, no exercício ativo, na prática que a excelência vai se
constituindo. Para ser corajoso não se pode fugir e ter medo de tudo o tempo
todo. De acordo com a ocasião e as circunstâncias é importante persistir, ser
firme, constante para ter coragem. O que nos faz virtuosos é habituar-mo-nos a
desprezar situações terríveis e ao resistir-lhes.
Aristóteles afirma que a virtude está em nosso poder. O que significa
dizer que o agir bem, o caráter, é nossa responsabilidade. É nossa
responsabilidade porque temos liberdade de ação para fazer as melhores ou as
piores escolhas. A afirmação sobre a liberdade de ação e a responsabilidade
de nosso caráter, Aristóteles deixou muito claro em E.N. 2009, III, 5. 1114 a 9
quando diz: “As atividades a que nos dedicamos fazem de nós o que somos”.
35
2.1.1 Hexis: disposição
“A palavra hexis designa mais ou menos aquilo que chamamos hoje de
disposição de caráter, uma postura duradoura, que determina tanto a reação
afetiva como a ativa diante das situações” (WOLF, 2010. p. 70). O ser humano
possui, naturalmente, condições, possibilidades que o tornam apto a receber as
virtudes e aperfeiçoá-las pela habituação. Segundo Aristóteles isto também é
assim no que se refere às habilidades técnicas. Fazer, diz ele, é aprender.
Assim, adquirimos as virtudes exercitando-as primeiramente:
Por exemplo, os construtores de casas fazem-se construtores de casa construindo-as e os tocadores de cítara tornam-se tocadores de cítara, tocando-a. Do mesmo modo também nos tornamos justos praticando ações justas, temperados, agindo com temperança, e, finalmente, tornamo-nos corajosos realizando atos de coragem (E.N. 2009, II, 1. 1103b 1 - 3).
Aristóteles salienta a importância da formação do hábito correto desde a
infância e a necessidade de um modelo vivo na condução de situações que
resultem no hábito correto:
Se assim não fosse, não precisávamos para nada de um instrutor e todos se tornavam a partir de si próprios bons ou maus a respeito de qualquer atividade. O mesmo acontece com as excelências. Ao agir-se em transação com outrem, tornamo-nos justos ou injustos (E.N. 2009, II, 1. 1103 b 11 – 15).
É importante alertar para o exercício das atividades nas situações de
vida que pelo hábito tanto pode gerar virtudes dignas de honra como pode
destruí-las. É pelas mesmas situações de vida que nos portamos de modos
diferentes e que o nosso comportamento é definido de uma ou de outra
maneira. Por exemplo: agindo em situações de perigo e habituando-nos a
temer ou a ter confiança tornamo-nos corajosos ou covardes. O hábito,
segundo Aristóteles, como já foi dito, requer tempo e experiência, é objeto de
uma prática, de exercício e correção. É necessário que as situações de vida
proporcionadas ao exercício do hábito possuam certa qualidade. Se quisermos
homens justos teremos que agir com atos justos e o mesmo para a temperança
e bravura. Isso nos desperta para uma reflexão sobre “como” as ações devem
ser praticadas pelo homem desde tenra idade. A qualidade no agir fará toda a
36
diferença. Pelos atos que praticamos em nossas relações com as pessoas nos
tornamos justos ou injustos, valentes ou covardes, temperantes ou calmos,
afinal são as ações decisivas para as disposições qualitativas do caráter no
homem.
Segundo Aristóteles, o homem se forma em vista de suas disposições
construídas pelo hábito. A educação é apontada pelo filósofo como
imprescindível para a criação de bons hábitos. Assim como o exercício e o
tempo. Afinal, “Aparentemente, ninguém se torna médico apenas pela leitura
de compêndios de medicina” (E.N. 2009, X, 9. 1181.b - 1).
E como a disposição é constituída?
O que dá início às disposições éticas e que acompanha todas as ações
dos seres humanos são o prazer e o sofrimento. O prazer e a dor são a medida
para as escolhas de nossas ações e a virtude se constitui pela melhor relação
com esses prazeres e sofrimentos. A excelência ética constitui-se em vista de
fenômenos de prazer e sofrimento. Segundo Aristóteles:
Fique, então, assim estabelecido que a excelência prática é tal que se constitui através da melhor relação possível que se pode ter com prazeres e sofrimentos (E.N. 2009, II, 3. 1104 b 25 – 30).
O prazer está conosco desde a infância como bem sugere o filósofo:
“Por isso que é difícil vermo-nos livres dessa afecção incrustada como uma cor
na pele da nossa vida” (E.N. 2009, II, 3. 1105 a 1).
Ora, se o prazer e a dor são a medida para as escolhas de nossas
ações e a excelência ética está em fazer as melhores escolhas resta saber em
que consistem as virtudes. O que é comum a todas as virtudes, a natureza à
qual pertencem. Aristóteles afirma:
Primeiro tem de se considerar que as disposições do caráter são de uma natureza tal que podem ser destruídas por defeito e por excesso tal como vemos acontecer com o vigor físico e com a saúde (é que temos que fazer uso primeiro do testemunho de coisas visíveis antes de chegar às invisíveis) (E.N. 2009, II, 2. 1104 a 13 - 17).
O que diz o filósofo é nunca haver virtude quando há excesso ou falta.
Como se observa, por exemplo, no referente à força e a saúde. Tanto o
37
excesso quanto a deficiência destroem a força. E da mesma forma os
alimentos ou bebidas que ultrapassem os limites destroem a saúde. Tudo
sendo realizado nas devidas proporções produzem e preservam a força ou a
saúde. O mesmo acontece com as virtudes. O homem que foge de tudo tornar-
se-á um covarde; em contrapartida o que não teme absolutamente nada se
tornará temerário. Aquele que se entrega a todos os prazeres torna-se
intemperante, o que evita todos os prazeres se torna insensível. A virtude é,
antes, a justa medida. E é o hábito que leva à constituição da virtude.
Aristóteles afirma ser necessário tempo e exercício. A falta e o excesso
referem-se a emoções (sentimentos, paixões) e ações.
E, portanto, será um homem de bem, virtuoso quem fizer bom uso deles. Quem
estabelecer a melhor relação entre prazeres e dores. Aristóteles indica, assim,
uma condição necessária de controle das emoções para adequação frente às
deliberações da razão. Aristóteles expõe:
Seja, então, dito: 1º que a excelência ética se constitui relativamente aos sofrimentos e aos prazeres; 2º que a excelência ética é incrementada e destruída pelas mesmas ações que a originaram, caso sejam levadas a cabo de um modo contrário ao excelente; 3º que o horizonte em que a excelência ética atua é o mesmo sobre o qual atuam as afecções (E.N. 2009, II, 4. 1105 a 15).
Aristóteles cita como podem ser as nossas escolhas, ou seja, o que
escolher e o que evitar. As escolhas: o belo, o vantajoso e o agradável. A
evitar: o feio, o nocivo e o desagradável. O homem é capaz de escolhê-las. No
homem encontra-se sob o seu poder tanto a excelência como a perversão, ou
seja, o que evitar. As situações nas quais está a nossa liberdade em agir são
as mesmas para as quais podemos não agir. Temos a liberdade para escolher
e é toda nossa a responsabilidade de poder dizer sim ou não.
O homem acrático (perverso) não é capaz de fazer escolhas corretas; ao
contrário escolhe-as erradamente. Será um homem de bem e correto quem
fizer o melhor uso dos prazeres e dos sofrimentos, ou seja, aquele que
desempenhar bem sua função (ergon) de humano. E a virtude será adquirida
pelo homem que agir repetidamente em conformidade com as excelências,
como afirma o filósofo em:
38
Essa qualidade de excelência apenas é adquirida se quem agir nessa conformidade existir de acordo com essa disposição do caráter constituída em si permanentemente. E isso é assim se: 1º souber agir; 2º tiver decidido de antemão agir, e na verdade decidido agir tendo as excelências como fundamento (E.N. 2009, II, 4, 1105 a 30).
É necessário, pois, controlar as emoções. E é mais difícil combater o
prazer do que o impulso, a ira. É por causa do prazer que praticamos más
ações e por causa da dor nos abstemos de ações nobres. A virtude diz respeito
a prazeres e dores e, portanto para Aristóteles é homem de bem o que faz bom
uso deles: primeiramente quando sabe agir, depois quando escolhe por
deliberação, ou seja, fazendo exame minucioso e refletindo antes da decisão,
tendo as excelências como fundamento; por último quando age de modo firme
e inalterável. “A excelência ética constitui-se, portanto, em vista de fenômenos
de prazer e sofrimento” (E.N. 2009, II, 3, 1105 a 1-15).
Aristóteles nos alerta para o fato de que a maioria não age desta forma
e, por conseguinte não compreende a essência do agir da alma de modo
conveniente.
É importante conhecer a concepção de Aristóteles sobre a alma6 para
compreendermos o que o filósofo quer dizer quando se refere a que a maioria
não compreende a essência da alma de modo conveniente. Segundo Reale:
Mas que é a alma? Para responder a esta pergunta, Aristóteles remete-se à sua concepção metafísica hilemórfica da realidade. Todas as coisas em geral são compostos de matéria e forma, sendo a matéria, potência, e a forma, enteléquia ou ato. Isso vale, naturalmente, também para os seres vivos. Ora, observa o Estagirita, os corpos vivos têm vida, mas não são vida e, portanto, são como o substrato material e potencial do qual a alma é forma e ato (REALE, 1974. p. 78).
O homem é um ser vivo dotado de uma alma que lhe dá a vida e que lhe
dá algo mais do que apenas a vida: a razão, faculdade só destinada a ele. Para
Aristóteles, o homem é um ser completo. A alma o capacita ao exercício no agir
ético e em outras atividades humanas. Na E.N. Aristóteles apresenta a parte
irracional da alma que é compartilhada por todos os seres vivos. “Mas há uma
dimensão da alma que é simplesmente incapaz de uma relação com a razão e
6 Como ele a define na ética nicomaquéia e não no De Anima.
39
é comum ao ser vegetal, isto é, trata-se do fundamento responsável pela
função vital nutritiva e pelo crescimento” (E.N. 2009, I, 12, 1102 a 25 - 30).
Esse elemento da parte irracional é voltado apenas para a manutenção física
da vida, e o filósofo a nomeia parte irracional do homem e não há nenhuma
relação com o agir virtuoso.
Há outra parte, a sensitiva ou apetitiva que deve ser considerada, pois
sua função é ser a sede dos apetites e desejos e pode ser subjulgada à parte
racional da alma. Aristóteles a descreve desta forma:
Por outro lado, a dimensão incapaz de razão é também dupla. Em primeiro lugar, incapaz de razão é a função vital meramente vegetativa, que existe sem qualquer capacidade de relação com o elemento racional. Em segundo lugar, a faculdade de desejar e em geral o elemento intencional que são, de algum modo, capazes de razão, mas também podem incapacitá-la (E.N. 2009, I,12. 1102 b 1 28-30).
Para Aristóteles, a alma irracional composta de duas partes, a vegetativa
e a sensitiva, tem uma participação no agir virtuoso. Ele define a duplicidade da
parte racional da alma:
Se o modo específico do acesso dessas dimensões da alma tem uma certa semelhança e uma determinada afinidade com os entes com os quais se relacionam, então as formas de acesso de cada uma destas partes serão diferentes, porquanto a formas diferentes de acesso correspondem diferentes gêneros de ser. Enunciemos cada um destes gêneros: um corresponde à possibilidade de cálculo, ou seja, mais propriamente à possibilidade de deliberar e de calcular. Na verdade, ninguém delibera acerca daquilo que não pode ser de outra maneira. Assim, a possibilidade de cálculo inere numa parte da dimensão da alma que é capaz de razão (E.N. 2009, VI, 1. 1139 a 10-15).
A faculdade calculadora está ligada à execução do agir virtuoso
resultante de uma escolha voluntária, ou seja, uma escolha derivada da
vontade própria. O que distingue as virtudes éticas das virtudes intelectuais
será, então, a relação entre a alma irracional e a alma racional que é capaz de
deliberar.
Por isso, Aristóteles sugere que examinemos o que é a virtude segundo
o gênero uma vez que os fenômenos se geram na alma. E são três gêneros de
fenômenos: as emoções, as capacidades e as disposições (E.N. 2009, II, V.
40
1105 b 19 – 20). Ao falar de emoções Aristóteles se refere ao desejo, ira,
medo, audácia, inveja, alegria, amizade, ódio, saudade, ciúme, compaixão,
tudo que é acompanhado de prazer ou sofrimento. Ao falar de capacidades, ele
se refere às condições de possibilidades para sermos afetados pelas afecções.
E finalmente as disposições de acordo com as quais nos comportamos bem ou
mal. É preciso saber a qual destes gêneros de fenômenos pertence a virtude.
As afecções são uma inclinação natural do nosso ser e por elas é que
buscamos o prazer e fugimos da dor. Aristóteles alerta para o fato de que essa
inclinação natural é diferente entre os homens. Cada um tem apetites ou
desejos diferentes, pois os objetos de prazer e sofrimento são também
diferentes. A vida ética tem como tarefa educar nossas emoções para que
evitemos o vício e busquemos a virtude. A virtude não se refere nem às
emoções e nem às capacidades, então o gênero das virtudes só pode ser uma
disposição do caráter:
Se, então, as excelências não são nem afecções nem capacidades, só resta que sejam disposições do caráter. Fique assim dito o que é a excelência quanto ao seu gênero (E.N. 2009, II, 5. 1106 a 10).
Esse entendimento nos encaminha para a compreensão e a busca da
definição das virtudes, uma vez que nos interessa compreender como,
segundo Aristóteles, as virtudes morais e intelectuais estão relacionadas à
busca da felicidade como o fim último do agir humano e como o sumo bem
buscado segundo a virtude das faculdades racionais do ser humano.
Passemos, então para a definição da doutrina do meio, pois, a virtude é
o justo meio, nem o excesso, nem a falta. É o equilíbrio, a moderação, a
prudência:
A excelência é, portanto, uma disposição do caráter escolhida antecipadamente. Ela está situada no meio e é definida relativamente a nós pelo sentido orientador, princípio segundo o qual também o sensato a definirá para si próprio. A situação do meio existe entre duas perversões: a do excesso e a do defeito (E.N. 2009, II, 6.1107 a
1).
