IMPACTO DAS NOVAS BIOTECNOLOGIAS NO PENSAMENTO...
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ALEXANDRE DIOGO GUERRA
IMPACTO DAS NOVAS BIOTECNOLOGIAS NO
PENSAMENTO POLÍTICO
- A PROBLEMÁTICA DAS CÉLULAS ESTAMINAIS
EMBRIONÁRIAS -
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais
Lisboa
2011
Dissertação apresentada para a obtenção do Grau
de Mestre em Ciência Política no curso de
Mestrado em Ciência Política, Cidadania e
Governação, conferido pela Universidade
Lusófona de Humanidades e Tecnologias.
Orientador: Prof. Doutor Hermínio Martins
Co-orientador: Prof. António Filipe
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 2
Resumo
A dissertação de mestrado “O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político – A
problemática das células estaminais embrionárias” partiu do pressuposto basilar de que a
Humanidade se depara com uma ruptura de modelo de pensamento sem paralelo na História.
O Homem detém hoje um conhecimento científico sem precedentes e vê-se perante o
potencial das novas biotecnologias que, pela primeira, vez podem alterar a forma de olhar
sobre si próprio, não apenas enquanto ser social mas sobretudo como entidade biológica.
Todo o enquadramento da dissertação tem em consideração os diferentes momentos da
História em que certos homens levados pela inevitabilidade do progresso intelectual e
científico contribuíram decisivamente para alterar profundamente os modelos de pensamento.
Modelos que, surgidos em determinado contextos históricos, foram considerados de ruptura e
revolucionários.
Em sentido contrário, numa espécie de reacção conservadora, foram surgindo forças de
autoridade e de poder, rejeitando novos modelos e paradigmas que, de uma maneira ou de
outra, pudessem pôr em causa o sistema de sociedade instituído.
As grandes rupturas na História da Humanidade resultaram desse confronto de ideias, entre
um modelo de pensamento vigente e um novo paradigma proposto.
Ao longo da dissertação apresentada são analisados vários períodos de ruptura, com particular
enfoque para o advento da genética no século XIX e posterior revolução biotecnológica nos
Estados Unidos que, num futuro próximo, poderá vir a curar doenças congénitas e
degenerativas, funcionando como uma espécie de “kit de reparação do corpo humano, e, num
horizonte mais alargado, poderá potenciar a possibilidade da criação de um “outro eu”,
produto do Homem e não do livre arbítrio.
Pela primeira vez, o Homem tem conhecimento e técnica para criar um mundo pós-humano,
onde cada um é resultado da vontade individual dos seus progenitores, dando-se, assim, início
a uma nova História.
Mas, tudo isto levanta uma série de questões morais, éticas e políticas. Dilemas quanto aos
processos de investigação e quanto às consequências que a sua aplicação poderá trazer para a
própria Humanidade.
Como trabalho de Ciência Política não cabe no propósito deste tecer cenários filosóficos
quanto ao futuro do Homem face aos avanços da investigação genética, mas sim tentar
analisar e procurar encontrar um padrão de comportamento na forma como os legisladores e
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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governantes, mediante a sua base doutrinária, têm abordado uma matéria cujas implicações
terão eventualmente impacto na concepção da própria Humanidade.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 4
Abstract
The dissertation "The Impact of New Biotechnologies in Political Thought - The issue of
embryonic stem cells" assumed that humanity is facing a rupture in the current thinking
paradigm without parallel in History.
Mankind holds today an unprecedented scientific knowledge and finds herself facing the
potential of new biotechnologies that for the first time can change the way Man look at
himself, not only as social being but rather as a biological entity.
The entire framework of the dissertation takes into account the different moments in History
when certain men led by the inevitability of scientific and intellectual progress contributed
significantly to fundamentally change the thinking patterns. Models that emerged in particular
historical contexts, were considered breaking and revolutionary.
On the opposite, a kind of conservative reaction, through emerging forces of authority and
power, rejecting new models and paradigms that could undermine the established system of
society.
Major disruptions in the history of mankind resulted from this clash of ideas between an
existing model and a proposed a new paradigm.
Throughout the thesis presented is analyzed various periods of disruption, with particular
focus on the advent of genetics in the nineteenth century and later biotechnology revolution in
the United States that in the near future, could cure congenital and degenerative diseases,
functioning as a sort of "repair kit of the human body, and over a longer horizon, could
increase the possibility of creating an alter ego, a product of man and of free will.
For the first time, humans have knowledge and technique to create a post-human world,
where each individual is the result of the will of their parents, giving up, thus beginning a new
history. But all this raises a number of moral, ethical and political. Dilemmas about the
investigation processes and the consequences that their application can bring to humanity
itself.
As a work of political science does not fit the purpose of weaving scenarios philosophical
about the future of the human face of advances in genetic research, but rather try to analyze
and try to find a pattern in how legislators and governors, through their doctrinal basis, have
addressed an issue whose implications will eventually impact on the design of humanity itself.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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Índice
Introdução…………………………………………………………………………6
Capítulo 1 – Decisores e ruptura de paradigmas……………………………8
Capítulo 2 – Da “selecção natural” à “dupla hélice”………………………..29
Capítulo 3 – Biotecnologia: uma nova fonte de rendimento………………..56
Capítulo 4 – Problemática de uma década nos EUA………………………..69
Capítulo 5 – A problemática das células estaminais embrionárias no resto do
mundo………………………………………………………………………………98
Capítulo 6 – União Europeia: diferentes países, diferentes modelos (o caso
português)…………………………………………………………………………..107
Conclusão………………………………………………………………………......118
Bibliografia…………………………………………………………………………121
Índice remissivo…………………………………………………………………….127
Apêndices……………………………………………………………………………I
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 6
Introdução
Quando em 2003 foi dado como concluído o Projecto do Genoma Humano (PGH), dois anos
antes do que estava previsto, os cientistas tinham acabado de vencer uma importante etapa no
campo da investigação genética e na área das novas biotecnologias, num percurso iniciado no
século XIX. Mas, concomitantemente acentuaram-se dilemas morais e éticos, que já vinham
acompanhando a evolução do processo científico que, particularmente nesta matéria, sofreu
um forte impulso no início da década de 70 do século XX, para mais tarde, nos anos 80,
assistir a uma “louvada revolução biotecnológica”.
Estas descobertas foram sendo exploradas por empresas como a Genentech ou a Biogen,
pioneiras na utilização das “novas tecnologias genéticas”. Hoje, muitos dos gigantes
farmacêuticos chamam até si os custos da investigação em inúmeros campos, incluindo o das
células estaminais embrionárias.
Da reprodução de órgãos geneticamente iguais à possível criação de um “super-homem”, a
sociedade encontra-se no centro de um debate que, embora ainda tímido nalguns Estados e até
mesmo ausente noutros, ganha protagonismo na agenda política.
Tal como o passado já demonstrou, a comunidade científica parece caminhar para a
inevitabilidade da descoberta, a um ritmo que, em última instância, só pode ser controlado
pelo poder político. A investigação em células estaminais embrionárias (devido às suas
características únicas que lhes permitem transformar-se em outros tipos de células – “blood
cells”, “neural cells”, “muscle cells”) assume particular importância no campo da genética,
uma vez que poderá ser a porta de entrada para uma sociedade perto da utopia, onde, segundo
alguns, os malefícios que hoje assombram o Homem se tornariam coisa do passado.
Certos cientistas não têm dúvidas ao afirmar que o uso de células estaminais embrionárias
poderá vir a curar doenças congénitas e degenerativas. Em termos mais amplos, a utilização
das células estaminais embrionárias poderá funcionar como uma espécie de “kit de reparação”
do corpo humano. Teoricamente, será possível usar as células estaminais para “(re)criar vida”,
mais concretamente tecidos vivos e totalmente compatíveis com o eventual receptor.
Mas, tudo isto levanta uma série de questões morais, éticas e políticas. Dilemas quanto aos
processos de investigação e quanto às consequências que a sua aplicação poderá trazer para a
própria Humanidade.
Quando Francis Fukuyama falou no “fim da história”, apropriando-se de uma concepção
determinista, admitiu mais tarde que a génese da destruição da sua tese se encontrava
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precisamente nas novas biotecnologias. A possibilidade de um “outro eu”, produto do Homem
e não do livre arbítrio, faria emergir um mundo pós-humano, dando-se, assim, início a uma
nova História.
Como trabalho de Ciência Política não cabe no propósito deste tecer cenários filosóficos
quanto ao futuro do Homem face aos avanços da investigação genética, mas sim tentar
analisar e procurar encontrar um padrão de comportamento na forma como os legisladores e
governantes, mediante a sua base doutrinária, têm abordado uma matéria cujas implicações
terão eventualmente impacto na concepção da própria Humanidade.
Partindo do princípio que a uma determinada decisão corresponde um específico modelo
ideológico e de pensamento, será possível estabelecer-se uma distinção esquerda/direita em
função das atitudes manifestadas relativamente à investigação e aplicação dos estudos sobre
células estaminais embrionárias?
Utilizando o caso americano como objecto de análise, parece constatar-se essa ideia. A
administração republicana liderada por George W. Bush, e dominada por uma corrente (neo)
conservadora, não se coibiu de exercer pressão junto da sociedade no sentido de travar a
investigação em células estaminais embrionárias. Por outro lado, a eleição de um Executivo
mais liberal demonstrou libertar-se com maior facilidade de conceitos antigos e embarcar
numa aventura que poderá metamorfosear a própria Humanidade.
Mas, apesar da linearidade dos exemplos referidos, verificam-se efectivamente posições
conservadoras e progressistas em ambos os campos ideológicos da direita e da esquerda, no
que respeita à investigação em células estaminais embrionárias.
Assim, será razoável supor-se que estas matérias venham a ser resolvidas num amplo
consenso político e social, tendo em conta a magnitude das implicações suscitadas pelo
avanço das novas biotecnologias, especificamente no campo das células estaminais
embrionárias? E que reflexos pode tudo isto vir a ter nas ideologias políticas de amanhã?
O trabalho aqui apresentado não pretende dar respostas absolutas a estas questões, mas ser um
contributo no âmbito da Ciência Política para o enquadramento e para uma melhor
compreensão da problemática das novas biotecnologias, em geral, e das células estaminais
embrionárias, em particular, nas sociedades pós-modernas.
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I – Decisores e ruptura de paradigmas
A imagem da Humanidade perante uma encruzilhada não é nem nunca foi um mero recurso
estilístico para enriquecer um discurso religioso ou ideológico, para embelezar um qualquer
texto literário, compor um trecho cinéfilo ou uma fala teatral. Por diversas vezes, ao longo dos
tempos, a Humanidade tem sido confrontada com escolhas que pressupõem consequências
que vão alterando e transformando o conceito em si.
Da Humanidade pós-religiosa à Humanidade pós-nuclear, passando pela Humanidade pós-
política1, vários foram os “mundos” criados pelo fruto do exercício intelectual ou cultural,
sempre na demanda de uma nova Humanidade, deixando para trás a antiga, entretanto
inadequada aos tempos vindouros. O filósofo ou o ideólogo, o religioso ou o cientista, o
artista ou o académico já foram confrontados com a escolha entre o antigo e o novo mundo.
Mas, se o filósofo fez essa escolha há muito tempo, o cientista, por seu lado, nem tanto. É
harmoniosamente aceite a ideia de que a filosofia já viveu a sua idade de ouro (naquilo que
ficou conhecido como período clássico da Humanidade), enquanto que a ciência ainda parece
estar a dar os primeiros passos. Tudo indica que tempos gloriosos ainda a esperam.
Uma Humanidade criada das cinzas de um conflito nuclear à escala global teria certamente
que lutar pela sobrevivência da espécie, num mundo que estaria de regresso às origens do
primitivismo social, eventualmente mergulhado num “estádio de natureza” hobbesiano, sem
qualquer tipo de ordem ou contrato social, reinando o caos e anarquia, onde a lei que valeria
seria a do mais forte. Aqui o mundo novo representaria um retrocesso na História da
Humanidade, através da destruição das conquistas que a mesma tinha alcançado por mérito
das escolhas e descobertas dos homens.
O decisor político, que em última instância ordenaria a auto-destruição da Humanidade, num
gesto calculado e analisado (ou não tivesse na sua posse a informação necessária para
antecipar as consequências do seu acto), assumiria o “papel” de Deus, ao interferir com a
existência das espécies, incluindo a única dotada com a faculdade do “entendimento”2. Um
acto político desta dimensão originaria um mundo novo, mas não necessariamente um novo
Homem, como mais adiante será explanado.
1 Nas sociedades pós-modernas muito se fala no “fim das ideologias”. O esbatimento das diferenças ideológicas
partidárias é um factor que conduz à recorrente afirmação de que a “política morreu”, assim como as ideologias
que a suportam. 2 O filósofo inglês John Locke é peremptório quando vê no “entendimento” a característica diferenciadora entre
o Homem e as restantes espécies. Ou seja, parafraseando Locke no seu Ensaio Sobre o Entendimento Humano,
“é o entendimento que eleva o Homem acima dos outros seres sensíveis”.
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Se o político teve de enfrentar a “encruzilhada” da Humanidade, também anteriormente o
filósofo. Imagine-se a Humanidade sem a Grécia clássica, da qual saíram os ensinamentos que
sustentam aquilo a que hoje se chama mundo ocidental. O filósofo discorreu sobre a
problemática da existência da própria Humanidade, como detentora de uma identidade
comum, assente numa matriz de pensamento.
É desta matriz de pensamento que nasce uma certa ideia de sociedade com contornos
inexistentes anteriormente3. Veja-se, por exemplo, o que escreve Mendo Castro Henriques na
introdução à Política de Aristóteles (Estagira, 384-322), quando refere que a filosofia
aristotélica “tornou-se a base de todas as escolas de filosofia política no mundo intercultural
da Idade Média – árabe, judaica e cristã”4. Lê-se mais à frente que “se a polis é o domínio da
actualização da natureza humana, para a compreender temos que compreender a natureza do
homem que a forma”.
O exaustivo estudo aristotélico da natureza do Homem enquanto parte de uma comunidade
contribuiu para a construção de um novo modelo de sociedade. A cidade, na qual a
Humanidade se reveria na sua plenitude, é a “comunidade completa”5 e é nela que o homem,
como “um ser vivo político”, se descobre. “Aquele que, por natureza e não por acaso, não
tiver cidade será um decaído”6, ou seja, aquele que não beber a inspiração dos valores e dos
princípios da polis torna-se um pária, fora da Humanidade.
O pensamento de Aristóteles estabelece aqui um pressuposto que ajudará a definir o homem
numa sociedade e, como tal, a concepção que este próprio tem de si, ou seja, da Humanidade.
A ruptura de pensamento levada a cabo por Aristóteles cria um “novo homem” social e
político, tal como mais tarde outras revoluções de pensamento criariam num “novo homem”
“religioso”, “ideológico” ou “científico-tecnológico”. Todos eles personificariam uma ideia
de Humanidade, com os seus valores e princípios, crenças e medos, virtudes e defeitos.
Ao abolir a escravatura por dívidas, Sólon (Atenas, 638a.C.-558a.C.) estaria a dar o primeiro
passo daquilo que muito mais tarde viria a ser um valor basilar da Humanidade, assim como
3 Convém não esquecer os modelos organizacionais de sociedades antigas, como as da Suméria, nomeadamente
a da I Dinastia Babilónica (1894 a.C-1579 a.C), sob o reinado de Hamurábi, responsável pela elaboração de um
dos primeiros códigos de leis de conduta social da Humanidade. O Código Hamurábi é um conjunto de
regulamentos gravados numa pedra, ilustrados com as figuras do rei Hamurábi e do deus-Sol Shamash. Este
“documento”, que resistiu ao passar dos tempos e pode ser visto no Museu do Louvre, foi de tal forma inovador
que determinadas menções relativas ao papel da mulher na sociedade são mais honrosas do que algumas que
estão vigentes em sociedades contemporâneas. 4 ARISTÓTELES – Política, nota prévia de João Bettencourt da Câmara, prefácio de Raul M. Rosado
Fernandes, introdução de Mendo Castro Henriques, tradução de António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho
Gomes (Lisboa: Vega, 1º edição em português feita a partir do grego, 1998), pag. 18. 5 Idem, pag. 53
6 Idem, ibid
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Péricles (Atenas, 495a.C.-429a.C.), ao legislar sobre a mulher7, estaria a introduzir um
elemento (valor jurídico à mulher) novo na sociedade. Mais tarde é Séneca (Córdoba, 4a.C.-
68), filósofo e conselheiro de Nero (Âncio, 37-68), que contribui para reforçar aqueles valores
e princípios. “[Séneca] Foi o primeiro a condenar sem reserva os combates de gladiadores e a
exprimir abertamente o seu desprezo por os que neles se compraziam; ensinava a igualdade
dos homens, segundo a natureza e perante a filosofia. Defendeu os escravos, ensinou que se
devia reconhecer e respeitar neles a humanidade, citava exemplos de virtude e de grandeza de
alma entre os escravos, e costumava opor os senhores, escravos dos seus vícios, aos escravos
librés na sua virtude.”8
Pode dizer-se, então, que a Humanidade foi evoluindo ao longo dos tempos, de acordo com os
modelos de pensamento vigentes. O Homem como ser pensante foi alvo de importantes
transformações, originando diferentes concepções de Humanidade. O Homem das “luzes”
teria certamente uma noção de si e do mundo diferente daquela que teria o Homem medieval,
assim como o Homem da cidade-Estado via a Humanidade de outra maneira do que o Homem
ideológico9.
A Humanidade tem sido assim vista como um conjunto de valores e princípios, que ao longo
dos tempos têm sido moldados de acordo com as revoluções intelectuais verificadas em
diferentes épocas. Se Aristóteles foi um actor fundamental num desses processos de ruptura e
de inovação da História, contribuindo para o progresso da Humanidade, sendo a Política, por
exemplo, mais do que um tratado sobre ciência política, mas igualmente um tratado sobre um
modelo de organização de sociedade, também outros homens foram capazes de fomentar
novas ideias e paradigmas de pensamento que alteraram a forma de como o Homem se via a
ele próprio como ser social integrado numa comunidade.
Sendo assim, que Humanidade seria a do século XXI sem a fraternidade de Jesus Cristo, o
“pecado original” de Santo Agostinho (Tagaste, 354-430) ou os ensinamentos de São Tomás
de Aquino (Roccasecca, 1227-1274)? Haveria certamente uma Humanidade, mas uma
Humanidade diferente. Tal como a Humanidade de hoje é regida por valores diferentes
daqueles que estavam impregnados no Homem medieval, este vivendo sob o primado da
religião, o que o tornava uma criatura de Deus e, como tal, sem soberania nos seus destinos.
7 Este continua a ser um tema controverso entre os académicos.
8 SAUUSSAYE, Chantepie de la – História das Religiões, prefácio do autor, tradução de Lôbo Vilela (Lisboa:
Editorial Inquérito, 1942), pag. 800 9 Ascensão das ideologias nos séculos XIX e XX.
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O Judeu de Nazaré divulgou a mensagem e os seus seguidores disseminaram-na. O Império
Romano, que outrora tentara asfixiar os cristãos, viria a tornar-se no instrumento fundamental
para transformar uma “seita” que até então se cingia às fronteiras da Palestina numa religião
universal.
Passou a haver um mundo cristão e uma Humanidade cristã. O homem pós-Cristo ou “d.C.”
passou ver-se de uma maneira diferente, sendo resultado da revolução espoletada pelo
nazareno.
No meio de todo este processo10
o governante esteve sempre presente, numa tentativa de
condicionar os acontecimentos de acordo com a sua visão. Numa análise mais ampla, o
decisor ou legislador teria como objectivo último reprimir uma rebelião que, no seu entender,
colocaria em causa a ordem romana instituída e todos os preceitos em que assentava. Estava
em causa um modelo de sociedade que, apesar de conter alicerces que ainda hoje sustentam
parte do pensamento ocidental, estava desprovido da religiosidade cristã.
Só com esta confluência é que Roma se completou como modelo de sociedade inspirador para
o futuro da Humanidade. “A Europa Ocidental é a herdeira de Roma. Roma foi o veículo de
cultura do mundo helénico, que incorporou os valores ocidentais, modelados pelo
cristianismo e pelo direito romano, até aos nossos dias; a implantadora de uma civilização de
cidades, disseminadora da família de línguas românicas, autora de uma literatura que inclui
história política que, juntamente com os gregos e com os hebreus, forneceu eruditos europeus,
escritores e homens de Estado com um stock comum de experiência histórica e de modelos
até ao século XIX… e assim poderíamos continuar, recordando os feitos romanos na
engenharia, na construção de estradas, na arquitectura monumental e assim por diante.”11
Os rabinos, reunidos no Sinédrio, e Pilatos (?), a extensão do poder de Roma na Palestina,
tentaram evitar, através do poder legal e judicial que lhes era reconhecido, que Jesus Cristo e
seus seguidores fundassem o cristianismo, receando que este viesse a assumir uma forma
perturbadora no modelo de pensamento da sociedade romana. Face às descobertas religiosas
com que se deparava, houve a necessidade, por parte do poder político e religioso, de
controlar um movimento de ruptura.
Esta é uma tendência que se impõe aos governantes de impérios, reinos, Estados, sempre que
confrontados com o desconhecido, resultante de revoluções políticas, sociais, culturais,
10
Um processo religioso e também político. 11
FINER, S. E. – A História do Governo, tradução de José Espadeiro Martins (Mem-Martins: Publicações
Europa-América, 2003 [ed. orig. The History of Government from the Earliest Times, Oxford University Press,
1997]), vol. I, pag. 414
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religiosas e científicas. Se em alguns casos, a legislação imposta pelos decisores pode ser
interpretada como um acto castrador, reprimindo os ímpetos da natureza humana pela
descoberta de novas coisas, noutros casos poderá assumir um carácter regulador, atendendo
ao perigo potencial de certas descobertas.
Sob esta óptica, veja-se os seguintes exemplos verificados ao longo da História, enunciando
diferentes graus de intervenção governativa, uns com consequências positivas, outros nem
tanto:
Roma actuou para reprimir a disseminação do cristianismo; o Vaticano legislou para evitar a
propagação do conhecimento científico; Portugal e Espanha regulamentaram os primeiros
passos da globalização no século XV; os líderes da Europa do “sistema de Viena”12
no século
XIX celebraram tratados para tentar contrabalançar os excessos da Revolução Francesa; os
dirigentes soviéticos doutrinaram durante o século XX para manter a sobrevivência do
socialismo; os líderes das potências nucleares forjaram mecanismos legais nos últimos 60
anos para condicionar uma tecnologia que poderá conduzir à destruição física da
Humanidade.
Por último, as lideranças pós-modernas tentam encontrar formas de controlar as
consequências da mais recente revolução com que a Humanidade se depara: a biotecnológica.
Embora conscientes da sua inevitabilidade, as elites política e científica digladiam-se na
defesa de diferentes correntes quanto ao modelo de regulamentação a ser aplicado.
Sendo precisamente a revolução biotecnológica e suas implicações na Humanidade um dos
campos de estudo deste trabalho, convém compreender processos decisórios passados que,
embora ocorridos em circunstâncias diferentes, pressupuseram em determinado momento
escolhas e iniciativas por parte das elites (fossem elas quais fossem) que moldaram de forma
irreversível a evolução do Homem como ser social.
Por isso, voltando um pouco atrás, constate-se que a intensa religiosidade de Roma não surgiu
com o cristianismo, pelo contrário, foi sempre um factor presente na República e Império
romanos. O “culto oficial” era acerrimamente defendido pelas autoridades que viam na
religião uma fonte de prosperidade e ordem. “Assim, a religião era, ao mesmo tempo, uma
instituição do Estado (…) e a base do Estado.”13
O próprio imperador Augusto (21a.C.-
14d.C.), anterior ao nascimento de Jesus Cristo, implementou uma reforma religiosa que
12
O “sistema de Viena” resulta do congresso realizado naquela cidade austríaca entre Outubro de 1814 e Junho
1815, na tentativa das potências europeias atenuarem o impacto das sementes revolucionárias espalhadas no
Velho Continente durante a expansão do império napoleónico. 13
Ob. Cit – História das Religiões, pag. 738
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“comportava, por um lado, instituições (…), por outro lado uma acção espiritual”14
,
esforçando-se “por assegurar com a religião um apoio sólido à ordem social, e também ao seu
próprio domínio”. Nasce “o culto do imperador, que se destinava a tornar-se a verdadeira
religião do Estado” e que mais tarde o cristianismo viria a pôr em causa.
Chantepie de la Saussaye refere que os primeiros ataques literários contra o cristianismo
surgem com Marco Aurélio (Roma, 121-180), precisamente como resposta ao “período das
apologias cristãs, dirigidas na sua maior parte aos imperadores”. Mas, já antes Nero e Trajano
(Bética, 98-117) tinham desencadeado perseguições, embora “locais e passageiras”. A
situação altera-se no segundo terço do século III, onde as perseguições “tomam carácter
universal e sistemático”.
A crença de que seria possível reprimir o cristianismo de modo a não afectar a ordem
estabelecida com o “culto oficial” foi durante algum tempo alimentada pelos governantes do
Império, que efectivamente não partilhavam a ideia de inevitabilidade da descoberta de uma
nova religião que ia de encontro aos anseios da sociedade. No entanto, a tolerância que mais
tarde viria a ser concedida ao cristianismo acabaria por remeter a prática da “religião antiga”
para a “população mais grosseira dos campos”15
, enquanto que na cidade de Roma apenas
“conservava aderentes nas classes superiores e no Senado”16
. Teodósio, o Grande (Segóvia,
346-395), através do édito de 392, permitiu que o cristianismo emergisse como a religião do
Império.
Não foram só os dirigentes de Roma que rejeitaram a emergência de um mundo novo,
também o Vaticano, séculos mais tarde, iria negar a progresso do conhecimento,
independentemente do conteúdo e da forma que assumisse. Da descoberta científica à
emancipação religiosa, passando pela independência política e criatividade filosófica, o chefe
da Igreja de Roma – chamando até si o poder político e religioso – defendeu sempre a
manutenção dos paradigmas da visão cristã do mundo, opondo-se a qualquer modelo de
pensamento que alterasse ou perturbasse aqueles.
Ao longo dos séculos o Vaticano não fez mais do que doutrinar no sentido de erradicar o
conhecimento da sociedade. Se, por um lado, homens como Nicolau Maquiavel (Florença,
1469-1527), Martinho Lutero (Eisleben, 1483-1546) ou Galileu Galilei (Pisa, 1564-1642)
foram catalizadores de ideias de vanguarda nas suas áreas de intervenção, por outro, eram
14
Ob. Cit – História das Religiões, pag. 780 15
Constantino divulga Édito de Milão de 313, também conhecido como Édito da Tolerância, no qual se assume a
neutralidade do Império face ao cristianismo 16
Idem, pag. 819
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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vistos como “ameaças” à ordem estabelecida e olhados com desconfiança pelo poder
instituído.
Maquiavel e a secularização da política
Sendo Nicolau Maquiavel o percursor do modelo de pensamento moderno político não é de
estranhar que a sua obra tenha acabado no Index Librorum Prohibitorum. A lista dos livros
proibidos pelo Vaticano é um exemplo de censura política levada a cabo pelos seus decisores,
sendo que o primeiro Index data de 153717
, publicado pelo editor Abado. Havendo um fim
político inerente a este mecanismo, na mira do Vaticano estiveram todas as obras e autores
que colocassem em causa os paradigmas social e religioso defendidos pela Igreja. Porque,
como referem Jean-Jacques Chevallier e Yves Guchet, “Maquiavel (…) evoca uma época, o
Renascimento”18
.
Também Jean Touchard escreve que “com Maquiavel, o pensamento político seculariza-se, e
de uma forma muito mais radical do que nos seus percursores (…) Detestando e desprezando,
como eles, o governo dos padres, adversário do poder temporal da Santa Sé (…), Maquiavel
vai mais longe”19
. O espírito revolucionário do florentino face ao modelo de pensamento
dominante da Igreja fica evidente quando Jean Touchard refere que “a importância de
Maquiavel não se resume à de um simples testemunho”, porque “ele expulsa da política a
metafísica, separa radicalmente a cidade de Deus da cidade dos homens; torna assim o
conhecimento desta dependente apenas da razão humana”20
.
O Vaticano desempenhava um papel político muito importante, de tal forma acentuado que
durante séculos lhe coube a ele a função de formalizar a independência de Estados, coroar
imperadores ou reis. No contexto italiano dos séculos XV-XVI, Maquiavel olhava para a
Igreja como um poder controlador da ordem social, e até ameaçador aos ímpetos reformistas e
17
De acordo com um estudo do Professor João Bettencourt da Câmara, o primeiro índex do Vaticano terá sido
publicado em 1537. Esta informação é asseverada através de uma carta de um abade de Génova para a Santa Sé a
confirmar a recepção da lista dos livros proibidos. Perante tal documento, o abade perguntou se os livros
referenciados na lista eram para ser destruídos. A título de curiosidade, o mesmo abade perguntou também se
podia ficar com o volume dos adágios de Erasmu, visto que o índex era claro quanto à destruição da obra deste
autor. 18
CHEVALLIER, Jean-Jacques et Yves Guchet – As Grandes Obras Políticas - De Maquiavel à Actualidade,
tradução de Luís Cadete (Mem-Martins : Publicações Europa América, Outubro de 2004 [ed. orig. Les grandes
oeuvres politiques de Machiavel à nous jour, Armand Colin/Vuef Éditeur, 2001]), pag. 17 19
TOUCHARD, Jean – História das Ideias Políticas - Do Renascimento ao Iluminismo, tradução Mário Braga
(Mem-Martins: Publicações Europa-América, 1991 [ed. orig. Histoire des Idées Politiques, Presses
Universitaires de France, 1959]), vol. II, pag. 24 20
Ob. Cit – História das Ideas Políticas, pag. 25
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 15
dinamizadores de entidades políticas, como Florença, o esplendor máximo de uma sociedade
assente num modelo de pensamento alternativo à hegemonia do Vaticano.
Sobretudo a partir da segunda metade do século XV, a República florentina florescia como
mais nenhum outro Estado na Europa. O Renascimento tinha aqui o seu epicentro, e não
apenas como movimento artístico, mas também como cultural, político e intelectual.
“Florença alberga as mentes mais brilhantes: no que quer que se metam, facilmente superam
todos os outros homens, quer se dediquem a questões militares ou políticas, ao estudo ou à
filosofia, ou ao comércio.”21
A par deste capital humano, Florença reunia as maiores obras da Humanidade na língua
original, nomeadamente no que diz respeito aos clássicos greco-romanos. Também durante o
período de Maquiavel, a circulação de livros em Florença aumentou de 30 mil, em 1471, para
oito milhões, em 1500.
O esplendor de Florença e o contributo que deu à Humanidade não pode ser dissociado da
família Médicis, que começou a trilhar caminho para se tornar a mais importante família
daquele Estado logo no início do século XIV, quando se dedicou ao negócio da banca. Mas,
foi o interesse pela arte e cultura partilhado ao longo de várias gerações dos Médicis que
permitiu que Florença se assumisse como uma potência política durante o Renascimento.
Cosimo de Médicis (Florença, 1389-1464), além de ilustre banqueiro, tornou-se um
verdadeiro apaixonado pela inovação intelectual e do saber. Características herdadas pelo seu
neto Lorenzo (Florença, 1449-1492), que acrescenta uma grande paixão pelas artes e cultura.
Ao reinado dos Médicis está associado o progresso em várias vertentes da sociedade. O
Renascimento começava a colocar em causa uma série de dogmas medievais, que durante
cerca mil anos (desde o fim do Império Romano) regeram a Humanidade sob o olhar atento
do Vaticano. Na vertente política, Florença tornara-se um Estado poderoso e independente
face a Roma. De tal modo, que as duas potências mantinham, por vezes, uma relação
crispada, marcada por intrigas política e lutas de poder.
A Florença renascentista era um Estado secular por natureza e materializava uma nova
dinâmica nas relações internacionais, ao mesmo tempo que colocava em causa uma Igreja
fragilizada, que “via destruídos os seus planos de supremacia e intervenção nos assuntos
21
Correspondência de Nicolau Maquiavel a Francesco Guicciardini de 19 de Maio de 1521. Ver: MAQUIAVEL,
Nicolau – Machiavelli and his friends: Their Personal Correspondence, tradução e edição de James B. Atkinson
e David Sices (De Kalb, Illionis: Northern Illinois University Press, 1996), pag. 341
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 16
temporais”22
. Mas, por outro lado, Florença tornara-se no final do século XV uma cidade
demasiado “complacente”e indefesa face aos seus inimigos externos, que se faziam sentir
cada vez mais na política interna através das várias famílias florentinas.
Os Médicis acabaram por ser vítimas dessa conjuntura ao serem obrigados a abdicar da
governação florentina e fugir para o exílio, entregando o poder ao frade dominicano,
Girolamo Savonarola (Ferrara, 1452-1498), em Novembro de 1494. Além de ser uma figura
carismática e mobilizadora, era um homem religioso, que supostamente estaria acima das
divisões políticas que se faziam sentir em Florença. Francesco Guicciardini (Firenze, 1483-
1540) descreve-o como “um orador eloquente”, que certamente o ajudou a manter-se no poder
durante quatro anos, no entanto, o seu carácter moralista cristão, fazia dele um homem
desajustado a uma Florença renascentista, que o acabou por condenar à morte, enforcado e
queimado a 23 de Maio de 1498.
A sua forma de governo acabou por degenerar a partir do momento em que tentou pôr em
prática uma ideologia extremista, que ia desde a queima de livros à perseguição de artistas,
intelectuais, escritores e pensadores. Perante isto, a queda do regime de Savonarola era
previsível, o que aconteceu no Verão de 1948, não sem antes o jovem Nicolau Maquiavel ter
sido nomeado Secretário da Segunda Chanceleria da República. Não por ser um grande
admirador do frade, pelo contrário, mas por ter tido um sentido de oportunidade ao infiltrar-se
nas lides governativas. Maquiavel que embora nunca tivesse tido grande poder decisório foi
sempre um homem que conheceu de perto o poder político e soube conviver com os homens
mais poderosos e influentes da época.
Maquiavel e muitos outros saíram das “fileiras não hostilizadas por Savonarola, vindas não se
sabe de onde”. Com o regresso dos Médicis e depois de ter assumido as suas novas funções,
Maquiavel fez de tudo para agradar e cumprir com a sua missão, mas da mesma forma que
ascendeu ao poder durante um processo de transição política, foi igualmente durante um
processo de renovação política, no qual os Médicis regressam em força ao poder, que
Maquiavel é “dispensado, destituído e totalmente afastado de todos os seus deveres”23
.