41
Para Aristóteles, a virtude é uma disposição permanente da alma
adquirida pelo exercício constante, pelo hábito; exercício esse sob a orientação
da razão que restitui ao homem a sua função (ergon) específica de modo
correto. Resta-nos então saber que tipo de disposição é a virtude.
2.1.2. Mesotes: a doutrina do meio
Aristóteles, além de dizer o que é a virtude quanto ao gênero, discorre
também sobre que tipo de disposição é a virtude enquanto espécie e, para
isso, ele desenvolve a doutrina do meio. Wolf comenta que a doutrina do meio
é tão conhecida como mal compreendida: “O primeiro passo é geral e apoia-se
na teoria do continuum apresentada por Aristóteles em seus escritos teóricos
(1106a 26-b 16); o segundo passo transfere essa reflexão para a arete ética”
(1106b 16 ss.) (WOLF, 2010, p.72).
Um continnum, segundo o filósofo é um todo divisível do qual se pode
utilizar uma parte maior, uma menor e uma parte igual. “A parte igual é
qualquer coisa como o meio entre o excesso e o defeito” (E.N. 2009, II, 6. 1106
a 29 - 30).
Considerando a natureza das coisas, como o homem poderá ser
virtuoso, segundo o filósofo:
Eu entendo pelo meio de uma coisa o ponto que se mantém a uma distância igual de cada um dos extremos, o qual é um e o mesmo para todas as coisas. O meio relativamente a nós, contudo, é a medida que não tem a mais nem tem a menos. Uma tal medida não é uma nem a mesma para todos (E.N. 2009, II, 6. 1106a 30 - 34).
Assim, quanto à espécie, a virtude é definida pelo filósofo como uma
disposição mediana. Todo homem que compreende algo o faz por meio da
razão. Segundo Aristóteles, para uma escolha virtuosa o homem evita tanto o
excesso quanto o defeito, procurando o meio; não o meio absoluto e sim o
meio relativo a cada um. Para compreendermos o significado do saber moral é
necessário que levemos em conta que a virtude se constitui pelas emoções e
ações. A deliberação, a escolha do justo meio, consequentemente se dará em
vista do justo desejo em harmonia com a justa razão.
É, então, marca da virtude, a mediedade:
42
A excelência é, portanto, uma disposição do caráter escolhida antecipadamente. Ela está situada no meio e é definida relativamente a nós pelo sentido orientador, princípio segundo o qual também o sensato a definirá para si próprio. A situação do meio existe entre duas perversões: a do excesso e a do defeito (E.N. 2009, II, 6. 1107 a 1).
Assim, o erro moral consiste no excesso. Agir em excesso é agir
contrariamente à razão. Zingano sustenta “a tese nuclear da ética aristotélica,
segundo a qual a virtude moral, embora não seja definida pelo prazer ou dor,
está direta e umbilicalmente vinculada a ambos, não sendo possível, assim,
pensar a virtude como supressão de prazer ou de dor, mas como a busca de
sua justa medida” (ZINGANO, 2008, p.107).
As virtudes não podem ter em mira nem aquilo que é muito nem muito
pouco. “Portanto, o meio termo representa o aspecto de retidão, exatidão ou
bondade na definição das virtudes éticas” (RAPP, 2010, p. 413).
Cabe lembrar que essa posição intermediária deve estar de acordo com
o que é o Bem para que seja excelência.
O filósofo alerta, contudo: “nem toda a ação, nem toda a afecção,
admitem uma posição intermediária” (E.N. 2009, II, 6. 1107 a 10), há algumas
ações e afecções que são perversas de forma absoluta e não porque se
aproximam da extremidade dos excessos ou defeitos. Algumas dessas
afecções são citadas por Aristóteles: a falta de vergonha, a maldade, a inveja,
o adultério, o roubo, e o homicídio. O que significa que a respeito destas nunca
há possibilidade de se acertar, pois elas estão sempre erradas. O mesmo
ocorre, segundo Aristóteles, a respeito da injustiça. Praticá-la já é um erro
absoluto. Donde se conclui, para usar as palavras do filósofo:
Não há, portanto, em geral posição intermediária nem no excesso nem no defeito, quando considerados absolutamente, nem em geral há excesso ou defeito na posição absolutamente intermediária (E.N. 2009, II, 6. 1107 a 25).
Esta declaração não se refere apenas às generalidades, mas também às
circunstâncias particulares, segundo Aristóteles.
O filósofo enumera limites singulares das afecções e das ações e cita os
meios-termos. Vejamos alguns: sobre o medo e a audácia o que se coloca na
43
posição intermediária é a coragem; para os que têm excesso de confiança se
diz audaz, mas não há nome para os que têm falta de medo. Enquanto que
demasiado medo e falta de confiança é covardia. O meio termo dos prazeres e
sofrimentos é a temperança, mas o excesso é a devassidão. A deficiência em
relação ao prazer é insensibilidade. O meio termo em relação a dar e receber
dinheiro, é a generosidade; o excesso esbanjamento e o defeito a avareza.
Sobre honra e desonra o meio termo é a magnanimidade; o excesso uma
forma vã de orgulho e o defeito, mesquinhez. Aristóteles ressalta também a
atitude em ansiar pela honra: em excesso o ganancioso, o ambicioso; os que
anseiam menos tem falta de ambição. Não há nome para o que está no meio,
neste caso.
Não é nosso objetivo discorrer sobre a extensa lista exposta por
Aristóteles. Ele fornece exemplos da saúde, do esporte, da alimentação. O
importante para nós é entender como a virtude é compreendida como
disposição para boas ações. Agora, havendo três disposições de caráter duas
são perversas e apenas uma é a virtude. Esta, segundo Aristóteles, é a posição
do meio. As posições extremas são contrárias à posição do meio e contrária
uma da outra. O mesmo ocorre com a posição do meio que é contrária a dos
extremos. Afirma Aristóteles:
O corajoso parece ser audaz relativamente ao cobarde, mas parece ser cobarde relativamente ao audaz; de modo semelhante, também o temperado parece ser devasso relativamente ao insensível, mas insensível relativamente ao devasso; o generoso parece ser esbanjador relativamente ao avaro, e avaro relativamente ao esbanjador (E.N.2009, II, 7. 1108 b 19 - 24).
Os extremos se repelem um ao outro e repelem também o meio. Tentar
encontrar o meio não é tarefa fácil e indica que quem visa atingir o meio deve
afastar-se mais do seu contrário. Mas como isso pode ser alcançado?
Sabemos que constantemente tendemos ao sabor das emoções, do prazer e
do sofrimento, e temos que nos afastar do sofrimento e nos aproximar do que é
agradável. Isto nos fará chegar ao meio, ao modo correto de agir.
Como vimos, a virtude moral é uma disposição do caráter que se pauta
no uso da razão para determinar as escolhas, é próprio do homem de
44
sabedoria prática tornando-o um humano excelente. A virtude encontra e
escolhe o meio termo, ela é uma mediania. Como afirma o próprio Aristóteles:
Tal será a disposição do caráter a partir da qual o Humano se tornará excelente. Isto é, presença da excelência no Humano permitirá restituir-lhe a sua função específica, a de se tornar em si próprio excelente (E.N. 2009, II, 6. 1106 a 23 - 25).
Bem sabemos que nem sempre é fácil fazer a escolha acertada.
Encontrar o meio é uma tarefa difícil. Por isso, Aristóteles nos alerta: “quem
visa atingir o meio deve primeiro afastar-se mais do contrário, como Calipso
recomenda: conduz o navio para fora da bruma e da espuma” (E.N. 2009, II, 9.
1109 a 30 – 33). É importante conhecer a si mesmo para saber a que erros
tendemos mais facilmente a ser levados, pois a escolha é feita pelo
reconhecimento que o prazer e a dor nos atinge de acordo com a situação e
circunstâncias vividas. O virtuoso faz escolhas a partir do prazer, afastando-se
do excesso e da falta e aproximando-se da mediania, fazendo uso da razão,
determinando a escolha, a decisão.
A decisão está na percepção que fazemos diante de circunstâncias
particulares. Segundo Aristóteles:
Isto é suficiente para poder mostrar que a disposição do meio é louvável em todas as situações que se podem constituir e que umas vezes se deve declinar o excesso, outras vezes, o defeito: assim é a maneira mais fácil de conseguirmos atingir o meio e o modo correto de agir (E.N. 2009, II, 9. 1109 b 25).
Para concluir, a virtude moral é um meio termo entre dois males; um
pelo excesso e o outro pela falta. Por esta razão, o bem agir é louvável e belo.
Aquele que tem por objetivo o meio termo deve afastar-se do que é mais
contrário fugindo assim do erro moral o qual se conhece pelo prazer e pela dor
por que passamos. A disposição mediana é em todas as situações louvável e
nos encaminha para o bem.
A ligação entre as virtudes morais e as virtudes intelectuais se dá
exatamente no momento em que a escolha for o equilíbrio entre o desejo e a
razão. O critério para saber o que deve ou não ser desejado é estabelecido
pela reta razão. A mediania surge no movimento contínuo da emoção a partir
45
de um desejo. Esse dinamismo provoca o uso da parte calculativa da alma, a
razão, que numa escolha certa provoca ação correta. Aristóteles concebe a
formação das virtudes morais e a necessidade da mediedade a partir do
desenvolvimento de uma disposição permanente, uma vez que no homem as
virtudes morais são adquiridas pelo hábito. “As excelências, então, não se
geram em nós nem por natureza, nem contra a natureza, mas por sermos
constituídos de tal modo que podemos, através de um processo de habituação,
acolhê-las e aperfeiçoá-las” (E.N. 2009, II, 1. 1103 a 20 - 25).
Segundo Aristóteles:
A excelência é, portanto, uma disposição do caráter escolhida antecipadamente. Ela está situada no meio e é definida relativamente a nós pelo sentido orientador, princípio segundo o qual também o sensato a definirá para si próprio. A situação do meio existe entre duas perversões: a do excesso e a do defeito (E.N. 2009, II, 6. 1107 a 1).
A excelência ética é então uma disposição que observa a mediania, não
em relação ao geral, mas em relação a nós como deliberação em vista da
ação.
A ética aristotélica tem como ponto principal a busca do uso da razão no
agir. O que indica uma ação virtuosa é estabelecer qualitativamente a mediania
pela deliberação presente na parte racional da alma. Excelência essa que
parece ser o objetivo de Aristóteles na busca de um ergon humano.
A racionalidade moralmente sadia é capaz de estabelecer o bom critério
na escolha do que é bom. A avaliação do que é bom ou ruim só pode ser feita
pela razão. A virtude moral é uma disposição que busca a qualidade na razão
considerando paixões e emoções e que se traduz em ação na mediania entre
os vícios contidos nessas emoções e paixões. Como diz Aristóteles:
(...) A disposição do meio é louvável em todas as situações que se podem constituir e que umas vezes se deve declinar o excesso, outras vezes, o defeito: assim é a maneira mais fácil de conseguirmos atingir o meio e o modo correto de agir (E.N. 2009, II, 9. 1109 b 25).
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A virtude moral é uma disposição fixa e sua marca é a mediedade. A
marca do vício, o excesso e a falta. “A nobreza é de uma única maneira; a
perversão de toda / a maneira e feitio” (E.N. 2009, II, 6.1106 b 35).
2.2. A ação voluntária, involuntária, não voluntária e ações mistas
O exame das noções de ação voluntária, ação involuntária, não
voluntária e mistas é tarefa essencial na compreensão da psicologia da ação
de Aristóteles. É importante diferenciar a ação voluntária da ação involuntária,
uma vez que há louvores e repreensões para as ações voluntárias e para as
involuntárias, às vezes, perdão ou compaixão. Sendo a escolha da vontade
responsável pela melhor ação é necessário compreender o que Aristóteles
define como ato voluntário, ato não voluntário, ato involuntário e as ações
mistas.
No Livro III, o ponto de partida de Aristóteles é o que significa a
excelência. Segundo ele, a excelência é uma disposição no homem que o guia
na escolha. A formação dessa disposição se dá em decorrência da aplicação
de recompensas e punições para as ações praticadas que, por fim, formam o
caráter do homem. Assim, afirma Aristóteles:
Sendo a excelência constituída a respeito das afecções e das ações, havendo louvores e repreensões apenas relativamente a ações voluntárias – porque relativamente a ações involuntárias, às vezes há perdão, outras vezes compaixão -, é necessário, talvez, para quem pretende examinar os fenômenos que concernem a excelência, definir-se a ação voluntária e a ação involuntária, definição de resto também útil aos legisladores não só para a atribuição de honras como também para a aplicação de castigos (E.N. 2009, III, 1. 1109 b 30 – 35).
A análise do conceito de voluntário é essencial para a análise do
conceito de excelência.
Aristóteles parte da definição das ações involuntárias para em seguida
definir ação voluntária:
Involuntárias são, assim, aquelas ações que se geram sob a coação ou por ignorância. Um ato perpetrado sob coação é aquele cujo princípio (motivador) lhe é extrínseco. Um princípio desta natureza é tal que o agente, na verdade, passivo, não contribui em nada para ele (E.N.2009, III, 1. 1110 a).
47
Para Aristóteles, as ações involuntárias são aquelas que se geram ou
por coação ou por ignorância. No primeiro capítulo do Livro III ele investiga o
ato involuntário, quando apresenta exemplos de casos em que se é forçado ou
compelido a agir de determinada maneira. Toda ação é acompanhada de um
princípio no agente. E por esta razão é que Aristóteles assevera que se o
princípio da ação está presente no agente está em poder do agente agir desta
ou de outra maneira. Ou seja, o agente é livre e responsável pelas suas ações.
O ato cujo princípio é exterior ao agente é, portanto, forçado e o agente em
nada contribui para a sua realização. Exemplo: “Como se ventos ou homens
poderosos o levassem para qualquer sítio” (E.N. 2009, III, 1. 1109 a).
Existem, ainda, algumas ações que são consideradas mistas: “Na
verdade são escolhidas no momento em que são praticadas e o fim da ação é
determinado de acordo com a ocasião e a oportunidade do momento” (E.N.
2009, III, 1. 1110 a 11). Aristóteles exemplifica:
(...) quando no meio de tempestades se tem de deitar a carga borda fora. Porque ninguém a deitaria ao mar assim sem mais, voluntariamente, mas apenas com o objetivo de se salvar a si e aos restantes (E.N. 2009, III, 1. 1110 a 9-11).
E para usar as palavras de Aristóteles:
Ações deste gênero são mistas, embora, de fato, pareçam mais ser voluntárias. Na verdade são escolhidas no momento em que são praticadas e o fim da ação é determinado de acordo com a ocasião e a oportunidade do momento. As características do ser <<voluntário>> e <<involuntário>> só podem ser determinadas em função do tempo em que a ação é executada (E.N. 2009, III, 1. 1110 a – 11).
Essas ações poderiam ser consideradas voluntárias por um lado, mas se
pudessem ser evitadas seria melhor, assim são também forçadas,
involuntárias. Por isso são mistas.
Aristóteles descarta a tese tradicional dos antigos de que os atos por
impulso ou por apetite seriam involuntários. Para o filósofo, as características
do ato voluntário e do ato involuntário só podem ser determinadas em função
do tempo em que a ação é executada. Ou melhor, voluntário e involuntário são
ditos com referência ao momento em que se pratica a ação. Age
48
voluntariamente se o poder está no agente de fazer ou não a ação; o princípio
reside nele próprio. Age involuntariamente se o princípio é externo ao agente.
Para ele um ato voluntário é aquele que satisfaz o encontro de duas
condições físicas: 1) o princípio da ação está no agente e 2) o agente conhece
as circunstâncias nas quais a ação se desenrola e as consequências da ação.
No ato voluntário: o poder está em quem age, o que faz sobre o que ou em que
age com o que (instrumento) age, com que finalidade e como age, de que
maneira. A definição de ato voluntário dada por Aristóteles:
Sendo a ação involuntária feita sob coação e por ignorância, a ação voluntária parece ser aquela cujo princípio reside no agente que sabe das circunstâncias concretas e particulares nas quais se processa a ação (E.N. 2009, III, 1. 1111 a 22 – 24).
Ele assevera:
Viso com o termo<<voluntário>>o mesmo sentido que foi primeiramente apurado, ou seja, aquele ato que depende de nós e que é praticado em plena consciência, não ignorando, portanto, nem sobre quem é praticado, nem com que instrumento é executado, nem o motivo pelo qual é feito (...) (E.N. 2009, V, 8. 1135 a 25).
Fica claríssimo ser uma ação cujo princípio está no agente, em seu
poder o agir ou não agir. Aristóteles assegura a liberdade na ação humana, ou
seja, a ética aristotélica firma a responsabilidade do agente na escolha dos
meios na realização dos fins. E ao determinar as ações pelos meios, o agente
determina as disposições que constituem sua natureza e dá preferência na
escolha de certos meios em prejuízo de outros. A base da responsabilidade
moral parece estar na liberdade de escolha.
Já, o ato involuntário, é o ato cujo princípio está fora do agente ou o
agente desconhece as circunstâncias nas quais se desenrola a ação. Tais atos
produzem dor e arrependimento. Na definição de Aristóteles:
Consideraremos involuntário todo aquele ato que for praticado na mais completa ignorância ou, caso não seja praticado por ignorância, não esteja no poder de quem o pratica não o praticar, ou então, seja até obrigado a praticá-lo sob coação (E.N. 2009, V, 8. 1135 a 30).
49
Aristóteles analisa as ações por coação e a ignorância que leva ao ato
involuntário. Por coação são todas aquelas ações cujo princípio é externo ao
agente e, portanto, ele não contribui em nada para a realização da ação. A
ignorância pertence às condições epistêmicas da ação voluntária. Tudo o que
se faz “por” ignorância é não voluntário. Mas, das pessoas que agem “por”
ignorância as que se arrependem são consideradas agentes involuntários e as
que não se arrependem não voluntários. Há também uma diferença entre o agir
“por” ignorância e o agir “na” ignorância. Cabe lembrar que Aristóteles refere-se
à ignorância do universal e a ignorância do particular:
A ação feita por ignorância é toda ela não voluntária, apenas é involuntária quando provoca sofrimento e arrependimento a quem a praticou. Na verdade quem age na ignorância e nem sequer fica vexado com o que fez, não poderá ter agido voluntariamente, uma vez que ficou sem saber o que fez. Mas também não pode dizer-se que terá agido involuntariamente, porquanto nem sequer se entristeceu. As ações feitas por ignorância são assim de dois modos. Por um lado, a ação é involuntária quando o agente se arrepende do que fez. Por outro lado, caso não se arrependa, a sua ação será designada não voluntária (E.N. 2009, III, 1. 1110 b, 19 a 25).
Então, as ações “por” ignorância são aquelas nas quais o resultado de
um ato decorre do desconhecimento de um elemento do contexto em que o
agente agiu, ou nas quais um elemento imprevisível interfere no resultado
previsto. Ou seja, decorrem do desconhecimento do particular. Aristóteles
estabelece assim as ações feitas por ignorância de dois modos:
Por um lado, a ação é involuntária quando o agente se arrepende do que fez. Por outro lado, caso não se arrependa, a sua ação será designada não voluntária (E.N. 2009, III, 1. 1110 b 23).
Há, portanto dois modos de agir por ignorância: quando tanto as
circunstâncias quanto as consequências diferem do previsto, mas não há
arrependimento; e quando tanto as circunstâncias quanto as consequências
diferem do previsto, mas há arrependimento. “É melhor, pois, haver
designações diferentes por parecer tratar-se de modos diferentes de agir” (E.N.
2009, III, 1. 1110 b 24 - 25).
Por outro lado, Aristóteles esclarece que o agir “por” ignorância é
diferente do agir “na” ignorância. A diferença diz respeito a se a falha de
50
conhecimento foi ela própria involuntária ou não. E cita como exemplo o
bêbado e o irado:
O bêbado e o irado não parecem agir por ignorância. Quer dizer, agem sem saber e na ignorância de fato, mas por estarem bêbados e irados (E.N. 2009, III, 1. 1110 b 26).
Uma ação “por” ignorância é, então, aquela em que o agente poderia
escolher agir de outro modo se fosse capaz de prever suas consequências e se
conhecesse todas as particularidades relevantes de sua ação, desde que tal
ignorância não seja ela própria resultado de uma ação voluntária dele.
Aristóteles passa então, a enumerar circunstâncias que têm de ocorrer
para a realização de uma ação e que não podem ser ignoradas:
Defina-se, então, qual a sua forma e o seu número. [Não pode assim ignorar-se:] 1) quem age, e 2) o que faz, 3) a respeito do quê ou de quem é a ação e qual a situação peculiar em que se encontra o agente; por vezes também 4) aquilo com o qual se age, por exemplo, o instrumento com que se executa a ação, e o 5) fim em vista do qual se age, por exemplo , calma ou veemente (E.N. 2009, III, 1. 1111 a 4-5).
A divisão em cinco elementos que Aristóteles faz parece apontar para
uma divisão do erro: àqueles referentes às circunstâncias e os erros referentes
às consequências.
Tendo definido os atos, o filósofo segue a discussão acerca da
proairesis (decisão). Segundo ele a decisão é “o que de mais próprio concerne
a excelência e é melhor do que as próprias ações no que respeita à avaliação
dos caracteres humanos” (E.N. 2009, III, 2. 1111 b 4).
Pois a decisão precede à ação e é mais própria à virtude e mais apta a
discriminar o caráter do que as ações o fazem. A decisão, a escolha relaciona-
se com os meios, com aquilo que está em nosso poder. Não decidimos ser
felizes, mas o modo de chegar à felicidade. E ela se caracteriza pela bondade
ou maldade. A definição do caráter de um homem se dá pelas escolhas que faz
dentre o que é bom e o que é mau. A escolha envolve um princípio racional e o
pensamento. Saber qual curso de ação deve ser preferido a outro qualquer não
é fácil, Aristóteles reconhece:
51
Em todo caso, é difícil em algumas circunstâncias decidir que opção se deve tomar e qual a que se deve preterir, tal como difícil é decidir o que tem de se suportar e em vista do quê. Mas mais difícil ainda é manter-mo-nos fiéis às decisões tomadas. Pois, na verdade, acontece o mais das vezes que o que se pode esperar é doloroso e o que se é obrigado a fazer é vergonhoso. É por isso que há repreensões e louvores para quem age, esteja esse alguém sob coação ou não (E.N. 2009, III, 1. 1110 a 20 - 1110 b 1).
Ele reconhece essa dificuldade, pois às vezes o que está em questão é
escolher entre uma ação enganosa ou o sofrimento.
Já dissemos que a ética aristotélica assegura a liberdade de escolha na
ação humana e firma a responsabilidade do agente na escolha dos meios para
a realização dos fins. O homem é causa para si mesmo da aquisição do seu
caráter moral. Ele é livre no sentido de poder fazer isto ou o seu contrário.
Aristóteles sustenta uma ética da liberdade e fundamenta na possibilidade da
escolha, fazer ou não fazer, dizer sim ou não. Estas afirmações nos permitem
concluir que a aquisição de virtudes tem um lugar relevante, segundo
Aristóteles e que o agente virtuoso se aproxima de sua função (ergon) humana
à medida que adquire a capacidade de deliberar, em situações e circunstâncias
determinadas, “o melhor” a ser feito.
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A. Escolha deliberada
Após a análise das condições dos atos Aristóteles examina a escolha e
a deliberação:
Definidas que estão às ações voluntárias e involuntárias segue-se agora a discussão acerca da decisão. A decisão é, na verdade, o que de mais próprio concerne a excelência e é melhor do que as próprias ações no que respeita à avaliação dos caracteres Humanos. A decisão parece, pois, ser voluntária. Decidir e agir voluntariamente não são, contudo, a mesma coisa, pois, a ação voluntária é um fenômeno mais abrangente. É por essa razão que ainda que tanto as crianças como os outros seres vivos possam participar na ação voluntária, não podem, contudo, participar na decisão. Também dizemos que as ações voluntárias dão-se subitamente, mas não assim de acordo com uma decisão (E.N. 2009, III, 2. 1114 b 4 – 10).
No Livro III o objetivo do filósofo é concluir que excelência e vício “estão
em poder do agente”, poder este livre, de decisão e de sua inteira
responsabilidade. O que significa dizer que o caráter do agente é de sua total
responsabilidade. A escolha das ações é consequência direta do caráter do
agente. Para Aristóteles a escolha é um estado de conhecimento (epistêmico)
associado a um estado volitivo (da vontade). E, portanto, é importante salientar
que para o filósofo não é a prática da ação reprovável e que determina que o
caráter do agente não seja bom. Ele analisa se há responsabilidade na ação,
que depende da escolha por parte do agente. É a escolha e não a ação que
expressa o tipo de desejo mais frequente no agente e seu caráter. Uma ação
isolada não é suficiente para determinar o caráter do agente e sim, a repetição
constante de um comportamento.
Sendo, então, que o anseio concerne o fim, sendo, por outro lado, os meios para o fim objetos de deliberação e de decisão, então, se as ações concernentes aos meios forem realizadas de acordo com a decisão, nessa altura serão, então, ações voluntárias (E.N. 2009, III, 5. 1113 b 3).
A escolha deliberada é o que tem mais relação com a excelência. Uma
ação resultante de uma escolha deliberada pressupõe cuidado e cálculo por
parte do agente. “A decisão parece, pois, ser voluntária” afirma Aristóteles.
(E.N. 2009, III, II, 1111 b 5). Ele já havia introduzido, quando definiu excelência,
o conceito de decisão ou escolha em II, 6, 1107 a 4:
53
A excelência é, portanto, uma disposição do caráter escolhida antecipadamente. Ela está situada no meio e é definida relativamente a nós pelo sentido orientador, princípio segundo o qual também o sensato a definirá para si próprio. A situação do meio existe entre duas perversões: a do excesso e a do defeito (E.N. 2009, II, 6. 1107 a 4).
A boa deliberação exige apreensão dos princípios adequados e cálculo
correto:
É preciso, por outro lado, também determinar-se o que é a boa deliberação. Ou seja, se se trata de uma espécie de conhecimento científico, se é alguma opinião ou uma boa conjectura ou, por outro lado, se é alguma outra operação. Não parece, contudo, à partida tratar-se de um conhecimento científico. Na verdade, quem está a passar por um processo de deliberação não procura saber nada acerca de coisas que já conhece. Por outro lado, a boa deliberação é uma certa forma de aconselhamento. Quem está em processo deliberativo está à procura e faz cálculos (E.N. 2009, VI, 13. 1142 b 1).
Deliberamos sobre as coisas que estão ao nosso alcance e podem ser
realizadas; não deliberamos sobre coisas que envolvem movimento e que
sempre podem ser da mesma maneira ou a respeito de coisas que ora
acontecem de uma maneira, ora de outra como as chuvas, por exemplo, ou
sobre acontecimentos imprevisíveis ou casuais. A deliberação gira em torno de
coisas a serem feitas pelo agente. O fim não é objeto de deliberação e sim os
meios através dos quais se chega ao fim. E é o homem o princípio das ações.
O objeto de deliberação são as coisas que conduzem aos fins. As coisas, por
sua vez, são aspirações, desejos no homem. São as situações externas que
despertam o desejo no homem. Mas, decidir e agir voluntariamente não são a
mesma coisa. A ação voluntária é mais abrangente. E Aristóteles distingue a
escolha deliberada dos três tipos de desejo: impulso, apetite e querer, bem
como da opinião e localiza a escolha deliberada na reflexão vinculada à ação.