O ano de 1512 representou o declínio de Maquiavel e a reabilitação dos Médicis. Mas, é a
partir desta altura que emerge toda a obra de Nicolau Maquiavel e que vai revolucionar todo o
modelo de pensamento no campo da ciência política e relações internacionais. A tal ponto que
22
GETTEL, Raymond – História das Ideias Políticas, tradução de Eduardo Salgueiro (Lisboa: Editorial
Inquérito, 1936 [ed. orig. History of Political Tought]), pag. 163 23
WHITE, Michael – Maquiavel, o Incompreendido, tradução de Fernanda Oliveira (Mem-Martins: Publicações
Europa-América, Novembro de 2005 [ed. orig. Machiavelli: A Man Misunderstood, 2004]), pag. 181
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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espoleta a reacção veemente da Igreja. Face à ruptura do modelo de pensamento proposta por
Maquiavel, o Vaticano não poderia ficar passivo à divulgação de uma obra que ia contra os
seus interesses.
Como escreve o conceituado biógrafo Michael White, Maquiavel “via a religião organizada
simplesmente como um dispositivo, uma ferramenta para o controlo social, mas também
acreditava que ela ameaçava seriamente a evolução da sociedade porque fazia com as pessoas
se interessassem mais numa hipotética vida depois da morte do que na realidade do aqui e do
agora”24
.
Maquiavel era um humanista e, como tal, questionou o modelo de sociedade medieval
moldado pelo cristianismo. Foi um dos que contribuiu para formar uma cultura política
separada da Igreja. Para ele, esta era apenas mais um dos factores com qual o Estado teria de
contar “para marcar o rumo da sua política”. A defesa e a conservação do Estado, assim como
do bem comum da sociedade, estavam acima de tudo e, por isso, a visão do Vaticano era
incompatível com os interesses da República florentina. A acrescer a isto, Maquiavel era um
homem do seu tempo, um verdadeiro renascentista, que considerava que os “elementos
fundamentais da doutrina cristã não eram realistas nem naturais, sendo por isso de pouca
valia” e encarava a Igreja como uma instituição que jamais deveria estar acima ou em
igualdade com o Estado.
O proeminente professor Raymond G. Gettell escreveu que “Maquiavel não prestou atenção
às pretensões da Igreja relativamente ao Estado, ou do Papa em relação ao concílio, nem aos
ensinamentos das Sagradas Escrituras, nem às opiniões dos Santos Padres (…)”25
. Maquiavel
chegou mesmo, em diversas ocasiões, a mostrar desprezo e desdenho pelo clero.
Um dos episódios reporta-se aos últimos tempos de exílio, numa altura em que tentava
regressar às lides políticas, quando em Maio de 1521 é convidado por uma das assembleias
florentinas para viajar até Carpi e negociar com os frades franciscanos uma questão
relacionada com a jurisdição eclesiástica em zonas em redor de Florença.
Nesta sua missão fica evidente o tom de gozo com que Maquiavel se referia aos frades,
através da correspondência que trocou com o seu reputado amigo Francesco Guicciardini,
governador papal da região de Modena, durante a sua estada em Carpi. Com uma perspicácia
bastante apurada, Maquiavel começou a notar que os frades e o seu líder Sigismondo Santi
demonstravam uma certa apreensão pelo facto do que parecia ser um simples emissário
24
Ob. Cit – Maquiavel, o Incompreendido, pag. 15 25
Ob. Cit – História das Ideias políticas, pag. 165
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 18
florentino chegar a receber três vezes por dia correspondência de uma pessoa tão influente
como Guicciardini.
Maquiavel decidiu aproveitar isto a seu favor como uma mais valia negocial, ao mesmo
tempo que “pregava uma partida” aos frades. Deste modo, escreveu uma carta ao seu amigo,
na qual lhe pedia que enviasse uma missiva pelas mãos de um “besteiro vestido a preceito” e
que o “cavaleiro galopasse durante todo o caminho, de forma a que quando chegasse, tanto ele
como o cavalo estivessem a correr de suor”, dando a impressão de urgência. E assim foi, ao
que os “frades ficaram surpreendidos ao verem Maquiavel a ser tratado com tamanha
reverência”, questionando-o de imediato quanto ao remetente da carta. Maquiavel não hesitou
e respondeu que as “mensagens eram despachos importantes relativos ao Sacro Imperador
Romano e ao Rei de França”26
.
O emissário florentino conquistou de imediato maior capacidade negocial, ao mesmo tempo
que ele e Guicciardini se divertiam à custa dos frades e de Santi, que consideravam ser uma
extensão de uma instituição caduca e corrupta. Se, por um lado, “esta divertida história ilustra
a natureza maliciosa de Maquiavel, o saudável sentido de humor e o cinismo”, por outro,
revela bem o seu desdém face à Igreja e seus representantes.
O Estado era para Maquiavel a instituição por excelência que deveria reger as sociedades, não
contemplando a intervenção da Igreja, pelo menos no campo temporal. Em O Príncipe27
(mas
também nos Discursos), o autor florentino escalpeliza formas de governo e estilos de
liderança que, embora nem sempre originais, marcam o início daquilo que pode ser
considerado o realismo político nas relações internacionais.
O Príncipe passou a ser uma fonte de inspiração, tornando-se num sucesso literário que
resistiu até aos dias de hoje. Escrito durante o exílio, na sua quinta de família na região de San
Casciano, aquela obra representava uma inovação na forma de governar, onde Maquiavel
expõe “uma série de regras práticas para que o governante possa conservar a sua posição
privilegiada, triunfe, mesmo através do engano, dos seus rivais, e aniquile, a todo o instante,
as ameaças de revolução”28
, mesmo que estas provenham de uma instituição tão poderosa
como a Igreja.
A obra de Maquiavel inseriu-se numa altura de ruptura de pensamento que colocou a
Humanidade perante novos paradigmas de organização e de vivência em sociedade. Como
26
Ob. Cit – Maquiavel, o Incompreendido, pag. 19 27
Edição Princeps é publicada a 4 de Janeiro de 1532, em Roma, pela mão do editor Antonio Blado. Esta edição
viria a revelar-se um êxito. A 8 de Maio de 1532, Bernardo de Giunta edita o O Príncipe em Florença. 28
Ob. Cit – História das Ideias Políticas, pag. 167
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 19
escreve o professor Antony Alcook, o “Humanismo e o Renascimento foram importantes
passos em duas direcções. No assalto ao pensamento estabelecido da Igreja preparam o
caminho para a Reforma; com o ênfase na razão e na indagação aprontaram o fim da Idade da
Fé que dominara a Europa durante 1000 anos”29
.
Tal como acontece séculos depois com o debate em torno das novas biotecnologias,
nomeadamente no campo da investigação em células estaminais embrionárias, a Igreja foi
impelida a reagir face a um movimento que não servia os interesses da sua doutrina.
A criação de uns serviços secretos ao serviço do Papa não foi mais do que uma forma do
decisor político/religioso em Roma poder condicionar a evolução dos acontecimentos a seu
favor.
É, assim, perfeitamente compreensível que, em nome de um determinado modelo de
sociedade, Miguel Ghislieri (Boscomarengo, 1504-1572)30
tenha sido chamado a Roma em
1566 para criar aquilo que viria ser a génese da Santa Aliança (serviços secretos do Vaticano),
cujo principal objectivo era “obter informações de todos aqueles que pudessem violar os
preceitos papais e os dogmas da Igreja e por isso pudessem ser julgados pela Inquisição”31
.
Partindo-se do princípio que uma análise rigorosa de uma determinada conjuntura está
dependente do tempo em que é feita e do modo como é feita, não é arriscado afirmar-se que
os princípios inerentes ao processo de decisão política/religiosa das sociedades pós-modernas
não diferem assim tanto daqueles que eram constatados na época de Galileu ou Maquiavel.
As suas descobertas foram tão revolucionárias para o progresso da Humanidade como a
revolução biotecnológica poderá vir a ser. Esta comporta em si tendências que, para muitos
sectores da elite política e religiosa, não devem evoluir. Hoje, tal como na época de
Maquiavel, estão a ser adoptadas medidas por várias correntes religiosas e políticas que
tentam travar o progresso do pensamento, neste caso científico.
A obra do florentino passou a figurar no Index até ao século XIX resultado de uma decisão
política, ao mesmo tempo que em pleno século XXI, movimentos ligados à Igreja tentam
condicionar os governantes para que seja adoptada legislação no sentido de estancar o ímpeto
de algumas comunidades científicas que se precipitam para descobertas totalmente
revolucionárias no campo das novas biotecnologias.
29
Ob. Cit – História Concisa da Europa dos Gregos e Romanos à Actualidade, pag. 126 30
Futuro Geral da Inquisição, Cardeal e mais tarde viria a tornar-se no Papa Pio V. 31
FRATINI, Eric – A Santa Aliança - Cinco séculos de espionagem do Vaticano, tradução Serafim Ferreira
(Porto: Campo das Letras, 1º ed. Outubro de 2005 [ed. orig. La Santa Alianza - Cinco siglos de espionaje
Vaticano]), pag. 17
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 20
Lutero, uma nova doutrina religiosa
A Reforma de Martinho Lutero assume-se como outro exemplo de conflito intelectual,
sobretudo por causa da sua dupla função: Primeira, a de crítica ao Papado; Segunda, a de
modelo alternativo ao catolicismo.
A questão das indulgências e a magnificiência do Vaticano serviram apenas para espoletar os
“protestos” cerrados que Lutero fez contra o poder de Roma, uma vez que outras razões
sustentaram o movimento reformista. Por exemplo, “a Alemanha fervilhava de
descontentamento contra a Igreja”, face à influência que o Papado tinha naquele país, “uma
posição muito mais forte do que em Inglaterra, França ou Espanha, onde a Igreja era muito
mais nacional”32
.
Também as manifestações de opulência do alto clero, que viam as suas dioceses como feudos
e meios de manterem o seu nível de vida correspondente ao seu estatuto em vez de dedicarem
tempo às suas funções espirituais” e a política de venda de indultos para expiar os pecados
levada a cabo por Roma provocou ressentimentos nos crentes alemães.
Quando a 31 de Outubro de 1517, em Vitemberga, afixa na porta da igreja do castelo as
famosas 95 Teses, “que atacavam a venda de indulgências, a preocupação da Igreja com as
possessões materiais e contrastando essas pertenças materiais com a sua verdadeira riqueza, o
Evangelho”, Lutero abria o caminho para a ruptura com o Papado, confirmada dois anos mais
tarde em Leipzig, durante um debate público com Johann Eck, professor de Teologia em
Ingolstadt, ao negar o primado do Vaticano.
Ao mesmo tempo que Lutero envida esforços para criar um novo modelo religioso no Sacro
Império Romano-Germânico, os decisores do Vaticano procedem à sua perseguição,
excomungando-o em Janeiro de 1521, através da bula papal “Decet Romanum Pontificem”.
Travado o homem, era necessário reprimir o movimento, e daí surge o Concílio de Trento
(1545-1563) com o objectivo de analisar o dogma católico e clarificá-lo. Com esta iniciativa,
o poder de Roma estabelece uma série de medidas e princípios que dão corpo à Contra-
Reforma. “Face ao crescimento da ameaça protestante, a Igreja Católica Romana começou a
32
ALCOOK, Antony – História Concisa da Europa – Dos Gregos e Romanos à Actualidade, prefácio de J.E.
Spence, tradução de Miguel Conde (Mem-Martins: Publicações Europa-América, Abril de 2005 [ed. orig. A
Short History of Europe, prefácio de J.E, 1998]), pag. 146
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 21
pôr a casa em ordem.33
Os agentes mais importantes dessa reforma foram o Concílio de
Trento e a nova Companhia de Jesus.”34
Galileu, o primeiro cientista
Também Galileu despertou no Vaticano reacções contrárias às suas descobertas, numa altura
em que as inovações científicas ameaçavam os dogmas religiosos. Inspirado por William
Gilbert (Colchester, 1544-1603), em Inglaterra, que John Gribbin considera ser o primeiro
cientista digno desse nome35
, ou seja, o primeiro a adoptar o “método científico de comparar
hipóteses com experiências e observações”36
, Galileu desenvolveu o novo paradigma de
conhecimento do método experimental, tornando importante não tanto o que era descoberto,
mas como era descoberto. Não é por isso de estranhar o nascimento da lenda, na qual Galileu
terá deixado cair objectos de tamanho diferente a partir da Torre de Pisa para verificar que
chegavam ao chão ao mesmo tempo.
“A contribuição-chave que Galileu deu ao nascimento da ciência baseia-se precisamente na
sua ênfase da necessidade de experiências exactas e repetidas para testar hipóteses, e não se
basear na velha „abordagem‟ filosófica de tentar compreender o funcionamento do mundo no
meio de lógica pura e de raciocínio: a abordagem que tinha levado as pessoas a acreditar que
uma pedra mais pesada cairia mais depressa que uma pedra mais leve, sem que ninguém se
tivesse dado ao incómodo de testar a hipótese, deixando cair pares de pedras para ver o que
acontecia.”37
Desviando-se da Medicina, que estudava na Universidade de Pisa, para a Matemática, área
que o fascinava, Galileu desenvolveu parte do seu trabalho na Universidade de Pádua,
materializado no tratado sobre fortificações militares e num livro sobre mecânica. Ao mesmo
33
Refira-se que apesar das circunstâncias serem totalmente diferentes, o princípio é similar, uma vez que as
novas biotecnologias, mais concretamente a investigação em células estaminais embrionárias, são vistas por
muitos sectores da sociedade como uma autêntica ameaça à ordem estabelecida. 34
AAVV – História Universal, direcção de Esmond Wright, tradução de Pedro Barosa (Lisboa: Publicit Editora,
Janeiro de 1982, [ed. orig. World History Séries, The Hamlyn Publishing Group Limited, 1979]), vol. IV, pag.
28 35
GRIBBIN, John – História da Ciência – De 1543 ao Presente, tradução de Maria Hemília Novo (Mem-
Martins: Publicações Europa-América, Maio de 2005 [ed. orig. Science – A History 1543 - 2001, 2002]), pag. 84 36
Embora fosse médico de formação, destacou-se na área da Física, com os seus estudos sobre a natureza do
magnetismo, que resultaram na obra De Magnete Magneticisque Corporibus et de Magno Magnete Tellure,
conhecida como De Magnete, tida como o “primeiro trabalho importante nas ciências físicas a ser produzido em
Inglaterra. Ver: GILBERT, William – Loadstone and Magnetic Bodies, and on the Great Magnet of the Earth,
tradução de P. Fleury Mottelay (Londres: Bernard Quaritch, 1893 [ed. orig. De Magnete, 1600]) 37
Ob. Cit – A História da Ciência – De 1543 ao Presente, pag. 87
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 22
tempo, ia fazendo várias descobertas e inventando uma série de instrumentos que estariam na
origem do que mais tarde viriam a ser objectos do quotidiano das sociedades.
Mas foi depois do conhecimento da invenção do telescópio por Hans Lippershey, durante uma
visita a Veneza em Julho de 1609, que Galileu iria desenvolver as investigações que lhe iriam
causar problemas com o Vaticano. Fascinado com aquele instrumento, Galileu demorou
apenas 24 horas a construir o telescópio mais potente até então conhecido, tendo este acto
sido um dos maiores feitos da sua vida.
Com este novo instrumento, Galileu iniciou uma série de descobertas astronómicas, que mais
tarde ficariam registadas no livro Siderius Nuncius (Março de 1610), que cinco anos após a
sua publicação estava a ser publicado em chinês. As observações de Galileu começavam a
sustentar experimentalmente o modelo de Copérnico, tendo demonstrado “que era possível
para a Lua da Terra manter-se em órbita ao redor da Terra mesmo que a Terra se estivesse a
mover”38
. Outras importantes descobertas foram feitas, mas Galileu mostrou-se sempre
reticente em apoiar formalmente o modelo de Copérnico, receando as represálias
consequentes. Ficava-se apenas pela apresentação de provas e “deixar as observações falarem
por si”39
.
O Vaticano não rejeitou as descobertas de Galileu, tendo mesmo o Papa Paulo V e o influente
Cardeal Bellarmine se reunido com aquele num encontro afável. Depois desta visita a Roma e
motivado pela recepção que teve de Sua Santidade e do Cardeal, Galileu “começou a falar
mais abertamente sobre as ideias copernicanas”, como ficou registado numa carta enviada por
ele à grã-duquesa da Toscânia, Cristina, escrita em 1614: “Eu defendo que o Sol está
localizado no centro dos orbes giratórios celestiais e não muda de lugar. E que a própria Terra
roda e se move ao redor do Sol.”40
A acrescer a isto, Galileu publica um polémico livro sobre
manchas solares, no qual num dos seus apêndices “fez a sua única declaração publicada, clara
e não ambígua, em apoio das ideias de Copérnico”.
Como reacção, o Vaticano não hesitou em considerar que a possibilidade do Sol se situar no
centro do Universo era “louca e absurda… e formalmente herética”41
. A partir deste
momento, Galileu começa a ser pressionado para não “sustentar ou defender” as suas teorias e
ideias, correndo o risco de ser admoestado pela Inquisição.
38
Ob. Cit – A História da Ciência – De 1543 ao Presente, pag. 102 39
Idem, pag. 103 40
Idem, pag. 105 41
Idem, pag. 106
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 23
Tendo posteriormente um período de graça com o Papa Urbano VIII, que lhe permitiu
publicar o livro Il Saggiatore. Na Primavera de 1624, Galileu reuniu-se seis vezes com o
Sumo Pontífice, do qual conseguiu a permissão para editar um livro sobre os dois modelos do
Universo: o modelo Ptolomaico e o modelo Copérnico, sob a condição de imparcialidade
quanto ao sistema proposto por este último.
Em Novembro de 1629, o Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo estava
concluído. Mas, para ser impresso o Vaticano impôs a Galileu que reescrevesse um novo
prefácio e conclusão, o que não veio a acontecer nos moldes estabelecidos. Quando o livro foi
posto à venda em Florença, em Março de 1632, provocou descontentamento no Vaticano,
pelo facto de Galileu ter desrespeitado o princípio de não “defender ou apoiar” a teoria
copérnica.
Com uma idade avançada, a Inquisição foi branda para com Galileu, mas o espectáculo já
estava montado e durante todo o seu julgamento só havia um desfecho possível: a sua culpa.
Como escreve John Gribbin, “Galileu tinha de confessar alguma coisa”, o que acabou por
acontecer, ao “rejeitar” o sistema de Copérnico, num processo que visou sobretudo a
manutenção de um modelo de pensamento medieval.42
Mas, a verdade é que o humanismo já tinha, antes, contagiado alguns homens da Igreja,
tratando-se de uma questão de tempo até que o modernismo iniciasse a sua caminhada. O
Cardeal alemão Nicolau de Cusa (Cusa, 1401-1464) “ainda ligado, com toda a sua alma, à
concordância da ordem medieval”43
é um bom exemplo desse movimento neo-platónico e
pré-modernista, ao inspirar-se nos ensinamentos clássicos e na experiência do mundo para
explorar novas ideias de sociedade. “(…) A sua imagem do mundo e do homem e o método
socrático do seu pensamento apontam para o futuro.”44
O seu carácter teológico nunca foi
posto em causa, no entanto, “a valoração metódica da matemática e a exigência de contar,
pesar e medir, que corresponde ao espírito da nova ciência da natural fazem do Cardeal
Cusano um percursor da época moderna.”45
Não esquecer igualmente outros “pensadores
renascentistas” como Girolamo Cardano (Pavia, 1501-1576), Bernardino Telésio (Cosenza,
42
Galileu viria ainda a publicar a sua maior obra, Discursos e Demonstrações Matemáticas Relativas a Duas
Novas Ciências, conhecido como Duas Novas Ciências, uma espécie de compilação de todo o seu trabalho.
GALILEI, Galileo – Dialogues Concerning Two New Sciences, traduzido por Henry Crew e Alfonso de Salvio e
prefácio de Antonio Favaro (Nova Iorque: Dover Publications, 1954, republicação na íntegra da edição de 1914
da The Macmillan Company [Ed. orig. Publicada em Leiden, 1638, por Louis Elzevier]) 43
HEINEMANN, Fritz – A Filosofia no Século XX, tradução e prefácio de Alexandre F. Morujão (Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 5º edição, 2004 [Ed. orig. Die Philosophie IM XX. Jahrundert, Ernest Kleit
Verlag, Estugarda, 1963]), pag. 190 44
Idem, ibidem 45
Idem, pag, 191
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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1508-1588), Giordano Bruno (Nola, 1548-1600) e, claro está, Tomás Campanella (Stilo,
1568-1639).
Voltando a Galileu, Fritz Heinemann sustenta que foi com aquele que se assistiu, pela
primeira vez, à “estruturação metódica e segura das tarefas de uma ciência matemática da
natureza, em aguda oposição à física aristotélica das qualidades”46
. Uma situação que, com as
devidas diferenças, encontra paralelismos nas sociedades pós-modernas, nas quais as novas
tecnologias e biotecnologias impõem novos paradigmas sociais e, consequentemente,
políticos. Algo a que não ficaram alheios vários autores do século XX, não se coibindo de
edificar sociedades baseadas no primado da ciência. É, igualmente, isto que Heinemann vê
nos séculos XVII e XVIII, onde “o desenvolvimento do método das modernas ciências da
natureza é (…) o factor que mais profundamente influenciou a estrutura interna dos grandes
sistemas”47
filosóficos e políticos.
Além de que a partir desta altura começa-se a traçar uma linha divisória entre a filosofia da
natureza e a ciência da natureza. “Uma vista de olhos pela história cultural europeia faz-nos
verificar que, inicialmente, ao longo de séculos, a significação de ambos os conceitos foi
idêntica. (…) Antes de Galileu e Newton48
, a física era um complexo, frouxamente articulado,
de factos, factos esses cuja descoberta se encontrava à mercê da graça de Deus (…).”49
Na
opinião de Heinemann, a “discussão lógica de factos científicos” era “conduzida no mesmo
estilo da discussão de problemas éticos e religiosos (…)”. Com Galileu e Newton “introduziu-
se um novo sistema na ciência, saber, método. Os factos tornaram-se objectos não só de
46
Ob. Cit – A Filosofia no Século XX, pag 197 47
Idem, pag. 196 48
Isaac Newton (Woolsthorpe, 1643-1727), físico e matemático pelo Trinity College da Universidade de
Cambridge, e um dos mais célebres cientistas de todos os tempos, foi responsável por várias leis universais,
nomeadamente o cálculo diferencial, fundamental para se perceber as distâncias entre um ponto de partida
conhecido e objectos cuja sua posição variam com o passar do tempo como, por exemplo, a posição de um
planeta na sua órbita (refira-se que Gottfried Leibniz (1646-1716) desempenhou igualmente um papel
fundamental na descoberta do cálculo diferencial). Newton viria a ficar imortalizado pelos seus estudos sobre a
gravidade, ao descobrir que aquela força exercida pela Terra tanto se aplicava a uma mação que caía de uma
árvore como à Lua em órbita. Segundo diz o próprio Newton, a sua inspiração foi espoletada pela famosa queda
de uma mação de uma árvore, enquanto passeava no campo, embora não se saiba se este acontecimento
realmente se verificou. O episódio terá eventualmente acontecido na região de Lincolnshire, Woolsthorpe, entre
1665 e 1668, período em que Newton esteve em casa e ausente de Cambrigde devido a uma ameaça de peste.
Os cálculos de Newton demonstravam diferentes níveis de intensidade gravitacional, provando que a aquela
força na superfície da Terra era centena de vezes superior à sentida na Lua. Em 1687, publicava Philosophiae
Naturalis Principia Mathematica – um autêntico tratado de Física e tido por muitos como o mais importante
trabalho da ciência moderna –, demonstrando “que o mundo funciona essencialmente por seres humanos, e não é
governado de acordo com a magia ou as venetas de deuses caprichosos”, na leitura de John Gribbin. Não é
exagero referir que Newton contribuiu decisivamente para uma abordagem moderna da ciência. Newton
substancializou e racionalizou o conhecimento científico e, como refere Gribbin, “abria os olhos dos cientistas
para o facto de que os fundamentos do Universo podem ser simples e compreensíveis, apesar da sua
complexidade superficial”. 49
Ob. Cit – A Filosofia no Século XX, pag. 365
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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descobertas, mas de demonstrações. Reflexões lógicas e deduções matemáticas ligaram-se à
observação cuidadosa e à experimentação, encontrando a lógica, deste modo, num lugar na
ciência empírica.”50
Diferentes modelos, diferentes perspectivas
Independentemente das conjunturas e dos enquadramentos históricos, sempre que a
Humanidade se encontra perante vórtices que podem alterar a sua própria concepção e a
forma de como o Homem se vê em sociedade, assiste-se sempre a um processo de revolução e
reacção, que pressupõe rupturas de pensamento acompanhadas pela vigilância do poder
reinante. É esta relação de forças que opõe, normalmente, dois vectores em sentido contrário.
Veja-se quando os líderes socialistas da defunta União Soviética tentaram evitar a implosão
de um regime que ia para além de um mero modelo político, mas era também um paradigma
organizacional de sociedade. Durante décadas, aqueles estavam convictos de que a História
terminava ali, com o mundo que as repúblicas socialistas formavam e que, mais tarde
exportariam esse modelo a todo o globo.
Da revolução socialista de 1917 emergiu uma nova doutrina governamental que passou reger
na prática a vivência de milhões de pessoas durante décadas e que, segundo os seus ideólogos
e seguidores, seria para a eternidade. A sua importância foi de tal ordem que a Humanidade
passou a contar com um novo Homem, o comunista ou socialista-marxista, cuja sua percepção
de sociedade era totalmente diferente daquela que o homem liberal ou ocidental tinha do seu
mundo.
Já Alexis Tocqueville prenunciava o aparecimento de “doutrinas singulares” que tinham como
principal característica a negação do direito privado. A 29 de Janeiro de 1848, Tocqueville
alertava os deputados para que tomassem atenção ao que se passava no seio das classes
operárias, uma vez que não se tratavam só de “paixões políticas”, mas também de paixões
sociais.51
“Não vedes que se propaga pouco a pouco no seu seio opiniões, ideias, que não vão
somente ao arrepio de certas leis, de certo ministério, mesmo de certo governo, mas da
sociedade, ao abalarem as bases sobre as quais ela repousa hoje?”52
Assim, durante quase todo o século XX assistiu-se ao embate de “duas Humanidades”, onde
os valores e princípios não eram compatíveis. De um lado, o mundo das democracias liberais
50
Ob. Cit – A Filosofia no Século XX, pag. 366 51
Ob. Cit – As Grandes Obras Políticas – De Maquiavel à Actualidade, pag. 251 52
Idem, ibidem
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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e de mercado, que foi buscar inspiração a homens como John Locke (Wrington, 1632-1704),
Montesquieu (Castelo de la Brède, 1689-1755), Voltaire (Paris, 1674-1778), ou Adam Smith
(Edimburgo, 1723-1790), do outro, uma sociedade (num primeiro momento) revolucionária e
estatizante à procura da igualdade material, que tinha Karl Marx (Trier, 1818-1883), Friedrich
Engels (Barmen, 1820-1895) e o revolucionário Lenine (1870- 1924) como seus ideólogos
mais directos – mas também mais pragmáticos quando comparados com pensadores utópicos,
como Saint Simon (Paris, 1760-1825), Robert Owen (Newtwon, 1771-1858) e Charles
Fourier (Besançon, 1772-1837), ou com os anarquista, cujos melhores exemplos são Joseph
Proudhon (Besançon, 1809-1865) e Miguel Bakunine (Pver, 1814-1876).
Sendo certo que o liberalismo tem origens próximas do mercantilismo, já o socialismo teve de
esperar até ao século XIX para ter uma base de apoio para poder progredir como ideologia de
massas. Jean-Jacques Chevallier e Yves Guchet colocam esta questão da seguinte forma: “O
socialismo, sem dúvida, tem uma raiz longínqua entre os ricos e os pobres, entre os que têm e
os que não têm, na eterna reivindicação igualitária, no espírito da partilha. Mas na
Antiguidade, na Idade Média, no século XVII, mesmo com a Revolução Francesa, nenhuma
doutrina coerente e eficaz sustentava essa luta, essa reivindicação, esse espírito.”53
Ideologicamente, os dois mundos estiveram sempre separados ao longo de quase todo o
século XX, tendo mesmo caído uma “cortina de ferro”54
a separá-los no rescaldo da II GM,
dando início à Guerra Fria, que não era mais do que o sistema internacional assente num
modelo bipolar (ora umas vezes rígidos, outras vezes flexível), composto por duas realidades
cujos objectivos e filosofias eram irreconciliáveis.
George F. Kennan, “diplomata relativamente recente da embaixada americana em Moscovo
(no período pós-II GM), que era suposto fornecer o enquadramento filosófico e conceptual
para a interpretação da política externa de Estaline”55
, tornou-se no principal doutrinário
daquilo que viria a ser o modelo de pensamento que iria reger os decisores americanos
durante toda a Guerra Fria.
No seu famoso Long Telegram, um extenso relatório interno enviado de Moscovo para
Washington, no qual explanava as origens do comportamento dos líderes soviéticos, Kennan
“sustentava que os Estados Unidos deveriam deixar de se culpabilizar pela intransigência
53
Ob. Cit – As Grandes Obras Políticas – De Maquiavel à Actualidade, pag. 252 54
Termo utilizado pela primeira vez por Winston Churchill” no seu famoso discurso proferido a 5 de Março de
1946, na Faculdade de Westminster, em Fulton, Missouri. (www.historyguide.org/europe/churchill.html) 55
KISSINGER, Henry – Diplomacia, tradução de Ana Cecília Simões, Antonieta Nabais, Cristiana Vasconcelos
Rodrigues, Eda Lyra, Fernanda Neves Pereira, Isabel Mafra, Isaura Silva, Luísa Ayala Botto, Maria João
Cordeiro, Maria João Goucha e Rui Elias (Lisboa: Gradiva, 1º edição, Março de 1996 [ed. orig. Diplomacy,
1994]), pag. 390
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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soviética” e que “as fontes da política externa soviética encontravam-se no interior profundo
do seu próprio sistema”56
. Assim, o comunismo era, pela primeira vez, decifrado pela lente do
realismo político, trazendo à luz do dia a ideia fatalista de conflito permanente entre os dois
mundos.
A percepção que os líderes comunistas tinham do seu modelo de sociedade e da ameaça
contida no capitalismo materializado nas sociedades ocidentais tornava inevitável o embate
entre paradigmas, à semelhança do que já acontecera no passado e como foi aqui referido. A
revolução de Novembro de 1917 continuava em curso e os decisores políticos do Kremlin
iriam fazer tudo para que a mesma triunfasse, uma vez que “na natureza do mundo mental dos
líderes soviéticos, assim como no carácter da sua ideologia, nenhuma oposição à sua causa
pudesse ser reconhecida como tendo qualquer tipo de mérito ou justificação”.57
O que esteve em causa durante quase todo o século passado foi a luta pela sobrevivência de
um de dois modelos de pensamento e de organização de sociedade. Em jogo estiveram duas
concepções totalmente diferentes do Homem como “ser cultural e social”, ambas defendidas
acerrimamente como as mais adequadas ao desenvolvimento da Humanidade. Estas visões
nunca foram complementares, nem sequer compatíveis, tornando a falência de uma delas
inevitável.
Os decisores políticos agiram sempre de acordo com essa convicção, condicionando as
respectivas sociedades para uma batalha entre o bem e o mal, entre a Humanidade e as trevas.
Uma lógica que se acentuou durante a Guerra Fria, sobretudo com a ajuda da propaganda e do
marketing político levados a cabo por ambos os lados.
Os “tempos interessantes” do século XX já lá vão, e com eles o comunismo parece ter
morrido como ideologia de governo58
. Mas, numa óptica de governação e de poder, terão os
líderes soviéticos agido de forma tão diferente daquela que regeu as decisões de imperadores
em Roma, quando sentiram que o seu modelo desabava face à emergência de uma “seita”
cristã, ou daquela em que impeliu a autoridade papal a travar a progressão do conhecimento
de modo a que não colocasse em causa uma doutrina estabelecida?
Em todos estes exemplos, os governantes, líderes, decisores políticos, viveram momentos de
ruptura que iriam alterar e transformar a visão que o Homem tem do mundo e de si. A
diferença assenta no facto de uns quererem asfixiar as consequências de determinadas
56
Ob. Cit – Diplomacia, pag. 390 57
KENNAN, George F. – The Sources of Soviet Conduct in American Diplomacy (Chicago University of
Chicago Press, 1984), pag. 113. Este texto é uma reprodução do artigo publicado originalmente na revista
Foreign Affairs, XXV, nº 4, Julho de 1947 58
Países como Cuba, Coreia do Norte ou China têm o comunismo como ideologia oficial de governo.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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rupturas e de outros estarem conscientes da inevitabilidade da descoberta (fosse ele política,
religiosa, filosófica ou científica) e, como tal, nada a fazer para impedi-la.
E, salvo as devidas diferenças, não se verificarão no actual debate em torno da revolução
biotecnológica, mais concretamente na pesquisa e investigação em células estaminais
embrionárias, posições, por vezes extremadas, que se tentam anular umas às outras, ao mesmo
tempo que visam moldar o pensamento da sociedade? Efectivamente, assiste-se actualmente a
um debate intenso sobre o futuro do próprio Homem como ser natural e fruto do livre arbítrio,
algo com que os decisores políticos até então jamais tinham sido confrontados. Este é um
debate que era apenas o produto da imaginação de alguns homens, como por exemplo Aldous
Huxley, que no seu Admirável Mundo Novo recorre ao primado da ciência e tecnologia para
“acabar” com a Humanidade, tal como a sempre se conhece, para mergulhar num mundo pós-
Humano59
. Aquela obra foi escrita há, sensivelmente, 70 anos. Hoje, o mundo pós-humano de
Francis Fukuyama não é fruto da sua imaginação, mas sim resultado de uma análise e
investigação da realidade pós-moderna60
.
59
HUXLEY, Aldous – Admirável Mundo Novo, tradução de Mário Henrique Leiria (Lisboa: Livros do Brasil,
Março de 2004 [ed. orig. Brave New World , 1932]) 60
FRANCIS, Fukuyama – O Nosso Futuro Pós-Humano, tradução de Vítor Antunes (Lisboa: Quetzal, 2º edição,
2002 [ed. orig. 2002])
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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II – Da “selecção natural” à “dupla hélice”
Vários foram os acontecimentos que ao longo da História foram moldando a sociedade e o
papel que o Homem tem nela. Já aqui foi visto que o filósofo criou novos fundamentos,
princípios e ideias que passaram a ser os alicerces da Humanidade, enquanto que o “santo”
incutiu valores numa sociedade à procura de referências. O positivista entregou-se ao
progresso e à ciência. Perante a emergência das “massas”, também o ideólogo propôs
doutrinas que servissem de paradigma às sociedades contemporâneas.