Ela é acompanhada de pensamento e reflexão. O filósofo a define: “Nós
deliberamos sobre aquelas coisas que nos dizem respeito e que dependem de
nós, a saber, sobre as ações que podem ser praticadas por nós” (E.N. 2009, III,
3, 1112 a 30). Deliberamos sobre as coisas que conduzem aos fins. Visto que o
fim é, então, objeto do desejo os meios são objeto de escolha e escolha
deliberada. É, portanto, a partir do desejo de realizar algo que o processo de
deliberação sobre como obter ou realizar algo passa a ocorrer. Aristóteles não
54
deixa dúvidas a respeito disso em E.N. 2009, III, V. 1113 b 3, citado
anteriormente.
A boa decisão, o agir ético, é o resultado de uma disposição duradoura
de uma ação conjunta da aspiração e da deliberação. Por isso Aristóteles
assevera que a virtude está em nosso poder, bem como o vício. O que significa
que se está em nosso poder o agir bem também está o não agir bem. Aquelas
ações cujos princípios estão em nós estarão sob o nosso poder e serão ações
voluntárias. E é por isso que somos responsáveis pelo nosso caráter. “As
atividades a que nos dedicamos fazem de nós o que somos” (E.N. 2009, III, 5.
1114 a 9).
Além disso, a escolha é necessariamente uma operação racional porque
é resultado de uma investigação deliberativa. Toda escolha ou decisão,
segundo Aristóteles, vem após um processo de cálculo em que se ponderam
as consequências de agir de uma maneira ou de outra. Já o desejo, as
aspirações do homem não são racionais, porém capazes de serem
persuadidos pela razão. Assim, é o que constata que é o homem que dá
origem às ações na medida em que sempre pode fazer ou deixar de fazer as
coisas que estão no âmbito de seu poder. A escolha deliberada ideal é aquela
do homem que já habituou, ou seja, que aprendeu a desejar conforme a reta
razão. Então, tornar-se um homem virtuoso é desejar o que é bom segundo
seu correto julgamento.
Segundo Aristóteles:
Por outro lado, as atividades das excelências concernem os meios. Na verdade, a excelência diz-nos respeito e encontra-se sob o nosso poder não menos do que a perversão. Isto é, as situações nas quais está no nosso poder agir são as mesmas em que podemos não agir. Porque, quando está no nosso poder dizer não também está no nosso poder dizer sim. De tal sorte assim é que se estiver no nosso poder o agir bem também estará o não agir vergonhosamente. Inversamente, se estiver no nosso poder não agir bem, também aí estará o agir vergonhosamente. Se está no nosso poder fazer coisas boas e vergonhosas, também está no nosso poder não as fazer. É nisto que consiste o poder ser bom ou mau. Por isso está no nosso poder prestarmos ou não prestarmos (E.N. 2009, III, 5. 1113 b 5 - 14).
Nosso caráter é responsabilidade nossa. Aristóteles conclui que
depende de nós qual ação ética adotamos e que, se alguém pratica ações
más é porque, de fato, quer ser mau. A escolha deliberada define a liberdade
55
no agir uma vez que o poder da decisão entre ser bom ou mau está em nós.
Somos livres para essa escolha.
Muitos estudiosos acreditaram encontrar nesta parte da análise de
Aristóteles o que chamamos de “vontade”, mas sabemos que os gregos
desconheciam esta noção.
Reale comenta sobre esta análise de Aristóteles dizendo:
Melhor do que todos os seus predecessores, entreviu que há em nós algo do qual depende o ser bom ou mau, que não é mero desejo irracional, mas não é tampouco razão pura; porém, em seguida esse algo fugiu-lhe das mãos sem que ele conseguisse determiná-lo (REALE. 2007. p.123).
Aristóteles encerra sua análise deixando claro que a escolha deliberada,
a decisão é tomada a respeito do que depende de nós, incidindo sobre os
meios em direção aos fins:
Apenas se pode decidir daquilo que se julga poder vir a acontecer através de si próprio. Além do mais, anseia-se pelos fins, e decidem-se dos meios, por exemplo, nós ansiamos por restabelecer a saúde, mas apenas decidimos aquilo através do qual viremos a obter a saúde; também dizemos que ansiamos por ser felizes, contudo, dizer que decidimos ser felizes não é adequado. Em geral, parece que a decisão é acerca daquelas coisas que nos dizem respeito e dependem de nós (E.N. 2009, III, 2. 1111 b 25 – 30).
É esta a expressão por excelência da tese aristotélica concernente à
liberdade da ação. Zingano sustenta que:
No domínio da ação humana, em função da presença da razão como procedimento de decisão, àquilo a que posso dizer sim posso igualmente dizer não. A ação que faço está logicamente aberta ao sim e ao não; pela decisão que tomo, ela se faz assim ou de outro modo (ZINGANO, 2008, p. 199).
Nisto consiste o sermos bons ou maus. Nosso caráter é nossa
responsabilidade. Como expõe Aristóteles de modo mais preciso na Metafísica
IX 2-5, “o homem é quem dá origem às ações na medida em que sempre pode
fazer ou deixar de fazer as coisas que estão no âmbito de seu poder”.
56
Se as ações justas, então, dependem de nós, também depende de nós o
não fazer o que é justo. Ou seja, o filósofo argumenta que também a arete
(virtude) e a kakia (vício) dependem de nós.
Ele nos impõe a responsabilidade na escolha do nosso caráter uma vez
que se as ações pelas quais surge o caráter são voluntárias, também o caráter
será voluntário.
A deliberação supõe algumas condições prévias no agente. É preciso
que ele seja de fato capaz de deliberar e que tenha essa capacidade
desenvolvida. Essa capacidade diz respeito a prever as consequências da
ação, inclusive no que diz respeito à formação do caráter e é o que vai tornar o
agente responsável ou não pelas consequências de sua ação. Se ele for capaz
de deliberar e previr consequências, será responsável.
Essa teoria da responsabilidade fica muito clara em E.N. 2009, III, V.
1113 b 12 – 14:
Se está no nosso poder fazer coisas boas e vergonhosas, também está no nosso poder não as fazer. É nisto que consiste o poder ser bom ou mau. Por isso está no nosso poder prestarmos ou não prestarmos.
É necessário, pois, que cuidemos para que as pessoas sejam educadas
desde pequenas para determinadas hexeis (disposições) recebendo desde
cedo uma condução correta em direção a excelência, pois como Aristóteles
escreve adquirimos a hexis desde a mais tenra infância ao sermos habituados
pela educação, caso contrário, qualquer semente não prosperará se o terreno
não for preparado,
A palavra e o ensinamento não têm a mesma força junto de todos, mas a alma do que escuta tem de ser preparada de antemão pelo trabalho através de diversas formas de habituação para poder sentir alegria e abjeção de um modo correto – do mesmo modo que uma terra é preparada para receber uma semente e a fazer fomentar (E.N. 2009, X, 9. 1179 b 25).
Ou seja, o homem não deliberará bem se distanciando do eidos
humano (essência) e, consequentemente, da eupraxia (o bem agir) e da
eudaimonia (felicidade). Ao passo que se as disposições forem geradas pela
repetição de atos em direção ao bem e ao belo, suas deliberações voluntárias
57
terão por foco o agir bem e o agir ético o que favorecerá a busca da coisa certa
a ser feita e o reconhecimento do que seja uma ação boa tornará o homem
prudente sobre o melhor a ser feito.
Passemos então à prudência (phronesis) e como ela opera nas escolhas
deliberadas para o bem agir.
B) Phronesis – Prudência
Nem a alma vegetativa nem tampouco a alma apetitiva são no homem a
parte que promove a sua humanidade. Assim postula Aristóteles:
É que o viver parece ser comum também aos vegetais e o que é procurado é o viver peculiar do Humano. Tem, pois, de se fazer abstração da função vital de nutrição e de capacidade de crescimento. Segue-se uma certa função vital perceptiva , ao qual parece ser comum ao cavalo, ao boi e a todo o ente vivo (E.N. 2009, I, 6. 1197 b 30 – 1098 a 1- 8 ).
Devemos relembrar as duas dimensões da alma humana para tentarmos
compreender de que modo o homem adquire a prudência (phronesis) e como
esta opera na escolha deliberada, afim de que o mesmo tenha um agir correto
em direção ao fim desejado. “Há duas dimensões na alma humana: uma é
capaz de razão, a outra é incapacitante de razão” (E.N. 2009, VI, 1, 1139 a 1-
5).
A dimensão capaz de razão, aquela que concebe uma regra ou princípio
racional também é dividida em duas partes. A uma denominou-se científica e a
outra calculativa. Esta concebe o princípio racional; é a responsável pela
execução do bem supremo no homem, pois é nela que está a disposição
(hexis) de formação do ponto de vista científico e do cálculo, ou seja, a
possibilidade de deliberar e de calcular rumo ao fim desejado.
Segundo Reale:
Para Aristóteles, a felicidade consiste numa atividade da alma segundo a virtude. É claro que qualquer ulterior aprofundamento no conceito de “virtude” depende de um aprofundamento no conceito de alma. Ora, vimos que a alma se divide, segundo Aristóteles, em três partes, duas irracionais, isto é a alma vegetativa e a alma sensitiva, e uma racional, a alma intelectiva. E dado que cada uma dessas partes tem a sua atividade peculiar, cada uma tem uma peculiar virtude ou
58
excelência. Todavia, a virtude humana só é aquela na qual entra a atividade da razão (REALE,1994, p.104).
Na E.N, a phronesis – prudência - é definida como a virtude da parte
intelectual do homem: “uma disposição prática de acordo com o sentido
orientador e verdadeiro em vista do bem e do mal para o Humano” (E.N. 2009,
VI, 5, 1140 b 5).
A prudência versa sobre as coisas humanas que podem ser objeto de
escolha pelo homem. Pois, como diz Aristóteles:
Ninguém delibera sobre o que é eterno, como por exemplo, sobre a ordenação do universo ou sobre o fato de a diagonal e o lado do quadrado serem incomensuráveis.Mas também não se delibera sobre as coisas que estão sempre num movimento regular, seja por necessidade, seja por natureza ou como quer que seja, como é o caso, por exemplo, dos solstícios e do nascer do sol. Nem sobre aquelas coisas que são de modo diferente, como as secas e As chuvadas. Nem sobre as coisas que acontecem por acaso, como a descoberta de um tesouro. Nem sobre tudo que pode sobrevir ao Humano. Ninguém da Lacedemônia deliberará sobre como poderá governar do melhor modo possível a Cítia. Nenhuma destas coisas poderá ser objeto de deliberação porque jamais poderá acontecer através da nossa intervenção Nós deliberamos sobre aquelas coisas que nos dizem respeito e que dependem de nós, a saber sobre as ações que podem ser praticadas por nós (E.N.2009, III, 3, 1112 a 22 – 30).
Ninguém delibera acerca daquilo que não pode ser de outra maneira, ou
seja, os seres invariáveis, cujas causas determinantes não variam. E o homem
delibera bem, cumprindo assim a sua função, quando é dotado de prudência. A
prudência diz respeito à ação e se ocupa com o fato particular, o singular, os
seres variáveis.
Segundo Aristóteles, há na alma três operações que determinam a ação
e o descobrimento da verdade:
A percepção, o poder de compreensão e a intenção. Destas três, a
percepção nunca é origem de nenhuma ação, o que é evidente pelo
fato de os animais, embora tenham percepção, não tomarem parte na
ação (E.N. 2009, VI, II, 1139 a 20).
59
A decisão (proaireses) é origem da ação. Por outro lado, o princípio da
decisão é uma intenção e um cálculo dirigido para um objetivo final. De modo
que: “agir bem e o seu contrário não existem na ação sem o pensamento
teórico nem sem a disposição ética” (E.N. 2009, VI, II. 1139 a 35).
Como afirma Perine:
Para mostrar que phronesis dirige a ação e, portanto, é a virtude da parte calculadora da alma, Aristóteles primeiro desenvolve um raciocínio de tipo silogístico (1140 a 24 – 1140 b 6), que parte da qualidade atribuída ao sábio (phronimos), a saber, a capacidade de deliberar sobre o que é bom e útil para si, não de um ponto de vista parcial, mas da totalidade, em vista da vida feliz (PERINE, 2006, p. 25).
É moralmente necessário que um objeto de desejo conforme o prazer
seja também conforme a razão. O homem virtuoso age conforme uma decisão
em harmonia com o que ele deseja e com a razão. Esta espécie de intelecto e
de verdade é prática. E a chamamos de prudência. A escolha não pode existir
nem sem razão e intelecto, nem sem uma disposição moral; pois a boa ação e
o seu contrário não existem sem a combinação de intelecto e de caráter.
Perine, assim expressa a respeito:
Dado que a ação humana brota de uma decisão, dado que o princípio da decisão é o desejo e o cálculo, e dado que o pensamento não move nada, mas determina os meios para obter os fins desejados, segue-se que a decisão será a união do intelecto e do desejo (PERINE, 2006, p. 84).
É importante lembrar que o intelecto, em si mesmo não provoca a ação;
o que move, o que provoca a ação é o intelecto prático. Como afirma
Aristóteles:
O princípio da ação é a decisão (isto é, enquanto origem da
motivação, não enquanto fim em vista); por outro lado, o princípio da
decisão é a intenção e um calculo dirigido para um objetivo final. Por
esta razão, não há decisão sem o poder de compreensão, nem sem
processo compreensivo, nem, finalmente, sem a disposição do
60
caráter. Na verdade, agir e o seu contrário não existem na ação sem
o pensamento teórico nem sem a disposição ética (E.N. 2009, VI, II,
1139 a 31 – 35).
A boa ação e o seu contrário não podem existir sem uma combinação de
intelecto e de caráter. Neste sentido, o princípio (da ação) é o humano. Então,
se a virtude moral é uma disposição de caráter relacionada com a decisão
(proairesis) e essa decisão é um desejo deliberado (desejo refletido), tanto o
raciocínio quanto o desejo deve ser reto, assegurando assim a melhor escolha;
a função das partes da alma capaz de razão é buscar sempre a verdade,
consequentemente, a boa ação. E a avaliação do que é bom ou ruim, da ação
que deve ser realizada ou não, só pode ser feita pela razão. É por ter em mira
o belo e o bem que a razão orientará para o que se deve, como e quando se
deve fazer.