O modelo de pensamento foi evoluindo, muitas das vezes de forma abrupta, e nem sempre
pacífica. Os caminhos a tomar nunca foram consensuais e optar por uns significa excluir
outros. Em muitos casos, o reconhecimento do processo evolutivo tardou, e esse bloqueio
partiu quase sempre de uma elite (fosse política ou de outra índole) empenhada em defender o
paradigma instituído. São inúmeros os exemplos que a História oferece de movimentos
“reaccionários” a descobertas científicas que tinham o potencial de moldar a Humanidade e a
sua evolução.
Por vezes, a própria incompreensão gera desconfiança sobre novas descobertas, quer sejam
filosóficas, científicas ou de outra natureza. Este mesmo processo de acção-reacção perpassa
toda a História da Humanidade, não estando por isso ausente do debate inerente às
consequências da revolução biotecnológica, que ocupa actualmente o espaço público,
alimentado, em parte, pelas elites científica e política. Convém não esquecer que outras forças
se juntam a esta discussão, tentando fazer valer o seu ponto de vista, de acordo com a
concepção que fazem do próprio Homem enquanto ser social e fruto do livre arbítrio. Ora,
como se vai ver mais adiante, a revolução biotecnológica vem precisamente introduzir, pela
primeira vez, a componente biológica na apreciação que os homens fazem de si, enquanto
parte de um processo social evolutivo.
Vale a pena um olhar mais atento ao que acima foi referido de modo a relevar a especificidade
da revolução biotecnológica na concepção de Humanidade. Porque a verdade é que até ao
surgimento da revolução biotecnológica nunca se levantou a possibilidade da Humanidade ser
mais do que um conjunto de valores (políticos, religiosos, filosóficos, éticos, morais,
artísticos, entre outros). Francis Fukuyama fala na Humanidade como um “conjunto de
genes”.
Efectivamente, a revolução biotecnológica veio evidenciar o factor genético no
comportamento do homem enquanto ser social. Deixou de se ter a percepção que é apenas o
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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ambiente a moldar a evolução da Humanidade. Os genes desempenham igualmente um papel
vital nesse processo. Uma ideia, que começou a ser explorada nos finais do século XIX, e
reforçada nas últimas décadas. É esta descoberta que coloca em causa aquilo que Fukuyama
chama de “natureza humana estável”. Sobre isto, o autor tem uma passagem importante: “Tal
como Aristóteles e todos os teóricos importantes da natureza humana perceberam, os seres
humanos são, por natureza, animais culturais, o que significa que conseguem aprender com a
experiência e transmitir esse conhecimento aos seus descendentes através de processos não
genéticos.”61
Mas, hoje sabe-se que o comportamento é igualmente transmitido pela natureza,
na forma de genes.
Se, antes, o estudo do comportamento do homem era monopolizado pela antropologia
cultural, hoje tem que partilhar a investigação com a genética comportamental. Fukuyama é
certeiro quando diz que a biologia molecular pode fornecer informação sobre as ligações entre
os genes e comportamentos62
ou características, como a sexualidade, a inteligência, a
agressividade ou o humor. Assiste-se cada vez com mais regularidade à descoberta de
comportamentos/características que, afinal, têm origem (ou parte dela) genética, e não são
resultado exclusivo do ambiente. Está-se, assim, perante um tempo de rupturas a vários níveis,
desfazendo erros históricos que durante séculos fizeram parte do modelo de pensamento da
Humanidade63
.
Durante séculos, as teorias do “empacotamento” e do “mensageiro”64
sustentaram a ideia de
que a evolução do homem seria resultado do ambiente, uma vez que cada ser individual da
61
Ob. Cit – O Nosso Futuro Pós-Humano, pag. 34 62
Idem, pag. 49 63
Ao fim e ao cabo, trata-se de um processo semelhante àquele que Galileu realizou quando contestou a errada
teoria de Aristóteles de que os objectos mais pesados eram sujeitos a uma força de atracão maior e, como tal,
caíam mais depressa do que os objectos leves. Vinte séculos depois, Galileu fazia a ruptura científica. 64
A teoria do “empacotamento”, apresentada há séculos, parte do pressuposto de que todas as espécies são fruto
da criação da entidade divina e, como tal, todos os homens, enquanto seres individuas, contêm em si elementos
comuns que os caracterizam como espécie humana. Assim, Adão representa a fonte do espermatozóide que vai
passando de geração em geração. De acordo com esta teoria, o homem do renascimento (biologicamente
falando) é igual a Adão. Pelo meio não está contemplada a evolução genética da Humanidade. Como escreve
Albert Jacquard, professor de genética das populações, “com uma tal explicação da procriação, deixa de haver na
realidade transmissão de vida, para existir uma extracção, um retirar da sua embalagem, de um indivíduo já feito,
à espera desde a criação”.
Tendo igualmente como base um modelo de Homem pré-definido, o naturalista francês, George Buffon
(Montbard, 1707-1788), cuja sua obra completa pode ser encontrada em Histoire Naturelle (44 volumes
publicados entre 1749 e 1804), elabora a teoria do “mensageiro”. Esta assume a importância dos dois
progenitores na concepção de uma nova vida. Ou seja, “cada órgão dos dois progenitores envia para os fluidos
seminais um mensageiro. Estes mensageiros reconhecem-se, fundem-se, para realizarem, por fim, o órgão
correspondente ao ser procriado”. Também neste processo, não há espaço para a evolução biológica, embora
Buffon reconheça a existência de mudanças orgânicas. Nunca conseguiu, no entanto, demonstrar um mecanismo
que explicasse tais mudanças, acreditando apenas que o ambiente agia directamente sobre os indivíduos através
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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espécie humana se encontrava “prefabricado”, não havendo espaço para a sua transformação
para lá do modelo instituído. Nesta lógica, a Humanidade esteve sempre condicionada no seu
processo evolutivo. Na verdade, de acordo com estas teses, não existia uma evolução tal como
ela mais tarde viria ser entendida, como um processo de alterações genéticas.
“Empacotamento ou mensageiros implicavam a fixidez de cada uma das espécies. Nenhuma
evolução se podia verificar, a menos que tivesse sido prevista, programada, desde o início,
pelo Criador.”65
Porém, como coloca Albert Jacquard, “era preciso encontrar uma explicação não apenas para
a procriação de cada ser mas também para a lenta transformação que provocou a passagem
das algas azuis há três mil milhões e meio de anos para a fabulosa diversidade dos seres vivos
de hoje.”66
Porque, afinal, verificou-se ao longo dos milénios uma diversificação progressiva
das espécies, concretamente, da humana.
A própria ideia de “pecado original” assenta no pressuposto de que o Homem não evolui
biologicamente. Os “pessimistas antropológicos” consideram que os homens, tal como Adão,
estão marcados pela fatalidade do “pecado original”, ao qual não podem escapar. Para
aqueles, o ambiente não altera esta característica, que é assumida como sendo intrínseca aos
seres humanos. Quando Santo Agostinho define o pessimismo antropológico como uma das
suas principais teorias “não se trata tão só da percepção constante e inevitável para um
pensador cristão, relativa à maldade congénita e genérica da espécie humana, mas dum caso
de derrotismo no que respeita à capacidade desta se regenerar dos efeitos permanentes do
pecado original, com o consequente reflexo nos indivíduos desde a sua vida pessoal, íntima
até à sua vida social, designadamente nas instituições políticas por ele criadas e movidas”67
.
Na sua Cidade de Deus, Santo Agostinho acredita na bondade e perfeição dos primeiros
homens (Adão e Eva). Mas, a “desobediência” a Deus, o “pecado original”, afastou Adão e
Eva do trilho divino, condenando-os a uma vida de defeitos e infelicidades. O Homem torna-
se, assim, um pecador, irreversivelmente marcado pelo pecado, que passa a ser uma
característica intrínseca a todos os homens, ou seja, natural e biológica. Como escreve Freitas
do Amaral, “o Homem peca por necessidade”. De acordo com a concepção pessimista da
natureza humana, “Santo Agostinho não acredita na ideia de progresso (…), no
daquilo que ele chamava de “partículas orgânicas”. Em suma, Buffon não tinha presente a noção de evolução
biológica, acreditando apenas que as espécies eram fixas. 65
JACQUARD, Albert – O Homem e os Seus Genes, tradução de Joaquim Nogueira Gil (Lisboa: Instituto
Piaget, 1995 [ed. orig. Les Hommes et Leurs Gènes, Flammarion, 1994]), pag. 9 66
Idem, ibidem 67
Ob. Cit – Da História das Ideias Políticas à Teoria das Ideologias, pag. 100
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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aperfeiçoamento ou melhoria graduais e crescentes da humanidade: para ele o Homem será
sempre pecador, até ao fim dos tempos”68
.
Ora, esta linha de pensamento, assim como a do “empacotamento” ou a do “mensageiro”, não
contempla o factor genético e a sua capacidade de se transformar, evoluir, de geração em
geração. O que não é de estranhar, visto que o próprio conceito de hereditariedade
permaneceu inexistente até ao século XIX. A partir daqui, as descobertas científicas
realizadas ao nível da biologia começaram a colocar em causa a noção que o Homem tinha de
si próprio, enquanto ser social e natural.
O progresso científico
A ideia de progresso biológico do homem começa a construir-se no século XIX, sobretudo
com a emergência de uma disciplina que mais tarde viria a ser conhecida como genética.
Assim, a lenta transformação dos seres passou a ser uma constatação no mundo científico. Até
então, e face ao desconhecimento reinante, as elites científica e política nunca tinham tido de
lidar com a ideia de um Homem evolutivo biologicamente.
Mas, tal processo é tão recente (historicamente falando) que só nos dias de hoje se começam a
colocar sérias questões aos governantes relativamente às consequências que pressupõe a
“exploração”, por parte da comunidade científica, das capacidades evolutivas e
transformadoras que cada ser vivo potencialmente contém em si. Se só no século XIX é que
se deram os primeiros passos neste campo particular da biologia que é a genética, a verdade é
que nos últimos dois séculos se assistiu a um progresso científico galopante que ajudou a
conceber uma nova ideia de homem, assente precisamente em pressupostos cientificamente
comprovados.
De tal forma, que nas últimas décadas do século XX, os cientistas, recorrendo à biotecnologia,
têm-se proposto a desafiar o próprio processo evolutivo, que até à data tem sido fruto de uma
dinâmica natural, sem intervenções externas, ou seja, resultado do livre arbítrio. Mas, perante
o desenvolvimento da engenharia genética, a comunidade científica precipita-se para essa
manipulação ou instrumentalização genética, suscitando pela primeira vez na história da
Humanidade questões vitais perante as quais vários sectores da sociedade se terão de
debruçar, nomeadamente os governantes.
68
AMARAL, Diogo Freitas – História das Ideias Políticas (Coimbra: Almedina, Janeiro de 1999), vol I, pag.
158
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Por exemplo, tal como a revolução genética, também a tecnologia nuclear, fruto do progresso
científico, introduziu novos desafios na agenda política, atendendo às consequências
eventualmente perversas que tal descoberta pudesse trazer à Humanidade, podendo mesmo
colocar a sua existência em causa. Outrora esta possibilidade estaria dependente da ordem
natural ou da vontade divina. A (não) existência do Homem seria sempre resultado de uma
outra força não compreensível nem alcançável.
Por isso, a descoberta de uma tecnologia como a nuclear veio colocar desafios nunca dantes
impostos às elites governantes. Pela primeira vez, Deus deixara de ter a exclusividade para
aniquilar a sua própria criação. O Homem passava a ter essa possibilidade, o governante
passava a deter o poder para destruir a Humanidade.
Também hoje, a comunidade científica está empenhada na prossecução de mecanismos que
lhe permitam ter a capacidade para interferir geneticamente no processo evolutivo do Homem.
E assim, embora em moldes diferentes, a ciência estimula, mais uma vez, os homens a
descobrirem formas de desafiar a ordem estabelecida.
Perante isto, a comunidade política reage numa tentativa de controlar uma tecnologia ainda
nos primórdios da exploração, mas cujas consequências poderão ser avassaladoras para a
Humanidade. Assim, se o debate em torno do tecnologia nuclear já foi feito, regulando-se e
criando-se mecanismos ao nível do poder político no sentido de se enquadrar o processo da
descoberta científica no bem comum, relativamente às inovações no campo das
biotecnologias a discussão só agora começou. No fundo, o que está em causa é a dicotomia
bom/mau uso das respectivas tecnologias, porque, como refere Fukuyama, quando “existe
alguma probabilidade de se ser morto por uma máquina que se cria, o que se faz é tomar as
precauções necessárias para se proteger”69
.
A criação da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) para regular a utilização da
energia nuclear para fins pacíficos ou a adopção de convenções internacionais para limitar o
recurso do nuclear para fins militares, como é o caso do Tratado de Não Proliferação Nuclear
(NPT) ou o tratado que proíbe qualquer explosão nuclear (CTBT)70
, são exemplos das
“precauções” tomadas pelos decisores políticos de modo a proteger a Humanidade dos efeitos
perversos de uma descoberta científica. O mesmo processo poderá vir aplicar-se no campo
69
Ob. Cit – O Nosso Futuro Pós-Humano, pag. 25 70
Com 177 signatários aquando da sua criação em 1996, 138 já ratificaram, no entanto, ao abrigo daquele
tratado é obrigatória a ratificação por parte de alguns Estados específicos para que o CTBT entre em vigor, algo
que ainda não aconteceu.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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das biotecnologias, porque esta será certamente uma área que comportará riscos físicos para a
integridade do Homem.
Será então pertinente recorrer-se à criatividade intelectual para tentar asseverar as
consequências da revolução biotecnológica nas sociedades pós-modernas. Uma das questões
que se pode colocar é a seguinte: Está-se perante uma potencial transformação social
semelhante àquela que ocorreu com a emergência do cristianismo no mundo medieval?
Já aqui foi dito que o cristianismo repercutiu-se nas esferas social e política, introduzindo um
novo modelo de pensamento. Com ele surgiu um novo conceito de Humanidade, no qual
“todos os homens são iguais, aos olhos de Deus”. A noção de igualdade humana e da
“natureza inviolável da pessoa humana”71
passará a ser basilar nas preocupações daqueles que
fazem a política, tal como hoje conceitos de justiça social ou igualdade de oportunidades estão
no topo da agenda dos dirigentes.
Depois do que acontecera no passado com a emergência da filosofia, da religião ou da
ideologia, o avanço galopante da ciência veio precipitar a Humanidade para um terreno
desconhecido, cujo seu horizonte não é ainda perceptível. Fukuyama, um dos primeiros
autores a teorizar sobre este assunto no âmbito da filosofia e ciência políticas, refere-se ao
actual período da História como um dos mais importantes no avanço da tecnologia,
salientando o facto da biotecnologia vir a ter “inúmeras ramificações políticas”, na medida
que a sua aplicação reabre “as possibilidades de engenharia social” que os “engenheiros
sociais e os planificadores utópicos do século passado” tentaram fazer72
.
Com os instrumentos que começam a ficar ao dispor dos cientistas capazes de desafiar a
ordem instituída, Fukuyama enfatiza as diferenças entre uma sociedade criada a partir do livre
arbítrio, ou daquilo que chama de “lotaria genética”, e uma sociedade erigida com base em
modelos pré-definidos, onde nada é deixado ao acaso. “Livre arbítrio vs determinismo
(genético)” poderá vir a tornar-se uma das equações mais fracturantes e polémicas no debate
politico e sociológico dos próximos anos. E Fukuyama ajuda a explicar porquê.
“A lotaria genética é denunciada por muita gente como sendo intrinsecamente injusta,
porquanto condena certas pessoas a serem menos inteligentes, ou a terem mau aspecto, ou a
sofrerem deficiências, etc. Mas, vendo de outro modo, ela é profundamente justa, uma vez
que todos lhe estão subordinados, independentemente da classe social, da raça ou da etnia. O
mais rico dos homens pode ter, e muitas vezes tem, um filho que não presta para nada.
71
Ver Epístola dos Romanos 13,1 (São Paulo) 72
Ob. Cit – O Nosso Futuro Pós-Humano, pag. 37
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Quando a lotaria for substituída pela escolha, estaremos a criar um novo espaço de
competição entre os seres humanos, onde a grande ameaça consiste no alargamento do fosso
que separa o topo da hierarquia social da base.”73
Com este raciocínio, o autor alerta para a
tentação, na qual muitos líderes e dirigentes já caíram no passado: a tentativa de criação de
uma “super-classe”.
Se é verdade que a ciência começou a dar os primeiros passos eventualmente com o
aparecimento do homem – uma vez que “qualquer escolha de uma data de partida para a
história da ciência é arbitrária”74
–, foi nos últimos dois séculos que a produção científica
assumiu valores inéditos. As descobertas sucederam-se, verificando-se que em 1700 existiam
apenas duas publicações científicas periódicas enquanto em 1832 o número já ascendia a 300.
Derek J. de Solla Price (Leyton, 1922-1983), doutorado em física e em história da ciência, foi
um dos autores que se dedicou a esta matéria, corroborando precisamente a ideia de
progressão científica galopante ao longo dos últimos séculos.
Mas, no que concerne às áreas de estudo sobre as quais este trabalho se debruça, só nos finais
do século XIX é que se começaram a dar passos significativos, que vieram a ser
consubstanciados com as descobertas do século passado e que hoje proporcionam inúmeras
oportunidades científicas em campos jamais explorados. O professor Étienne Baulieu não tem
dúvidas ao afirmar que o século XX foi “dominado pelo progresso científico”, no qual
homens como James D. Watson (Chicago, 1928) ou Francis Crick (Northampton, 1916-2004)
desempenharam um papel fulcral. Mas, já antes nomes como Charles Darwin (Shrewsbury,
1809-1882) ou Gregor Mendel (Heizendorf, 1822-1884) abriam caminho a novas áreas da
ciência, nomeadamente no campo do estudo da hereditariedade, que mais tarde viria a ser
conhecido como genética.
De acordo com Baulieu, os “sábios” de antigamente deram lugar aos cientistas, que em 1800
eram em todo o mundo cerca de 1000, passando a ser um milhão em 1950. Perante este
cenário, não é de estranhar que “noventa por cento dos cientistas que viveram até hoje” sejam
contemporâneos. Estes são movidos pela curiosidade científica que, para Baulieu,
“permanecerá no coração e na alma dos homens”75
, e, como tal, a descoberta parece ser
inevitável.
73
Ob. Cit – O Nosso Futuro Pós-Humano, pag. 240 74
Ob. Cit – História da Ciência de 1543 ao Presente, pag. 17 75
In texto escrito em Junho de 1984 para prefaciar uma tradução da obra The Double Helix por James D.
Watson, publicado originalmente em Fevereiro de 1968 pela editora comercial Atheneum.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 36
Por vezes, o ritmo das descobertas é de tal forma alucinante que provoca autênticas rupturas
nos paradigmas instituídos, espoletando revoluções científicas, como a revolução
biotecnológica, que tem as suas raízes certamente no século XIX, mas que se começa a
exprimir em toda a sua plenitude nas últimas três décadas do século XX. Como tal, nestes
primeiros anos do terceiro milénio, a revolução das novas biotecnologias começa a ter um
impacto substancial na sociedade, extravasando a mera esfera científica. Assim, a evolução
das novas biotecnologias permite elevar a engenharia e a investigação genéticas a níveis que,
como já foi referido, poderá ter consequências nos paradigmas de pensamento das sociedades
pós-modernas.
No prólogo da sua célebre obra76
, Manuel Castells põe em evidência alguns “acontecimentos
históricos importantes” que “no final do segundo milénio da Era Cristã” alteraram o “cenário
social da vida humana”. A revolução tecnológica é precisamente um desses acontecimentos
que, no entender do autor, “começou a remodelar, de forma acelerada, a base material da
sociedade”. Esta realidade pressupõe a emergência de novos modelos de pensamento quanto
ao nível de organização da sociedade e ao novo papel que o homem passa a desempenhar na
mesma. É nesta lógica que Madeleine Albright, antiga secretária de Estado norte-americana,
observa que “através das experiências e da investigação, os cientistas vão contribuindo para
aumentar” o conhecimento do homem. “Sabemos, neste sentido, muito mais sobre o modo de
funcionar do mundo do que gerações anteriores.”77
Castells centra o seu estudo nas transformações aceleradas do final do século XX registadas
em três planos: o político, o económico e o tecnológico. Posteriormente, escalpeliza as
consequências sociais de tal dinamismo. No âmbito deste trabalho, é de todo o interesse
discorrer sobre aquilo que o sociólogo espanhol chama de “tecnologias da vida”, uma
ramificação do vasto campo atribuído às tecnologias em geral.
Ao falar em tecnologias da vida, Castells está a referir-se a áreas de investigação e pesquisa,
tais como a engenharia genética, a recombinação de ADN (ácido desoxirribonucleico), a
biotecnologia ou a clonagem molecular. Embora não dispense muito tempo com estas
matérias, o autor não deixa de enfatizar a descoberta da estrutura molecular do ADN
(conhecida como “dupla hélice”), em 1953, classificando-a como uma autêntica “revolução na
76
CASTELLS, Manuel – A Sociedade em Rede, A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, tradução
de Alexandra Lemos, Catarina Lorga e Tânia Soares (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002 [ed.orig. The
Rise Of The Network Society, Blackwell Publishers Ltd. 1996]) 77
ALBRIGHT, Madeleine et Bill Woodward – Os Poderosos e o Todo-Poderoso, Reflexões sobre a América,
Deus e o Mundo, tradução de Mónica Bello (Lisboa: Difel, Outubro de 2006 [ed.orig. The Mighty and The
Almighty, 2006]), pag. 309
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 37
microbiologia”, que viria a permitir no início da década de 70, os primeiros passos da
revolução biotecnológica e da engenharia genética. E aqui, cita a título de exemplo, Stanley
Cohen (Nova Iorque, 1922) da Universidade de Stanford e Herbert Boyer (Pensilvânia, 1936)
da Universidade da Califórnia, como “os inventores do método de clonagem genética em
197378
, e refere o trabalho realizado em 1975 por investigadores em Harvard no isolamento
do “primeiro gene de mamífero, a partir da hemoglobina de coelho”, e a clonagem do
primeiro gene humano em 197779
.
Precisamente quando se assistiam a estas descobertas, Alvin Toffler discorria sobre as
mesmas, levando-o a concluir que de todas as transformações tecnológicas e científicas que
estavam a ocorrer nos anos 70, nenhuma se comparava ao “tecnomoto que avassalava a
indústria da biologia molecular”80
. Já então, Toffler não tinha dúvidas quanto à importância
que esta área de investigação viria a ter nas sociedades actuais. De tal modo, que o autor
identificou igualmente os potenciais problemas que poderiam advir das novas biotecnologias
– os mesmos que hoje se colocam, embora muitos deles pudessem ser conotados na altura
como ideias loucas.
Atente-se no que Toffler escreveu: “Deveremos criar pessoas com o estômago como o dos
bovinos, para poderem digerir erva e feno, aliviando assim o problema alimentar ao
modificar-nos para comermos em níveis mais baixos da cadeia alimentar? Deveremos
modificar biologicamente trabalhadores para se adaptarem aos requisitos do trabalho – por
exemplo, pilotos com reflexos mais rápidos ou trabalhadores de linhas de montagem
neurologicamente concebidos para nos fazerem o trabalho monótono? Deveremos tentar
eliminar gente „inferior‟ e criar uma „super-raça‟? Deveremos clonar soldados para travarem
os nossos combates? Deveremos utilizar previsões genéticas para pré-eliminar bebés
78
Efectivamente, Cohen e Boyer foram os primeiros cientistas a criarem um organismo vivo a partir da
recombinação de ADN, ou seja, pela primeira vez, transferiram ADN de um organismo vivo para outro. Esta
descoberta é descrita como fundamental para a evolução da engenharia genética. No entanto, é justo referenciar
o trabalho de Paul Berg (Nova Iorque, 1926), também da Universidade de Stanford, como ponto de partida, uma
vez que um ano antes tinha criado as primeiras moléculas de ADN recombinado provenientes de organismos
diferentes. Em 1991, Berg viria a liderar o Comité de Aconselhamento Científico do Projecto do Genoma
Humano, não sem antes ter sido laureado como Prémio Nobel da Química em 1980. As suas descobertas
continuam a ser descritas como fundadoras dos campos da engenharia genética e da indústria das novas
biotecnologias. Stanley Cohen viria a ser agraciado com o Prémio Nobel da Química em 1986 pelo seu trabalho
nos factores de crescimento das células. 79
Ob. Cit – A Sociedade em Rede, A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, pag. 67 80
TOFFLER, Alvin – A Terceira Vaga, tradução de Fernanda Pinto Rodrigues (Lisboa: Livros do Brasil, Março
de 2003 [ed. orig. The Third Wave, 1980]), pag. 146
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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„inaptos‟? Deveremos criar reservas de órgãos para nós próprios – ficando cada um de nós,
por assim dizer, com uma „conta a prazo‟ cheia de rins, fígados ou pulmões sobressalentes?”81
Não deixa de ser curioso que aquilo que Toffler expõe como problemas potenciais nas
sociedades pós-modernas tinha Aldous Huxley aplicado décadas antes no seu mundo futurista
e totalitário que ele tão bem descreve em Admirável Mundo Novo.
A diferença é que o primeiro problematizou sobre algo concreto, que estava à vista de todos,
sendo impossível negar os avanços galopantes das novas biotecnologias na década de 70,
enquanto que o segundo idealizou um mundo utópico dominado pelo progresso e
materialismo científicos, onde a aparente perfeição social não dava espaço ao livre arbítrio.
Antes de se prosseguir no estudo das consequências da revolução biotecnológica dos anos 70,
é prudente atentar-se ao início deste percurso científico. Embora Castells refira que “a
biotecnologia possa remontar às tabelas sobre fermentação da Babilónia de 6000 a.C.”, a
prudência e a objectividade aconselham que não se recue tanto, bastando uma viagem ao
século XIX. Efectivamente, não será arriscado afirmar, tal como Étiennne Baulieu o faz, que
“Darwin e Mendel despertaram literalmente o espírito humano para a ciência da
hereditariedade”.
Em certo sentido, estes dois cientistas terão sido responsáveis pela possibilidade do Homem
vir a estar confrontado com uma sociedade pós-humana. E tudo isto porque sobre o seu
trabalho, outros como August Weismann (Frankfurt, 1834-1914)82
, William Bateson (Whitby,
1861-1926)83
, Watson ou Cohen foram acumulando saber científico. Como observa Baulieu,
“na investigação científica trepa-se com a ajuda dos outros”.
Uma realidade que levou à redescoberta das leis de Mendel e à construção do modelo
tridimensional da estrutura molecular do ADN por Watson e Crick. Isto só foi possível com a
concertação dos esforços científicos de muitos investigadores.
Basta para isso ver o percurso que vários cientistas fizeram durante a segunda metade do
século XIX para chegar à redescoberta das leis de Mendel.
81
Ob. Cit – A Terceira Vaga, pag. 147 82
August Weismann foi um biólogo alemão que desenvolveu a teoria do “plasma germinal” e da transmissão de
informação genética de geração em geração. Ou seja, “sugeriu os cromossomas como portadores de informação
hereditária”, salienta John Gribbin. Nas palavras de Weismann, “a hereditariedade é originada pela transmissão
de uma geração à outra, de uma substância com uma constituição química definida, e acima de tudo, molecular”.
Os trabalhos deste cientista foram muitos importantes para a redescoberta das leis de Mendel. 83
William Bateson foi um dos primeiros cientistas a aceitar as leis de Mendel, depois destas terem sido
redescobertas e reinterpretadas em 1900, publicando dois anos mais tarde um livro intitulado Mendel‘s
Principles of Heredity: A Defence. Mas, a notoriedade deste cientista não viria tanto da defesa que fez às leis de
Mendel, mas sim pelo facto de ter sido o primeiro a sugerir, em 1905, a palavra genética, para se referir ao
estudo da hereditariedade. Bateson recorreu à palavra grega genno, que significa nascimento.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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Darwin e a origem das espécies
Foi com Charles Darwin que surgiu, pela primeira vez, uma teoria científica que propunha o
explicar o processo de evolução dos seres humanos. A teoria da evolução pela selecção
natural, materializada no livro Origem das Espécies84
, acabou por representar um dos
acontecimentos mais importantes na história da ciência, com consequências dramáticas na
sociedade, alterando por completo a percepção que o Homem tinha do seu trajecto enquanto
ser evolutivo.
De facto, Darwin estava de tal maneira convicto do conteúdo revolucionário dos seus escritos
que demorou duas décadas entre a data da elaboração do primeiro rascunho (1839) e da
publicação da obra (1859). O motivo desta demora deveu-se sobretudo a uma razão: receio da
reacção da opinião pública. Mas, uma coisa era certa, o naturalista inglês qualificava a
evolução como um facto e, desse modo, sabia que uma abordagem deste tipo iria colocar em
causa séculos de pensamento instalado.
Embora as conclusões de Charles Darwin não fossem fruto único e exclusivo do seu trabalho,
uma vez que a teoria da evolução já tinha sido abordada antes, nomeadamente pelo seu avô
Erasmus (Nottinghamshire, 1731-1802)85
, a verdade é que a Origem das Espécies acabou por
emergir como uma obra de referência no estudo da hereditariedade. E sendo certo que
algumas teorias evolucionistas há algum tempo vinham sendo referenciadas, inclusivamente a
ponto de Darwin se ter visto na iminência de perder o seu estatuto de autor da Teoria da
Selecção Natural86
, foi a este último a quem foi atribuída a primeira teoria científica
fundamentada para a explicar o fenómeno da evolução.
84
Publicado originalmente em 1859 sob o nome The Origin of Species by Means of Natural Selection: Or, the
Preservation of Favored Races in the Struggle for Life, por John Murray Publishers of London. 85
Segundo John Gribbin, Erasmus Darwin expôs uma teoria da evolução que ia para além das meras
especulações, no entanto, estava limitado pelos “conhecimentos da altura”. Traça um cenário evolutivo de
algumas espécies, no qual não deixa de referenciar a capacidade de adaptação das mesmas ao ambiente, e
embora Deus continue presente no seu pensamento como “a primeira causa que pôs em funcionamento o
processo da vida na Terra”, deixa de ter interferência na evolução das espécies. Zoonomia e The Laws of
Organic Life (1794-96) são as suas obras de referência. 86
Em Fevereiro de 1858, o naturalista Alfred Russel Wallace (Usk, 1823-1913) enviara um artigo a Darwin para
que pudesse comentá-lo, no entanto, este último ficou espantado quando se apercebeu que estava perante um
documento que antecipava as suas ideias. Desta forma, dois amigos íntimos de Darwin, que se ocuparam deste
caso, acabaram por surgir com uma ideia que passava pelo envio do artigo de Wallace à Sociedade Lineana, mas
anexado ao esboço de 1844 da Origem das Espécies. Tendo sido lido a 1 de Julho como uma publicação
conjunta, o nome de Charles Darwin destacou-se, não só por ser membro da Royal Society, mas por ser o autor
do artigo mais antigo. Curiosamente, este episódio nunca incomodou Wallace. Pelo contrário, este afirmou que
foi graças a ele que finalmente Darwin decidiu publicar a Origem das Espécies, a 24 de Novembro de 1859, pelo
editor John Murray.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 40
Mas, Darwin deve parte do seu trabalho, entre outros87
, a Thomas Malthus (Rookery, 1766-
1834) que, através do Ensaio sobre o Princípio da População de 1798, desenvolveu uma
teoria sobre o comportamento da população, no qual defendia o princípio da sua “progressão
geométrica”, ou seja, onde estabelecia uma relação directa entre o crescimento da população e
a quantidade dos meios de subsistência que a rodeia. “Sabe-se, por confissão do próprio
Darwin, que ao livro de Malthus se deve a origem da mais célebre doutrina científica do
século XIX, a da luta pela vida como modo de selecção e como mola de progresso.”88
A teoria de Maltuhs partia de um pressuposto pessimista, no qual “o progresso da espécie
humana, em riqueza e felicidade, era indefinido e que era preciso afugentar o medo de que
houvesse, um dia, demasiados homens na terra”, porque para aquele autor, à “aterradora
rapidez do aumento da população entregue a si própria” associava-se “a relativa lentidão do
aumento das subsistências”89
.
Para Malthus, as limitações da natureza encarregavam-se de condicionar dramaticamente o
crescimento da população de acordo com os seus recursos. Em suma, estava-se perante uma
fórmula que implicava uma relação directa entre o ambiente e o comportamento/crescimento
populacional, mas onde o primeiro se impunha sempre ao indivíduo.
O lado perverso desta teoria pressuponha um carácter fatalista, como se nada houvesse a fazer
para fomentar um crescimento populacional superior à geometria descrita por Malthus.
Efectivamente, vários foram os políticos que no século XIX utilizaram as teorias maltusianas
para justificar a sua passividade face à ajuda das classes pobres, na medida em que
supostamente mais população significaria escassez de recursos e, como tal, mais miséria90
.
87
O geólogo Charles Lyell (Kinnordy, 1797-1875), através de uma expedição famosa, em 1828, à Sicília para
observar locais de actividade sísmica e vulcânica, “compreendeu que dado que o (vulcão) Etna (e na verdade a
totalidade da Sicília) era relativamente jovem, as plantas animais aí encontradas tinham de ser espécies que
tinham migrado da África ou da Europa, e adaptado-se às condições que encontraram”, o que pressuponha que a
“vida” era moldada, em certa medida, pelas forças geológicas. Em 1830, era publicado o primeiro volume de três
de Os Princípios da Geologia, fazendo eco destas teorias. O botânico Jean-Baptiste Lamarck (Picardia, 1744-
1829), que se tornou famoso com o seu livro Flora Francesa, abordou pela primeira vez nas suas aulas no Museu
Francês de História Natural, em 1800, a ideia de que as espécies estão sujeitas a um processo de mutação. A sua
teoria, subscrita em quatro leis, acabaria por ser publicada no primeiro volume de sete da obra História Natural
dos Animais sem Vértebras (1815-1822. Foi o próprio Darwin que admitiu que “Lamarck foi o primeiro que
despertou pelas suas conclusões, um estudo sério sobre tal assunto (…), foi ele o primeiro que prestou à ciência
um grande serviço de declarar que toda a alteração no mundo orgânico, bem como no mundo inorgânico, é o
resultado de uma lei, e não uma intervenção miraculosa”. 88
GIDE, Charles et Charles Rist – História das Doutrinas Económicas, tradução de Eduardo Salgueiro (Lisboa:
Editorial Inquérito, 1938 [ed. orig. Histoire des Doctrines Économiques Depuis les Physiocrates Jusqu‘à Nous
Jours, 1909]), pag. 153 89
Idem, pag. 155 90
Gide e Rist referem na sua obra de referência acima citada, que durante todo o século XIX a teoria maltusiana
“servirá para barrar o caminho a todos os planos de organização socialista ou comunista e até de qualquer
reforma tendente a melhorar a condição dos pobres”.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 41
Ora, é precisamente neste ponto que se vê o avanço no pensamento de Darwin. Este rejeita o
determinismo maltusiano, afirmando que o indivíduo acabará por se adaptar ao ambiente num
espírito de sobrevivência e de aperfeiçoamento.
Darwin nunca se empenhou verdadeiramente na explicação da origem da primeira espécie ou
da criação da vida, ao contrário do que fizera anteriormente John Locke (Wrington, 1632-
1704) ou David Hume (Edimburgo, 1711-1776). Estes, não obstante o seu carácter empirista e
as horas de reflexão sobre esta matéria, nunca se libertaram da ideia reinante sobre a origem
da espécie: Deus, como um agente racional e pensante, construiu o mundo.
Até Darwin, esta era uma verdade científica incontestável, como se de um teorema de
matemática tratasse. Desta forma, explicava-se o incompreensível e respondia-se ao “porquê”
do homem ser como é. Mas, esta resposta só viria a ter uma sustentação devidamente efectiva
com Darwin. Refira-se, no entanto, que Hume antecipou, em certa medida, as ideias da
evolução pela selecção natural nos seus Diálogos, mas não lhe deu grande importância: “E
qual surpresa não devemos sentir ao descobrir que ele [Deus] é um mecânico estúpido, que
apenas imitou outros e copiou uma arte que, através de uma longa sucessão de épocas, e após
múltiplos ensaios, erros, correcções, decisões e controvérsias, se foi aperfeiçoando
gradualmente? Muitos mundos poderia ter sido toscamente elaborados e remendados ao longo
de uma eternidade, antes de delinear-se o presente sistema; muito trabalho pode ter-se
perdido, muitas tentativas infrutíferas realizadas, e um lento mas ininterrupto progresso pode
ter tido lugar, através de eras infinitas, na arte de construir mundo”, observa a personagem
Filo, contrapondo a ideia do seu interlocutor Cleantes, que advoga uma Divindade inteligente
e sapiente à imagem da qual foi feito o Homem. Neste diálogo, Hume cria alternativas ao
modelo vigente, mas não chega a recusá-lo. Ou seja, o filósofo admite outras vias, mas não
chega a fazer a ruptura, acabando por entregar a Deus a responsabilidade da causa primeira.
Curiosamente, também Denis Diderot (Langres, 1713-1784) já tinha sido confrontado com
esta questão, tendo escrito “que os monstros se foram aniquilando uns aos outros em
sucessão; que todas as combinações defeituosas da matéria desapareceram e que apenas
sobreviveram aquelas cuja organização não apresentava quaisquer contradições importantes e
que puderam subsistir e perpetuar-se por si mesmas”. É impossível não vislumbrar nestas
palavras uma antecâmara do pensamento de Darwin.
Tratou-se de uma questão de tempo até aparecer alguém a rejeitar veementemente o
paradigma dominante. Darwin desempenhou esse papel com sucesso, sobretudo porque
estabeleceu limites ao seu objecto de estudo, centrando-se nas espécies de organismos como
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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entidades evolutivas, rejeitando, assim, a intemporalidade e imutabilidade, como se tratassem
de “triângulos e círculos perfeitos da geometria euclidiana”. É desta forma que Darwin rompe
com uma herança filosófica de séculos.
Ao contrário dos átomos de carbono ou das moléculas de água, portadoras de características
intemporais, as espécies evoluíam com o passar dos tempos, podendo mesmo transformarem-
se ou dar origem a outras espécies. A selecção natural surge assim como um mecanismo
funcional, de adaptar e melhorar os organismos face ao seu ambiente. “Se, no longo do
decurso das eras, no meio das condições inconstantes da existência, os seres orgânicos
apresentam diferenças individuais, em quase todas as partes da sua estrutura, e este ponto não
é contestável; se se produz, entre as espécies, em razão da progressão geométrica do aumento
dos indivíduos, uma encarniçada luta pela existência numa certa idade, numa certa estação, ou
durante um período qualquer da vida, e este ponto não é certamente contestável; tendo, então,
em conta a infinita complexidade das relações mútuas entre todos os seres orgânicos e das
suas relações com as condições da sua existência, o que causa uma diversidade infinita e
considerável das estruturas, de constituições e de hábitos, seria deveras extraordinário que não
se produzissem jamais variações úteis à prosperidade de cada indivíduo, da mesma forma
como se produzem tantas variações úteis ao homem. Mas, se as variações úteis a um ser
orgânico qualquer se apresentam algumas vezes, seguramente os indivíduos que disse são o
objecto têm a melhor probabilidade de vencer na luta pela existência; pois, em virtude do
princípio tão poderoso da hereditariedade, estes indivíduos tendem a deixar os descendentes
tendo o mesmo carácter que eles. Dei o nome de selecção natural a este princípio de
conservação ou de persistência do mais adaptado.”91
De forma hábil, Darwin evitou cair na “armadilha” dos seus antecessores, fugindo ao clássico
debate sobre a origem da primeira espécie, algo que ainda hoje é desconhecido. Darwin
enquadrou o seu estudo numa fase posterior ao aparecimento do primeiro organismo, não se
preocupando com a Criação, mas sim com a emergência das espécies no mundo ao longo dos
tempos. Parecendo paradoxal, pode-se dizer que o segredo do sucesso da teoria de Darwin
esteve precisamente na gestão mais modesta do objecto de estudo, quando comparado com
autores como Locke ou Hume.
Assim, Darwin centrou-se no processo evolutivo, não precisando de recorrer a uma entidade
inteligente para o justificar. Na verdade, e apoiando-se em vários ramos da ciência, chegou à
91
DARWIN, Charles – Origem das Espécies, tradução de Joaquim Dá Mesquita Paul (Porto: Lello & Irmão,
1961 [ed. orig. The Origin of Species by Means of Natural Selection: Or, the Preservation of Favored Races in
the Struggle for Life, John Murray Publishers of London, 1859]), pag, 121
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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conclusão que os seres vivos têm a capacidade “para favorecer o que é bom e rejeitar o que é
mau”. A biologia molecular foi uma das últimas ciências da vida que vieram ajudar a
corroborar esta tese.
Embora Darwin não tivesse chegado ao conceito de gene, debateu-se com a problemática da
hereditariedade e propôs um modelo que a sustentava. Modelo esse que punha em causa
crenças enraizadas no colectivo social porque, entre outras coisas, rejeitava o “criacionismo”,
até então teoria dominante para explicar a criação do Homem. Como já aqui se viu, vários
autores já tinham avançando com ideias para a evolução do Homem, mas nunca tinham
deixado Deus de fora do processo criativo e evolutivo.
“As ideias interessantes sobre a evolução têm andado entre nós há milénios, mas, como
acontece com muitas ideias filosóficas, embora parecessem apresentar uma solução óptima
para o problema prático, não prometiam avançar mais, não abrindo o caminho a novas
investigações nem gerando previsões surpreendentes que pudessem ser postas à prova (…) A
revolução evolucionista teve de esperar até Charles Darwin descobrir a forma de tecer uma
hipótese evolutiva num tecido explicativo composto literalmente de milhares de factos
arduamente conquistados e muitas vezes surpreendentes acerca da natureza. Darwin não
inventou sozinho a ideia maravilhosa de raiz nem a compreendeu em toda a sua extensão
mesmo quando a formulou. Mas fez um trabalho monumental para a clarificação dessa ideia
(…).”92
O naturalista inglês desbravou terreno desconhecido, de tal forma que o filósofo norte-
americano, Daniel C. Dennett, observa que “houve desde o início quem pensasse que Darwin
estava a tirar do saco o pior dos males, o niilismo”93
.
Tal como já acontecera no passado, também a ideia de Darwin demorou tempo a ser
assimilada e compreendida, havendo mesmo que nunca a tenha aceitado. A ruptura com um
paradigma vigente dificultou a subscrição da nova teoria. E Darwin estava ciente deste facto,
por isso, não é de estanhar que o autor tenha apelado às gerações mais novas do seu tempo,
livres de preconceitos, que embarcassem na sua teoria.
A este propósito Daniel C. Dennett, escreve o seguinte: “A nova perspectiva de Darwin vira
do avesso vários pressupostos tradicionais, pondo em causa as nossas ideias-padrão sobre o
que devem ser as respostas satisfatórias a esta questão antiga e incontornável.”94
Uma ideia
92
DENNETT, Daniel C. – A Ideia Perigosa de Darwin, tradução de Álvaro Augusto Fernandes (Lisboa: Temas
e Debates, Fevereiro de 2001 [ed. orig. Darwin‘s Dangerous Idea, 1995]), pag. 32 93
Idem, pag. 16 94
Idem, pag. 19
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que se podia aplicar aos feitos de Aristóteles, Galileu ou Maquiavel, porque em qualquer um
destes casos esteve-se perante uma “revolução” que extravasou o mero campo técnico
respeitante a uma particular área do saber.
Depois daqueles autores terem insistido nas suas teorias e provocado rupturas, desta vez,
cabia a Darwin a responsabilidade de romper com o pensamento vigente: “Diz-se que falo da
selecção natural como de uma potência activa ou divina; mas quem critica um autor quando
fala da atracção ou gravitação, como regendo o movimento dos planetas?”95
Remetendo esta lógica de raciocínio para os dias de hoje, poder-se-á questionar o seguinte:
Haverá alguém que coloque em causa o facto da homossexualidade resultar de uma
desregulação genética? No entanto, até há bem poucos anos, este era um assunto altamente
controverso e discutível.
Também o apelo de Darwin às gerações mais jovens encontra paralelo na sociedade
contemporânea, perante discussões como fertilização in vitro, o aborto, a eutanásia ou a
investigação em células estaminais embrionárias. Mas, o naturalista inglês sublinha que para a
sociedade ser receptiva a uma “grande alteração” de pensamento terá primeiro de analisar os
graus intermédios de conhecimento, uma vez que nada sugere por mero acaso. Mais uma vez,
esta é uma lógica que se aplica aos debates que perpassam a sociedade pós-moderna do século
XXI, como adiante se verá.
Mendel, o “pai” da genética
Os debates na área das novas biotecnologias, nomeadamente no estudo de células estaminais e
engenharia genética, não seriam possíveis sem o contributo de Mendel, como aliás já aqui foi
referido. Apelidado de “pai da Genética” (embora este termo tenha sido cunhado por Bateson
em 1905), Gregor Mendel, um monge com formação científica especialmente na área da
Biologia, foi produto do mosteiro de S.Tomás, em Brno, onde o abade Cyrill Franz Napp
estava determinado em transformar aquele local num centro de estudo científico. Para isso,
“caçava” todas as mentes brilhantes, retribuindo-lhes com os ensinamentos de padres que
dominavam áreas do saber, como botânica, astronomia, filosofia e composição. Foi isso que
aconteceu com Mendel em 1843, uma vez que os pais deste não tinham dinheiro para enviar o
filho para a universidade.
95
Ob. Cit – Origem das Espécies, pag. 76
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 45
Terminando os seus estudos teológicos em 1848, acabou por ir para a Universidade de Viena,
em 1851. Tinha 29 anos. Durante os dois anos em que esteve naquela instituição, Mendel
adquiriu os conhecimentos necessários para poder desenvolver os seus primeiros estudos
relativos à hereditariedade. Já como professor no mosteiro de Brno, Mendel começou, em
1856, a desenvolver experiências minuciosas em ervilhas, de modo a perceber o
funcionamento da hereditariedade. Estava assim dado um passo importante para o
desenvolvimento daquilo que viria a ser a engenharia genética.
Num canteiro de terra de 35 metros de comprimento e 7 metros de largura no jardim do
mosteiro, Mendel “trabalhou com cerca de 28 mil plantas, das quais 12 835 foram sujeitas a
exame cuidado. Cada planta era identificada como um indivíduo, e os seus descendentes
registados como uma árvore genealógica humana.” Inovando ao nível da técnica de
investigação face aos seus antecessores, “Mendel tinha de polinizar à mão cada uma das suas
plantas experimentais, salpicando pólen de uma única planta individual identificada nas flores
de outra planta individual única identificada e manter cuidadosos registos do que tinha
feito”96
.
Tal como Darwin, também Mendel aplicou um método científico nas suas investigações. “A
chave para o trabalho de Mendel – o ponto a que muitas vezes não é dada importância – é a de
que ele trabalhou como um físico, realizando experiências repetíveis e, mais
significativamente, aplicando adequados métodos estatísticos à análise dos seus resultados.”97
E que resultados foram esses?
Basicamente, Mendel descobriu o gene (embora não o identificasse como tal)98
e a sua
característica de surgirem aos pares, ao verificar que em cada planta existe algo que determina
as suas propriedades. Concluiu que determinado gene era responsável por sementes lisas
enquanto que outro daria sementes rugosas. Mendel verifica igualmente que qualquer planta é
portadora das variáveis combinações entre esses genes, constatando, no entanto, que apenas
um gene do par se manifesta na planta. Foi ainda mais longe ao distinguir entre gene
dominante e recessivo, um princípio fundamental para se proceder a todo o tipo de engenharia
ou manipulação genética. No fundo, Mendel prova que “a hereditariedade funciona não pela
96
Ob. Cit – A História da Ciência – De 1543 ao Presente, pag. 510 97
Idem, ibidem 98
Em 1909, o dinamarquês Wilhelm Johannsen usa o termo “gene” pela primeira vez, dando seguimento aos
estudos feitos na segunda metade do século XIX.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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mistura das características de dois progenitores, mas pela adopção de características
individuais de cada um deles”99
.
Mendel apresentou os seus estudos em dois artigos (publicados um ano mais tarde na sua obra
Actas) na Sociedade de Ciências Naturais de Brno, em 1865, porém, e apesar dos mesmos
terem sido enviados a alguns biólogos, o seu trabalho nunca foi justamente divulgado,
acabando por ficar no esquecimento, até ser redescoberto por volta de 1900.
Vários foram os cientistas que “tropeçaram” nas descobertas de Mendel, numa altura em que
já tinham sido feitos avanços consideráveis no estudo das células e da sua composição100
. O
botânico holandês Hugo de Vries (Haarlem, 1848-1935) foi um dos três cientistas que
redescobriu o trabalho de Mendel, juntamente com o seu colega alemão Karl Correns
(Munique, 1864-1933) e o austríaco Erich Tschermak von Seysenegg (Viena, 1871-1962).
“Por volta de 1899, de Vries estava pronto para preparar o seu trabalho para publicação, e
enquanto o fazia, realizou um levantamento da literatura científica por forma a colocar as suas
conclusões no seu contexto adequado. Foi apenas nesta altura que ele descobriu que quase
todas as suas conclusões sobre a hereditariedade tinham já sido publicadas num raramente
lido, e ainda menos frequentemente citado, par de artigos de um monge morávio, Gregor
Mendel.”101
Também Correns, que se preparava para publicar um artigo sobre esta matéria,
teve conhecimento do trabalho de Mendel. O mesmo se passou com von Seysenegg. Os três
acabaram por atribuir todo o crédito a Mendel, considerando-o o verdadeiro percursor das leis
da hereditariedade.
É a partir desta altura que o ritmo das descobertas no estudo da hereditariedade (genética) se
precipita, alimentando a imaginação de autores que não se inibiram de idealizar sociedades
assentes no primado da ciência, nas quais o Homem é moldado de acordo com as inovações
da engenharia genética102
. O Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley é disso exemplo,
materializando um modelo de pensamento ao qual está associado um novo paradigma de
99
Ob. Cit – A História da Ciência – De 1543 ao Presente, pag. 512 100
O nível das técnicas de microscopia no final dos anos 70 do século XIX permitiu a Hermann Fol (Saint
Mandé, 1845-1892) e a Oskar Hertwig (Friedberg, 1849-1922) verem a fusão de dois núcleos de células
(espermatozóide e óvulo) para formarem um outro. Fol e Hertwig foram pioneiros nos estudos microscópicos
sobre a fertilização e divisão de células. Observaram em 1879 a penetração de um espermatozóide num óvulo,
constatando o processo de fertilização. No mesmo ano, Walther Flemming (Sachsenberg, 1843-1892) identificou
filamentos no núcleo da célula que mais tarde viriam a ser conhecidos como cromossomas. 101
Ob. Cit – A História da Ciência – De 1543 ao Presente, pag. 507 102
O futurismo, que mais tarde influenciou Benitto Mossulini e serviu de instrumento doutrinário ao fascismo,
não foi mais do que um movimento ideológico sustentado pela inovação tecnológica que se assiste no final do
século XIX e início do século XX,
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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sociedade que, em certa medida, é inspirado nas descobertas científicas contemporâneas ao
autor.
O aprofundamento do estudo dos cromossomas, nomeadamente por Thomas Hunt Morgan
(Lexington, 1866-1945)103
que viria a ser laureado com o Prémio Nobel em 1933,
precisamente pelos trabalhos nesta área, foi uma das inovações revolucionárias.
A mosca da fruta (Drosophila) serviu de fonte de estudo a Morgan, apresentando uma
vantagem significativa às ervilhas de Mendel, pelo facto do período de reprodução daquele
insecto ser bastante mais célere do que os vegetais. Num espaço de poucas semanas, Morgan
pôde estudar várias gerações de moscas de fruta, que têm a particularidade de ter apenas
quatro pares cromossomas104
.
Este facto facilitou o trabalho a Morgan, que constatou de imediato que um dos pares tinha
um significado particular, sendo responsável pela determinação do sexo. As famosas formas
X e Y têm aqui a sua origem. Embora os cromossomas surjam sempre aos pares, as
combinações não são evidentes, porque no caso das fêmeas as células são sempre portadoras
do par XX.
É no macho que se verifica a combinação XY. “Assim, um novo indivíduo tem de herdar um
cromossoma X da sua mãe e pode herdar ou um X ou um Y do seu pai; se herda um X do seu
pai, será uma fêmea; se herda um Y será um macho.”105
Morgan, que em 1928 ingressou no prestigiado Instituto de Tecnologia da Califórnia
(Caltech), foi ainda mais longe ao identificar o papel dos genes nas características dos
indivíduos, inclusive o seu carácter recessivo.
“O seu trabalho estabeleceu que os cromossomas são portadores de uma colecção de genes,
como contas enfiadas ao longo de um fio, e que durante o processo que forma os
espermatozóides ou os óvulos, os cromossomas emparelhados são separados e reunificados
para criar novas combinações de alelos.”106
Assim, os estudos que realizou durante as primeira duas décadas do século XX permitiram-
lhe descobrir a base do modelo da ordem dos genes num cromossoma. A possibilidade de
inúmeros emparelhamentos e combinações genéticas possibilita a diversidade das espécies,
corroborando-se assim a ideia darwinista.
103
Este autor tem duas obras que se tornaram referência no estudo da hereditariedade: The Mecanism of
Mendelian Heredity (1915) e The Teory of the Gene (1926). 104
Os seres humanos têm 23 pares de cromossomas. 105
Ob. Cit – A História da Ciência – De 1543 ao Presente, pag. 514 106
Idem, ibidem
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 48
ADN, a mais preciosa molécula
A primeira metade do século XX vai registar avanços significativos no estudo das células,
contribuindo para isso vários especialistas nomeadamente na área da bioquímica.
Naturalmente, desenvolveu-se o conhecimento relativamente às proteínas e ao seu papel no
processo da hereditariedade, até se chegar a uma das principais descobertas do século XX: a
estrutura da molécula de ADN, conhecida como dupla hélice.
Mas, isso só viria acontecer em 1953, após o intenso trabalho de investigação realizado nos
anos precedentes por inúmeros cientistas, quase sempre ligados a instituições inglesas e
americanas. Um desses cientistas foi precisamente Phoebus Levene (Sagor, 1869-1940),
americano de origem lituana, que, de certa forma, deu seguimento ao trabalho do bioquímico
suíço Friedrich Miescher (Basileia, 1844-1895), responsável pela descoberta do ácido
nucleico107
.
Levene, tal como Miescher, nunca chegou a compreender a importância do ácido nucleico no
processo de hereditariedade. Para ele, o que estava em causa era identificar a estrutura dos
blocos constituintes do ácido nucleico e não propriamente sua função. Em 1929, acabaria por
identificar o ADN sem, no entanto, perceber a sua função, jamais classificando-o como
material genético. Mas, Levene cometeria um erro, ao sustentar a hipótese tetranucleótica, que
reduzia o acido nucleico a uma estrutura simples, partindo do princípio que toda a
“informação importante na célula estava contida na estrutura das proteínas, e que os ácidos
nucleicos simplesmente forneciam uma estrutura de suporte simples que mantinha as
proteínas no seu lugar”108
.
Perante as conclusões de Levene, membro fundador do Instituto Rockefeller em Nova Iorque
em 1905 e proeminente figura entre a comunidade científica, o microbiologista americano
Oswald Avery (Halifax, 1877-1955) e os seus dois investigadores, Colin MacLed (Port
Hastings, 1909-1972) e Maclyn McCarty (South Bend, 1911-2005), foram moderados nas
107
Friedrich Miescher estudou Química orgânica na Universidade de Tuebingen sob orientação de Félix Hoppe-
Seyler (Freyburg, 1825-1895), tendo este criado o primeiro laboratório de investigação daquilo que passou a ser
conhecido como bioquímica. Miescher foi o primeiro cientista a recolher grandes quantidades de núcleos de
células intactos sem o citoplasma, tornando-se assim mais fácil a análise do núcleo das células. O investigador
suíço chegou à conclusão de que a nucleína (nome que deu à substância do núcleo de uma célula) era uma
grande molécula composta por elementos de natureza ácida, tendo sido esta noção que em 1889 deu origem ao
termo ácido nucleico, adoptado por um aluno seu, Richard Altmann (Rosenberg, 1852-1900). Mais tarde,
caracterizavam-se os dois tipos de ácido nucleico: o ribonucleico (ARN) e o desixorribonucleico (ADN). Apesar
destas descobertas, foram precisos vários anos para se compreender a sua importância no processo da
hereditariedade. 108
Ob. Cit – A História da Ciência – De 1543 ao Presente, pag. 520
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 49
suas conclusões publicadas num artigo em 1944. Apesar de identificarem o ADN como
elemento transformador, não foram tão longe ao considerá-lo material genético, embora
houvesse suspeitas nesse sentido.
Um dos desafios colocados daí por diante foi a identificação da estrutura do ADN. O trabalho
de Erwin Chargaff (Viena, 1905-2002), desenvolvido na Universidade de Columbia, partiu do
pressuposto de que o ADN era uma molécula complexa que transmitia informação genética.
Este foi um passo importante para se chegar a uma compreensão mais rigorosa sobre a
composição daquele ácido. Em 1950 seria publicado aquilo que ficaria conhecido como as
“regras de Chargaff”. Estas assentavam no princípio de que as quatro bases diferentes nas
moléculas do ADN estavam divididas em dois tipos de famílias químicas e que esta era uma
evidência em todas as moléculas de ADN. Além de que existia um equilíbrio uniforme na sua
estrutura.109
A grande questão era saber como se mantinham unidas as bases entre si. A
resposta cabal só seria dada anos mais tarde por James D. Watson e Francis Crick.
Efectivamente, o estudo da ligação entre as bases passou a centrar as atenções dos cientistas
que com a ajuda de uma nova tecnologia chamada de difracção de raios X conseguiram
avanços importantes. Aqui, William Bragg (Westward, 1862-1942) e o seu filho Lawrence
(Adelaide, 1890-1971)110
tiveram um papel importante ao descobrirem formas inovadoras de
utilização daquela técnica na observação do espaço físico entre átomos.
Linus Pauling (Portland, 1901-1994), doutorado em Química-Física pelo Caltech em 1925 e
laureado por duas vezes com o Nobel, teve conhecimento da técnica desenvolvida pelos
Bragg ainda enquanto estudante, desenvolvendo posteriormente as suas pesquisas, acabando
por publicar primeiramente um conjunto de regras de interpretação da difracção de raios X,
frustrando os Bragg, que se preparavam igualmente para publicar conclusões semelhantes.
Mas, Pauling estava definitivamente mais empenhado no estudo das ligações químicas nas
moléculas complexas, tendo dado um contributo importante para a emergência da Física
Quântica como ciência aplicada ao mundo atómico, a partir do momento em que se vislumbra
a possibilidade de existirem “ligações de hidrogénio”, abrindo assim novas perspectivas para
109
As quatro bases são: guanina (G), adenina (A), citosina (C) e timina (T). A guanina e a adenina são
identificadas quimicamente como purinas, enquanto a citosina e timina pertencem à família química das
pirimidinas. Mas as “regras de Chargaff dizem mais. John Gribbin resume-as deste modo: “Primeiro, a
quantidade total da purina presente numa amostra de ADN (G+A) é sempre igual à quantidade total da
pirimidina presente (C+T); segundo, a quantidade de A é a mesma que a quantidade de T, enquanto que a
quantidade de G é a mesma que a quantidade de C.” 110
Pai e filho receberam conjuntamente o Prémio Nobel da Física, em 1915.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 50
a descoberta da natureza estrutural do ADN111
. O americano foi um dos responsáveis por essa
mudança de paradigma na abordagem científica nesta área. A sua dedicação ao estudo da
natureza das ligações químicas em elementos complexos foi fundamental no percurso que
levou à descoberta da estrutura molecular do ADN. De tal forma que, três décadas após
aquele acontecimento, o Professor Étienne Baulieu ainda se mostrava surpreendido com o
facto de Pauling ter “falhado por tão pouco a descoberta” da estrutura molecular do ADN.
Efectivamente, em 1951 o grupo de Pauling no Caltech apresentava uma “solução correcta”,
ao identificar a “estrutura básica das proteínas fibrosas como sendo constituída por longas
cadeias polipeptídicas, enroladas umas em torna das outras segundo um modo helicoidal
(hélice alfa)”112
, antecipando, assim, o famoso modelo da “dupla hélice”, que cinco anos mais
tarde viria ser revelado por James D. Watson e Francis Crick. Na proposta avançada por
Pauling as ligações de hidrogénio desempenham um papel fundamental, tal com se viria a
verificar na estrutura da molécula de ADN.
O trabalho da equipa do Caltech foi publicado em vários artigos separados no fascículo de
Maio de 1951 do Proceedings of the National Academy of Sciences, revolucionando por
completo a comunidade da bioquímica113
. Pela primeira vez era assumido um modelo
helicoidal com sustentação científica, servindo de base para o estudo de outros tipos de
moléculas.
Pauling assumia-se, desta forma, como o natural candidato a descobrir a estrutura da molécula
de ADN, podendo completar um ciclo que se iniciou em Darwin no estudo da hereditariedade.
Mas, ironicamente, o trabalho do grupo do Caltech acabou por inspirar James D. Watson, um
jovem sem a reputação dos seus “concorrentes”, que “arrancou o prémio debaixo dos narizes
não apenas da equipa do Caltech, mas de outro grupo a trabalhar no problema em
Inglaterra”114
, mais concretamente na Universidade de Cambridge. Lawrence Bragg, director
111
Linus Pauling publica, em 1931, o primeiro de sete artigos sobre a natureza das ligações químicas ao nível
molecular no Journal of the American Chemical Society. Em 1939, é publicado o livro The Nature of the
Chemical Bond (Ithaca, New York: Cornell University Press), que compila todos os textos anteriores do autor
sobre esta matéria. 112
Ob. Cit – História da Ciência – De 1543 ao Presente, pag. 531 113
David Eisenberg, docente do Howard Hughes Medical Institute e do Department of Energy Institute of
Genomics and Proteomics da Universidade da Califórnia, considera que o primeiro texto que Pauling submeteu à
revista PNAS, em Fevereiro de 1951, intitulado de The Structure of Proteins: Two Hydrogen-Bonded Helical
Configurations of the Polypeptide Chain, em co-autoria com Robert Corey (Springfield, 1897-1971) e Herman
Branson (Pocahontas, 1914-1995) é o mais revolucionário dos sete. No primeiro parágrafo do texto em questão
lê-se o seguinte: “Nós estamos a atacar o problema das estruturas das proteínas sob várias formas.” A análise de
Eisenberg ao trabalho desenvolvido pela equipa de Pauling foi publicada a 9 de Setembro de 2003 no PNAS. 114
Ob. Cit – A História da Ciência – De 1543 ao Presente, pag. 532
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 51
do Laboratório Cavendish da Universidade de Cambridge, era um dos envolvidos neste
projecto.
A partir do momento em que ficou clara a importância do ADN no processo da
hereditariedade, vários cientistas envolveram-se numa autêntica corrida para serem os
primeiros a descobrir os segredos que aquela molécula ainda escondia. Inclusive, o processo
de investigação assumiu contornos nacionalistas entre a Inglaterra e os Estados Unidos com
os laboratórios a competirem entre si na prossecução do modelo correcto. Tendo em conta o
que estava em jogo, tal situação não surpreende: “A descoberta da estrutura por Watson e
Crick, com todas as suas implicações biológicas, foi um dos maiores acontecimentos
científicos deste século”, escreveu Lawrence Bragg no prefácio da obra de James D. Watson,
na qual este relata todo o processo que culminou na apresentação do modelo da molécula de
ADN115
.
A dupla Watson/Crick surgiu de rompante no seio de um processo que se desenrolava há
vários anos. A juventude de Watson e o seu carácter determinado foram requisitos essenciais
para que conseguisse levar por diante os seus intentos. Em 1951, com 35 anos, aquele
cientista americano entrou para o Laboratório Cavendish com uma bolsa de pós-doutoramento
empenhado em decifrar a estrutura do ADN, nem que para isso tivesse que afrontar os seus
pares que trabalhavam em diferentes laboratórios. De imediato, recrutou Crick, com formação
em Física e que estava a tirar um doutoramento naquela universidade, tendo visto neste um
elemento fundamental para a aventura que se avizinhava.
Crick pertencia a uma unidade de investigação do Cavendish liderada por Max Perutz (Viena,
1914-2002)116
, um químico especialista em difracção de raios X de cristais de hemoglobina.
Uma área que era particularmente cara a Bragg, tido como um fundador da cristalografia. Na
verdade, os dois cientistas debatiam inúmeras vezes os seus pontos de vista, a propósito das
estruturas das proteínas. Francis Crick participava às vezes nestes exercícios académicos,
contribuindo igualmente com as suas ideias, que se afastavam da Física para a Biologia.
Com a chegada de Watson, reunia-se no início dos anos 50 no Cavendish um grupo de
vanguarda científica, condenado a fazer história. Mas, “por esta altura, em Inglaterra, o
trabalho molecular sobre o ADN era, para todos os efeitos práticos, propriedade particular de
115
WATSON, James D. – A Dupla Hélice, prefácios de Étienne Baulieu e Lawrence Bragg, tradução de Rui
Pedro Alves Zambujal (Lisboa: Gradiva, 3º edição, 2003 [ed. orig. The Double Helix, Atheneum, Fevereiro de
1968]) 116
Prémio Nobel da Química em 1962
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 52
Maurice Wilkins (Pongaroa, 1916-2004)”117
, investigador no King‟s College118
. Uma das
razões que explicam isto, deve-se a um comportamento de “fair-play” que reinava na
comunidade científica inglesa, ao qual franceses e americanos pareciam não ligar, como aliás
ficou demonstrado com James Watson. Por isso, Crick, que conhecia bem Wilkins, nunca
tinha manifestado grande vontade em imiscuir-se no estudo particular do ADN, algo a que o
seu colega já se dedicava há muitos anos.
No entanto, nos Estados Unidos, Linus Pauling caminhava a passos largos para a descoberta
da estrutura do ADN, consciente de que esta era a mais preciosa de todas as moléculas. “Mais
cedo ou mais tarde, Linus, que acabara de entrar na casa dos 50, estava destinado a tentar o
mais importante de todos os prémios científicos”119
, ou não estivesse em causa a compreensão
de uma molécula que é comum a todos os seres vivos e, concomitantemente, responsável pela
unicidade desses mesmos seres. James D. Watson foi o responsável pelo aceleramento do
processo de investigação, tendo aprofundado os seus conhecimentos de cristalografia junto de
Perutz e de Bragg, acumulando-os aos ensinamentos de Linus, que ele considerava ser o mais
distinto investigador da altura.
Como o próprio Watson admite, a fórmula para o sucesso era simples: “Imitar Linus Pauling e
vencê-lo no seu próprio jogo.”120
Watson sabia que “a chave para o sucesso de Linus era a sua
confiança nas leis simples da química estrutural” e produto do bom senso e não o resultado de
complicados raciocínios matemáticos. Exemplo disso era o facto de a hélice alfa não ter sido
encontrada apenas com a observação das imagens de raio X, mas com a ajuda de modelos
moleculares “parecendo-se superficialmente com os brinquedos das crianças da pré-
primária”121
.
Partindo do pressuposto que a fórmula das cadeias polipeptídicas avançada por Pauling
também se poderia aplicar ao ADN, Watson e Crick não viam qualquer impedimento para
recorrer aos modelos na prossecução de encontrar a estrutura daquela molécula. O que acabou
por acontecer. Mas, a verdade é que o percurso foi um pouco mais complicado, uma vez que a
solução para o ADN revelou-se bem mais complexa do que aquela encontrada por Pauling.
“Na hélice alfa, uma única cadeia polipeptídica (um conjunto de aminácidos) enrola-se num
arranjo helicoidal mantido por ligações de hidrogénio entre grupos da mesma cadeia”, porém,
Wilkins informara Crick de que “o diâmetro da molécula de ADN era maior do que seria de
117
Ob. Cit – A Dupla Hélice, pag.48 118
Prémio Nobel da Medicina em 1962 119
Ob. Cit – A Dupla Hélice, pag. 50 120
Idem, pag. 70 121
Idem, pag. 71
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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esperar se apenas uma cadeia polinucleotídica (um conjunto de nucleótidos) estivesse
presente.”122
Uma outra dificuldade surgia: “O ADN não era uma molécula regular, mas sim
altamente irregular.”
Para Watson, assim como para Crick e Wilkins, poucas dúvidas existiam quanto à
possibilidade da estrutura do ADN ser helicoidal. O que ainda não se sabia é que era uma
“dupla hélice”.