Assim, a definição geral de virtude intelectual se resume em um estado
habitual segundo o qual a alma racional realiza a sua função que consiste em
dizer a verdade. “A desocultação da verdade é, pois, a função de ambas as
partes da dimensão da alma capaz de razão” (E.N. 2009, VII, 2.1139 b 12 - 13).
Segundo Aristóteles, na descoberta da verdade as disposições da alma,
quer afirmando, quer negando, são em número de cinco operações: a arte, o
conhecimento científico, a sabedoria prática, a sabedoria filosófica e a razão
intuitiva.
No que diz respeito à prudência Aristóteles observou que o homem
“sensato é aquele que tem o poder de deliberar corretamente acerca das
coisas que são boas e vantajosas para si próprio” (E.N. 2009, VI, 4. 1140 a 25 -
26) e, portanto, a prudência não se trata de arte “porque o gênero da ação é
diferente do gênero da produção” (E.N. 2009, VI, 4. 1140 b 5 - 6); nem de
ciência “porque o que acontece no horizonte da ação pode ser sempre de outra
maneira” (E.N. 2009, VI, 4. 1140 b 3 - 4) e no conhecimento científico as coisas
são invariáveis,mas de uma virtude fruto da experiência, do tempo, e da
sabedoria intelectual. A prudência é reconhecida nos homens cujo saber é
ordenado para a busca dos “bens humanos” na prática.
61
Fica estabelecido que é a razão prática e dirige de forma correta as
escolhas do homem racional, delibera sobre o que lhe causa o bem ou o mal e
tem sempre em vista a felicidade (eudaimonia).
É necessário, então, compreender como ela opera nas escolhas
deliberadas ou no agir ético, isto é, o que é uma boa deliberação.
Na tentativa de responder, Aristóteles apresenta três hipóteses. Seria a
prudência conhecimento científico, opinião ou boa conjectura? Como é de seu
feitio descarta as duas hipóteses iniciais para tecer algumas conclusões sobre
a boa deliberação: deliberar é um processo lento, a boa deliberação é uma
certa forma de correção, “pois enquanto se está a pensar não se chegou ainda
a uma declaração final” (E.N. 2009, VI, 9. 1142 b 16 - 17). Deliberar
corretamente é em certo sentido uma forma de bem “é próprio dos sensatos, a
boa deliberação será a correção de deliberação a respeito do que é
conveniente como meio para o fim, do qual a sensatez tem uma concepção
verdadeira” (E.N. 2009, VI, 9. 1142 b 32 – 33 - 34).
Segundo Wolf:
(...), o phronimos deve poder deliberar sobre o que é o bem viver em seu conjunto (pros to eu zen holos, 1140 a 28), sobre as coisas, portanto que perfazem a eudaimonia. Não se trata de um produzir, mas o fim é o próprio agir bem (a eupraxia) (1140 b 7 ) ( WOLF, 2010,
p.151).
Estão aqui estabelecidos os fins do bem viver e que as deliberações
éticas tem a tarefa de promover a eudaimonia (felicidade) através da eupraxia
(bem agir). A vida do phronimos é uma vida de ação (práxis), de boa ação,
ação virtuosa (eupraxia); prática essa que acrescenta ao “que se deve”, o
“como”, “quando” e “em razão do fim pelo qual se deve”. O que significa que é
característico da vida do phronimos o poder deliberar bem sobre o que é bom e
conveniente para ele, sendo a boa ação o seu próprio fim. Como isto
acontece? É pela decisão, pela regra da escolha cuja norma é o bem, o bem
humano, ou melhor, pela boa decisão que o homem une de maneira virtuosa o
desejo ao fim desejado.
Aubenque aponta para o ponto de partida de Aristóteles:
Seu ponto de partida não é uma essência, da qual convém analisar as possíveis determinações, mas um nome – phronimos – que
62
designa um certo tipo de homem que todos sabemos reconhecer, que podemos distinguir de personagens aparentadas e, no entanto, diferentes, e do qual a história, a lenda e a literatura nos fornecem modelos. Todos conhecem o phronimos, mesmo que ninguém saiba definir phronesis (AUBENQUE, 2003, p.62).
Na Ética à Nicômaco VI, II Aristóteles expõe a condição necessária para
que a escolha deliberada seja boa, a razão deve ser verdadeira e a intenção
reta, o que significa que o fim desejado e os meios escolhidos para realizá-lo
devem ser bons. Então, nem a reta intenção que se refere à virtude moral, nem
a razão verdadeira que se refere à virtude intelectual são causa suficiente para
produzir uma boa escolha se estiverem separadas. Como já dissemos é
preciso haver a junção das duas virtudes. Para Aristóteles:
(...) Uma vez que a excelência do caráter é uma disposição que decide e a decisão é uma intenção deliberada, segue-se que, no caso de se tratar de uma decisão séria, o princípio de decisão terá de ser verdadeiro e a intenção correta. O que o princípio afirma terá, portanto, de ser o mesmo que é perseguido pela intenção (E.N. 2009, VI, 1. 1139 a 22 - 27).
Aristóteles afirma claramente que a virtude moral “produz o fim correto” e
a sabedoria produz os meios para o fim:
Assim, também a sabedoria cria a felicidade, pois sendo parte da excelência total, torna quem a possui feliz, isto é, o acionamento da sabedoria é causa da presença da felicidade nele. Além do mais, o trabalho específico do Humano é cumprido, na medida em que é feito de acordo com a sensatez e a excelência do caráter. De fato, a excelência faz do fim um fim correto, e a sensatez abre para o encaminhamento nessa direção (E.N. 2009, VI, 12, 1144 a 6 - 9).
Bem sabemos que a diferença entre escolha e deliberação é que os
meios escolhidos já foram determinados pela investigação deliberativa. Como
diz Aubenque:
Por certo esta escolha é, ela mesma, um desejo, pois somente se quer os meios porque se quer o fim, e a escolha dos meios permanece subentendia à vontade do fim, sem a qual a escolha perderia toda a razão de ser (AUBENQUE, 2008, p. 196.).
63
Aristóteles define a escolha como o desejo deliberado do que está em
nosso poder. Ora, se a causa da ação é a escolha e a causa da escolha é o
desejo, evidentemente a causa final da ação no homem é o fim desejado. Ele
pensava que as excelências são cooperantes com o sentido orientador. Não se
pode ser bom sem a prudência e não se pode ser prudente sem a virtude ética.
O erro, então, consiste no seu contrário, ou melhor, a ação contrária à razão.
Aquele que age erroneamente contraria o que dita a reta razão, sabendo ser
errado, desconsiderando o justo meio, a sensatez. A estes, Aristóteles chama
de acráticos.
No contexto aristotélico a liberdade de ação existe na harmoniosa
relação entre o desejo e a razão. Para Aristóteles o homem se move por fins e
a liberdade está justamente na ação fruto de uma deliberação correta da razão
sobre o desejo. A responsabilidade moral se pauta, portanto, na ação.
Então, proporcionar às crianças e jovens, por meio de ações similares às
virtuosas para que, futuramente, em cooperação com o desenvolvimento da
reta razão eles possam proceder à possibilidade da boa escolha e decisões
autônomas e certas, é a melhor atitude a se tomar.
É importante que recebam uma educação ética que os prepare para
uma vida em comunidade e da melhor maneira possível. Que os preparem
para agir com responsabilidade moral. E isto requer que eles reconheçam o
“outro” como homem de direitos e deveres iguais. Afinal, para Aristóteles a
própria natureza do homem demonstra com clareza que ele é absolutamente
incapaz de viver isolado, necessita estabelecer relações com os seus
semelhantes. Ele diz, também, em A Política que o homem, por natureza, deve
viver numa cidade onde melhor estabelecerá essas relações. O homem não é
feliz sozinho. Depende do “outro” em todos os sentidos e o limite de ação do
“eu” é a existência do outro. A educação ética permite que essa relação seja
reciprocamente um reconhecimento de que os outros são tão dignos como
“eu”. “Agir moralmente é fundamentalmente, reconhecer as outras pessoas
como pessoas de mesma dignidade que eu” (ZINGANO, 2013, p. 16).
Para que possamos desenvolver o quarto capítulo, que versará sobre
Educação e experiência na conquista das virtudes é particularmente importante
64
saber sobre a acrasia e o seu sentido inverso ao dos prudentes. Se quisermos
que a criança e o jovem ajam, quando adultos, da melhor maneira possível à
imagem do prudente, em qualquer circunstância, é melhor não confiar ao acaso
esta tarefa. Aristóteles vincula a virtude moral às habilidades cultivadas na
experiência cotidiana. E esta, sem dúvida, pode ser enriquecida no cotidiano
escolar.
CAPÍTULO 3
ACRASIA
Aristóteles consagra o livro VII da Ética à Nicômaco ao estudo da
acrasia, (característica daquele que não domina a si mesmo). O filósofo
interessou-se por este tema porque considerava absurdo existirem pessoas
que, sabendo qual é a melhor conduta a ser seguida, no momento em que
agem, fracassam e se arrependem depois. Ele indagava: como se pode fazer o
que se sabe ser errado? E a esta falta de domínio ele chamou de acrasia.
As passagens essenciais sobre a acrasia tratam do erro moral. Para o
filósofo a ação ocorre no cruzamento de duas faculdades: a faculdade racional
(prática) e a parte da alma irracional, mas capaz de escutar a razão (ou, em
geral, a afecção ou emoção). O fenômeno da acrasia ou característica daquele
que não domina a si mesmo é explicado por Aristóteles sob a forma de um
conflito, ou seja, entre o que se sabe no momento anterior à ação e aquilo que
se deseja (o apetite). Aristóteles insiste que desejar o melhor não implica fazê-
lo. Neste conflito ora um, ora outro, vence e leva o sujeito para uma ou outra
escolha.
Zingano exemplifica de maneira esclarecedora:
Posso saber que fumar é prejudicial à saúde e, mesmo assim ter vontade de fumar um cigarro; neste conflito entre saber prático e desejo, ora um, ora outro vence e leva o agente em uma outra direção; no caso, pode ocorrer que fume, se o desejo presente prevalecer, ou pode ocorrer que me abstenha de fumar, se tiver força de vontade guiada pelo conhecimento prático (ZINGANO, 2007, p. 428).
Compreender o que Aristóteles expõe no capítulo VII da E.N. sobre a
acrasia é muito importante, uma vez que nossa pretensão reside na reflexão
65
sobre a formação do caráter virtuoso, no homem, pelo hábito, aderindo à ética
das virtudes de Aristóteles, desde a tenra infância. E como o próprio filósofo
postula, a educação consiste em produzir no agente acrático uma mudança
cognitiva sobre o verdadeiro bem para que o prefira a qualquer outro tipo de
conduta, afastando a possibilidade do conflito, e assim evitando o erro moral.
Aristóteles indaga:
Pode, então, agora, levantar-se a questão de saber como é que alguém que tem uma noção correta de que o que vai fazer não está certo perde o domínio de si? Alguns dizem que tal não pode acontecer se essa pessoa tiver um verdadeiro conhecimento da situação (E.N. 2009, VII, 2. 1145 b 21).
Torna-se imprescindível conhecer que Aristóteles concebe um caso em
que o agente, apesar de conhecer o bem, ainda assim prefere o mal.
Zingano esclarece como pensou Aristóteles:
A acrasia é pensada no lugar preciso de um conflito entre o que a razão reconhece como sendo bom (aquilo que deve ser feito) e o que o desejo apresenta, no momento, como aparentemente bom. Mais precisamente, trata-se de um conflito entre o que a razão prática toma como objeto de busca ou fuga e o desejo do que é agradável, aqui traduzido por apetite. Assim, Aristóteles mostra-se contrário à aplicação da noção de acrasia a casos nos quais a razão está em conflito como honra, dinheiro ou impulso, restringindo-a ao conflito com apetites (ZINGANO, 2007, p. 432).
Em algumas passagens Aristóteles sublinha insistentemente a existência
do conflito:
Parece, por outro lado, haver uma certa outra natureza da alma que é [ativamente] incapacitante de razão, mas que, ainda assim, tem uma relação com ela. Esta possibilidade existe tanto no que tem autodomínio como no que o não tem (E.N. 2009, I, XII, 1102 b 13-17).
Os impulsos do acrático são contrários aos da razão:
A coação obriga quem não tem domínio de si a ir por direções que contrariam a decisão tomada pelo sentido racional. Mas, se nos corpos é possível detectar as deslocações a contrariarem as decisões da vontade, o mesmo já não é possível a respeito da alma. Não obstante, temos de verificar a existência na alma humana de um
66
factor incapacitante de razão, que a contraria e lhe resiste (E.N. 2009, I, XII, 1102 b 21).
O acrático age dominado pelo apetite, mas não por razão deliberativa:
Por outro lado, quem não tem autodomínio age cedendo ao desejo, e, desse modo, não age de acordo com uma decisão. Finalmente quem tem autodomínio age, ao tomar uma decisão, mas não age, ao sentir um desejo ( E.N. 2009, III, II, 1111 B 13-14).
Aristóteles deixa muito claro que o acrático é dominado pela paixão, de
modo que não age segundo a razão:
Há, assim, um certo tipo humano que fica fora de si sob efeito da paixão e age contra o sentido orientador, mas de tal sorte que se, por um lado a paixão o domina ao ponto de não o deixar agir em conformidade com o sentido orientador, por outro, a paixão não domina nele ao ponto de o fazer convencer-se de que deve perseguir negligentemente prazeres desde gênero. Este é o que não se domina, e é melhor do que o devasso (E.N. 2009, VII, VIII, 1151 a 20-24).
Portanto, pode-se pensar que se habituar a desejar, desde a tenra
idade, na criança e no jovem, o que é moralmente bom para que o desejo se
harmonize com o saber que está sendo construído é contribuir para uma
formação de caráter virtuoso. O sujeito mesmo experimentando um conflito,
mantém-se firme na sua deliberação, domina o apetite e deseja o que julga ser
o bem fazendo escolhas que, consequentemente, o farão agir bem.