O processo de investigação foi conturbado e complexo, envolvendo, por vezes, disputas
acesas entre os laboratórios de Cavendish e do King‟s College. Mesmo no seio dos mesmos,
as celeumas faziam-se sentir, atrasando eventuais soluções, enquanto na Califória Pauling ia
avançando com os seus estudos. “A perspectiva de que alguém do lado britânico resolvesse o
ADN era remota”, observa Watson no seu livro123
. Mas, não obstante o facto de Pauling ter
estado próximo da derradeira descoberta, esse privilégio veio a caber aos homens de Londres,
nomeadamente a Watson e Crick.
Rosalind Franklin (Londres, 1920-1958)124
, que trabalhava com Wilkins na análise de análise
da difracção de raios X, foi uma das pessoas que contribuiu para isso, com a revelação de
elementos que corroboravam a ideia de estrutura helicoidal, com as bases no centro e o
esqueleto no exterior. Watson começou a centrar as suas atenções no problema das bases e na
forma como elas se emparelhavam e ligavam.
O jovem cientista descobriu a resposta nas ligações de hidrogénio entre os pares de bases
(A,C,G,T). “Comecei assim a perguntar-me se cada molécula de ADN consistiria em duas
cadeias com igual sequências de bases, unidas por ligações de hidrogénio entre pares de bases
idênticas. (…) Se o ADN era assim, estaria a criar uma bomba anunciando a sua
descoberta.”125
Mas, o problema de imediato detectado prendia-se com a dificuldade de ligar
bases idênticas. “Reparei subitamente que um par adenina-timina unido por duas ligações
hidrogénio tinha uma forma idêntica ao par guanina-citosina mantido unido por duas ligações
hidrogénio; pelo menos todas as ligações hidrogénio pareciam formar-se naturalmente; não
era preciso forçar para fazer os dois tipos de pares de bases terem forma idêntica.”126
A análise de raios X feita por Maurice Wilkins e Rosalind Franklin confirmou o modelo da
“dupla hélice”. Watson e Crick apressaram-se a escrever as suas conclusões para a revista
122
Ob. Cit – A Dupla Hélice, pag. 73 123
Idem, pag. 107 124
Considerada uma das cientistas mais controversas de sempre, quer no campo pessoal como profissional,
“Rosy” morreu apenas com 37 anos, vítima de cancro dos ovários. No site da Universidade da Califórnia pode
ler-se que “as suas fotografias estão entre as mais bonitas fotografias de raio X alguma vez tiradas”. 125
Ob. Cit – A Dupla Hélice, pag. 166 126
Idem, pag. 174
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Nature, não sem antes de enviar uma carta ao proeminente biólogo Max Delbrück (Berlim,
1906-1981) a relatar o seu feito127
. A 25 de Abril de 1953 eram publicados três artigos ao lado
uns dos outros naquele jornal científico inglês. Watson, Crick e Wilking receberam em 1962 o
Nobel da Medicina por este feito.
A revolução científica estava feita e a genética nunca mais iria ser vista da mesma maneira.
No entanto, as repercussões sociais e políticas de tal descoberta só se começaram a fazer
sentir décadas mais tarde. Nos últimos anos, e devido ao avanço das novas biotecnologias e,
consequentemente, à sua “democratização”, as potencialidades de outrora vislumbram-se no
início do século XXI como realidade. Muito há ainda para descobrir no que toca ao campo da
genética, mas também muito já foi feito. Basta para isso registar o quanto se evoluiu desde
Darwin a Watson.
A ciência da hereditariedade ou genética deixou de ser um debate meramente da elite
científica. O sistema político de alguns países já perfilhou essa questão, consciente de que
temas sensíveis e fracturantes daí poderão advir. Por isso, é uma questão de tempo até que a
sociedade em geral seja chamada a pronunciar-se sobre determinadas opções científicas no
campo da genética.
Perante os avanços galopantes da ciência, por um lado, e os anseios dos cidadãos, por outro,
caberá aos políticos definir modelos de governação que assegurem um equilíbrio entre
correntes que nem sempre são compatíveis. Como referiu James D. Watson anos mais tarde
após a sua descoberta, “a verdadeira questão é saber se a ciência que praticamos agora
melhora a condição humana”128
. Este antecipou ainda uma outra questão ao admitir que a
descoberta da molécula do ADN foi apenas o princípio e não o fim.
Watson não deixou de vislumbrar uma complexa equação, cujo resultado é ainda hoje uma
incógnita. Não obstante o facto do cientista e do governante actuarem naturalmente em
campos diferentes, mas nunca estanques, tem-se estabelecido entre eles um
127
O biólogo Delbrück, que influenciou muitos dos seus colegas, investigou no Caltech e noutras universidades
americanas questões relacionadas com a genética. Desenvolveu estudos sobre bactérias e vírus e respectivas
mutações, vindo a ser laureado com o Nobel da medicina em 1969. Na carta em questão Watson descreve a sua
descoberta da seguinte forma: “(…) 1. A estrutura da base é helicoidal – consiste em duas hélices ligadas –, o
interior da hélice é ocupado pelas bases purinas e pirimidinas – os grupos de fosfatos estão no exterior. 2. As
hélices não são idênticas, mas complementares, de tal forma que, se uma hélice contém uma base purina, a outra
hélice contém uma base pirimidina. Esta característica resulta da nossa tentativa de tornar os resíduos
equivalentes e, ao mesmo tempo, pôr as bases purinas e pirimidinas ao centro. O acasalamento de purina com a
pirimidina é muito exacto e ditado pela sua afinidade em forma laços de hidrogénio. A adenina acasala-se com a
timina, enquanto que a guanina se acasala sempre com a citosina.” 128
In relatório anual da actividade do Cold Spring Harbor Laboratory (1972).
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 55
interrelacionamento crescente e cada vez mais complexo, cujas consequências dessa dinâmica
poderão ter tanto de benéfico para a Humanidade como de perverso.
“Existirão maneiras de fixar e ordenar aquilo que os homens pensam? Há duas considerações
a fazer aqui. Um argumento é que o que estamos a fazer é perigoso e por isso não deveríamos
estar a fazê-lo. O segundo é, se estamos a descobrir certas coisas que não deveríamos saber,
por quanto tempo podem estes perigos ser contidos? Estas duas considerações são de natureza
diferente: uma é moral, a outra é uma questão de constrangimentos físicos e legais, Mas a
quem deveria ser entregue a missão de estabelecer esses impedimentos, se de facto existir?”129
Convém referir, porém, que para Watson a ciência nunca representou uma ameaça à essência
humana, por considerar que os “cientistas conseguem ver claramente o caminho adiante”,
embora imputasse aos políticos a tarefa de “aplanar a senda do avanço científico e
tecnológico”130
.
Dado o avanço dramático das novas biotecnologias no campo da genética desde os anos 60,
aquela problemática é hoje mais pertinente do que nunca.
Ao longo destes dois capítulos verificou-se que um salto qualitativo no processo de
conhecimento – seja nas áreas das ciências exactas ou das ciências humanas –, pressupõe
quase sempre consequências nos modelos de funcionamento das sociedades. As rupturas (ou
evolução) nos paradigmas vigentes obedecem à dinâmica de acção-reacção, sendo que depois
da “descoberta” surge naturalmente a reformulação de conceitos ou leis e, em casos de grande
criatividade científica (como se viu ao longo destas páginas), assiste-se ao reposicionamento
do papel do Homem no seio da natureza e da sociedade.
129
James Watson in AAVV – Para Uma Nova Ciência, editado por Steven Rose e Lisa Appignansei, tradução
de Alberto Carlos Pires Dias, Ana Paula Oliveira, José Carlos Fernandes e Luís Carvalho Rodrigues (Lisboa:
Gradiva, 1º edição, Março de 1989 [ed. orig. Science and Beyond , 1986]), pag. 33 130
Steven Rose in Ob. Cit – Para Uma Nova Ciência, pag. 19
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 56
III – Bioetecnologia: uma nova fonte de investimento
James Watson nunca considerou a descoberta da estrutura molecular do ADN uma ameaça à
essência humana, no entanto, é inegável que aquele acontecimento científico colocou a
biologia molecular num patamar de desenvolvimento nunca dantes visto. Efectivamente, e
como já aqui foi referido, tratou-se de uma das maiores descobertas científicas alguma vez
feita, de tal forma que nos últimos 60 anos se assistiu a uma evolução sem precedentes na área
da biologia molecular com potenciais implicações futuras no modelo de pensamento das
sociedades pós-modernas e no próprio conceito de Humanidade.
A biologia molecular começou a dar os primeiros passos no século XIX, mas é a partir dos
anos 50 do século XX que a verdadeira revolução científica se dá. A descoberta de Watson foi
a grande impulsionadora. Deste processo vai resultar a emergência da biotecnologia, porque
como referem Stephen M. Maurer131
e Laurie Zolotyh132
, “o século XX viu a emergência das
conquistas científicas que irão dominar este século: a biologia molecular e a sua prima
tecnológica, biotecnologia. A biotecnologia já quebrou todas as distinções tradicionais entre
pesquisa básica e produtos”133
.
O sociólogo Manuel Castells, um dos mais proeminentes estudiosos da relação entre as novas
tecnologias e as sociedades, também não tem dúvidas ao fazer da descoberta de Watson e de
Crick um marco na história da ciência e da Humanidade. No entanto, “foi somente no início
da década de 70 que a combinação genética e a recombinação do ADN, base tecnológica da
engenharia genética, permitiram a aplicação do conhecimento cumulativo”.134
Castells cita os
contributos de Stanley Cohen, de Herbert Boyer e de Paul Berg já aqui referidos, como
verdadeiros impulsionadores da biotecnologia nos anos 70.
Estas descobertas e avanços começaram a destapar as enormes potencialidades de uma área
sem fronteiras e sem limites e que poderia proporcionar resultados outrora impensáveis sobre
a evolução do ser humano. É a partir desta altura que surge um factor preponderante para a
emergência da biotecnologia como um campo de estudo de impacto verdadeiramente social,
extravasando o círculo restrito dos laboratórios: “A partir desse momento, houve uma corrida
131
Professor adjunto da Califórnia-Berkeley Goldman School of Public e director do IT and Homeland Security
Project 132
Directora do Center for Bioethics, Science and Society e professora de ética médida e humanidades na
Northwestern University 133
Maurer, Stephen M. et Laurie Zolotyh – “Synthesizing Biosecurity”, Bulletin of the Atomic Scientist,
November, December 2007, pag. 16 134
CASTELLS, Manuel – A Sociedade em Rede, A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura,
tradução de Alexandra Lemos, Catarina Lorga e Tânia Soares (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002
[ed.orig. The Rise Of The Network Society, Blackwell Publishers Ltd. 1996]), Vol I, pag. 67
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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à abertura de empresas comerciais, em geral filiais de grandes universidades e centros
hospitalares dedicados à investigação, concentrando-se no Norte da Califórnia, Nova
Inglaterra, Maryland, Virgínia, Carolina do Norte e San Diego. Jornalistas, investidores e
activistas sociais foram atingidos pelas impressionantes possibilidades abertas pela futura
capacidade de manipulação da vida, inclusiva da vida humana.”135
A incursão da indústria no campo da biotecnologia e a sua mediatização vieram criar uma
revolução no estudo da ciência da hereditariedade, que tinha começado no século XIX136
.
Mas, se o mundo empresarial e jornalístico começou a focar as suas atenções nas
potencialidades da biotecnologia, o mesmo não se pode dizer do poder político, que não
acompanhou com a devida atenção este movimento.
Castells cita a Genentech (sul de São Francisco), a Cetus (Berkeley) e a Biogen137
(Cambridge), como “algumas das primeiras empresas a utilizar as novas tecnologias genéticas
para aplicações na medicina, logo seguida da agro-indústria; e aos microorganismos, alguns
dos quais geneticamente modificados, foram sendo atribuídos uma série de funções que
incluíam limpar a poluição, muitas vezes causada pelas mesmas empresas e agências que
vendiam os superorganismos”.138
135
Ob. Cit – A Sociedade em Rede, A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, Vol I, pag. 67 136
De acordo com a World Stem Cell Summit realizada em 2008 em Nova Iorque, estima-se que dentro de uma
década o mercado na área das biotecnologias possa valer qualquer coisa como 8,5 mil milhões de dólares. New
Statesmen – “The dilemma on the tip of a needle” (22 de Janeiro de 2009) 137
A Genentech é considerada a “fundadora da indústria da biotecnologia”. Criada em 1976 pelo empresário
Robert A. Swanson e pelo bioquímico Herbert Boyer (o mesmo que viria a trabalhar com Stanley Cohen), a
Genentech tinha como principal objectivo desenvolver uma nova geração de terapêuticas médicas com base na
engenharia genética. Hoje, é uma das mais importantes empresas a operar no campo da biotecnologia com
muitos produtos no mercado e vários projectos de pesquisa e investigação em curso. Ao ler-se a sua “missão”,
facilmente se constata que tipo de modelo de pensamento é defendido pelos líderes da Genentech na
problemática das novas biotecnologias, mais concretamente na das células estaminais embrionárias: “Our
mission is to be the leading biotechnology company, using human genetic information to discover, develop,
manufacture and commercialize biotherapeutics that address significant unmet medical needs. We commit
ourselves to high standards of integrity in contributing to the best interests of patients, the medical profession,
our employees and our communities, and to seeking significant returns to our stockholders, based on the
continual pursuit of scientific and operational excellence.”
A Biogen foi fundada em 1978 por um grupo de biológos, tendo ao longo dos últimos anos desenvolvido uma
série de medicamentos e técnicas médicas na área da biotecnologia. Em 2003, a Biogen passou a chamar-se
Biogen Idec, resultado da fusão com a farmacêutica IDEC Pharmaceuticals Corporation. Actualmente, os
principais centros de investigação são em Cambridge e em San Diego. A Biogen Idec tem escritórios na Europa,
Canadá, Japão e Austrália, possuindo uma rede internacional de distribuição que cobre mais de 70 países, e
emprega 3900 pessoas.
A Cetus foi fundada no ano de 1972, em Berkeley, e destacou-se sobretudo pela invenção da técnica Polymerase
Chain Reaction (PCR), que contribuiu para um avanço considerável na biotecnologia. O responsável por esta
descoberta revolucionária foi Kary Mullis (Lenoir, North Carolina, 1944), que veio a receber o Prémio Nobel da
Química em 1993. A técnica permite a cópia de milhares de fragmentos de um segmento de ADN em poucas
horas. A sua patente foi posteriormente vendida à gigante LaRoche. 138
Ob. Cit – A Sociedade em Rede, A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, Vol I, pag. 67
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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Todas estas empresas dotaram-se de vários prémios Nobel e investigadores de grande nível
que, pela primeira vez, tinham à sua disposição fundos consideráveis para levarem por diante
os seus projectos. Efectivamente, nas décadas de 70/80 foram feitos investimentos massivos
por parte daquelas e de outras pequenas empresas recém-criadas para desbravar território na
área da biotecnologia. Este “boom” levou a que muitos empresários investissem nesta
indústria de forma a tirar dividendos financeiros.
No entanto, as coisas não correram como se previra e no final dos anos 80 a indústria da
biotecnologia nos Estados Unidos sofre um importante revés, resultante de vários factores, um
dos quais directamente relacionado com questões éticas que começavam a ser suscitadas no
seio da opinião pública. A este propósito, Castells escreveu o seguinte: “(…) Dificuldades
cientificas, problemas técnicos e obstáculos legais, oriundos de justificadas preocupações
éticas e de segurança, retardaram a louvada revolução biotecnológica durante a década de 80.
Perdeu-se um considerável valor em investimentos de capital de risco e algumas das empresas
mais inovadoras, inclusive a Genentech, foram absorvidas por gigantes farmacêuticos
(…).”139
A confirmar esta ideia, a 3 de Dezembro de 1988 o The New York Times dava esta notícia:
―After investing billions of dollars and dreaming for years about creating pharmaceutical
products that would change daily life, the biotechnology industry is running out of cash.
Industry experts say that investors, who once seemed to have limitless pockets, have stopped
putting up money at a critical time when many biotechnology companies are seeking badly
needed cash to push research forward and bring long-awaited products to market.‖140
Um dos factores que originou esta situação foi a dificuldade de oferta de novos produtos
biotecnológicos para se colocar no mercado. Quanto às consequências, assistiu-se a uma
redução brutal de custos nas empresas de biotecnologia, o que originou o abandono de vários
projectos de investigação. As empresas passaram a focar-se em projectos de maior
exequibilidade de forma a fazer chegar mais produtos novos ao mercado.
É precisamente desta ausência de liquidez que surge a necessidade das pequenas empresas do
sector da biotecnologia procurarem parceiros na indústria farmacêutica e química.
Um dos problemas que se colocou de imediato para os defensores deste tipo de tecnologia
prendeu-se com a possibilidade de “fuga” dos grandes investimentos na biotecnologia para
países estrangeiros, como por exemplo o Japão. Nesta altura, o poder político nipónico estava
139
Ob. Cit – A Sociedade em Rede, A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, Vol I, pag. 67 140
The New York Times – “Biotech Plight: A Cash Shortage” (3 de Dezembro de 1988)
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 59
e encetar vários esforços no sentido de impulsionar o crescimento da indústria da
biotecnologia.
Reagindo a esta conjuntura, o senador democrata Lawton Chiles (Florida) apresentou uma
proposta de lei para fomentar a competitividade no sector da biotecnologia. Para isso, previa a
criação de um conselho nacional para as políticas da biotecnologia e um centro de informação
semelhante à National Library of Medicine. Apesar de ter passado no Senado, a “bill” de
Chiles acabou por não ter o aval da Câmara dos Representantes.
Outras das razões que levou a uma quebra de liquidez nas empresas de novas biotecnologias
esteve relacionada com os ajustes e correcções que o mercado foi fazendo, após os primeiros
anos de muita especulação. Esta situação é normal em qualquer área de investimento que
esteja a surgir no mercado, no entanto, durante esse período de adaptação nem todas as
empresas têm capacidade para manter a sua actividade. Foi precisamente isso que acontece
com algumas das cerca de 400 empresas americanas que operavam na área das biotecnologias
nos anos 80.141
Depois do “boom”, a contracção
Tratou-se de um período em que muitas empresas tiveram de abandonar projectos e rever de
forma muito meticulosa as suas prioridades. Foi o caso da Cetus, uma empresa que apesar de
tudo tinha bastante liquidez disponível, quando comparada com outras. Em 1988, Robert
Fildes, presidente e director executivo da Cetus referia: ―In these tough times it becomes very
important to get your priorities right, very important to tighten your belt.‖142
Também Robert
Swanson, chefe executivo da Genentech, manifestava uma posição prudente: ''It's a matter of
postponing things you'd like to do to keep things under control.'' 143
Mas se a Cetus e a Genentech conseguiram ultrapassar o período mais difícil, já a Repligen144
foi profundamente abalada pelos cortes financeiros, afectando por completo toda a sua
estrutura de investigação.145
141
The New York Times – “Biotech Plight: A Cash Shortage” (3 de Dezembro de 1988) 142
Idem, ibidem 143
Idem, ibidem 144
A Repligen Corporation é uma biofarmacêutica cotada no NASDAQ com vendas anuais no valor de 50 mil
milhões de dólares. O seu trabalho consiste essencialmente no desenvolvimento de novas terapias para tratar
doenças afectam o sistema nervoso central, tendo como principal produto a Proteína A Recombinante. A
Repligen está sedeada em Waltham, Massachusetts, e tem 45 colaboradores. 145
A este propósito o New York Times de 3 de Dezembro de 1988 escrevia: ―Two years ago, the Repligen
Corporation of Cambridge, Mass., pursued health care and personal care, as well as industrial and agricultural
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 60
Um facto que Robert Fildes considerou muito preocupante e que poderia colocar em causa o
futuro do sector da biotecnologia nos Estados Unidos: ''The U.S. has a lead and should try to
keep it. If we lose some of these second-generation companies, we will lose those
opportunities.‖146
Apesar dos tempos conturbados, os analistas na altura não tiveram quaisquer dúvidas em
identificar o potencial do sector das novas biotecnologias. E prova disso foi o facto de ainda
no final da década de 80 e ao longo dos anos 90 ter-se assistido a um novo impulso na área da
biotecnologia. Para isso, contribuíram cientistas e “ousados empresários”147
que revitalizaram
o sector, em geral, e a engenharia genética, em particular.
Neste campo, o ano de 1988 é particularmente importante porque Harvard “patenteou um rato
produzido pela engenharia genética”, tirando, assim, os direitos autorais da vida das mãos de
Deus e da Natureza”.148
Nos anos seguintes, as descobertas precipitaram-se.149
Por exemplo,
em Agosto de 1989, investigadores da Universidade do Michigan e Toronto descobriram o
gene responsável pela fibrose cística, abrindo caminho para a respectiva terapia genética.
Em Fevereiro de 1997, era anunciada a mediática clonagem da ovelha Dolly, e em Julho de
1998 a revista Nature dava conta da clonagem de 22 ratos, incluindo sete clones de clones,
“demonstrando a possibilidade de uma produção sequencial de clones sob condições de maior
dificuldade”.150
Ainda neste ano, cientistas da Portland State University anunciavam a
clonagem de macacos adultos.
O projecto de todos os projectos: Genoma Humano
Os anos 90 ficaram definitivamente marcados por um projecto de biotecnologia de proporções
atómicas. O Governo dos Estados Unidos decidira apoiar com pelo menos 3 mil milhões de
dólares o Projecto do Genoma Humano (1990-2003)151
, que viria a ser uma das maiores
products, with such diverse projects as AIDS diagnosis, hair coloring and insecticides. Now it is focusing solely
on health care, emphasizing virology and immunology.‖ 146
The New York Times – “Biotech Plight: A Cash Shortage” (3 de Dezembro de 1988) 147
Expressão usada por Manuel Castells. 148
Ob. Cit – A Sociedade em Rede, A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, Vol I, pag. 68 149
Nos sete anos seguintes, foram patenteados mais sete ratos como formas de vida recém-criadas propriedade
dos seus engenheiros genéticos. 150
Idem, pag. 68
151 O Projecto do Genoma Humano (HGP) arrancou em Outubro de 1990 e foi coordenado pelo Instituto
Nacional de Saúde e pelo Departamento de Energia norte-americanos, sendo um consórcio internacional
composto pelos Estados Unidos, Europa e Japão, reunido ao todo 18 países. Quando arrancou estavam
envolvidos 5000 cientistas e investigadores de 250 laboratórios com pelo menos 3 mil milhões de dólares à
disposição. Os objectivos eram os seguintes: ―Identify all the approximately 20,000-25,000 genes in human
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 61
aventuras do Homem: a descoberta do mapa da vida. Francis S. Collins152
não se coibiu de
referir que daqui a mil anos o Projecto do Genoma Humano (HGP) será visto “como uma das
maiores realizações da Humanidade”.153
Tal como Aristóteles, Maquiavel, Lutero, Galileu, Newton, Darwin, Mender ou Watson, o
Homem partia para mais uma aventura que iria alterar por completo154
a perspectiva face à
sua existência enquanto ser social e, neste caso, biológico.
Um ciclo que se encerra
Ao fim de 13 anos a descodificação do genoma humana, que consistia na sequenciação das 3
três mil milhões de pares bases químicas e na catalogação de 20 mil a 25 mil genes do ADN
estava concluída. Em Abril de 2003, anunciava-se a concretização de todos os objectivos do
Projecto do Genoma Humano. O anúncio da descodificação do ADN em 2003155
encerrara
um ciclo iniciado há precisamente 50 anos, com a descoberta da estrutura da molécula de
ADN no ano de 1953 por Watson e Cricks. As revistas Science156
(11 de Abril de 2003) e
Nature157
(24 de Abril de 2003) celebraram esse acontecimento com edições especiais
dedicadas a essas cinco décadas de revolução na biologia molecular.
DNA; Determine the sequences of the 3 billion chemical base pairs that make up human DNA; Store this
information in databases; Improve tools for data analysis; Transfer related technologies to the private sector;
Address the ethical, legal, and social issues (ELSI) that may arise from the project.‖ Inicialmente, tinha-se
estabelecido 15 anos como prazo para o HGP estar concluído, mas a verdade é que graças aos avanços da
tecnologia foi possível conseguir esse feito em 13 anos. O HGP dividiu-se em três fases e em inúmerias áreas de
estudo e investigação que iam desde o “mapa genético, à “sequência do ADN”, passando pela “identificação de
genes” e pela “análise de funções”. 152
Francis S. Collins é o director do National Human Genome Research Institute do National Institues (NHGRI)
of Health (NIH) e nesta qualidade foi um dos principais responsáveis pela coordenação do Projecto do Genoma
Humano. Tendo um PhD em química pela Universidade de Yale, Collins é sobretudo conhecido por ser um
biólogo e físico-geneticista que dedicou parte da sua vida ao estudo dos genes. Foi através da Química que
Collins veio a descobrir a sua principal paixão de estudo: o ADN e o ARN. Entre 1981 e 1984, pôde desenvolver
em Yale vários trabalhos nesta área, chegando mesmo a descobrir alguns métodos inovadores. É então que entra
para os quadros da Universidade de Michigan, também para o departamento de genética, onde mais uma vez se
dedica com todo o empenho para desenvolver novas técnicas, levando-o a descobrir em 1989 o gene responsável
pela fibrose cística. Os sucessos científicos seguiram-se e, finalmente, em 1993 é convidado para liderar o
NHGRI, o que na prática equivalia a liderar todo o Projecto do Genoma Humano. Os seus feitos têm sido
reconhecidos pela comunidade científica e exemplo disso é o facto de pertencer ao Instituto de Medicina e à
Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. 153
COLLINS, Francis S. – A Linguagem de Deus, tradução de Maria Carvalho (Lisboa: Editorial Presença,
Junho 2007 [ed. orig., The Language of God, Simon & Schuster, 2006]), pag. 100 154
No sítio do Governo dos Estados Unidos dedicado ao Projecto do Genoma Humano (www.genome.gov)
começa por se ler que foi um “dos grandes feitos na história da explorações do Homem”. 155
Apesar de formalmente o HGP estar concluído em 2003, só três anos mais tarde foi publicado o “paper” com
a identificação de todos os cromossomas. Entretanto, continuam a ser publicados vários papers com análises do
HGP. 156
http://www.sciencemag.org/feature/data/dna/ 157
http://www.nature.com/nature/links/030424/030424-1.html
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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No entanto, três anos antes, em 26 de Junho de 2000, Collins ao lado do Presidente Bill
Clinton na Casa Branca já tinha anunciado “a conclusão do primeiro esboço de um manual de
instruções para seres humanos”.158
Em Fevereiro de 2001, as revistas Science159
e Nature publicavam esse primeiro esboço da
sequenciação do ADN e a respectiva análise. Dias antes tinha-se realizado uma conferência de
imprensa, com a divulgação do respectivo press release, para discutir precisamente o que iria
ser publicado. Este processo cronológico pode resumir-se da seguinte forma: “A working draft
of the human genome sequence was announced in June 2000, and an initial analysis was
published in February 2001. HGP scientists finished the sequence in April 2003, coinciding
with the 50th anniversary of Watson and Crick's seminal publication describing the double
helix structure of DNA.‖160
A conferência de imprensa de 12 de Fevereiro de 2001 foi particularmente interesse para o
âmbito deste trabalho porque levantou duas questões muito importantes e que viriam a ser
fulcrais no debate a que se tem assistido sobre as novas biotecnolgias, nomeadamente, aquele
em redor da problemática das células estaminais embrionárias. A primeira questão era de
ordem filosófica, relacionada com as patentes do genoma humano, e a segunda de carácter
político, respeitante ao financiamento deste tipo de projectos.
Perante o avanço galopante das equipas de cientistas e de investigadores envolvidas no HGP,
lidere políticos e opinião pública em geral começaram a perceber os contornos de tal epopeia
e as potencialidades do enigma que estava a ser descodificado. Aquilo que inicialmente
parecia ser um projecto específico e restrito, suportado pelo erário público, confinado à
comunidade científico e sem grandes potencialidades comerciais, passou a ser olhado com
muito interesse por vários sectores da sociedade, entre os quais jornalistas e empresários.
Destes últimos, destaca-se Craig Venter, dono da Celera Genomics, aquela que viria a ser
talvez a empresa mais mediatizada e conhecida a operar no ramo das biotecnologias.
A Celera vai concorrer a partir de 1999 com o Projecto do Genoma Humano, impondo uma
autêntica “corrida” entre o sector privado e o empreendimento estatal. Venter propôs-se
igualmente a descodificar o ADN, embora nunca revelando a forma como o pretendia fazer.
Efectivamente, a Celera nunca divulgou documentos respeitantes ao trabalho desenvolvido
pelos seus cientistas e investigadores.
158
Ob. Cit -- A Linguagem de Deus, pag. 100 159
http://www.sciencemag.org/content/vol291/issue5507/index.dtl 160
Citado do www.genoma.gov, sítio oficial do Governo norte-americano relativo ao Projecto do Genoma
Humano.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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A entrada da Celera na “corrida” pelo mapa da vida suscitou ainda uma outra discussão no
seio da classe política, relativamente ao sistema de financiamento. Graig Venter alimentou a
celeuma no Congresso norte-americano ao questionar o sentido e oportunidade de apoio ao
HGP com fundos públicos e defendeu, entusiasticamente, a privatização de todo o processo,
indo mesmo ao ponto de querer patentear partes do genoma humano.
“De início, a sequenciação completa do genoma humano não fora considerada atractiva
enquanto empreendimento comercial: porém, à medida que se evidenciava o valor da
informação e se reduziam os custos da operação, uma empresa privada lançou um enorme
repto ao Projecto do Genoma Humano. Graig Venter, líder de uma empresa que viria a
chamar-se Celera, anunciou que efectuaria uma sequenciação em grande escala do genoma
humano, mas com registos de patente de muitos genes, e que lançaria os dados numa base
aberta a assinantes mediante um pagamento significativo.
A ideia de que a sequenciação do genoma humano poderia tornar-se propriedade privada era
profundamente perturbadora. Ainda mais preocupante foi o facto de se terem começado a
levantar questões no Congresso sobre se faria sentido continuar a despender dinheiro dos
contribuintes num projecto que talvez pudesse ser realizado no sector privado – embora a
equipa da Celera não tivesse disponibilizado quaisquer dados e a estratégia científica que
Venter pretendia seguir não parecesse capaz de vir a produzir uma sequenciação realmente
completa e altamente precisa. Contudo, a máquina bem oleada de relações públicas da Celera
não parava de reivindicar uma maior eficiência e de procurar rotular o projecto público de
lento e burocrático. Como o Projecto do Genoma Humano estava a ser realizado em algumas
das melhores universidades do mundo por alguns dos cientistas mais criativos e dedicados,
essa ideia era um pouco difícil de aceitar. Mas a imprensa apreciou a controvérsia.
Escreveram-se muitos artigos acerca da „corrida‟ para sequenciar o genoma e acerca do iate
de Venter e da minha motocicleta. Que parvoíces.”161
Parvoíce ou não, a verdade é que o sector privado foi conquistado terreno nos anos seguintes
na área das novas biotecnologias, nomeadamente, na investigação em células estaminais
embrionárias. Quando a 12 de Fevereiro de 2001 foi apresentado à imprensa o primeiro
esboço e análise do HGP, com a presença de Francis Collins, de Ari Patrinos, director do
programa do genoma humano do Departamento de Energia e de Graig Venter, foi
precisamente dado grande enfoque à questão da parceria entre o privado e o público.
161
Ob. Cit – A Linguagem de Deus, pag. 99
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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Sectores privado e público: rivais ou parceiros?
Os sectores privado e público seriam então rivais ou parceiros? Este foi um dos assuntos
discutidos nessa conferência de imprensa e que se tentou esclarecer no respectivo press
release, até porque uma das dúvidas que sempre se colocara era saber se o HGP e a Celera
Genomics não estariam a desenvolver esforços duplicados. A resposta dada foi que não, tendo
havido uma complementaridade profícua entre o público e o privado162
.
Empresas privadas como a IBM, a Compaq, a DuPont e algumas farmacêuticas demonstraram
de imediato interesse em associarem-se a esta iniciativa. Esta foi uma tendência que se
acentuou nos anos seguintes, na qual o sector privado foi assumindo a liderança na
investigação nalgumas novas biotecnologias, tendo em conta as limitações orçamentais e
condicionalismos políticos impostos pelos programas federais.
Uma realidade que é bastante evidente na investigação e pesquisa da tecnologia de células
estaminais embrionárias.
Aliás, têm sido sobretudo os incentivos privados que têm proporcionado avanços importantes
neste campo das novas biotecnologias. Uma área claramente com mais potencial do que a
clonagem.
É verdade que a cultura de células estaminais embrionárias não humanas remonta a 1995,
quando a Universidade de Wisconsin-Madison163
alcançou esse feito para, três anos mais
tarde, ser a primeira instituição a isolar células estaminais embrionárias humanas. James
Thomson164
foi o investigador que liderou a equipa. Desde então que a Universidade de
Wisconsin tem sido uma referência na investigação em células estaminais embrionárias, tendo
inclusive patenteado esta técnica através do Wisconsin Alumni Research Foundation, uma
organização privada sem fins lucrativos.
Actualmente, a Universidade de Wisconsin é líder na investigação em células estaminais
embrionárias.
162
―Some people questioned whether the HGP and the private sector were duplicating work, and they wondered
who would win the race to sequence the human genome. Although the HGP and private companies did have
overlapping sequencing goals, their finish lines were different because their ultimate goals were not the same.‖
(Human Genoma Project press release, 12 de Fevereiro de 2001) 163
http://stemcells.wisc.edu/ 164
James Thomson é professor na Escola de Medicina e de Saúde Pública da Universidade de Wisconsin e é
também membro do Genoma Center de Wisconsin. Foi recentemente nomeado como primeiro membro da
equipa científica multidisciplinar do Morgridge Institute for Research. Em 1981, obteve o bacharelato em
biofísica pela Universidade de Illinois, licenciando-se em medicina veterinária, quatro anos depois. Na
Universidade da Pennsylvania, em 1988, tira o doutoramento em biologia molecular.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 65
Um debate em aberto
Quando a 9 de Agosto de 2001 o Presidente Bush finalmente anunciou a sua decisão de
permitir que o Governo federal pudesse financiar a investigação em células estaminais
embrionárias, foram igualmente impostas várias condições.