Diferentemente de Aristóteles, para Sócrates se conhecemos a regra
moral, agiremos conforme esse conhecimento. Se agirmos diferentemente é
porque não possuímos, de verdade, o conhecimento moral, “o conhecimento
de todos os bens e males envolvidos na ação” (ZINGANO, 2007. p. 429).
Para Aristóteles, não basta sabermos o que é o Bem ou o que devemos
fazer em determinadas circunstâncias, é preciso desejar fazer o que julgamos
ser o Bem e que este desejo esteja em perfeita harmonia com a razão para, de
fato, fazermos o Bem. O Estagirita parece não concordar com Sócrates no que
se refere à ação final realizada por ignorância porque, segundo ele, isto
tornaria involuntário o ato acrático. E o ato, em si, não é involuntário. Na
67
concepção de Aristóteles, durante a ação, o agente sabe o que “não” deve
fazer e mesmo assim o faz.
A análise do L.VII da Ética à Nicômaco descreve o comportamento da
acrasia.
Inicialmente, a discussão versa sobre as formas de disposições do
caráter que devem ser evitadas. E são elas: a perversão ou o vício, a falta de
autodomínio ou a incontinência e a bruteza. Além disso, a discussão gira
também sobre as opiniões sustentadas sobre o assunto; as aporias
decorrentes dessas opiniões que se formam a respeito das afecções
patológicas da alma humana e soluções formuladas por Aristóteles.
Aristóteles expõe as opiniões que são em número de seis:
a) que o autodomínio e a perseverança são disposições sérias e louváveis, enquanto, da outra parte, a falta de domínio e a lassidão são vis e repreensíveis; b) quem se domina a si permanece fiel às determinações de seu cálculo, enquanto quem não se domina está inclinado a traí-lo; c) o que não se domina, mesmo sabendo o que são ações vis, pratica-as – por causa da afecção patológica. Por outro lado, quem tem autodomínio, sabendo que os seus desejos são vis, não irá atrás deles, em virtude do sentido orientador; d) todos dizem do temperado que tem autodomínio e é perseverante. Mas que todos têm autodomínio e são perseverantes sejam temperados é afirmado por uns, mas negado por outros. Diz-se, por outro lado, indiscriminadamente, do devasso que não se domina e de quem não se domina que é devasso. Outros há, contudo, que distinguem os dois modos de ser; e) a respeito do sensato, uns dizem que nunca perde o autodomínio, outros, porém, dizem que alguns dos sensatos e espertos têm , de quando em vez, perda de autodomínio; f) na verdade, diz-se dos que têm falta de autodomínio que o perderam por causa da ira, pela ambição de honra e pela ganância (E.N. 2009, VII, 1, 1145 b 10).
Estas são as opiniões que se formam a respeito das afecções
patológicas da alma humana e que se revelaram ter uma maior autoridade.
Em seguida, o filósofo expõe quatro passos no que parece ser a solução
do problema da acrasia e evidentemente, para a nossa pesquisa isto nos
interessa muito porque a atualidade tem evidenciado nas atitudes da criança e
do jovem a falta de domínio, a fraqueza da vontade. E os educadores não
podem se furtar ao conhecimento desta realidade e nem negar a
responsabilidade de contribuir na formação de um ser humano melhor
distanciando-se daquele agente (o acrático) que não tem domínio sobre si.
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Zingano comenta os quatro passos, cujo primeiro é apresentado em
1146 b 31-35: “consiste na introdução da distinção entre saber (em potência) e
saber em ato” (ZINGANO, 2007, p.455). Ou seja: é possível dispor do
conhecimento daquilo que se deve ou não fazer, mas não ter acionado esse
conhecimento no momento da ação. Aristóteles reflete sobre questões que
parecem ser a solução do problema da acrasia. Em primeiro lugar sobre o
conhecimento que ele apresenta de duas maneiras. Há pessoas que conhecem
e não fazem uso do conhecimento (conhecimento em potência) e há pessoas
que conhecem e fazem uso desse conhecimento (conhecimento em ato). Para
as duas situações se diz que ambos conhecem igualmente. Mas, há uma
diferença na prática, no momento de agir, ou seja, “dispor de um conhecimento
daquilo que se deve ou não fazer, mas não o ter acionado em vista do
momento de agir e, por outro dispor desse conhecimento e tê-lo acionado em
vista do momento da ação” (E.N. 2009, VII, 3, 1146 b 35).
No segundo passo (1146 b 35-47 a 10) o filósofo afirma haver dois tipos
de premissas (partes de um silogismo prático) e a conclusão. Revela que
“mesmo quando se dispõe dos dois tipos de premissa, nada pode coibir ainda
de se agir contra esse conhecimento”. Isto é, pode-se fazer uso do
conhecimento da premissa universal e não fazer uso do conhecimento da
premissa particular dada. Ou mesmo, pode-se dispor desse conhecimento mas
não acioná-lo no momento. Aristóteles reflete sobre de que modo podemos
agir por ignorância e qual o tipo de conhecimento está em jogo para os
acráticos. Isto porque, para Aristóteles “quem perdeu o domínio de si não
pensa que age corretamente, pelo menos antes de ter ficado sob o efeito de
uma afecção” (E.N. 2009, VII, 2,1145 b 30).
No terceiro passo (1147 a 10-24), ele explica que o acrático tem as
premissas, mas não possui ou não usa a conclusão do silogismo prático.
Aristóteles expõe a doutrina do silogismo prático: a existência de uma
proposição universal e de uma proposição particular que são conhecidas do
agente, mas que no momento da decisão gera-se um estado de perda de
domínio provocada por um princípio que é contrário ao sentido orientador
(razão). Ou seja, um desejo, um apetite que a contraria. O acrático não possui
uma das proposições ou não faz uso de uma delas.
O acrático tem todas as premissas do silogismo prático e sua conclusão,
mas age contrariamente àquilo que sabe ser o certo, o Bem. O agente sabe,
69
durante a ação, que ele não deveria fazer o que está fazendo, mas devido a
um apetite presente ele faz outra coisa do que sabe ser o certo. Ou seja, as
duas premissas do silogismo prático estão presentes, mas a ação que deveria
concluir o silogismo, não ocorre. A ignorância, a falta de conhecimento está na
conclusão.
No quarto e último passo (1147 a 24 – b 9), põe em realce o papel do
apetite, pois é ele que, ao estar presente, leva o agente a fazer o contrário do
que deveria. Ou seja, no conflito entre um desejo racional e um apetite, sai
vencedor este último.
3.1. Traços do caráter a se evitar.
Pelas palavras do filósofo são três espécies de disposições morais a
serem evitadas, e cujos contrários são louváveis.
Posto isto, tem de ser dito, fazendo um novo começo, que há a respeito das disposições do caráter humano três formas que tem de ser evitadas. São elas a perversão, a falta de autodomínio e a bestialidade. As disposições contrárias às duas primeiras são evidentes. A uma chamamos excelência. À outra, autodomínio (E.N. 2009, VII, 1. 1145 a 15).
O filósofo afirma que a acrasia não é propriamente um vício, nem uma
virtude e esclarece o motivo pelo qual a acrasia deve ser evitada:
Analisemos, assim, primeiro por um lado, a falta de autodomínio, a lassidão e a luxúria, e, por outro o autodomínio e a perseverança. De fato não se pode supor que ambos estes grupos de disposições sejam idênticos, respectivamente à excelência e a depravação (E.N. 2009, VII,1, 1145 b 1 - 3).
Não são o mesmo fenômeno moral a virtude e o vício. São espécies do
mesmo gênero do qual a virtude e o vício também são espécies.
Sócrates acreditava que: “ninguém age contra a noção que tem do que é
o melhor de tudo, mas, quando assim age, fá-lo por ignorância” (E.N. 2009, VII,
2, 1145 b 25 - 28). Segundo Aristóteles o que Sócrates afirmava está em
70
contradição aos fatos da própria vida, pois “quem perdeu o domínio de si não
pensa que age corretamente, pelo menos antes de ter ficado sob o efeito de
uma afecção” (E.N. 2009, VII, 2.1145 b 30). Aristóteles aceita a incapacidade
do homem em se manter firme contra apetites poderosos. Mas ele questiona:
“é possível que o mesmo homem seja sensato e sem domínio de si”? “Pode o
homem de sabedoria prática praticar voluntariamente atos vis?” Sua resposta
já foi enunciada anteriormente, quando tratou a sabedoria prática (phronesis –
prudência): os homens de sabedoria prática são homens de ação capazes de
se ocuparem com circunstâncias particulares e possuem as demais virtudes.
O sensato é atuante, pelo menos, no horizonte prático (o seu horizonte de atuação é o das situações-limite que de cada vez se constituem de modo particular) e, na verdade, atuante, quando detém em si já constituídas as restantes excelências do caráter (E.N. 2009, VII, 2, 1146 a 7).
Portanto, haver um homem sensato e sem domínio de si é uma
suposição absurda, segundo Aristóteles. Ele questiona que tipo de
conhecimento há no caso dos acráticos. Expõe e examina, também, algumas
dificuldades (das opiniões apresentadas) a serem resolvidas sobre a
continência e a incontinência - as aporias - preparando-se para as suas
possíveis soluções. Se a continência implica ter fortes e maus apetites, o
temperante que não possui apetites excessivos, nem maus, nunca será
continente e nem tampouco o continente será temperante porque este último
não possui apetites excessivos e maus. Se os apetites são bons, a disposição
de caráter que nos inibe de seguí-los é má e nem toda continência será boa.
Se os apetites são fracos sem serem maus não é admirável refreá-los. Se os
apetites são fracos e maus, tampouco é grande proeza resistir-lhes. Se a
continência faz um homem sustentar qualquer opinião, mesmo as falsas
opiniões, a continência é má. Se a incontinência faz com que um homem
abandone qualquer opinião haverá uma espécie de incontinência (E.N. 2009,
VII, 2, 1146 a 10 – 35).
Aristóteles não rejeita por completo todas as opiniões e dificuldades
apresentadas: “Tais são as dificuldades que se levantam. Umas têm de ser
71
resolvidas, mas outras ficarão deixadas em aberto. Porque resolver uma
dificuldade é uma forma de descoberta” (E.N. 2009, VII, 2, 1146 b 1).
A apresentação das opiniões nos reportou ao que Aristóteles apresenta
em E.N. I. 12 sobre o que há na alma além da parte racional. Parece haver
outra natureza da alma que é incapacitante de razão e que mesmo assim tem
uma relação com ela. E esta possibilidade tanto pode existir naquele que tem
autodomínio, como naquele que não o tem. Esta outra natureza da alma a
combate e lhe oferece resistência (E.N. I. 12. 1102 b 13-21).
Temos aqui sugerido um conflito na alma do agente, um fator
incapacitante de razão que a contraria e lhe resiste e que resulta numa ação
em vista dos prazeres, pois o agente é dominado pelas afecções e pelos
apetites. Zingano, assim se refere: “neste conflito entre saber prático e desejo,
ora um, ora outro vence e leva o agente em uma ou outra direção” (ZINGANO,
2007 p. 428). Mas, como o próprio Aristóteles sustenta, é possível vencer essa
resistência irracional, fazendo com que essa parte obedeça à razão:
Dissemos, então, que há uma dimensão da alma que é de algum modo, capaz de tomar parte da razão. A possibilidade de autodomínio resulta, efetivamente, da obediência ao comando da razão, mas são as disposições fundamentais do sensato e do corajoso que melhor permitem escutá-la e obedecer-lhe. Tudo neles ressoa em uníssono com a razão (E.N. 2009, I, 12, 1102 b 26 - 31).
Ou seja, o temperante tem como características aquele que tem desejos
sempre em conformidade com a razão. Ao passo que no acrático os desejos
resistem e ele não obedece à razão. Portanto, para o ponto que nos interessa
sobre o acrático vamos nos deter na opinião descrita em E.N. 2009, VII, I, 1145
b 13 -14.
Aristóteles afirma que o acrático tem desejos fortes e maus que se
colocam poderosamente no princípio da sua ação:
Ainda, se quem tem domínio de si se confronta com desejos lascivos poderosos e vergonhosos, o temperado não poderá ter domínio de si não menos do que quem tem domínio de si poderá ser temperado, pois quem é temperado não tem de se confrontar com desejos que passam da medida e são vergonhosos (E.N. 2009, VII, 2, 1146 a 10 - 14).
72
O resultado daquele conflito da alma, ao qual nos referimos
anteriormente, que incapacita de razão o agente, caracterizará a ação final
como acrática ou continente.
O acrático “sabe, durante sua ação, que ele não deveria fazer o que está
fazendo. Isto é crucial para se tomar a sério o fenômeno da acrasia”
(ZINGANO, 2007 p. 436). E este é o ponto central da acrasia, segundo
Aristóteles, quando a pensa sob a forma de um conflito entre a razão e o
apetite.
Há quem concorde com Sócrates em relação à sua teoria de que não
há nada mais poderoso do que o conhecimento e há quem não concorde. Por
esta razão é que dizem que “quem perdeu o domínio de si sucumbe aos
prazeres não tem nenhum conhecimento do que é o melhor, mas apenas uma
mera opinião” (E.N. 2009, VII, 2, 1145 b 35).
Aristóteles argumenta que se pode agir possuindo apenas uma opinião e
que a mesma direciona o agir independente do conhecimento. Portanto, não é
uma questão de possuir ou não o conhecimento como expunha Sócrates. Esta
diferença resulta em algo muito importante: um homem que conhece o que não
deve ser feito e faz. Este é o acrático. (o agente que tem o conhecimento do
que deve ser feito e não faz uso desse conhecimento). Comete, então, o erro
moral. Neste estado, segundo Aristóteles, o homem possui o conhecimento,
possui o saber em potência, mas está incapacitado de recorrer a ele, pois está
sob o efeito das paixões, dos desejos.
Finalmente, Aristóteles declara ter concluído as reflexões a respeito das
questões sobre o conhecimento e acentua o que seja a acrasia: conflito entre
um desejo racional e um apetite, do qual sai vencedor este último.
Ele admite em geral o fenômeno da acrasia. “Ele o recusa para o
prudente, a figura por excelência de seu mundo moral. O prudente não pode
ser acrático, o que Aristóteles afirma por duas vezes em E.N VII: a primeira em
1146 a 7-9, a segunda em 1152 a 6-8” (ZINGANO.2007. p. 441).
Em ambas as passagens Aristóteles justifica a impossibilidade de o
homem prudente não poder ser acrático não no fato de possuir o saber, mas
por possuir as outras virtudes, as virtudes morais, em especial a temperança
que não dá lugar à acrasia.
Em VII, 4.1149 a 9:
73
O sensato é atuante, pelo menos no horizonte prático (o seu horizonte de atuação é o das situações limite que de cada vez se constituem de modo particular) e, na verdade, atuante quando detém em si já constituídas as restantes excelências do caráter.
Portanto, no processo formativo, a escola, os educadores precisam estar
atentos ao modo pelo qual orientam a criança e o jovem, no sentido de que a
trajetória escolar seja permeada por orientações do que seja o melhor a ser
feito através de boas ações porque a regularidade dessas boas ações se
tornarão hábitos, virtudes morais, o que, futuramente, poderão afastar o jovem
do conflito e quiçá da acrasia. No processo formativo da criança e do jovem
deve haver a preocupação com uma formação que possibilite o equilíbrio entre
a razão e as afecções.
Para Aristóteles não basta a prática de uma ação reprovável para
determinar que o caráter do agente seja falso, enganador. É preciso verificar se
há responsabilidade na escolha por parte do agente. Pois é a escolha e não a
ação, propriamente realizada que expressa o seu caráter.
No próximo capítulo exploraremos, então, como Aristóteles sugere em
sua Ética Nicomaquéia uma educação para que haja o equilíbrio entre a razão
e as afecções.
74
CAPÍTULO 4
EDUCAÇÃO E EXPERIÊNCIA NA CONQUISTA DAS VIRTUDES
Muitas de minhas indagações nasceram da prática em sala de aula e
enquanto coordenadora pedagógica da rede pública do município de São
Paulo. Percebemos que a escola não pode silenciar diante da ausência da
orientação ética.
Como afirma Patrício:
Vivemos, axiologicamente, sobre areias movediças. Essa difícil situação humana repercute-se com particular violência na educação, sendo fator de insegurança e angústia para os educadores profissionais que são os professores (PATRÍCIO,1993, p.22. In MARQUES.R. p.63).
Patrício considera que a axiologia educacional é fundamental para o
professor, uma vez que, não há educação sem valores éticos e o compromisso
educativo não é possível fora do compromisso dos valores éticos. Diante desta
constatação e no intuito de responder muitas de nossas indagações nos
reportamos à leitura das obras de Aristóteles. Mais precisamente a Ética à
Nicômaco. A razão da escolha desta obra foi seu foco na vida virtuosa.
Inquietações se transformaram em possibilidades de resposta quando
buscamos aprofundamento na ética aristotélica, em razão do apelo a uma
educação da temperança, da coragem e da prudência entre outras virtudes.
Valores fundamentais para a nossa vida.
À semelhança de Aristóteles também optamos pelo exercício de ações
virtuosas e concordamos quando ele afirma ser a virtude o caminho mais certo
para a felicidade, pois a vida virtuosa traz contentamento, tranquilidade e
serenidade. Para Aristóteles, a felicidade é o bem que todos nós buscamos, é a
finalidade da vida. A natureza humana predispõe o homem a fazer o bem, mas
para que as pessoas realmente cumpram a sua função humana, que é fazer o
bem, é necessário educá-las pela prática, pelos bons exemplos, pelo hábito.
Isso significa realizar plenamente a função própria do homem: viver
autonomamente conforme a sua racionalidade. E a educação torna a razão
75
prática correta, por meio de exemplos, ao aprender a ser moderado, corajoso,
na justa medida.
A escola não pode se limitar a acentuar uma ética mínima e ignorar
valores éticos. Como lugar de educação ela precisa estar aberta não só ao
conhecimento, à reflexão dos saberes da língua, da matemática, das ciências,
mas também precisa prestar atenção ao agir humano. É preciso assumir uma
educação em valores éticos que amenize situações e conflitos enfrentados hoje
em dia não só na escola, mas também na sociedade em geral. São muitas as
queixas de pais, de professores em relação ao comportamento dos jovens e a
nós fica claro que tudo isto pode estar associado à ausência de orientação
ética. A criança e o jovem necessitam de profissionais éticos para exercitarem
valores que os tornem virtuosos também, pois o próprio Aristóteles no livro IX
da Ética a Nicômaco, afirma: “(...) Há certa forma de exercício da excelência
que nasce do viver em conjunto com pessoas de bem” (E.N. 2009, IX. 9, 1170
a 10). E também, no capítulo X analisa modos de como formar pessoas
capazes de fazer escolhas certas, e de escolher o bem. Aristóteles sustenta
que todo o estudo sobre a ação resultou em saber que não basta ter o
conhecimento sobre as virtudes, devemos também tentar possuí-las e exercê-
las:
Ou não será antes verdade, tal como foi dito, que o fim em matérias de ação humana não consiste em construir teorias acerca de cada uma delas ou aceder-lhes cognitivamente, mas antes do próprio agir? Também acerca da excelência não se dá o caso de bastar conhecê-la, mas tem de se tentar possuí-la e aplicá-la, ou de qualquer outro modo tornamo-nos pessoas de bem. Se acontecesse que os discursos nestas matérias fossem por si sós suficientes para fazer de quem os escuta homens excelentes (segundo diz Teógnis), seria apenas preciso redigi-los, para logo ganharem , de uma forma justa, salários de montantes elevados (E.N. 2009, X. 9, 1179 b 1 - 5).
Para que os nossos jovens conheçam os valores e os exercitem para
que se transformem em virtudes é essencial que os mesmos sejam
transmitidos por educadores que dialoguem sobre eles. É importante que os
educadores sejam o exemplo, ajam virtuosamente ou esclareçam como agir
virtuosamente. E a este respeito Aristóteles é decisivo:
A palavra e o ensinamento não tem a mesma força junto de todos, mas a alma do que escuta tem de ser preparada de antemão pelo
76
trabalho através de diversas formas de habituação para poder sentir alegria e abjeção de um modo correto – do mesmo modo que uma terra é preparada para receber uma semente e a fazer fomentar (E.N. 2009, X, 9, 1179 b 25).
A maior parte dos homens nasce com uma predisposição para ser
virtuosa, podendo tornar-se virtude no adulto. A educação pode contribuir se
ocupando da razão e dos hábitos do comportamento desde a tenra infância.
Uma educação de valor é fruto de educadores que vivem virtuosamente e
refletem os valores éticos que possuem na intencionalidade de sua ação
educativa:
Se imaginamos uma criança que vive em um ambiente social onde as relações de reciprocidade praticamente não existem, ela dificilmente desenvolverá a capacidade de pensar as relações sociais por meio da cooperação. Imaginemos outra criança que viva num meio no qual valores como paz, justiça e respeito sejam trocados por outros como, violência, dominação e desrespeito. É bem provável, uma vez que tem a necessidade natural de inserir-se na comunidade que a acolhe, que tal criança não se desenvolva moralmente, pois está submetida a figuras de autoridade que proclamam tais valores – a violência, dominação e desrespeito - e agem inspiradas por eles (La Taille, 2009, p. 144).
Educação de valores é dar o exemplo agindo, praticando-os no cotidiano
escolar. Não pode haver incoerência entre a palavra e a ação. Educamos mais
pelas atitudes do que pelas palavras. E nós educadores devemos lembrar que
nossa influência se eterniza na vida de nossos alunos. Muito mais do que falar
ou escrever sobre os valores éticos, é fundamental praticá-los no dia a dia
escolar. Tanto a criança como o jovem constroem conceitos sobre o que é o
bem e o que é o mal e tantos outros conceitos pelo exemplo, em primeiro lugar
no seio familiar e depois no cotidiano escolar. Sabemos da grande influência
exercida pela família na vida de crianças e jovens. Durante muitos anos
ouvimos de vários educadores que o peso da influência familiar é muito grande
e por vezes negativo devido à situação econômico-social em que vivem esses
educandos. A escola é o lócus do desenvolvimento de regras de convivência
em grupo, similares àquelas que todos vivenciarão em sociedade, valores
éticos que serão encontrados no dia a dia da vida social: o respeito por um
espaço que é de todos, a justiça que não pune o inocente, a honestidade no
lugar da esperteza, a solidariedade, a fidelidade a um amigo, a compreensão.
77
A escola enquanto instituição socializadora forma cidadãos comprometidos,
participativos e transformadores de realidades garantindo assim a harmonia e o
bem estar de todos. Isto não pode ser apenas uma frase bonita há ser escrito
nos documentos intitulados “Projeto político pedagógico” de cada unidade
escolar e sim ser o resultado de ações educativas pautadas numa educação
ética. Educar eticamente requer diálogo, requer o estabelecimento de vínculos
afetivos, confiança, respeito. Rubem Alves divide a educação em duas partes:
educação das habilidades e educação das sensibilidades e ele sustenta que
sem a educação das sensibilidades, todas as habilidades são tolas e sem
sentido (ALVES, R. 2005).
No comentário de Coelho à Ética à Nicômaco de Aristóteles é afirmado:
Apenas na medida em que o homem é também racional surge para ele o desafio de controlar e dominar e por fim educar e conformar o seu desejo, isto é, a parte irracional apetitiva de sua alma, impondo-lhe a direção e a medida tal que lhe indica a sua razão, como sentido orientador (orthos logo). Isto abre para que, ao lado das capacidades (que são condições de possibilidade de o homem ser afetado por afecções, como capacidade de ter afeccções, de se emocionar), surjam as disposições ou hábitos, conceito capital da ética aristotélica, que são aquilo com que o homem se comporta bem ou mal relativamente às afecções (In: CAEIRO, A. de Castro. Ética a Nicômaco. 2009, p. 10).
Mas é preciso dizer que a escola apresenta dificuldades para trabalhar
com ética. Segundo o relato de muitos professores são vários os fatores que
impossibilitam este trabalho tais como: a indisciplina dos educandos, falta de
limites, níveis de aprendizagem insatisfatórios ou, até mesmo, despreparo dos
educadores e falta de estratégias a serem utilizadas como recursos
pedagógicos no desenvolvimento de uma educação ética. O fato é que a
dificuldade existe e talvez fosse necessária uma disciplina específica para o
assunto (Filosofia) e um especialista ( professor graduado em Filosofia) na
condução dessa disciplina desde os primeiros anos do ensino fundamental da
Educação Básica e não apenas no Ensino Médio como já existe. O próprio
Aristóteles deixou evidente a necessidade de um professor especialista:
Assim, é ao tocar cítara que executantes desse instrumento se tornam virtuosos ou maus. De modo análogo se passa com os construtores de casas e com todos os restantes peritos numa determinada perícia. É ao construir bem uma casa que os construtores se tornam bons construtores tal como é ao construir mal
78
uma casa que se tornam maus construtores. Se assim não fosse, não precisávamos para nada de um instrutor e todos se tornavam a partir de si próprios bons ou maus a respeito de qualquer atividade (E.N. 2009, II. 1103 b 10 – 15).
A educação escolar, afirma Marques (2012, p.49) “não é uma escolha é
um direito, um dever. Um direito pessoal e um dever social que agregam
valores que beneficiam a edificação de uma sociedade mais justa e
harmoniosa”.
Educar é permitir a transformação pela autonomia e liberdade
conquistadas através da “habituação como um processo de submissão da
parte inferior da alma à superior, da conquista cotidiana de bons hábitos tais
que resultem na conformação do modo de desejar” (COELHO, Nuno M.M. dos
Santos. In: CAEIRO, A. de Castro. Ética a Nicômaco. 2009, p. 10).
Daí a extrema importância de nos atermos à discussão sobre o prazer
que Aristóteles expõe no Livro X.I: “o prazer é uma das possibilidades extremas
mais profundamente domiciliadas na nossa natureza”. E é esse o motivo pelo
qual na educação é necessário estar atento aos mais jovens expostos às
vicissitudes e no encontro com prazeres e sofrimentos.
Segundo Aristóteles,
Parece de uma importância extrema para a realização da excelência do caráter o sentir prazer e aversão a respeito do que é devido. Prazer e sofrimento estendem-se ao longo de toda a nossa vida. Têm peso e influência sobre a constituição da excelência e a possibilidade em alcançar a vida feliz (E.N. 2009, X. I. 1172 a 23 - 25).
Exatamente por esses fenômenos serem tão importantes para a
constituição da excelência, Aristóteles no Livro X: cita as opiniões correntes a
respeito do tema; desenvolve sua própria representação e faz comentários.
Quanto às opiniões sobre o prazer ele cita duas posições extremas: que uns
consideram ser o prazer o bem; outros dizem que o prazer é qualquer coisa
desprezível que escraviza o homem. “Pensa-se que o prazer é uma das
possibilidades extremas mais profundamente domiciliadas na nossa natureza”
(E.N.2009, X, 1, 1172 a 20). “Prazer e sofrimento estendem-se ao longo de
toda a nossa vida”. “Têm peso e influência sobre a constituição da excelência e
a possibilidade em alcançar a vida feliz” (E.N. 2009, X, 1, 1172 a 25).
79
A nós particularmente interessa-nos conhecer como Aristóteles
desenvolve sua própria representação, pois é preciso admitir que as ações
honestas e virtuosas façam da criança e do jovem aquele cidadão crítico,
participativo e transformador de realidades.
Por isso, no processo educativo os meios podem contribuir para incutir
no jovem o hábito na realização do bem. Aristóteles demonstrou sua
preocupação com os meios que permitem alcançar a virtude. Para ele ninguém
aprende sozinho, mas com o outro, com o modo de ser do outro, com as
virtudes do outro. E também deixou claro o quão é importante o conhecimento
de si próprio.