Uma delas foi precisamente limitar o número de linhas de células estaminais embrionárias, ao
que acrescentou quatro importantes critérios: as células tinham que derivar de um embrião
que tivesse sido criado para fins reprodutivos; o embrião tinha que deixar de ser necessário
para esse fim; o doador do embrião tinha que dar o seu consentimento formal; o doador não
podia ser compensado financeiramente. Bush acrescentara ainda mais uma condição: “On
August 9, 2001, at 9:00 p.m. EDT, the President announced his decision to allow Federal
funds to be used for research on existing human embryonic stem cell lines as long as prior to
his announcement (1) the derivation process (which commences with the removal of the inner
cell mass from the blastocyst) had already been initiated and (2) the embryo from which the
stem cell line was derived no longer had the possibility of development as a human being.‖ 165
Sendo um passo importante na investigação em células estaminais embrionárias, o que foi
anunciado a 9 de Agosto pelo Presidente Bush inseriu-se mais numa lógica de controlo sobre
algo que tinha, inevitavelmente, de ser legislado. Não é por isso de estranhar que ao mesmo
tempo que foram anunciados incentivos e medidas mais liberais foram igualmente
apresentadas medidas que visavam regular e, nalguns casos, controlar toda a actividade de
investigação e financiamento nesta área das novas biotecnologias.
Assim, a administração republicana proporcionou a possibilidade de financiamento público,
mas apenas nalgumas linhas de células166
já definidas, algo que não ia de encontro aos anseios
da comunidade científica.
O NIH criou o Human Embryonic Stem Cell Registry, uma instituição com o objectivo de
gerir todo o processo de elegibilidade das linhas de células disponíveis para investigação e
serem alvo de financiamento federal. Quanto ao local de depósito das 21 linhas de células foi
criado o National Stem Cell Bank (NSCB), a 20 de Setembro de 2005, localizado no WiCell
165
Fonte: Stem Cell Information do sítio do The National Institutes of Health (NIH). 166
Das 78 linhas de células inicialmente listadas como elegíveis para financiamentos federais, apenas 21,
ficaram na prática disponíveis para a comunidade científica investigar. Esta situação deve-se ao facto de algumas
entidades comerciais e instituições não terem disponibilizado as suas linhas de células devido a questões
técnicas. As 21 linhas de células são fornecidas por seis instituições: Novocell, Inc. (antiga BresaGen, Inc.),
Cellartis AB, ES Cell International, Technion-Israel, University of California, WiCell Research Institute.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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Research Institute167
da Universidade de Wisconsin. Um dos grandes objectivos do WiCell é
expandir as fronteiras da ciência ao “desbloquear o potencial das células estaminais
embrionárias”.
Potencial que algumas descobertas científicas recentes podem ajudar a materializar sem
restrições éticas ou morais no que diz respeito à destruição de embriões. Nos últimos dois/três
anos foram anunciadas algumas descobertas que fazem perspectivar novas técnicas de
pesquisa em células estaminais embrionárias.
Embora seja ainda cedo para comprovar a aplicabilidade de algumas destas novas técnicas,
em tese é já possível recriar células estaminais embrionários sem ser necessário recorrer a
embriões. Foi isso mesmo que duas equipas de cientistas anunciaram em Novembro de 2007,
ao informarem que tinham conseguido obter células estaminais embrionárias a partir de
células de pele.168
Há muito que este anúncio era esperado não só pela comunidade científica, mas também por
outros grupos de interesse, por contornar as restrições morais e políticas impostas à
investigação em células estaminais embrionárias. ―Everyone was waiting for this day to
come‖, disse na altura o Reverendo Tadeusz Pacholczyk, director de educação do National
Catholic Bioethics Center.169
―You should have a solution here that will address the moral
objections that have been percolating for years‖.
Richard Doerflinger, secretário das actividades pró-vida da Conferência dos Bispos Católicos
em Washington disse o seguinte: ―It‘s a win-win. The scientists can get all the benefits they
think they might get from embryonic stem cells, and the rest of us can applaud and support
it.‖170
Também a administração republicana se congratulou com esta nova descoberta: ―By avoiding
techniques that destroy life, while vigorously supporting alternative approaches, President
167
O WiCell foi criado em 1999 e é uma organização sem fins lucrativos que é financiada por entidades públicas
e privadas, com o objectivo de investigar na área das células estaminais embrionárias. Actualmente, James
Thomson é o director científico do WiCell, que emprega cerca de 40 colaboradores, incluindo cientistas. Aquele
instituto é responsável pela gestão do NSCB. 168
Os cientistas “reprogramaram” geneticamente as células de pele de forma a obterem células com as mesmas
características das células estaminais embrionárias, evitando deste modo recorrer a embriões e à consequente
destruição dos mesmos (Desde o nascimento da ovelha Doly que em 1996 que os cientistas sabiam que em teoria
as células adultas poderiam potencialmente transformar-se em células estaminais embrionárias, no entanto, só
conseguiam obter esse resultado através do processo de clonagem que deu origem à ovelha Dolly). As
investigações foram feitas por duas equipas, uma do Japão outro dos Estados Unidos, do estado do Winsconsin.
A equipa da universidade de Kyoto foi liderada por Shinya Yamanaka, e publicou as suas conclusões na revista
Cell. Enquanto que James Thomson esteve à frente da equipa da Universidade de Wisconsin-Madison e publicou
o seu trabalhou na revista Science. Relembre-se que Thomson foi a primeira pessoa a isolar células estaminais
embrionárias em 1998. A descoberta foi publicada nos jornais Cell e Science. 169
The New York Times – “Scientists Bypass Need for Embryo to Get Stem Cells” (21 de Novembro de 2007) 170
The Los Angeles Times – “Stem cell milestone achieved” (21 de Novembro de 2007)
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Bush is encouraging scientific advancement within ethical boundaries‖, lia-se num
comunicado emitido pela Casa Branca.171
Esta posição não é de estranhar tendo em conta o facto desta descoberta ter sido financiada
em parte por fundos federais através do National Institutes of Health.
Do lado da comunidade científica, Robert Lanza, investigador de células estaminais no
Advanced Cell Technology de Massachusetts, disse tratar-se de uma “tremenda descoberta
científica”.172
Charles Krauthammer, confinado durante toda a sua vida adulta a uma cadeira de rodas, disse
o seguinte: ―The embryonic stem cell debate is over. Which allows a bit of reflection on the
storm that has raged ever since the August 2001 announcement of President Bush‘s stem cell
policy. The verdict is clear: Rarely has a president – so vilified for a moral stance — been so
thoroughly vindicated‖.173
No entanto, o debate sobre as células estaminais embrionárias está longe de terminar, dando
agora apenas os primeiros passos. É verdade que esta descoberta abre as portas ao
levantamento das restrições políticas e legais.
Tal como escreveu na revista Time, Michael Kinsley, de 56 anos e vítima da doença de
Parkinson, fez a seguinte leitura política do problema: “The stem-cell announcement also
brought happiness to many politicians, especially Republicans. It filled them with the hope
that the whole messy issue could go away. If stem cells, or something like them, can be
obtained without the use of embryos, that eliminates the supposed ethical problem that led
President George W. Bush to ban almost all federal financing of embryonic-stem-cell
research in 2001. The result has been a severe reduction in embryonic-stem-cell research.
The issue has been agony for many Republicans, torn between the majority of voters, eager
for the benefits of this scientific advance, and the small but intense minority who believe that
a clump of a few dozen cells floating in a petri dish has the same human rights as you or I.
But any Republicans who think the stem-cell breakthrough gets them off the hook are going to
end up very unhappy. This issue will not go away.
First, even the scientists who achieved the latest success believe strongly that embryonic-
stem-cell research should continue. No one knows for sure whether the new method of
producing pluripotent cells will pan out or where the next big developments will come from.
We are still many thresholds away from anything that can be of practical value to me and
171
The New York Times – “Scientists Bypass Need for Embryo to Get Stem Cells” (21 de Novembro de 2007) 172
The Los Angeles Times – “Stem cell milestone achieved” (21 de Novembro de 2007) 173
The Washington Post – “Stem Cell Vindication” (30 de Novembro de 2007)
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others. Scientifically, it makes no sense to abandon any promising avenue just because
another has opened up.
Second, even if this were a true turning point in stem-cell research, people like me are not
going to quickly forget those six lost years.‖174
Kinsley escreveu ainda o seguinte: ―Finally,
the position a politician takes on an issue tells you something about his or her character,
values and intellect. And that understanding doesn't disappear even if the issue itself does.
Over the past six years, Bush and most Republicans in Congress have done their best to stop
medical research that could cure many diseases, including one that I have. They claimed that
morality and ethics required no less, yet they demonstrated by their indifference toward in
vitro fertilization that they couldn't possibly be serious about this.‖175
174
Time – “Why Science Can´t Save the Gop” (28 de Novembro de 2007) 175
Idem, ibidem
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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IV – Problemática de uma década nos EUA
Entre 2001 e 2008, período que abrange quase na totalidade os dois mandatos republicanos
liderados por George W. Bush, por três vezes os legisladores se pronunciaram sobre as células
estaminais embrionárias. Em todos os momentos, o debate foi feito de forma acesa e, quase
sempre, assumiu contornos dualistas, inviabilizando soluções, porventura, mais equilibradas e
consensuais entre todas as partes.176
Nestes três momentos, as posições radicalizaram-se e o
debate foi realizado numa perspectiva de confronto entre progressistas e conservadores
relativamente à investigação em células estaminais embrionárias.
Mas, antes de se avançar, convém dedicar algumas linhas a enquadrar ideologicamente os
conceitos de progressista e de conservador no âmbito deste trabalho.
Em termos genéricos, os progressistas estão receptivos à descoberta científica e a aceitar as
suas consequências sociais, desde que estas se apresentem como benéficas para a
Humanidade. Porque, o progresso científico, com já foi referido em capítulo anterior na
questão da energia nuclear, poderá ter implicações nefastas.
Os conservadores tendem a olhar com desconfiança para a inovação científica, porque em
última instância esta poderá colocar em causa um modelo de sociedade ao qual já estão
adaptados e, apesar de tudo, funciona em relativa harmonia. No primeiro capítulo, foram
dados alguns exemplos nesse sentido.
Fala-se aqui no progresso científico, mas, por exemplo, poderia igualmente mencionar-se o
progresso ideológico, político ou filosófico. A questão central é de “que o progressismo é
qualquer doutrina que se baseia na ideia de um progresso contínuo e ascendente da
Humanidade”.177
Na linguagem restrita da Sociologia ou da Ciência Política, “o progressismo tanto se pode
opor ao marxismo como ao conservadorismo”. Do mesmo modo que um “reformista pode ser
dito progressista na medida em que defenda um melhoramento progressivo do sistema sócio-
político”. Veja-se, por exemplo, a definição que Raymond Aron atribui a política progressista:
“A que se recusa a afirmar exclusivamente quer o fim quer a constância da História,
176
Os próprios americanos, de acordo com uma sondagem realizada há alguns meses, sentem que a sua
sociedade acentuou mais as divisões políticas nos últimos anos. Republicanos e democratas acham que o seu país
está agora mais dividido (The Pew Research Center, 22 de Janeiro de 2007). Isto reflecte-se, obviamente, no
debate político relativamente às células estaminais embrionárias. 177
BIROU, Alain – Dicionário das Ciências Sociais, tradução de Alexandre Gaspar, Isabel Madureira Pinto,
Linda Xavier e Maria Manuela Meneses (Lisboa: Dom Quixote, 2º edição, Fevereiro de 1976 [ed. orig.
Vocabulaire Pratique des Sciences Sociales, Les Éditions Ouvrières, Paris, 1966]), pag. 325
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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admitindo as transformações, irregulares mas indefinidas, em direcção a um termo situado no
horizonte, ele próprio justificado por princípios abstractos.‖178
Mas, como foi referido, esta definição é limitada a um determinado campo do saber e não é
suficientemente lata para enquadrar a celeuma entre progressistas e conservadores a propósito
da problemática das células estaminais embrionárias.
Isto não quer dizer que se descarta o que acima foi mencionado. Pelo contrário, as bases
doutrinárias referidas são perfeitamente válidas para o problema analisado. Quando se lê “que
o progressismo é qualquer doutrina que se baseia na ideia de um progresso contínuo e
ascendente da Humanidade” é impossível não qualificar de progressistas todos os cientistas,
filósofos, políticos, religiosos ou académicos que aqui já foram referenciados como
dinamizadores de descobertas nas suas respectivas áreas de intervenção. Todos assumiram
estar a trabalhar em prol do bem da Humanidade. Este é um ponto comum a estes
“progressistas”.
O mesmo se pode aplicar aos investigadores e pesquisadores empenhados no
desenvolvimento das novas biotecnologias desde a década de 60 e, mais concretamente das
células estaminais embrionárias nos últimos anos. O seu trabalho é justificado com as
potencialidades que o recurso àquelas tecnologias possa proporcionar às pessoas,
nomeadamente aquelas que sofrem de determinado tipo de doenças, para as quais ainda não
existe qualquer cura.
Porém, refira-se que neste debate, cientistas e investigadores têm cingido o seu discurso a
argumentos meramente técnicos e a possibilidades científicas. De certa maneira acabam por
se afastar das questões morais ou filosóficas inerentes ao seu trabalho, optando por centrar os
seus argumentos em bases meramente científicas e factuais. Tudo em nome da ciência e do
progresso.
Assim, é sobretudo o sistema político que comporta a outra parte do problema: as implicações
éticas, morais e filosóficas.
O debate político nos Estados Unidos sobre esta matéria nos últimos anos tem sido
praticamente dominado por duas forças contrárias que, numa visão simplista, assumem ora
uma linha progressista ora conservadora. E se os democratas estão claramente associados aos
esforços progressistas da ciência, já os republicanos olham com desconfiança o trabalho
efectuado nesta área. Tal como rejeitam alterações que impliquem mudanças no modelo de
sociedade instituído. Basta para isso constatar a oposição do Presidente George W. Bush e dos
178
Autor referenciado por Alain Birou na Ob. Cit – Dicionário das Ciências Sociais, pag. 326
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 71
seus correligionários no Congresso americano ao casamento entre homossexuais, à eutanásia,
ou à adopção de crianças por casais homossexuais.
Estas posições identificam-se, de certa maneira, com uma política conservadora no sentido
sociológico da palavra. Ordem e estabilidade são os dois conceitos basilares do espírito
conservador e assim a “política conservadora advoga a permanência de uma ordem político-
social quer histórica quer eterna e não reconhece a possibilidade de um regime novo e melhor
que os do passado, pretextando que os caracteres fundamentais das sociedades são sempre os
mesmos, sejam quais forem as épocas”.179
Ora, desde Darwin que essa “ordem” histórica e eterna é desafiada e posta em causa.
Sobretudo desde a descoberta de Francis Crick e James D. Watson, que elevaram a biologia
molecular para um novo patamar. Tal como noutras áreas do saber, onde se registou o
progresso, embora havendo sempre poderes instituídos que se recusavam a reconhecer “a
possibilidade de um regime novo”.
De certa maneira, a administração republicana de George W. Bush foi uma força contrária aos
movimentos sociais e políticos que exortaram mudanças no que concerne à legislação de
temas muito em voga, como os casamentos homossexuais, os direitos “gay” ou o ambiente.180
George W. Bush, que até Novembro de 2006, contava com duas maiorias nas respectivas
câmaras do Congresso, encetou todos os esforços para travar as tendências progressistas de
vários sectores da sociedade, incluindo a ciência. Em determinados casos chegou mesmo a
apoiar uma alteração à lei federal do aborto de 1973.181
Porém, um dos casos mais representativos do confronto entre conservadores e progressistas
foi o de Terry Shiavo. Começou por assumir contornos privados, com a decisão de Michael
Shiavo, marido de Terry, uma paciente que estava num estado vegetativo há 15 anos (mas não
em coma), em deixá-la morrer naturalmente, tendo para isso que ser retirado o tubo através do
qual se ia inserindo no seu organismo os líquidos necessários para a sua sobrevivência.
Para Michael tratava-se de uma questão de dignidade da sua mulher, face a uma situação que
os médicos consideravam já não ter retorno. No entanto, rapidamente esta questão extravasou
179
Ob. Cit – Dicionário das Ciências Sociais, pag. 83 180
Nesta questão a diferença entre democratas e republicanos é mais esbatida, mas é indiscutível que a
abordagem feita pela administração democrata de Bill Clinton ao Protocolo de Quioto foi radicalmente diferente
daquela adoptada pela actual presidência republicana. Bush fez questão de frisar em Março de 2001, poucas
semanas após ter tomado posse, que os Estados Unidos não iriam ratificar aquele documento, apesar do seu
antecessor o ter assinado. Houve efectivamente, uma mudança significativa entre as duas administrações
relativamente aos temas ambientais, 181
O direito legal ao aborto ganhou um carácter federal em 1973 depois do Supremo Tribunal se ter pronunciado
no famoso processo judicial Roe vs Wade. Ao abrigo da XIV Emenda da Constituição americano, o colectivo de
juízes alegou que aquela lei constitucional dava à mulher o direito de poder abortar.
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para a esfera pública, até porque os pais de Terry se opunham a decisão de Michael, com
quem disputavam legalmente há vários anos esta questão.
Quando a 18 de Março de 2005 foi retirado o tubo que garantia a vida de Terry, rapidamente o
poder político interveio. O Congresso americano, na altura dominado maioritariamente pelos
republicanos, subscreveu uma lei especial proposta pelo Presidente Bush, na qual se exigia
que o tubo fosse recolocado e se atribuísse aos pais a guarda legal da filha.
Enquanto Terry se ia lentamente entregando à morte, a América mergulhava nesta discussão.
A clivagem foi evidente e na arena política, em termos gerais, republicanos e democratas
defenderam posições contrárias.
Os primeiros adoptaram um tom conservador seguindo a linha de pensamento tradicional,
recusando qualquer prática consciente de privação da vida de um ser humano, mesmo que este
esteja condenado a um estado vegetativo até ao fim dos seus dias. Da mesma maneira, que as
correntes mais conservadoras se opõem à eutanásia.
No campo democrata, ia-se criticando a intervenção política e legislativa nesta matéria,
sublinhando que se estava perante uma clara interferência do poder do Estado na esfera
privada. Os congressistas democratas sustentaram ainda que o Congresso não podia fazer o
papel de médico ou de Deus, além de que estava a ir contra as decisões dos tribunais. E a
verdade é que quase três semanas depois de Bush ter apresentado a sua lei, um tribunal federal
considerou-a inconstitucional. A 31 de Março, os pais de Terry anunciavam a morte da filha.
Este caso tinha chegado ao fim, mas as consequências políticas perpetuaram-se. Como, aliás,
escrevia na altura o correspondente da BBC em Washington: ―The death of Terri Schiavo this
week has not ended America's painful ethical and political debate over individuals' right to
die.‖ Mas, o problema vai mais longe e Justin Webb acrescenta: ―The founding fathers, with
a wisdom which truly does echo down the ages, decided that there would be a separation of
powers. General laws would be made by politicians representing the people, but then
interpreted and applied by judges. The reason is simple, to limit the power of government to
interfere in any individuals life.‖182
Ora, este princípio aplica-se não apenas ao caso Terry Shiavo, mas a todos os temas
fracturantes que possam emergir na sociedade americana. Serão então em última instância os
tribunais a regular os processos de ruptura? Em princípio sim, se se estiver a falar num Estado
de Direito.
182
BBC on Line – “Shiavo case tests América” (2 de Abril de 2005)
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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Porém, o poder político tentará sempre instrumentalizar o debate, de acordo com a sua
doutrina. É lógico assumir que Governo e oposição se digladiem na defesa das suas
ideologias, o que se reflectirá na produção legislativa. Isto aconteceu com o caso Terry
Shiavo, aconteceu com o aborto, está a acontecer com os direitos homossexuais, com o
ambiente e vai acontecer de forma mais intensa com as novas biotecnologias, em particular
com as células estaminais embrionárias.183
De acordo com o que foi acima referido, poder-se-á então afirmar que todos os democratas
são progressistas e todos os republicanos são conservadores? Certamente que não.184
Mas é
possível estabelecer um modelo ideológico característico para cada um daqueles campos
partidários.185
E, neste sentido, não se corre um grande risco ao sublinhar que os eleitores e legisladores
democratas são tendencialmente mais progressistas do que os seus congéneres republicanos,
claramente influenciados por uma postura mais conservadora perante os temas da sociedade.
De tal forma, que muitos republicanos demonstraram o seu desagrado nas vésperas das
eleições intercalares para o Congresso de 7 de Novembro de 2006, por causa de algumas
cedências por parte da administração Bush a ideias menos coerentes com os princípios
tradicionais do Grand Old Party (GOP).
Os conservadores tendem a enquadrar as questões partidárias no campo da moral e da ética e,
como tal, são menos tolerantes a determinados desvios nos princípios basilares. Além de que
são menos permissivos a fenómenos ocasionais que possam colocar em causa os valores da
harmonia familiar e social. Exemplo disso é o facto dos republicanos serem mais vulneráveis
a escândalos políticos de índole social do que os democratas.
Casos como o do antigo congressista Mark Foley186
são particularmente nefastos para o
Partido Republicano, porque abalam os próprios valores em que actualmente assenta. Ora, isto
183
Já há alguns anos que este tema está na agenda política norte-americana, mas à medida que novas descobertas
vão sendo feitas, aumentando, assim, as potencialidades daquela biotecnologia, o debate vai aumentando de
intensidade. 184
Os candidatos presidenciais republicanos John MacCain e Rudy Giuliani são tidos como moderados no seio
do seu partido, havendo mesmo quem os considere progressistas em temas como o ambiente, ambiente ou
direitos “gay”. 185
A este propósito vale a pena ler o estudo do Pew Research Center de 22 de Janeiro de 2007: ―Conservative
Republicans and liberal Democrats are especially likely to see important distinctions between the parties -
among both groups, nearly half (49% of conservative Republicans, 46% of liberal Democrats) say there is a
great deal of difference. Relatively few in any group consider the parties similar to one another (…).‖ 186
O congressista republicano Mark Foley foi obrigado a demitir-se, a 29 de Setembro de 2006, depois de ter
sido descoberto que enviava e-mails de cariz sexual a um estagiário de 16 anos no Congresso. O problema ainda
se complicou mais para o Partido Republicano, quando se soube que alguns dirigentes já há algum tempo tinham
conhecimento destes comportamentos de Foley. A comissão de assuntos éticos da Câmara do Congresso chegou
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num partido que se bate ferozmente pela defesa dos princípios tradicionais, tendo a família
como pilar central da sua doutrina social, é um revés particularmente duro.
Não significa que democratas e progressistas sejam passivos a comportamentos desviantes das
tendências mais conservadoras, no entanto, as possíveis consequências políticas adquirem
outros contornos (talvez menos prejudiciais), precisamente porque o Partido Democrata dos
dias de hoje tem diferentes princípios na sua base doutrinária, muitos dos quais bem
diferenciados dos do Partido Republicano187
. Este enquadra a sua doutrina nos valores da
moralidade e da ética, sob uma perspectiva tradicional.
Tony Perkins188
, presidente da Family Research Council189
, uma organização aliada do
Partido Republicano, é exemplo disso ao apelar aos eleitores que exercessem um voto de
valores no sufrágio de 7 de Novembro de 2006, porque os dirigentes republicanos, na sua
opinião, “teriam que ouvir da boca do FRC” que as eleições eram “acima de tudo sobre
valores – morais e normas sociais”.
Esta atitude interventiva de grupos e movimentos conservadores reage a um ressurgimento
liberal ou progressista na sociedade americana. Na realidade, segundo o autor Thomas
Frank190
, há quem “por estes dias” prefira recorrer ao termo progressista para definir o seu
carácter liberal191
. De acordo com o mesmo, a América está a viver o seu “momento liberal”.
Isto já fazia vislumbrar que podiam estar criadas as condições para a emergência de
governantes democratas, abrindo-se assim caminho a uma legislação mais favorável aos
movimentos progressistas que actuam em diversas áreas do saber. Porque além do movimento
mesmo a acusar os líderes republicanos de terem sido negligentes por não terem conseguido proteger o estagiário
do congressista Foley (CNN, 8 de Dezembro de 2006). 187
Por exemplo, veja-se a abordagem às questões ambientais feita pelos dois partidos. Para os republicanos, o
problema é reconhecido, mas não é encarado como elemento estrutural da doutrina do partido (dada a força das
circunstâncias, é possível que o venha a ser). No caso democrata, o tema do ambiente começa a galgar patamares
na hierarquia da agenda política. De acordo com uma sondagem levada a cabo pelo instituto Pew Research,
“dois terços dos democratas (67 por cento) e apenas 41 por cento dos republicanos dizem que a protecção do
ambiente deve ser uma prioridade. Similarmente, mais do dobro dos democratas sobre os republicanos (48 por
cento vs 23 por cento) defendem que o aquecimento global deve ser uma prioridade. (The Pew Research Center,
22 de Janeiro de 2007) 188
The Washington Times – “Conservative voters likely to stay home” (19 de Outubro de 2006) 189
A FRC é uma organização defensora dos valores tradicionais da família, cujo seu lema merece ser lido para
ser perceber melhor o que se define, em certa medida, por organizações ou movimentos conservadores: ―The
Family Research Council (FRC) champions marriage and family as the foundation of civilization, the seedbed of
virtue, and the wellspring of society. FRC shapes public debate and formulates public policy that values human
life and upholds the institutions of marriage and the family. Believing that God is the author of life, liberty, and
the family, FRC promotes the Judeo-Christian worldview as the basis for a just, free, and stable society‖. 190
Editor da revista Baffler e autor de três livros: “What‟s the Matter With Kansas?” (2004), “One Market Under
God” ((2000) e “Conquest of Cool” (1997). Frank prepara actualmente um novo livro sobre governação
conservadora, cuja sua publicação está prevista para 2008. 191
The New York Times – “Leftward, Ho?” (18 de Fevereiro de 2007)
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conservador e neoconservador estar em queda também a tendência mais conservadora no seio
do Partido Democrata está a perder terreno.192
Esta realidade reflecte-se nas opções manifestadas pela maioria do eleitorado, havendo cada
vez mais uma maior receptividade às medidas progressistas, no sentido em que implicam uma
ruptura com o modelo legal e social instituído.
Leia-se este excerto de uma notícia do The New York Times publicada a 18 de Fevereiro de
2007: ―Polls show increasing support for raising the minimum wage, stem-cell research, gay
and lesbian civil unions, alternative-energy initiatives and increased financial aid to offset the
escalating cost of college.‖
Esta tendência tem estado particularmente no campo democrata progressista, mas é provável
que nos próximos tempos correntes mais moderadas do Partido Republicano possam
identificar-se com aquela.
Na perspectiva dos conservadores, a política faz-se sob o primado dos valores, da ética e da
moral. É através desta lente que a problemática das células estaminais embrionárias é
abordada pelos conservadores republicanos.
Por outro lado, as correntes progressistas tendem a observar o fenómeno unicamente sob a
perspectiva positiva e científica, evitando reflectir sobre as eventuais consequências
negativas, neste caso sociais ou morais e, até mesmo, políticas. Aceitam naturalmente o
avanço científico como algo natural e aceitável, mesmo que isso implique fracturas
ideológicas.
Uma “marcha” imparável?
Partindo do conceito "comteano"193
de que "a civilização está submetida a um andamento
determinado e inevitável"194
, ou seja, de que "o espírito humano segue, no desenvolvimento
das ciências e das artes, a marcha já determinada (…)"195
, estaria a administração republicana
liderada por Bush a travar algo que é imparável? Seria então que os conservadores estariam a
envidar esforços inglórios na defesa da sua causa?
192
De acordo com uma sondagem do instituto Pew Research de Janeiro de 2007, aumentou significativamente o
número de filiados no Partido Democrata que se consideram “democratas liberais”. Em movimento inverso estão
aqueles que se auto-intitulam de democratas conservadores. 193
Relativo a Augusto Comte, escritor e sociólogo francês, fundador do “positivismo” e considerado o “pai” da
sociologia. 194
COMTE, Augusto – Reorganizar a Sociedade, prefácio e tradução de Álvaro Ribeiro (Lisboa: Guimarães, 4º
edição, Janeiro de 2002 [edição traduzida do texto francês Plans des Travaux scientifiques nécessaires pour
reorganiser la societé, Aubier, Paris, 1970]), pag. 101 195
Idem, pag. 102
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 76
Comte escreve o seguinte: "O caso mais vicioso é, sem dúvida, aquele em que o legislador,
tanto o temporal, como o espiritual, actua, quer o deseje ou não, quer o saiba ou não, em
sentido retrógrado."196
Por outro lado, estarão os progressistas, impelidos pela ânsia da
descoberta, a precipitar-se para algo cujas consequências poderão ser nefastas para a
sociedade?
Como tem sido aqui referenciado, também Comte diz que cabe à política regular esta questão.
No entanto, na opinião deste autor, a legislação deve acompanhar o progresso da ciência, e
não contrariar esse processo. “[A política] Deve ocupar-se unicamente de coordenar todos os
factos particulares, relativos à marcha da civilização, de os agrupar, classificar e reduzir ao
menor número possível os factos gerais, cuja sucessão deverá pôr em evidência a lei natural
da referida marcha (…)." Assim, "a política verdadeiramente sã não pode ter o propósito de
fazer marchar a espécie humana, que se move por um impulso próprio, segundo uma lei tão
necessária, se bem que mais modificável, como a lei da gravitação".197
Perante esta acepção, dir-se-ia que Comte não veria com bons olhos as medidas defendidas
pelos conservadores, no que diz respeito à contenção da marcha científica na investigação em
células estaminais embrionárias. Até porque, aquele autor vê a política não como um
instrumento castrador, mas como um factor de esclarecimento face ao progresso científico.
Não é por isso de estranhar, que Comte rejeita a "política teológica e a metafísica", por
considerar que estas "imaginam o sistema que convém ao estado presente da civilização".
Desde modo, é um defensor daquilo a que chama de "política positiva", que se baseia na
observação, "porque pretende ter unicamente aquele [o sistema] que a marcha da civilização
tende a revelar ou a produzir".198
Será, por ventura, arriscado afirmar-se que a política encetada por George W. Bush no que
respeita à investigação em células estaminais embrionárias se aproxima mais da "política
teológica" do que da "positiva"? E também partindo deste modelo de análise, estarão os
democratas mais próximos da "política positiva" nesta matéria?
É verdade que estas interrogações se enquadram num modelo com mais de duzentos anos,
mas nem por isso deixam de ter relevância para o tema em discussão nestas páginas. Basta
para isso ver o que Thomas B. Okarma199
escreveu em 2001: “As sociedades modernas têm a
196
Ob. Cit – Reorganizar a Sociedade, pag. 107 197
Idem, pag. 108 198
Idem, pag. 117 199
Antigo presidente e actual director da Geron Corporation. Antes, foi professor assistente de medicina na
Universidade de Stanford e, posteriormente, fundador e CEO da Applied Immune Sciences, uma empresa de
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 77
obrigação de escolher quais as alternativas tecnológicas que querem para melhorar as suas
vidas.”200
Podem ser identificadas semelhanças entre a acepção defendida pelo director da
Geron e os princípios consignados no progressismo e positivismo de Comte.
Estados Unidos: pioneiros no debate
Os Estados Unidos foram dos primeiros países a iniciar um debate ético e moral e,
consequentemente, político sobre as novas biotecnologias na área da genética. Isso deve-se,
sobretudo, ao facto de ter sido naquele país que se fizeram as principais descobertas neste
campo de investigação.
Uma delas foi o anúncio do isolamento das células estaminais embrionárias humanas, em
Novembro de 1998, pela equipa de Thomson201
, que viria a espoletar uma revolução científica
da qual ainda não se vislumbra com clareza as suas virtudes, assim como os seus defeitos.
Mas, dada a grandeza do que acabara de ser revelado, não é de estranhar que Thomas B.
Okarma se tenha referido àquelas descobertas como avanços extraordinários nas ciências
biomédicas, que contribuem para a formulação de um novo paradigma de medicina
regenerativa.202
De facto, o “paper” de James Thomson e da sua equipa apanhou toda a comunidade científica
de surpresa porque, embora já se tivesse isolado células estaminais de várias espécies, desta
vez tratava-se da utilização daquela biotecnologia aplicada ao ser humano. Ainda nas palavras
de Okarma, “as células estaminais embrionárias são talvez as células mais extraordinárias
alguma vez descobertas”.203
Como seria de esperar, à descoberta associou-se de imediato a controvérsia. Líderes religiosos
reiteraram a sua oposição à criação de embriões para investigação. O Presidente Bill Clinton
não perdeu tempo e pediu um estudo à National Bioethics Advisory Comission (NBAC)204
, o
terapia genética e celular. Mais, tarde, em 1995, esta empresa foi adquirida pela Rhone-Poulenc Rorer, na qual
Okarma se tornou vice-presidente, antes de se juntar à Geron em 1997. 200
HOLLAND, Suzanne, Karen LeBacqz, Laurie Zolot et all – The Human Embryonic Stem Cell Debate:
Science, Ethics and Public Policy (Cambridge: The MIT Press, 2001), pag. 26 201
James A. Thomson, Joseph Itskovitz-Eldor, Sander S. Shapiro, Michelle A. Waknitz, Jennifer J. Swiergiel,
Vivienne S. Marshall, Jeffrey M. Jones – Embryonic Stem Cell Lines Derived from Human Blastocysts, Science,
vol. 282, 6 de Novembro de 1998, pag. 1145-1147 202
Ob. Cit – The Human Embryonic Stem Cell Debate: Science, Ethics and Public Policy, pag. 3 203
Idem, pag. 5 204
O NCAP foi criado por Bill Clinton, através do decreto presidencial 12975 de 3 de Outubro de 1995. Em
termos genéricos, este órgão tem como objectivo providenciar apoio técnico e emitir recomendações ao
Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, assim como a outras entidades.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 78
principal organismo de aconselhamento da Casa Branca em assuntos de bioética, que tivesse
em conta o “equilíbrio entre todas as considerações éticas e médicas”.
O relatório do NBAC, divulgado em Setembro de 1999 e intitulado Ethical Issues in Human
Stem Cell Research, não foi, no entanto, o primeiro estudo do género. A 27 de Setembro de
1994, o Human Embryo Research Panel (HERP)205
do National Institutes of Health (NIH), já
tinha divulgado um relatório que recomendava o financiamento governamental à investigação
em embriões humanos. Uma posição convergente com as ideias progressistas, o que não é de
estranhar, tendo em conta o carácter científico daquele painel. Assim, concluiu-se que “os
benefícios humanos da pesquisa são significativos, com grande potencial benéfico para os
casais estéreis, para famílias com condicionantes genéticas e para indivíduos ou famílias que
precisam de terapias para uma variedade de doenças”.
Ao nível da investigação, o painel recomendava que todos os pedidos de financiamento
fossem sujeitos a um comité especializado. Além de que as pesquisas só deveriam ser
efectuadas em ―spare embryos‖, ou seja, nos embriões que eventualmente sobrassem dos
processos de fertilização in vitro, que de outra maneira seriam congelados, doados a outros
casais ou então, seriam simplesmente destruídos. O painel previa ainda a possibilidade de
serem criados embriões com o objectivo de investigação, mas em circunstâncias especiais e
sob a condição daqueles não terem mais de quinze dias.