Deve-se por outro lado examinar relativamente a que erros é que tendemos mais facilmente a ser levados. Todos tendemos naturalmente para coisas diferentes. Isto será melhor reconhecido a partir do prazer e do sofrimento que se formam em nós. Temos de nos arrastar para a direção contrária; e temos de nos afastar amiúde para fora do erro para podermos chegar ao meio e fazer exatamente o que fazem os que aplainam as partes rugosas das madeiras (E.N. I, 1109 b 3 - 10).
O conhecimento de si próprio: saber o que há em excesso e o que está
em falta, facilitando o direcionamento para a melhor escolha, para a mediania.
Durante o processo educativo a escola, pode também, possibilitar à criança e
ao jovem o exercício de atitudes boas, similares às de um virtuoso, que os
tornem homens de bem e corretos; e isto pode se dar pelo exemplo do
professor de filosofia.
Através da racionalidade de outros (adultos) que educam os jovens,
estes podem ver o que é o melhor a ser feito nas circunstâncias particulares e
se utilizando da razão vão aprendendo a agir de modo que os desejos e
apetites estejam em harmonia com a razão aperfeiçoando assim o caráter. A
criança e o jovem orientados e pelo hábito vão se tornando capazes de tomar
decisões por conta própria e agir virtuosamente. Ou seja, passam da ação por
autoridade à ação em vista do fim virtuoso desejado por si próprio em perfeita
harmonia com a razão.
A escola é o lócus da educação. O processo educativo é apontado por
Aristóteles como imprescindível para a criação de bons hábitos, bem como o
exercício e o tempo.
80
Ser educado de uma determinada maneira desde a mais tenra idade, a
fim de nos deliciarmos e de sofrermos com as coisas certas deveria ser a
preocupação das escolas de ensino fundamental desde os primeiros anos.
O percurso traçado até sugere que faz toda a diferença habituar desde
cedo para a escolha correta, para o bem e consequentemente para a aquisição
das virtudes morais. É relevante dar importância a insistência por parte de
Aristóteles sobre a importância do hábito, do tempo e da experiência na
formação ética das crianças e jovens.
Assim, podemos inferir conclusões: o processo educativo, na escola,
tem papel relevante na formação ética de nossas crianças e adolescentes.
Dado que, como diz Aristóteles, o homem é o princípio de suas ações e que as
melhores decisões que realiza devem ter um ponto de união, de equilíbrio do
intelecto (razão) com o desejo, a ação virtuosa será fruto do hábito e a virtude
adquirida a partir da experiência.
Na escola, durante o processo educativo, se pode proporcionar às
crianças e jovens, desde cedo, sistematicamente, à luz de ações similares às
virtuosas, através de circunstâncias do cotidiano, a melhor decisão, de maneira
justa e reta e o justo meio.
É habituá-lo a discernir os aspectos relevantes das circunstâncias particulares para a realização do que é melhor naquela circunstância - habituá-lo ao exercício da virtude da phronesis, que consiste no hábito de decidir, nas circunstâncias concretas, a partir de modelos do bom e do melhor que estão acima de sua individualidade, porque são os modelos que lhe dão a sabedoria, por um lado,e, por outro porque são os modelos estabelecidos pelas leis (AUBENQUE, 2003, p. 86).
Para adquirirmos uma disposição virtuosa, como já dissemos, devemos
praticar atividades similares às ações virtuosas, pois no processo de aquisição
da virtude moral, agimos similarmente ao homem virtuoso. Nesse processo
praticar essas ações mesmo ainda não sendo propriamente virtuosos,
justamente para que se torne um hábito e também para que aprendamos a
raciocinar com prudência. Nas palavras de Aristóteles: “Com efeito, não é uma
diferença de somenos o habituar-mo-nos logo desde novos a praticar ações
deste ou daquele modo. Isso faz uma grande diferença. Melhor, faz toda a
diferença” (E.N. 2009, II, 1, 1103 b 23-25).
81
Aristóteles disse: “se alguém tiver como única excelência a sensatez,
logo terá presente nele todas as restantes” (E.N. 2009, VI, 13, 1145 a 1).
Então, proporcionar às crianças e jovens, por meio de ações similares às
virtuosas para que, futuramente, em cooperação com o desenvolvimento da
reta razão eles possam proceder à possibilidade da boa escolha e decisões
autônomas e certas é a melhor atitude a se tomar porque o prepara para uma
vida em comunidade e da melhor maneira possível; o prepara para agir com
responsabilidade moral e isto requer que ele reconheça o “outro” como homem
de direitos e deveres iguais. Afinal, o homem não é feliz sozinho. Depende do
“outro” em todos os sentidos e o seu limite de ação do “eu” é a existência do
“outro”. “Agir moralmente é, fundamentalmente, reconhecer as outras pessoas
como pessoas de mesma dignidade que eu”.7
Por isso, precisamos nos aproximar do agir corretamente do ponto de
vista moral como é visto por Aristóteles “similar à arte do arqueiro que visa um
alvo”. Revertendo uma cultura que nos distancia de nosso ergon, que nos
distancia de fazermos o bem e agirmos pela razão.
7 ZINGANO, M. As virtudes morais. Filosofias: o prazer do pensar. Coleção dirigida por
Marilena Chauí e Juvenal Savian Filho. São Paulo: Martins Fontes. 2013. p.16.
82
CONCLUSÃO
Há muitas explicações e hipóteses sociológicas para os avanços dos
últimos anos em nossa sociedade. Mas, para os “desvios” de caráter, a
incontinência, a fraqueza da vontade ou ainda a falta de domínio e suas
consequências negativas muitas explicações são discordantes.
Diante do atual contexto marcado pela violência, pelo desrespeito,
preconceito e falta de limites entre outros, estou certa de que a alternativa para
buscar soluções na formação do caráter de nossos jovens é a educação pelos
valores que privilegie a temperança, a coragem a prudência e outros valores
fundamentais para a nossa vida.
Afinal, “não se estuda ética só para que cresça o saber, mas para que
sejam melhores esses seres imorais que somos nós” (PERINE, 2006, p.14).
Escolhi o título “Ética das Virtudes e a educação em Aristóteles, pelo fato
de considerar pertinente e necessário delimitar um espaço, um tempo, para
pensar sobre o exercício das virtudes que, segundo Aristóteles, contribui para a
arte de viver bem e consequentemente o caminho para a liberdade nas
escolhas da melhor ação com responsabilidade.
Fernando Savater no livro Ética para meu filho relata:
Nós, seres humanos, sempre [...]. Podemos dizer “sim” ou “não”, quero ou não quero. Por mais que nos vejamos acuados pelas circunstâncias, nunca temos apenas um caminho a seguir, mas vários. Quando falo de liberdade, é a isso que estou me referindo: ao que nos diferencia das térmitas e das marés, de tudo que se move de modo necessário e inevitável (SAVATER. 2012. p. 24).
Savater, certamente inspirou-se em Aristóteles: ser livre é ter o poder de
dar a si mesmo seu próprio fim e ser para si mesmo seu próprio fim.
Precisamos estar mais atentos para esse “saber viver”, conhecido como vida
ética e nos apropriar-mo-nos desse conhecimento que poderá resultar na
geração de oportunidades para que a criança e o jovem pelo exercício das
virtudes encontrem a eudaimonia (felicidade) tão desejada por todos os
homens. Pois, segundo Aristóteles viver bem é viver uma vida caracterizada
pelo uso excelente das nossas faculdades racionais, e esta existência
caracteriza-se pela aplicação de regras gerais da vida virtuosa a situações
particulares que exigem deliberação moral.
83
O tema é relevante porque o pensamento de Aristóteles e suas
preocupações filosóficas são expressão e interpretação das questões que seu
tempo lhe propunha, não tão distantes do que nos propõe o século XXI.
Sentimos necessidade de uma educação do agir correta e sadia, desde
a mais tenra idade, como bem afirmou Aristóteles: “Com efeito, não é uma
diferença de somenos o habituar-mo-nos logo desde novos a praticar ações
deste ou daquele modo. Isso faz uma grande diferença. Melhor, faz toda a
diferença” (E.N. 2009, II, I. 1103 b 29).
A escola é um ambiente de orientação ética indiretamente. Na escolha
dos conteúdos para a aprendizagem há valores, sejam eles implícitos ou
explícitos.
Segundo La Taille (2009, p. 80 e 81):
Em primeiro lugar porque me parece inconcebível que instituições nas quais as crianças e os jovens passam anos e anos, possam não se preocupar com dimensões de vida que vão além da aprendizagem de determinadas disciplinas. E, em segundo lugar, porque os próprios conhecimentos transmitidos na escola são portadores de sentido que transcendem a especificidade de cada matéria. A escola é uma verdadeira usina de sentidos de vida (ética) e de convivência (moral) e não há outra instituição social de que se possa dizer o mesmo.
Parece de suma importância para a realização da excelência do caráter
nos preocupar com os meios pelos quais as crianças e os jovens estão sendo
educados. Para um homem ser bom e são, deve ser bem educado e adquirir
bons hábitos por meio do exercício. Preparar o exercício de modo adequado
para nutrir a semente, nos parece de extrema importância. A virtude
pressupõe: vontade, dirige a decisão, a escolha e conduz à liberdade, pois é o
homem quem dá origem às ações na medida em que pode fazer ou deixar de
fazer as coisas que estão no âmbito do seu poder.
Propusemo-nos a estudar Ética a Nicômaco por acreditar que nela
encontraríamos uma orientação para a educação ética. Afinal, o nosso maior
objetivo é continuar encantando nossos alunos para que desejem a felicidade,
façam escolhas para o bem, amem, respeitem sejam responsáveis por um
mundo melhor para todos, conquistando assim a felicidade. E a educação ética
tem papel fundamental para essa conquista, pois o próprio Aristóteles
reconheceu:
84
Se é melhor obter assim a felicidade através de uma certa aprendizagem e preocupação do que ser feliz por sorte, é mais razoável obtê-la desse modo (E.N. 2009, I, 9. 1099 b 21 – 23). Confiar o sublime e o mais excelente ao acaso seria completamente absurdo (E.N. 2009, I, 9. 1099 b 25).
Mudança se faz com o agir humano. Ou educamos crianças e jovens
pelos valores para que quando adultos reconheçam os valores humanos ou
estaremos arriscados a conviver com uma geração afastada da sua essência,
desumanizada. Educar pelos valores tem muitos desafios e é uma tarefa árdua.
Mas não é uma tarefa para qualquer pessoa.
O próprio Aristóteles afirmou:
Porque quem propõe como tarefa alterar para uma boa disposição quem quer que seja não poderá ser uma pessoa qualquer, mas, se, de todo, houver alguém que o consiga, terá de ser o perito nessa área, tal como acontece na medicina e as restantes áreas onde operam uma certa preocupação e sensatez (E.N. 2009, X, 9.1180 b 27 - 30).
É necessário um educador que forme indivíduos capazes de decidir em
cada situação particular unindo o que deseja fazer com o que deve ser feito. E
para isso é necessário cultivar esse “como” fazer.
Ao observarmos a vida dos gregos antigos, percebemos que eles eram
guiados pelas condutas dos heróis. Valorizavam formas de expressão dos
jogos, dos espetáculos de teatro. Eles aprendiam nessas formas de expressão
um modo de ser, um modo de viver que salientava a vida daquela sociedade.
Aristóteles, homem dessa Grécia pensou a vida humana como ela se
desenrolava na cidade (polis) percebendo o inacabamento da mesma e a
necessidade da busca de uma finalidade. A essa finalidade ele nomeou de
Bem e na busca dele o homem escolhe o melhor caminho fazendo uso da
razão.
Quando Aristóteles confere importância à educação para o
desenvolvimento de um processo de melhoramento da natureza que visa
formar o homem para ser muito mais do que um animal de logos, ele aponta
para uma tarefa comunitária, ou seja, não se aprende sozinho, mas com o
outro, com a maneira de ser do outro, com as virtudes dos outros.
85
Assim, a educação promove no homem a necessidade de educar-se,
para ser sábio capaz de bem decidir para bem viver. Para Aristóteles a
educação tem em mira a formação de homens bons. O homem é capaz de dar
a sua ação um fim nobre, uma ação responsável refletida e comprometida com
o bem comum.
O próprio Aristóteles escreve sobre o poder de quem compreende:
Mas quem tiver o poder de compreensão, distingue-se no agir. A disposição que primeiramente era apenas semelhante à excelência ter-se-á tornado nessa altura uma excelência no sentido autêntico do termo (E.N. 2009, VI, 13. 1144 b 12).
Quando se aprende a razão do porquê algo deve ser feito, ocorre uma
diferença no agir. Aristóteles escreve que não é a razão, mas a “virtude
natural ou habitual” que fornece a opinião correta sobre os princípios. Nada,
com efeito, impede que tenhamos a inclinação natural para a temperança e isto
desde a mais tenra infância, tampouco nos obriga a tanto; ter de nascença
certas tendências pode ser útil, mas tudo se decide ao longo da formação do
sujeito mediante a educação e os hábitos adotados. (ZINGANO, 2009. p.
495/496).
Para concluir, um homem virtuoso adquire essa condição pelo
hábito. E a escola, através de situações planejadas intencionalmente similares
às de um homem virtuoso contribui para esse aperfeiçoamento, por meio do
hábito.
É possível afirmar que ética possui uma relação com a pedagogia e os
processos educativos são, também, processos éticos. Cabe à escola, então,
como já foi dito um educador que forme indivíduos capazes de decidir em cada
situação particular unindo o que deseja fazer com o que deve ser feito. E para
isso é necessário cultivar esse como fazer.
Faço minhas as palavras de Marques (2012. p.16):
(...) “A colheita só acontece depois do plantio. Então, é importante
fazer germinar essa semente!”
86
É necessário dizer sobre o mar de dificuldades enfrentadas ao construir
o nosso trabalho, mas a contribuição que poderemos oferecer com esta
pesquisa aos educadores que, como nós, se aventurarem a conhecer mais
sobre o filósofo e sua ética das virtudes animou tão pretensiosa ousadia. Deixo
claro, também, para todos que Ética à Nicômaco é uma ética que precisa ser
reinterpretada e remodelada na contemporaneidade. E para terminar só posso
dizer que a pessoa que iniciou este estudo pouco tem a ver com a que o
concluiu.
87
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