Mal estas conclusões foram conhecidas, uma onda de protestos fez-se ouvir, abafando as
vozes mais favoráveis, embora nestes casos os movimentos contestatários tenha uma maior
capacidade de mobilização.
Em Dezembro de 1994, o Presidente Bill Clinton, em consonância com uma das
recomendações do painel, anunciava que não seriam disponibilizados fundos públicos para a
investigação em embriões deliberadamente criados para o efeito. Entre 1995 e 1999, o
Congresso, maioritariamente republicano, acabou por proibir a atribuição de financiamento a
todo o tipo de pesquisa em embriões humanos e, como tal, de investigação em células
estaminais embrionárias.206
Convém ressalvar, porém, que estas iniciativas legais não
impediram a progressão das pesquisas nos laboratórios privados e noutros países,
nomeadamente no Canadá, Reino Unido, Austrália ou Coreia do Sul.
205
O HERP foi formado depois do Congresso americano e do Presidente Bill Clinton terem dado autoridade ao
NIH para apoiar a pesquisa em embriões humanos (refira-se que é diferente de investigação em células
estaminais embrionárias), para abordar as questões morais e éticas da nova legislação. 206
Durante esse período de tempo, a legislação neste caso em concreto foi aprovada anualmente. No Anexo A é
possível ler-se o texto do Congresso relativamente à proibição do ano fiscal de 1998, com todo o enquadramento
necessário, assim como as conclusões apresentadas pelo HERP em 1994.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 79
Refira-se, por exemplo, que no final dos anos 90, as pesquisas realizadas nos Estados Unidos
em embriões humanos eram financiadas por fundos privados e eram efectuadas em cerca de
300 clínicas de fertilização in vitro. Os investigadores desde então têm recorrido aos ―spare
embryos‖ que, no final da década de 90, representavam 13 por cento do total de embriões
utilizados nas clínicas de fertilização.
Quando Clinton pediu o estudo ao NBAC, em Novembro de 1998, tinha em mente aligeirar a
legislação, dadas as recentes descobertas no campo das células estaminais embrionárias. Já no
início daquele ano, Clinton tinha dado sinais de que poderia estar mais receptivo às novas
biotecnologias emergentes207
e em pouco tempo o Presidente democrata parecia ter aceitado a
ideia do progresso daquela área científica.208
O relatório do NBAC concluiu que o Governo federal deveria financiar a pesquisa em células
estaminais embrionárias, embora apenas em ―spare embryos‖. Aquela comissão apelava
assim ao Congresso para que alterasse a legislação e permitisse uma maior abertura à
disponibilização de fundos estatais para esta biotecnologia.
Considerações médicas à parte, o relatório admitia a crescente conflitualidade no patamar
ético e moral relativamente a esta matéria: ―Although we believe most would agree that
human embryos deserve respect as a form of human life, disagreements arise regarding both
what form such respect should take and what level of protection is required at different stages
of embryonic development. Therefore, embryo research that is not therapeutic to the embryo
is bound to raise serious concerns and to heighten the tensions between two important ethical
commitments: to cure disease and to protect human life.‖209
Embora nesta altura, o debate estivesse ainda afastado do sistema político, os cientistas já
davam pistas importantes quanto às questões fracturantes na problemática das células
estaminais embrionárias. E já aqui, o assunto assumia contornos dicotómicos, os quais se
mantiveram até hoje:―For those who believe that the embryo has the moral status of a person
from the moment of conception, research (or any other activity) that would destroy the
embryo is considered wrong and should not take place. For those who believe otherwise,
207
Ob. Cit – The Human Embryonic Stem Cell Debate: Science, Ethics and Public Policy, pag. 38 208
“Because of the enormous medical potential of such research, I asked the NBAC in November, 1998, to look
at the ethical and medical issues surrounding human stem cell research. The scientific results that have emerged
in just the past few months already strengthen the basis for my hope that one day, stem cells will be used to
replace cardiac muscle cells for people with heart disease, nerve cells for hundreds of thousands of Parkinson‘s
patients, or insulin-producing cells for children who suffer from diabetes.‖ (Excerto da declaração do Presidente
Bill Clinton, datada de 13 de Setembro de 1999) 209
AV – Ethical Issues in Human Stem Cell Research, Executive Summary (Rockville, Maryland,
Setembro1999), pag. 2
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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arriving at an ethically acceptable policy in this arena involves a complex balancing of a
number of important ethical concerns.‖210
Convém referir que o relatório do NBAC surge numa altura em que a legislação federal era
quase inexistente no que tocava à regulação da investigação em células estaminais
embrionárias. Muitas das regras eram aplicadas estadualmente, sem qualquer orientação
federal, algo que se mantém ainda hoje em certos casos.
Esta foi uma das razões porque o documento do NBAC se tornou tão importante, sendo que
as outras duas prendiam-se com o facto de ter sido pedido pelo Presidente e por ter
esquematizado recomendações (treze, mais concretamente) cientificamente sustentadas.
Uma das principais recomendações apelava à possibilidade de financiamento estatal a
pesquisas de células retiradas de tecidos de fetos mortos, assim como à investigação em
células estaminais embrionárias retiradas de embriões sob certas condições, visto que até
então, as deliberações proibitivas do Congresso apenas tinham em conta a opinião daqueles
que consideravam imoral a utilização de qualquer embrião em que circunstâncias fossem.
―The ban, which concerns only federally sponsored research, reflects a moral point of view
either that embryos deserve the full protection of society because of their moral status as
persons or that there is sufficient public controversy to preclude the use of federal funds for
this type of research. At the same time, however, some effects of the embryo research ban
raise serious moral and public policy concerns for those who hold differing views regarding
the ethics of embryo research.‖211
Perante esta acepção, o painel de cientistas chega à seguinte conclusão: ―We believe that it is
ethically acceptable for the federal government to finance research that both derives cell lines
from embryos remaining after infertility treatments and that uses those cell lines.‖212
O
NBAC rejeitou, no entanto, a criação de embriões exclusivamente para a pesquisa de células
estaminais embrionárias.
Na sequência de todo este processo, o National Institutes of Health (NIH), entidade
reguladora da área da saúde nos Estados Unidos, publica a 23 de Agosto de 2000 um
documento que estabelece as linhas de actuação daquele Ministério no que diz respeito à
aplicação de fundos públicos na investigação em células estaminais embrionárias. Guidelines
for Research Using Human Pluripotent Stem Cells segue a linha de pensamento do NBAC,
sublinhando, assim, que o NIH só deveria financiar a pesquisa em células estaminais
210
Ob. Cit – Ethical Issues in Human Stem Cell Research, pag. 2 211
Idem, pag. 4 212
Idem, ibidem
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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embrionárias provenientes de embriões congelados, criados unicamente para processos de
fertilização in vitro e que estivessem em excedente para fins clínicos. O NIH criou ainda o
Human Pluripotent Stem Cell Review Group (HPSCRG) para gerir o processo de selecção de
projectos para atribuição fundos.
No entanto, meses depois de ter chegado à Casa Branca, o Presidente George W. Bush
prescinde do documento redigido pelo NIH. A 9 de Agosto de 2001 é proposto que o Governo
Federal apoie a pesquisa em células estaminais embrionárias em aproximadamente 60 linhas
de células213
já existentes, porém, bane-se a utilização de células estaminais de embriões
armazenados em clínicas de fertilização in vitro. Com esta directiva presidencial, é limitada a
investigação em novas células estaminais embrionárias.
Consequentemente, o Presidente Bush consegue atenuar as implicações morais e éticas neste
campo de investigação.214
Na declaração emitida pela Casa Branca a 9 de Agosto de 2001 lê-
se o seguinte: ―The President's decision will permit federal funding of research using the
more than 60 existing stem cell lines that have already been derived, but will not sanction or
encourage the destruction of additional human embryos. The embryos from which the existing
stem cell lines were created have already been destroyed and no longer have the possibility of
further development as human beings.‖
Tratou-se de uma decisão politicamente conservadora que a administração fez questão de ver
aplicada e controlada. O NIH fica responsável pela vigilância dos critérios que orientam a
disponibilização de fundos. Bush criou, assim, um enquadramento legal restrito que quis ver
integralmente respeitado. A 7 de Novembro de 2001, o NIH publicava finalmente Human
Embryonic Stem Cell Registry215
, a lista das linhas de células estaminais que preenchem os
critérios elegíveis para financiamento estatal.
A Academia Nacional de Ciências divulgou, entretanto, um relatório, no qual concluía que o
financiamento público deveria ser feito não apenas na investigação em células estaminais
adultas, mas também em células estaminais embrionárias.
E porquê? Porque a legislação aprovada pelo Presidente Bush tinha um carácter claramente
conservador, que impossibilitava grandes progressos científicos ao nível da investigação em
213
Uma linha de células estaminais embrionárias é um conjunto de células que se podem reproduzir por um
longo período de tempo in vitro, ou seja, fora do corpo humano. Estas células crescem dentro de incubadoras
num ambiente artificialmente criado para ser semelhante ao de um embrião. As 60 linhas de células a que se
refere a proposta de Bush, são células que já estão nesse processo, onde por razões várias os embriões já foram
destruídos e nada mais há a fazer quanto a sua possível recuperação. 214
"As a result of private research, more than 60 genetically diverse stem cell lines already exist, I have
concluded that we should allow federal funds to be used for research on these existing stem cell lines where the
life and death decision has already been made." (George W. Bush, 9 de Agosto de 2001) 215
http://stemcells.nih.gov/research/registry/
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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células estaminais embrionárias com fundos públicos. Uma ideia que se confirmou nos
últimos anos, atendendo ao facto da legislação permanecer em vigor sem alterações
significativas. Vários têm sido os esforços para que a Casa Branca altere a sua posição, mas
tudo indica que só haverá novidades nesta matéria com uma nova administração.
O conceito de “estatuto moral intermédio”
Durante os dois mandatos da presidência de George W. Bush imperou uma visão
politicamente conservadora, centrada nos valores e na “defesa da vida”. E nesta matéria, a
Casa Branca não se coibiu de vincar a sua posição nos temas do aborto e da investigação em
células estaminais embrionárias. No fundo, Bush optou por uma das duas visões em confronto
perante as potencialidades da nova biotecnologia em questão.
Por não tratar-se de uma escolha meramente técnica, Erik Parens, investigador no Hastings
Center, um think tank sedeado em Garrison, Nova Iorque, dedicado a questões de bioética,
colocava em 2001 a questão da seguinte forma: ―The major argument for doing embryo
research is that it promises to reduce human suffering and promote well-being. The major
argument against using embryos for research is that they have the moral status of persons
and thus should not be destroyed, no matter how great the human benefit.‖216
Já em 1994 as recomendações do HERP continham esta dualidade de posições. Apesar do
painel de especialistas aconselhar o financiamento estatal para a investigação em células
estaminais embrionárias e de rejeitar a ideia de que os embriões têm o mesmo estatuto moral
que as pessoas, não deixou de sublinhar que ao “embrião humano é inerente uma séria
consideração moral tendo em conta a sua potencial forma de desenvolvimento humano”.
Na opinião de Parens, o “HERP propôs um caminho entre duas alternativas radicais”. Por um
lado, evitou classificar o embrião de “pessoa”, ao mesmo tempo que rejeitou encará-lo como
um mero “objecto”. Avança-se com o conceito de “estatuto moral intermédio” para satisfazer
as diferentes correntes em confronto. Se esta poderá parece ser uma recomendação razoável
para os sectores mais moderados, já os mais progressistas ou os mais conservadores não se
contentam com esta definição. Os primeiros por considerarem-na restritiva, os segundos por
interpretarem-na como expansiva.
É neste última categoria que se inclui o Presidente Bush, que assume em pleno o estatuto
moral do embrião. A lógica do seu pensamento, assim como de todos os conservadores nesta
216
Ob. Cit – Ethical Issues in Human Stem Cell Research, pag. 40
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matéria, é simples: existe uma diferença moral entre a pesquisa feita em embriões criados com
fins reprodutivos e aquela que é realizada em embriões criados propositadamente para esse
fim. Ou seja, moralmente só é admitido que os cientistas trabalhem em embriões que estejam
armazenados para serem destruídos, uma vez que já não são precisos para o fim reprodutivo.
Em suma, “o estatuto moral do embrião (e o estatuto moral da investigação) depende da
função que lhe atribui o seu criador”.217
Embora o HERP e o NBAC tenham, apesar de tudo, seguido uma linha mais progressista (não
tanto como a comunidade científica desejava) do que conservadora, acabaram por não
influenciar a política desenvolvida pela administração republicana. Além do mais, como
refere Françoise Baylis, professor associado de medicina e filosofia da Universidade de
Dalhousie, Halifax, Canadá, o NBAC não conseguiu clarificar a questão moral inerente a este
debate, dando assim espaço para variadas interpretações políticas. Para John C. Fletcher,
professor emérito de Ética Biomédica e Medicina Interna na Universidade da Virgínia, o
NBAC tentou encontrar terreno comum entre as posições liberais e conservadoras.218
As diferentes realidades nos Estados Unidos
Politicamente, o tema das células estaminais embrionárias voltou à ribalta em 2004, com a
morte do antigo Presidente Ronald Reagan, em Junho desse ano, vítima da doença de
Alzheimer. A sua mulher, Nancy Reagan, proferiu um discurso no qual manifestava o seu
apoio à investigação e à pesquisa naquele tipo de biotecnologia. Também o actor Christopher
Reeve, entretanto falecido, foi uma das vozes mais activas nesta matéria.
Concomitantemente, o Congresso americano caminhava no mesmo sentido, com 200
membros da Câmara dos Representantes e 58 senadores a apelarem ao Presidente Bush para
aligeirar as restrições impostas. Na sequência deste processo, foi elaborada uma proposta de
lei (―bill‖) que visava aumentar o número de linhas de células estaminais passíveis de serem
pesquisadas com fundos estatais. Os congressistas Diana DeGette (D) e Michael N. Castle (R)
foram os responsáveis por esta iniciativa.
Apesar de ser um republicano, do estado de Delaware, e ser católico, Castle identifica-se
como um moderado, estando afastado do espectro político de George W. Bush. Em termos de
217
Ob. Cit – Ethical Issues in Human Stem Cell Research, pag. 44 218
Idem, pag. 63
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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ciência política, sobretudo sob uma perspectiva europeia, Castle é um político de centro-
direita, que se integraria num partido como o PSD português.
A 24 de Maio de 2005, o Stem Cell Research Enhancement Act 2005 passou na Câmara dos
Representantes e, sensivelmente um ano mais tarde, foi a vez do Senado seguir o mesmo
caminho, no entanto, em ambas as câmaras os votos favoráveis não chegaram aos dois terços
necessários para que a lei entrasse directamente em vigor sem ter de ser sujeita à aprovação da
Casa Branca. Assim, a 19 de Julho de 2006, o Presidente Bush vetou a proposta de lei, tendo
sido a primeira vez que utilizou aquela figura institucional desde que tinha chegado à Casa
Branca.
A decisão do Presidente provocou uma “divisão no Partido Republicano num assunto
sensível”.219
Bush argumentou com o facto dos contribuintes não deverem suportar os custos
de financiamento das pesquisas em embriões excedentários nas clínicas de fertilização,
mesmo que elas possam contribuir para avanços na medicina.220
Para o então inquilino da
Casa Branca, a aprovação do Stem Cell Research Enhancement Act 2005 representaria uma
violação de princípios morais: ―It crosses a moral boundary that our decent society needs to
respect.‖221
Perante a medida de George W. Bush, os democratas não perderam tempo a criticar o
Presidente222
e a vaticinar cenários desfavoráveis para os republicanos nas eleições
intercalares de Novembro de 2006, pelo facto do seu líder ter vetado uma lei que colhia
bastante apoio popular.223
Mas, convém relembrar que republicanos moderados e até alguns
mais conservadores apoiaram a ―bill‖ em causa. Neste último caso, porém, encontram-se
particularidades que ajudam a enquadrar o comportamento de republicanos mais
conservadores, como, por exemplo, o de Bill Frist, então líder do Senado, que se manifestou
veementemente contra a decisão de Bush: ―I am pro-life, but I disagree with the president's
decision. (…) Given the potential of this research and the limitations of the existing [human
embryonic stem cell] lines eligible for federally funded research, I think additional lines
219
The Washington Post – “Stem Cell Bill Gets Bush‟s First Veto” (20 de Julho de 2006) 220
"If this bill were to become law, american taxpayers would for the first time in our history be compelled to
fund the deliberate destruction of human embryos‖ (Presidente Bush em discurso aos americanos para justificar
o veto presidencial a 19 de Julho de 2006) 221
Idem, ibidem 222
O senador democrata Tom Harkin atacou violentamente George W. Bush, classificando a sua decisão como
uma ―vergonhosa crueldade, hipócrita e ignorante‖. (The Washington Post – “Stem Cell Bill Gets Bush‟s First
Veto” [20 de Julho de 2006]) 223
Efectivamente, os republicanos viriam a perder as eleições intercalares de Novembro de 2006, tendo os
democratas conquistado a maioria das duas câmaras do Congresso. Com isto, não se está a dizer que tal facto se
ficou a dever à problemática das células estaminais embrionárias, mas admite-se que terá, porventura,
influenciado algum eleitorado.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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should be made available.‖224
O que falta saber aqui é que Frist é também um homem da
ciência, mais concretamente um cirurgião cardiovascular. Assim se pode explicar o
comportamento progressista de um político da área conservadora republicana.
Por outro lado, Arlen Specter, republicano da Pennsylvania, comparou a resistência da
administração à nova legislação com os movimentos repressores que homens como Colombo
ou Galileo enfrentaram nas suas épocas, tal como foi abordado no primeiro capítulo.
Durante todo este processo, cujos trâmites decorriam ao nível federal, vários estados
encetavam as suas próprias políticas. Nova Jersey e a Califórnia são exemplos de
progressismo na investigação em células estaminais embrionárias. Winsconsin e Connecticut
foram dos primeiros a seguir aqueles estados.
Em Janeiro de 2004, o governador democrata de New Jersey, James McGreevy, assinou uma
lei que viabilizava a investigação em células estaminais embrionárias na clonagem para fins
terapêuticos. Apesar desta lei não disponibilizar fundos públicos, foi um passo importante
para dinamizar a indústria naquele sector, visto que foi criado um enquadramento legal bem
definido. O mesmo aconteceu na Califórnia, em Novembro de 2004, quando a maioria dos
eleitores aprovou a Proposition 71, que definiu a criação do California Institute of
Regenerative Medicine para fomentar e regular a investigação em células estaminais
embrionárias. Uma das grandes diferenças da lei californiana em relação à de Nova Jersey
reside no facto da primeira disponibilizar financiamento público, mais concretamente 3 mil
milhões de dólares para uma década.
Aquela iniciativa defendida pelo governador Arnold Schwarzenegger225
representou o maior
projecto científico feito com o apoio financeiro de um Estado federado na história dos Estados
Unidos. A Proposition 71 permitiu à Califórnia contornar as restrições impostas pela
administração republicana e assumir a dianteira da pesquisa e investigação nas células
estaminais embrionárias.
Em finais de 2004, foi a vez do governador democrata Jim Doyle226
do Estado do Wisconsin
anunciar o financiamento de 750 milhões de dólares para a pesquisa nas novas biotecnologias
e células estaminais. À imagem do que se passara na Califórnia, foi criado o Wisconsin
224
The Washington Post – “Stem Cell Bill Gets Bush‟s First Veto” (20 de Julho de 2006) 225
Embora republicano, Arnold Schwarzenegger é tido como um moderado dentro daquele campo político. Na
verdade, ogovernador da Califórnia está por vezes mais próximo dos democratas do que dos republicans, uma
posição que não é de estranhar tendo em conta o facto de Schwarzenegger não ser um político de carreira, vindo
de uma área tradicionalmente ligada ao Partido Democrata: a indústria cinematográfica. 226
Jim Doyle foi um dos dez governadores que em Abril de 2007 escreveram uma carta ao Presidente Bush para
que este aprovasse a Stem Cell Research Enhancement Act of 2007, uma lei que esteve em discussão no
Congresso desde o início desse ano, e que visava levantar as restrições impostas em 2001.
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Institute for Discovery na Universidade de Wisconsin-Madison. A governadora Jodi Rell
Connecticut227
também deu o seu aval a uma lei que permite o financiamento estatal à
investigação em células estaminais.
O debate político
O republicano Mitt Romney foi o primeiro candidato às eleições presidenciais norte-
americanas de 2008 a assumir claramente a sua oposição a quase todas as formas de pesquisa
e investigação em células estaminais embrionárias. Independentemente das virtudes que
aquela tecnologia possa proporcionar, Romney parecia estar em sintonia com a corrente mais
conservadora do Partido Republicano, que recusou sempre qualquer inovação nesta área.
O candidato utilizou um argumento recorrente no debate interno relativamente a esta matéria
ao colocar a questão num patamar moral e ético, embora no caso de Romney a sua posição
adquirisse particular força, dado facto da sua mulher sofrer de esclerose múltipla,
precisamente uma das doenças referenciadas para potencial tratamento com a tecnologia das
células estaminais embrionárias. “Acredito que a ciência esteja apta para receber as células
estaminais para pesquisa através de meios que não representem um problema sério moral”.228
Romney não rejeitava totalmente o recurso àquela tecnologia, porém, seguia uma via
minimalista, reduzindo o espaço de acção dos cientistas na investigação em células estaminais
embrionárias. No fundo, tratava-se do modelo de pensamento da administração republicana,
que encetou todos os esforços para contrariar os ímpetos progressistas de vários sectores da
sociedade americana.
Em Agosto de 2001, o Presidente George Bush aprovara uma lei para regulamentar o
financiamento público na investigação em células estaminais embrionárias. Ao contrário do
que a maioria da comunidade científica queria, a legislação adoptada revelou-se bastante
restritiva, sendo elaborada de acordo com os princípios ideológicos dos governantes
conservadores.229
Efectivamente, as “posições conservadoras do estatuto moral do embrião do
227
Republicana moderada que durante o seu mandato como governadora tem investido muito nas políticas
sociais e de educação. 228
Entrevista dada à Associated Press no dia 19 de Janeiro de 2007. 229
“In 2001, Mr. Bush issued an order prohibiting the use of federal money for research on any new stem cells
derived from embryos. His order limited federal financing to the handful of lines of embryonic stem cells then in
existence. But researchers have complained that most of those cells were damaged or inadequate.‖ (The New
York Times – “Stem Cell Bill Sails Through the House, but a Veto is Probable” [12 de Janeiro de 2007])
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 87
feto prevaleceram no sector federal da ciência, mas pararam sempre na fronteira do sector
privado”.230
Tal como aconteceu em inúmeras situações no passado, a grande preocupação do Presidente
Bush foi a de construir um regime jurídico que mantivesse o progresso científico sob certos
limites.231
Romney defendia esta legislação e afirmava mesmo que, caso fosse eleito, estaria disposto a
investir mais fundos na investigação em células estaminais adultas. “Evita todas as
preocupações morais e ao mesmo tempo apresenta científica sem o dilema moral.”232
Mas, a
verdade é que esta afirmação representava apenas meia verdade porque se, por um lado, sob a
legislação de 2001 é, apesar de tudo, possível fazer investigação em células estaminais
embrionárias, por outro lado, os cientistas estão a trabalhar num campo muito limitado, quer
ao nível de financiamento, quer ao nível de recursos em células estaminais embrionárias.
Romney tenta esvaziar o problema e as críticas dos quadrantes mais progressistas ao afirmar
que, caso fosse eleito, pretendia aumentar o financiamento na investigação em células
estaminais adultas. Ora, esta é uma forma pouco hábil de contornar a situação, porque a
celeuma nunca se centrou naquele tipo de células, mas sim nas células estaminais
embrionárias. Sobretudo por duas razões: pelas suas potencialidades e pela sua origem.
O enquadramento legal em vigor parecia, assim, servir os interesses das correntes mais
conservadoras. Tal como já foi referido no primeiro capítulo, a Casa Branca durante a era
Bush legislou no sentido de contrariar o progresso científico nesta área. A administração
republicana contou com o apoio da maioria dos seus correligionários no Congresso que, por
definição ideológica, são mais conservadores no que toca aos temas que possam implicar
grandes rupturas na sociedade.
Veja-se a posição dos republicanos relativamente ao aborto ou ao casamento entre
homossexuais. Ou ainda, na década de 80, à fertilização in vitro.
Romney é um bom exemplo desse conservadorismo republicano. É, por isso, que foi chamado
a estas páginas. A evolução do seu pensamento é esclarecedora quanto à dinâmica que se cria
entre o legislador e a sociedade.
230
Ob. Cit – The Human Embryonic Stem Cell Debate, pag. 30 231
―In August 2001, Bush restricted government funding to research using only the embryonic stem cell lines
then in existence, groups of stem cells kept alive and propagating in lab dishes. Only about 21 of those lines are
available for study, most created in ways that preclude use in humans.‖ (The Washington Post /AP – “Romney
Defends Position on Stem Cells” [19 de Fevereiro de 2007]) 232
Idem, ibidem
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 88
Em 1994, Romney era considerado um moderado no seio dos republicanos e,
consequentemente, não era estranho que defendesse o direito ao aborto. Uma atitude que era
coerente com a sua posição ideológica. Com o passar dos anos, essa mesma posição
ideológica foi-se movendo para um campo mais conservador, dominado pelos valores cristãos
e pouco receptivo à mudança. Hoje, Romney é “naturalmente” contra o aborto. Mais uma vez,
parece ser uma posição coerente com o seu novo modelo de pensamento.
Ora, à luz de realidade de 1994, Romney não seria certamente um acérrimo crítico da
investigação em células estaminais embrionárias. Provavelmente até apoiaria essa iniciativa.
Porém, o seu pensamento mudou e, consequentemente, ficou menos receptivo à mudança de
paradigma na sociedade. Pelo menos nas áreas em questão.
Veja-se agora o pensamento de Martin O‟Malley, governador democrata do estado de
Maryland. Em Janeiro de 2007, as suas declarações relativamente à investigação em células
estaminais embrionárias não surpreenderam, se se assumisse a existência de uma
predisposição natural condizente à sua ideologia política.233
E assim foi.
Não se mostrando muito entusiasmado com o financiamento público a este tipo de projecto,
O‟Malley considera que a lei de 2006234
é suficiente, pois permite aos investigadores
procurarem financiamentos privados para os seus projectos em células estaminais
embrionárias e adultas. Além de que, a independência face ao poder federal permite que os
cientistas determinem com toda a liberdade qual o tipo de pesquisa em que valha a pena
investir.
Constata-se então que O‟Malley não encontra dilemas morais e éticos na investigação em
células estaminais embrionárias, chegando mesmo a dizer que devem ser os cientistas a trilhar
o seu próprio caminho. Tudo isto é apoiado pelo governador, desde que não exija ao Estado
federal. Está-se perante uma lógica vincadamente economicista do problema.
Isto não quer dizer que a posição de O‟Malley esteja desprovida de ideologia. Pelo contrário,
ao defender a restrição do financiamento federal, o governador está a limitar o papel do
Estado na esfera privada. Porém, esta é uma realidade que no espectro político norte-
americano não encontra grandes variações. O liberalismo e o modelo de economia de
mercado são bases sólidas para republicanos e democratas. Quanto muito pode haver
―nuances‖ a propósito do papel do Estado nalguns temas em particular.
233
The Washington Post – “Governor Demurs on a Stem Cell Bill” (25 de Janeiro de 2007) 234
Esta lei flexibiliza a de 2001, ao permitir que os cientistas e investigadores procurarem financiamento privado
para a pesquisa em células estaminais adultas e embrionárias. Quanto ao financiamento público, a lei de 2006
pouco ou nada adianta.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 89
Assim, para O‟Malley o problema principal não reside na potencialidade das células
estaminais embrionárias, mas sim no papel que o Estado possa desempenhar nessa matéria e
nos encargos financeiros que a ela estão inerentes.
Num registo mais progressista, o ex-governador democrata do estado do Illinois, Rod
Blagojevich, conseguira que o senado do respectivo congresso estadual aprovasse uma
proposta de lei que visava disponibilizar fundos públicos para a investigação em células
estaminais embrionárias.235
Já antes aquele governante tinha cedido 15 milhões de dólares
para a investigação em células estaminais (adultas), através da criação do Illinois
Regenerative Medicine Institute.
Todo este processo gerou um debate naquele estado, que não é mais do que uma versão micro
do que se discute em Washington. Os argumentos e contra-argumentos são os mesmos,
constatando-se em termos genéricos bipolarização política, entre republicanos e democratas.
Neste caso em concreto, os apoiantes sustentam que “as células estaminais embrionárias
poderão vir a tratar um vasto leque de doenças, incluindo diabetes e Alzheimer” e
acrescentam que “as células são retiradas de embriões criados para a fertilização in vitro que,
de uma maneira ou de outra, iriam ser descartados”. Um argumento que não convence o
campo oposto, o qual acusa os investigadores de matarem embriões humanos. O senador
republicano Chris Lauzen foi um dos que melhor sintetizou esta problemática no lado
republicano: ―Obviously we all want cures to diseases. The question is, what are willing to
sacrifice to get them? The unique identity of an individual human being disappears for
eternity."236
Também o Missouri desafiou a política seguida pelo Presidente George W. Bush, quando em
Novembro de 2006 os eleitores daquele estado aprovaram uma emenda na defesa da
investigação em células estaminais embrionárias. É verdade que desde então os vários
projectos têm estado dependente de subsídios que tardam em chegar, daí ser tão importante o
aumento do financiamento estatal. Além do mais, alguns membros do congresso estadual
continuam a colocar obstáculos à aplicação da nova legislação, por estarem em desacordo
com a mesma.
Este clima de oposição constante tem dificultado o trabalho dos cientistas e investigadores
que queiram trabalhar na área das células estaminais embrionárias. Por exemplo, em Junho de
2007, o The Stowers Institute for Medical Research, uma instituição privada em Kansas City,
235
The Washington Post/AP – “Illinois Senate Oks Stem Cell Research” (23 de Fevereiro de 2007) 236
Idem, ibidem
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 90
foi obrigado a suspender um programa de expansão das instalações avaliado em 300 milhões
de dólares por causa do “clima político negativo persistente”.237
Os fundadores daquele
instituto, Jim e Virgina Stowers, ambas pessoas dedicadas à ciência, tinham contribuído com
30 milhões de dólares para ajudar a passar a emenda.
Para já, a legislação aprovada está a ser uma desilusão para todos os cientistas que esperavam
poder investigar no Missouri. Kevin C. Eggan, professor assistente de biologia celular e
molecular da Universidade de Harvard, é um exemplo disso: ―Everybody hoped that Missouri
was going to be a good test case. It was exciting to us that stem cell research was being voted
in a state which has very restrictive abortion laws. But it has turned out to be a big
disappointment.‖238
O debate no estado do Missouri sobre esta problemática adquiriu contornos de autêntica
guerrilha política, sobretudo devido a duas razões: a primeira prende-se pela natureza da
própria emenda, bastante progressista e inovadora em relação aos restantes estados
americanos; a segunda razão tem a ver com o carácter conservador do Missouri, sendo por
isso interessante avaliar-se de que forma será aplicada a legislação em causa.
Vários meses volvidos e constata-se que, apesar da emenda, as forças conservadoras têm
vincado a sua posição e impedido a concretização de novos projectos de pesquisa e
investigação. O Missouri tornou-se assim uma espécie de laboratório de testes na discussão
desta problemática, visto que ao nível do debate político tem oposto campos ideologicamente
bem definidos no que toda à investigação em células estaminais embrionárias. Um combate
personificado pelos senadores Jim Talent, republicano e contra a emenda, e Claire McCaskill,
democrata e a favor. Tratou-se de um debate de tal forma polarizado e equilibrado que a
emenda passou apenas com 51 por cento dos votos favoráveis e 49 por cento contra, o que
perfaz uma diferença de pouco mais de 50 mil votos.
A Califórnia é sem dúvida alguma o estado mais liberal e progressista. Mesmo quando
governado por republicanos (como é actualmente o caso, com Arnold Schwarzenegger), o
“Sunshine State” assume quase sempre a vanguarda legislativa relativamente a temas
fracturantes nos Estados Unidos.
Isto deve-se sobretudo a duas razões: A primeira é que a Califórnia é histórica e
sociologicamente um estado maioritariamente liberal e progressista; A segunda razão, e que
237
The New York Times – “Stem Cell Amendment Changes Little in Missouri” (10 de Agosto de 2007) 238
Idem, ibidem
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 91
surge na sequência da primeira, prende-se com o seu próprio sistema político, que assenta
sobretudo no princípio de democracia directa, através das chamadas ―propositions‖.
A carta que o Governador da Califórnia endereçou em Julho de 2006 ao Presidente americano
elucida bem a abordagem ideológica que Arnold Schwarzenegger faz ao uso das novas
biotecnologias: "Mr. President, I urge you not to make the first veto of your presidency one
that turns America backwards on the path of scientific progress and limits the promise of
medical miracles for generations to come."239
O Presidente Bush não se deixou sensibilizar
pelas palavras do governador da Califórnia.
Seja como for, a Califórnia é um estado de vanguarda no que respeita à investigação em
células estaminais embrionárias. E exemplo disso é o actual programa de investigação em
células estaminais embrionárias de 3 mil milhões de dólares240
a decorrer na Califórnia.
Resultante da já aqui mencionada Proposition 71, trata-se do maior investimento do mundo
nesta área e, de acordo com os cientistas, poderá alterar por completo a forma de abordar a
problemática da investigação em células estaminais embrionárias.241
O segundo veto de George W. Bush
Depois do veto presidencial ao Stem Cell Research Enhancement Act 2005, o Congresso
voltou a fazer passar legislação no sentido de atenuar as restrições impostas à investigação em
células estaminais embrionárias. A ―bill‖ deu entrada no Congresso a 5 de Janeiro de 2007 e
a congressista Diana DeGette voltou a ser uma das impulsionadoras do projecto.
Na primeira leitura do Stem Cell Research Enhancement Act 2007 na Câmara dos
Representantes a 11 de Janeiro, já com uma maioria democrata liderada por Nancy Pelosi,
registaram-se 253 votos a favor e 174 contra. Numa análise mais detalhada, constata-se que
dos 253 congressistas que apoiaram a lei, 216 eram democratas e apenas 37 eram
republicanos.242
Constata-se também que a maioria dos votos favoráveis à lei veio dos estados
historicamente mais liberais.
239
MSNBC/AP – “Senate approves embryonic stem cell funding” (19 de Julho de 2006) 240
O programa foi aprovado em referendo pelos eleitores californianos em 2004, tendo começado em 2007 e
deverá prolongar-se durante dez anos. O cientista australiano, Alan O. Trouson, 61, director dos laboratórios de
imunologia e células estaminais da Monash University, Vitctória, Austrália, foi nomeado em Setembro de 2007
para liderar o projecto. 241
The New York Times – “Australian Scientist to Lead $3 Billion Stem Cell Research Program in California”
(15 de Setembro de 2007) 242
Ver apêndices (Quadro 1)
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 92
Uma tendência que se manteve na votação do Senado a 11 Abril, na qual se verificaram 63
votos no “sim” (44 dos quais eram democratas) e 34 no “não”. Mais uma vez, voto exercido
pelos senadores obedeceu em termos gerais à corrente política dominante dos seus estados.243
A Câmara dos Representes viria a realizar a votação final a 7 de Junho, com 274 votos a
favor e 176 contra, uma maioria expressiva, mas ainda assim, e insuficiente para contornar o
veto de George W. Bush. Na altura da votação, Nancy Pelosi disse o seguinte: ―Science is a
gift of God to all of us and science has taken us to a place that is biblical in its power to cure,
and that is the embryonic stem cell research.‖244
A 20 de Junho de 2007, da Casa Branca viria o segundo veto da administração republicana a
propósito da investigação em células estaminais embrionárias. Os defensores da proposta de
lei não tinham conseguido, mais uma vez, alcançar os dois terços de votos necessários nas
duas câmaras do Congresso para contornar o veto da Casa Branca.
No discurso de 20 de Junho, George W. Bush voltou a sublinhar o princípio sagrado da vida
humana e da necessidade que a América tem de respeitar a dignidade e os valores morais.245
Porém, sendo os Estados Unidos um país de vanguarda no campo da investigação e da
pesquisa, o então Presidente George W. Bush dirigiu-se igualmente à comunidade científica,
embora sempre limitado pelas suas convicções ideológicas sobre esta matéria.
Assim, Bush incentivou os cientistas a descobrirem formas de criarem novas linhas de células
estaminais embrionárias sem que haja necessidade de se destruir embriões. Exortou ainda para
que se invista mais no aperfeiçoamento da técnica das células estaminais adultas. Uma
posição que o Presidente reforçou ao fazer-se acompanhar por pessoas que venceram algumas
doenças recorrendo ao tratamento com células estaminais adultas.
Para George W. Bush, qualquer legislação que alterasse o actual enquadramento jurídico
punha em causa o seu modelo de pensamento e isso era algo que o Presidente republicano
nunca iria permitir, pelo menos enquanto estivesse na Casa Branca: “Congress has sent me a
bill that would overturn this policy. If this legislation became law, it would compel American
taxpayers -- for the first time in our history -- to support the deliberate destruction of human
embryos. I made it clear to Congress and to the American people that I will not allow our
nation to cross this moral line. Last year, Congress passed a similar bill -- I kept my promise
243
Ver apêndices (Quadro 2) 244
The New York Times – “House Passes Stem Cell Bill Despite Veto Threat” (7 de Junho de 2007) 245
No discurso proferido à Nação a 20 de Junho de 2007 na Casa Branca, o Presidente George W. Bush diz o
seguinte: “America is also a nation founded on the principle that all human life is sacred -- and our conscience
calls us to pursue the possibilities of science in a manner that respects human dignity and upholds our moral
values.‖
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 93
by vetoing it. And today I'm keeping my word again: I am vetoing the bill that Congress has
sent.‖246
Ao referir o seguinte Bush expõe claramente o problema central da problemática da
investigação em células estaminais embrionárias: ―We have a good chance to put aside all
politics and focus on a good piece of legislation that advances science and doesn't cross an
ethical line.‖247
Ao dizer isto, Bush está a colocar a questão num patamar político e,
consequentemente, ideológico. E por inerência surgem as questões éticas e morais. Não se
trata de um debate focado no campo técnico-científico.
Também não se trata de um problema de ausência de fundos, já que como o Presidente Bush
afirmou no seu discurso de Junho de 2006, desde 9 de Agosto de 2001 que a administração
republicana disponibilizou 130 milhões de dólares para investigação em linhas de células
estaminais de embriões que já tenham sido destruídos e mais 3 mil milhões para a pesquisa
em células estaminais adultas e de outra origem que não a embrionária. No entanto, todo este
financiamento tem sido feito no âmbito de uma lei federal bastante restritiva quanto à
investigação em células estaminais embrionárias.
Aliás, os defensores desta técnica acusaram o Presidente de estar apenas a tentar distrair a
opinião pública americana, como referiu ao The New York Times, Sean Tipton, porta-voz do
Coalition for the Advancement of Medical Research: ―He [Bush] knows he‘s on the wrong
side of the American public.‖248
Outros referiram que com o veto o Presidente Bush estava a
tentar apaziguar os cristãos conservadores, tão influentes junto da Casa Branca.249
A candidata presidencial democrata Hillary Clinton, que fez saber que caso fosse eleita para a
Casa Branca, em Novembro de 2008, levantaria as restrições nesta matéria, foi peremptória na
sua reacção e mais uma vez expôs o âmago do debate: ―This is just one example of how the
president puts ideology before science, politics before the needs of our families – just one
more example of how out of touch with reality he and his party have become.‖250
Hillary Clinton considera fundamental que se faça uma separação clara entre ciência e
política, algo que, na sua opinião, não tem aconteceu durante a administração republicana.
Com este modelo a candidata presidencial democrata acreditava ser possível afastar a
“pressão política” do campo científico.251
246
Discurso proferido pelo Presidente George W. Bush a 20 de Junho de 2007 na Casa Branca. 247
Idem, ibidem. 248
The New York Times – “Bush Again Vetoes Bill on Stem Cell Research” (20 de Junho de 2007) 249
The Washington Post – “Bush Vetoes Stem Cell Research Legislation” (20 de Junho de 2007) 250
The Washington Post – “Bush Vetoes Stem Cell Research Legislation” (20 de Junho de 2007) 251
The New York Times – “Clinton Says She Would Shield Science from Politics” (5 de Outubro de 2007)
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 94
A posição de Clinton estava em consonância com muitas críticas que recaíam sobre a Casa
Branca no que respeitava à política para a área da ciência. Investigadores, incluindo alguns
pertencentes ao Governo, acusaram a administração de politizar a ciência e ignorar, contornar
ou distorcer alguns relatórios e documentos científicos que contradigam políticas do
Executivo.
Outra das críticas era de que o Presidente tinha tomado várias decisões supostamente assentes
em argumentos científicos, quando isso não era verdade. O exemplo mais citado pelos críticos
é a decisão presidencial de Agosto de 2001, já aqui amplamente discutida.
Também enquanto candidato presidencial democrata, Barack Obama, estava em consonância
com a de Clinton, que não se estranha tendo em conta o seu campo político e ideológico.
Do lado dos candidatos republicanos as perspectivas eram menos progressistas, embora o
senador do Arizona John McCain e o antigo mayor de Nova Iorque Rudolph W. Giuliani
tenham manifestado uma maior abertura nesta matéria do que o Presidente George W. Bush.
Contra qualquer alteração da lei esteve o governador de Massachusetts, Mitt Romney,
claramente identificado com o campo mais tradicionalista e conservador do campo
republicano.
As primeiras mudanças da era Obama
No dia 9 de Março de 2009, ainda durante os primeiros 100 dias do seu mandato, o recém-
eleito Presidente Barack Obama cumpriu uma das promessas da campanha eleitoral ao assinar
um decreto na Casa Branca que revogava a legislação imposta pelo seu antecessor.252
A eleição de Obama começou a trazer alterações profundas no enquadramento legal no que
diz respeito ao uso das novas biotecnologias e à investigação em células estaminais
embrionárias. Para os seus defensores, o novo residente da Casa Branca representa uma nova
esperança, tendo em conta o seu perfil liberal em vários domínios da sociedade.
Obama disse que iria rever a legislação federal aprovada pela administração anterior253
, para
aligeirar as restrições na cedência de fundos públicos para a investigação em células
estaminais embrionárias254
, e deu o primeiro passo nesse sentido. As consequências imediatas
deste acto reflectem-se na disponibilização de verbas federais, assim como num eventual
252
The New York Times – “Obama Lifts Bush‟s Strict Limits on Stem Cell Stem Cell Research” (9 de Março de
2009) 253
AFP – “Obama wants Congress to act on lifting stem cells ban” (17 de Janeiro de 2009) 254
Imperial Valley News – “Barack Obama stem cells action would boost California research efforts” (17 de
Janeiro de 2009)
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 95
aumento do número de linhas de células estaminais embrionárias passíveis de serem
trabalhadas.
A posição ideológica de Obama segue em linha com aquilo que Nancy Pelosi, a líder
democrata da Câmara dos Representantes, tinha dito: “Science is a gift from God to all of
us”.255
Em contraposição ao pensamento conservador que dominou a agenda republicana
durante os oito anos da administração Bush, Pelosi acrescenta o seguinte: “Scientists have
been given an almost biblical power to cure through advances in embryonic stem cell
research. A repeal of the ban is critical so that we may take advantage of the opportunity to
save lives, find cures and give hope to those suffering. It is an opportunity that we cannot
miss.256
” Perante este argumento, Pelosi afirmou que a revogação da lei aprovada por George
W. Bush seria uma das prioridades do novo Executivo.
Embora os economistas admitam que o clima de contracção económica poderá prejudicar a
alocação de fundos federais mesmo que as restrições venham a ser levantadas, certo é que
para os defensores da investigação em células estaminais embrionárias, Obama poderá
terminar de uma vez por todas com um quadro legal que travava o progresso científico.
―Lifting the ban on the use of federal funding for human embryonic stem cell research will
end a sorry chapter in federal research policies and usher in a new era in this promising field
of medicine‖, referiu Philip Pizzo, reitor da Faculdade de Medicina da Universidade de
Stanford. ―It would provide scientists with much-needed resources to speed discoveries and
devise new treatments for some of the most vexing diseases and severe injuries.‖257
Porém, mesmo com a assinatura do decreto presidencial por parte de Barack Obama no
sentido de levantar as restrições de financiamento federal, isto não quer dizer necessariamente
que sejam criadas novas linhas de células estaminais embrionárias para investigação.
O próprio Obama referiu na Casa Branca, durante a assinatura, estar perfeitamente ciente do
carácter fracturante deste tema, antevendo-se uma intensa batalha no Congresso.
Seja como for, os sectores mais liberais não hesitaram em afirmar que a posição de Obama
estava desprovida de ideologia, classificando essa atitude como uma virtude, já que não se
sobrepõe ao interesse público. E são estes mesmos liberais que denunciam o factor ideológico
como o grande pecado de George Bush quando deixou que as suas ideias impedissem
progressos na investigação em células estaminais embrionárias.
255
Imperial Valley News – “Barack Obama stem cells action would boost California research efforts” (17 de
Janeiro de 2009) 256
Idem, ibidem 257
Imperial Valley News – “Barack Obama stem cells action would boost California research efforts” (17 de
Janeiro de 2009)
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 96
Irving Weissman258
coloca o seu pensamento da seguinte maneira:―I believe that, in the big
picture, the introduction of political, religious and moral ideologies to restrict medical and
scientific research is the most dangerous part of Bush‘s policy. The most important action the
Obama administration can take is to erase ideology from the oversight and funding of all
aspects of stem cell research and medicine.‖259
Apesar de acertada, a visão de Weissman tem que ser complementada, porque à semelhança
do que condicionou Bush, também Obama está condicionado pela sua ideologia – sendo que
neste caso apresenta traços altamente liberalizantes e fracturantes nalgumas matérias sociais.
Obama sublinhou no dia 9 de Março que o seu decreto presidencial assentava única e
exclusivamente em critérios científicos, e não em princípios políticos e ou ideológicos.260
Ora,
a verdade é que à luz do que aqui já foi escrito, a decisão de Obama era previsível quando
enquadrada num determinado modelo de pensamento ideológico.
O conservadorismo de Bush é agora esbatido pelo tom mais liberal de Obama e, porventura,
mais conciliatório, já que uma das decisões do recém-eleito Presidente é precisamente
alcançar um consenso no Congresso para legislar sobre a problemática em questão. ―I like the
idea of the American people's representatives expressing their views on an issue like this261
‖,
disse Barack Obama à CNN.
No entanto, uma das primeiras medidas tomadas sob a sua administração não resultou
propriamente do envolvimento directo de Obama, já que foi a Food and Drug
Administration262
a dar um passo importante na problemática das restrições à pesquisa
científica com células estaminais embrionárias.263
A decisão, tomada a 23 de Janeiro de 2009,
surgiu na sequência de um pedido interposto pela Geron, para obter aprovação federal de
modo a desenvolver uma nova era de testes em paciente humanos com células estaminais
embrionárias.264
A luz verde dada pela FDA aos intentos da Geron abriu caminho para que aquela empresa de
biotecnologia da Califórnia pudesse fazer, pela primeira vez, testes com células estaminais
258
Virginia & D.K. Ludwig Professor for Clinical Investigation in Cancer Research and director of Stanford‟s
Institute for Stem Cell Biology and Regenerative Medicine 259
Imperial Valley News – “Barack Obama stem cells action would boost California research efforts” (17 de
Janeiro de 2009) 260
Washington Post – “Obama Ends Curbs on Federal Funding for Embryonic Stem Cell Research” (9 de Março
de 2009) 261
AFP – “Obama wants Congress to act on lifting stem cells ban” (17 de Janeiro de 2009) 262
www.fda.org 263
Washington Post – “Government Approves Study Using Human Embryonic Stem Cells “ (24 de Janeiro de
2009) 264
Chicago Tribune – “Research on embryonic stem cells at a crossroads” (11 de Janeiro de 2009)
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 97
embrionárias em pacientes com a cobertura governamental. Ou seja, já podiam injectar
células derivadas de células estaminais embrionárias em 8 a 10 pacientes com lesões nas
cordas vocais. "This is obviously an extraordinarily exciting event", revelou o chefe executivo
da Geron, Thomas B. Okarma.265
"It marks the dawn of a new era in medical therapeutics.
This approach is one that reaches beyond pills and scalpels to achieve a new level of
healing." Também Amy Comstock Rick, da Coalition for the Advancement of Medical
Research266
, sublinhou o seguinte: "Today's [23 de Janeiro 2009] news about Geron's
embryonic stem cell clinical trials is a milestone in the new era of hope and adds to the
momentum for policy change when it comes to embryonic stem cell research."267
Os ventos de mudança trazidos pela nova administração vincada claramente por um pendor
liberal, contrastando com o conservadorismo republicano na abordagem a inúmeros temas
fracturantes, não podiam deixar de ser louvados por Robert Lanza268
, chefe científico da
Advanced Cell Technology: "This is what we've all been waiting for."269
Perante estes novos avanços, após dois mandatos republicanos de fortes restrições na
investigação em células estaminais embrionárias, são elevadas as expectativas que a
comunidade científica deposita em Barack Obama. E ao mesmo tempo que este novo
Executivo for adoptando novas directivas que permitam desbloquear o caminho do progresso
e das descobertas científicas, mais serão as vozes e movimentos conservadores que se oporão
com base nos seus modelos de pensamento e convicções.270
265
Washington Post – “Government Approves Study Using Human Embryonic Stem Cells “ (24 de Janeiro de
2009) 266
http://www.camradvocacy.org/ 267
Washington Post – “Government Approves Study Using Human Embryonic Stem Cells “ (24 de Janeiro de
2009) 268
www.robertlanza.com 269
www.robertlanza.com 270
Uma das medidas tomadas após a tomada de posse de Barack Obama foi o levantamento das restrições de
financiamento federal a grupos e associações internacionais que apoiem abortos. Como seria de esperar, os
movimentos conservadores e “pró-vida” norte-americanos manifestaram-se contra esta decisão, denunciando-a
como sendo uma provocação aos valores da América e perspectivando uma fractura no debate político. Douglas
Johnson, director da organização National Right to Life Committee (www.nrlc.org/), criticou a directiva de
Obama, referindo que a mesma irá contribuir para o aumento de abortos. ―President Obama not long ago told
the American people that he would support policies to reduce abortions, but today he is effectively guaranteeing
more abortions by funding groups that promote abortion as a method of population control‖, disse Johhnson,
citado no site do The Christian Institute (27 de Janeiro de 2009). Logo após o conhecimento da directiva, o
National Right to Life Committee radicalizou o discurso, sugerindo uma “batalha” entre os “pro-lifers”e a “pro-
abortion agenda”.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 98
V – A problemática das células estaminais embrionárias no resto do mundo
À semelha de inúmeros temas na área da investigação científica, também ao nível do debate
sobre a problemática das células estaminais embrionárias os Estados Unidos têm sido
pioneiros, não querendo isto dizer que o assunto esteja ausente das agendas noutros países ou
que estes não tenham igualmente feito esforços no sentido de promover a pesquisa.
Por exemplo, no Japão têm-se envidado alguns esforços governamentais para desenvolver
aquela tecnologia. No final dos anos 80, o ministro do Comércio nipónico identificava a
biotecnologia como uma das áreas em expansão, preparando pacotes de incentivos fiscais para
a indústria que quisessem apostar neste sector e condições para que fossem criados consórcios
de investigação.271
Este modelo serviu inclusive de inspiração aos Estados Unidos que, através do senador
democrata Lawton Chiles, tentou introduzir a ―biotechnology competitiveness bill‖, cujo
objectivo era criar uma política nacional de informação para este sector, assim como um
centro nacional com funções de aconselhamento.272
Porém, esta medida nunca passou no
comité especializado da Câmara dos Representantes.
Seja como for, este exemplo elucida bem o facto de outros países que não os Estados Unidos
também estarem já há alguns anos envolvidos neste processo. A Coreia do Sul é um dos
países de vanguarda no campo das células estaminais embrionárias, embora nos últimos anos
tenha sido notícia pelas piores razões, após ter rebentado um escândalo que envolveu
cientistas daquele país e alegadas descobertas que mais tarde se viriam a revelar falsas.
Hwang Woo Suk, então um dos investigadores mais proeminentes da Coreia do Sul, espantou
o mundo científico ao publicar um estudo em Maio de 2005 na revista Science provando que
tinha conseguido criar em laboratório células estaminais provenientes de embriões
clonados273
, um processo que vinha no seguimento do estudo publicado em Fevereiro de 2004
271
The New York Times – “The Biotech Plight: A Cash Shortage” (3 de Dezembro de 1988) 272
No final dos anos 80, a indústria americana que trabalhava no sector da biotecnologia começava a ter falta de
fundos para a investigação, depois de terem sido gastos “billions” de dólares, na esperança de serem fabricados
medicamentos que pudessem ser usados no quotidiano. O investimento feito não trouxera os resultados
esperados, levando a indústria do sector a atravessar dificuldades e a perder-se o entusiasmo pela biotecnologia
que se tinha registado nos primeiros anos da década de 80. Perante este cenário foi preciso encontrar-se soluções
que viabilizassem a continuidade da indústria da biotecnologia e é neste sentido que surge a tentativa por parte
do senador Lawton Chiles de introduzir um mecanismo que pudesse dinamizar o sector. 273
O anúncio feito por Hwang Woo Suk era de facto uma revolução na investigação e pesquisa em células
estaminais embrionárias, já que pela primeira vez estava a afirmar-se ser possível criar este tipo células através
de embriões clonados, o que não implicava a destruição de embriões. Aquando do anúncio de Hwang Woo Suk
esta técnica já tinha sido conseguida com ratos, mas nunca com embriões humanos.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 99
na mesma publicação.274
Mas, poucos meses depois, mais concretamente entre Dezembro de
2005 e Janeiro de 2006, os seus dois estudos foram denunciadas como um embuste por uma
comissão de investigação da Universidade Nacional de Seul.275
Aquilo que chegou a ser visto como uma das descobertas científicas da década276
acabou por
se revelar uma humilhação nacional para a Coreia do Sul, em concreto para a sua comunidade
científica. Após anunciar a sua alegada descoberta Hwang Woo Suk tornou-se num
verdadeiro herói nacional, caindo pouco tempo depois em desgraça junto da opinião pública.
"Hwang basically lied to the Korean people and scientific world. Hwang and those who
participated in the fabrication of the paper should be severely punished", disse Chung Myung
Hee, presidente do painel.277
Este assunto acabou por espoletar uma problemática inevitável, relacionada com o
financiamento da investigação. Embora a maior parte dos 30 milhões de dólares de fundos
tenham tido origem privada, o jornal Korean Times noticiou que deste dinheiro 50 mil dólares
foram enviados para dois investigadores sul-coreanos nos Estados Unidos que ajudaram a
forjar o artigo publicado em Maio de 2005 na Science.
A isto associou-se o debate ético em torno da questão, tendo um dos colaboradores de Hwang
Woo Suk denunciado práticas imorais durante o processo de investigação.278
Esta posição foi
corroborada pelas acusações de duas investigadoras envolvidas no processo que informaram
que Hwang Woo Suk as terá pressionado a doar óvulos para a pesquisa. Como já foi aqui
mencionado várias vezes, um dos principais obstáculos à investigação em células estaminais
embrionárias é precisamente a obtenção de óvulos.
Este escândalo, que teve muito destaque na imprensa de quase todo o mundo, trouxe para o
debate a problemática já aqui abordada da “corrida” pela descoberta científica. Veja-se a
274
Os cientistas anunciaram pela primeira a nível mundial a clonagem de um embrião humano do qual podiam
ser retiradas células estaminais embrionárias. A Universidade Nacional de Seul foi a principal instituição
responsável por este feito. 275
Um painel de oito membros da Universidade foi nomeado para investigar e confirmar os resultados científicos
anunciados por Hwang Woo Suk. Embora o painel tenha admitido haver provas que indiciassem que tenham
sido clonados embriões com sucesso, o mesmo já não se pode dizer quando à possibilidade de terem sido
retiradas células estaminais embrionários dos mesmos, tal como Hwang Woo Suk anunciara. 276
Termo utilizado pelo Washington Post no artigo “South Korean Panel Debunks Scientist‟s Stem Cell Claims”
(10 de Janeiro de 2006) 277
The Washington Post – “South Korean Panel Debunks Scientist‟s Stem Cell Claims” (10 de Janeiro de 2006) 278
Gerald Schatten, da Universidade de Pittsburgh, um dos co-autores do estudo de Maio de 2005, abandonou a
equipa de Hwang Woo Suk em Novembro de 2005, acusando este último de ter falseado resultados no estudo
publicado em 2004. O próprio Schatten também foi posto em causa pelo estudo de 2005 pela comissão de
investigação da Universidade de Pittsburgh. A mesma comissão considerou ainda que Schatten não deveria ter
sido o co-autor do “paper” de 2005 sobre o primeiro cão clonado, uma vez: ―(…) since his only contribution to
that paper was suggested that the authors hire a professional photographer to take a photo of the dog.‖ (David
B. Resnik do National Institute of Environmental Health Sciences/National Institutes of Health, University of
Maryland School of Medicine)
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 100
forma de como a Coreia do Sul se associou de imediato ao anúncio de Hwang Woo Suk. O
país elevou-o a herói nacional e o Governo viu nesta descoberta uma forma de elevar o seu
prestígio em termos de “soft power” junto da comunidade internacional. Como refere um
artigo publicado no site dos arquivos das revistas científicas do National Institutes of Health
dos Estados Unidos: ―Hwang‘s research put South Korea on the map as a biotechnology
epicenter and made Hwang a national hero.‖279
O compromisso foi de tal maneira grande,
que proporcionalmente a humilhação para o país e para a comunidade científica sul-coreana
foi devastadora.
Hwang Woo Suk admitiu os seus erros e a 12 de Maio de 2006 é acusado de fraude e de
violar as leis da bioética da Coreia do Sul.280
Perante este cenário, o cientista poderia enfrentar
uma pena de prisão superior a 13 anos.
Uma corrida que aparentemente tinha sido ganha por Seul, revelou-se afinal um revés de
consequências que ainda se estão a fazer sentir no país. Citado pelo The Washington Post,
Robert Lanza, chefe científico do Advanced Cell Technology, disse na altura que a sua
empresa iria de imediato recomeçar todo o processo de pesquisa para desenvolver células
estaminais a partir de embriões humanos clonados: "The race is back on and the United States
has a second chance to do it right and win."281
Efectivamente, em Agosto de 2006, o próprio Robert Lanza anunciava que tinha descoberto
uma técnica para remover uma célula de um embrião sem o danificar, e posteriormente
colocá-la em crescimento num laboratório. Através deste método será possível, diz o cientista,
retirar dessa célula embrionária linhas de células estaminais embrionárias.282
Uma corrida que todos querem ganhar
O escândalo que envolveu a equipa de Hwang Woo Suk prejudicou em muito os avanços que
a Coreia do Sul tinha feito nos últimos anos na área da biotecnologia, especificamente no
campo das células estaminais embrionárias. Mas, independentemente das consequências, este
caso veio também demonstrar que além dos Estados Unidos outros países estão empenhados
279
David B. Resnik, Adil Shamoo e Sheldon Krimsky – “Fraudulent Human Embryonic Stem Cell Research in
South Korea: Lessons Learned”, National Institutes of Health (www.pubmedcentral.nih.gov) 280
Em Janeiro de 2009, decorria o julgamento de Hwang Woo-suk que. Entretanto, criou o seu próprio
laboratório, chamado Sooam Biotech Research Foundation. 281
The Washington Post – “South Korean Panel Debunks Scientist‟s Stem Cell Claims” (10 de Janeiro de 2006) 282
Apesar deste anúncio, a comunidade científica mostrou-se prudente relativamente a esta descoberta,
sobretudo por duas razões. Primeiro, porque o processo precisa de ser devidamente testado para se perceber se de
facto resulta. Segundo, porque é necessário utilizar um embrião humano, o que poderá levantar as habituais
questões morais e éticas, mesmo que aquele não seja destruído.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 101
de forma afincada na descoberta de novas formas de explorar as potencialidades das células
estaminais embrionárias. No fundo, trata-se de uma “corrida” que todos querem ganhar.
Além dos Estados Unidos e da Coreia do Sul, actualmente existem centros de investigação no
Reino Unido, Austrália, Singapura, China, Japão, Índia, Israel e Arábia Saudita. Não existem
dúvidas de que nos últimos anos a pesquisa nesta área se tem desenvolvido bastante. Por
exemplo, entre 2002 e 2005, o número de publicações relacionadas com trabalhos no campo
das células estaminais embrionárias sofreu um impulso significativo. A própria Sociedade
Internacional para a Pesquisa de Células Estaminais (ISSCR)283
regista uma actividade
crescente neste sector.
O Japão, como já aqui foi referido, é um dos países de vanguarda na biotecnologia, no
entanto, alguns obstáculos internos parecem estar a dificultar o contributo dos cientistas
nipónicos na publicação de textos a nível internacional. Num artigo publicado a 9 de Agosto
de 2007 no site do grupo Nature284
, da autoria de Norio Nakatsuji285
, é observado o estranho
facto do Japão ter uma importante comunidade científica com provas dadas no campo das
células estaminais e nas células estaminais embrionárias de animais e, no entanto, tem tido
uma voz pouco activa no debate de ideias a nível internacional.
Nakatsuji explica esta situação com a existência de vários constrangimentos burocráticos com
que se deparam os investigadores no Japão: ―To conduct experiments even on established hES
cell lines, a laboratory must procure separate equipment and space. Research plans must
undergo redundant approval processes that exaggerate trivial concerns. A requirement that
all scientists must obtain individual permission from the government before performing any
work with hES cells hinders the training of young scientists and visiting scholars. We
desperately need more rational rules that do not inhibit scientific progress.‖286
O cientista refere que o Japão é um dos principais países no campo das células estaminais
embrionárias, e como tal deve assumir esse papel de forma mais veemente.
283
A International Society Stem Cell Research (ISSCR) é uma organização não governamental sem fins
lucrativos criada em 2002 com o objectivo de fomentar a troca de informação na área da investigação em células
estaminais. A ISSCR pretende encorajar o trabalho científico neste campo da biotecnologia, promovendo para
isso o debate científico e a educação profissional e pública. Entre as várias iniciativas, a ISSCR organiza
anualmente uma conferência, tornando-se no mais importante encontro a nível mundial dos investigadores em
células estaminais. (www.icssr.org) 284
www.nature.com 285
Norio Nakatsuji é um reputado cientista japonês, membro do Institute for Frontier Medical Sciences, da
Universidade de Quioto. O autor é também fundador da ReproCell, uma instituição baseada em Tóquio e que se
apresenta como uma “empresa de biotecnologia que explora as possibilidades das células estaminais”. 286
Norio Nakatsuji – “Irrational Japanese regulations hinder human embryonic stem cell research”, Nature
Report Stem Cells (9 de Agosto de 2007)
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 102
Ao longo dos últimos anos, vários laboratórios japoneses investiram muitos recursos na
pesquisa de células estaminais embrionárias de ratos, o que lhes permitiu alcançar importantes
descobertas.
Além disto, foi adoptada uma política de partilha de conhecimento que beneficiou cerca de 30
laboratórios japoneses. ―In 2003 we derived three hES cell lines. These have been distributed
to more than 30 laboratories throughout Japan, totally free of cost and with generous
material transfer terms. Recently, we collaborated with laboratories across the globe to
characterize hES cells for the International Stem Cell Initiative‖, sublinha Nakatsuji.287
Apesar desta dinâmica interna, o Japão tem tido dificuldades em afirmar-se nos fóruns
internacionais, quando se trata de colocar na dianteira da investigação: ―Japan is lagging
behind in hES cell research. At the ISSCR meeting held in Cairns in June 2007, only three of
the hundreds of posters on hES cells came from Japanese laboratories (including two from
our laboratory). At the annual meeting in March 2007 of the Japanese Society of
Regenerative Medicine, only 5 posters among 430 posters used hES cells.
A recent survey article on hES research found rapidly increasing publications around the
world, but the contribution of Japanese scientists was surprisingly small. By 2005, more than
400 research papers using hES cells had been published; only 5 were from Japanese groups.
The worrying situation is not improving: Japanese groups have published only a handful of
articles since then.‖288
O Japão tem, no entanto, uma vantagem muito importante quando comparado com outros
países, que acaba por reflectir-se positivamente na investigação realizada internamente: os
vários governos nipónicos têm sido fortes “aliados” da ciência.
Mais, ao contrário do que acontece em países como os Estados Unidos ou a Coreia do Sul, o
Japão não tem organizações religiosas ou outros grupos que façam oposição significativa à
investigação em células estaminais embrionárias.
Na verdade, no Japão não poderá falar-se numa “problemática” ao nível do pensamento
político, mas sim num rol de contrariedades burocráticas que dificultam o trabalho aos
cientistas. Nakatsuji classifica-as como “um processo regulador redundante e irracional”
imposto pelo Governo: “Our guidelines require approval both by research organizations'
ethics committee (an institutional review board (IRB) expanded to include a lawyer,
bioethicist and layperson) and by a designated government committee. This may make sense
287
Norio Nakatsuji – “Irrational Japanese regulations hinder human embryonic stem cell research”, Nature
Report Stem Cells (9 de Agosto de 2007) 288
Idem, ibidem
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 103
for experiments that destroy human embryos or involve human subjects. However, the
duplicated approval process is required simply to use existing hES cells in the laboratory. We
must apply for the approval every time we change or expand the approved research plan to
include new experiments, add new persons to the research team, change the room used for
experiments, or simply extend the period of the research plan, such as from 3 to 5 years.
These regulations fall outside the global consensus described by the international guidelines
compiled by the ISSCR, which clearly state that laboratory use of existing hES cell lines does
not require the kind of scrutiny necessary when scientists work with embryos directly.‖289
O cientista continua em jeito de comparação com outros países: ―In other countries,
researchers can begin experiments using existing hES cell lines within a month. In Japan,
satisfying all the regulatory requirements can easily take a full year.‖
Uma das consequências desta excessiva burocratização é afastamento de cientistas da
investigação em células estaminais embrionárias.
No que diz respeito aos cientistas mais jovens, também estes evitam enveredar por esta área já
que se vêem confrontados com uma série obstáculos que lhes dificulta a publicação de artigos
científicas e, assim, a progressão na carreira.
As linhas orientadoras para a investigação em células estaminais embrionárias foram
adoptadas pelo Japão em 2001290
, com o objectivo de dar resposta às questões éticas e morais
com que o sector se estava a deparar.
O problema é que na altura em que os mesmos princípios foram aprovados, a comunidade
científica japonesa não foi suficientemente activa para dar o seu contributo na elaboração da
legislação em vigor.
Um dos desafios que se vive actualmente no Japão prende-se com a vontade da comunidade
científica em aligeirar os procedimentos burocráticos inerentes ao processo de investigação,
nomeadamente aqueles que estão relacionados com a colaboração com laboratórios
internacionais.
Reino Unido, uma realidade diferente da americana
289
Norio Nakatsuji – “Irrational Japanese regulations hinder human embryonic stem cell research”, Nature
Report Stem Cells (9 de Agosto de 2007) 290
As linhas orientadoras para a investigação em células estaminais (The Guidelines for Derivation and
Utilization of Human Embryonic Stem Cells) foram aprovadas pelo Ministério da Educação, Cultura, Desporto,
Ciência e Tecnologia com base num relatório de 6 de Março de 2000 (Report on the Human Embryo Research
Focusing on the Human Embryonic Stem Cells) elaborado pelo subcomité para a Investigação em Embriões
Humanos, pelo Comité de Bioética e pelo Conselho para a Ciência e Tecnologia do Japão.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 104
No Reino Unido, a temática da investigação em célula estaminais embrionárias está presente
na agenda política, no entanto, ao contrário do que tem acontecido nos Estados Unidos, não
está envolta num processo ideológico tão conturbado.
Os anos de governação do Labour foram receptivos à evolução deste tipo de biotecnologia.
Ainda recentemente, o ex-primeiro-ministro britânico, Gordon Brown dizia o seguinte:
―Scientists are close to the breakthroughs that will allow embryonic stem cells to be used to
treat a much wider range of conditions, especially those affecting the brain and nervous
system … I also see the profound opportunity we have to save and transform millions of lives
through this strand of medicine.‖291
Apesar da receptividade que os Executivos trabalhistas têm demonstrado na questão das
células estaminais embrionárias, tal não siginifica que o Reino Unido tenha registado avanços
de relevo nesta área. Por isso, os cientistas esperavam que a eleição de Barack Obama pudesse
contribuir para um impulso da pesquisa e investigação desta nova biotecnologia.
O Oxford International Biomedical Centre (OIBC), uma das entidades que mais pressão tem
feito para o avanço na investigação em células estaminais embrionárias, aproveitou a
dinâmica imposta por Obama para exortar no Reino Unido aos financiamentos privados e
públicos para o desenvolvimento daquela tecnologia.
Numa conferência prevista para Março de 2009 em Oxford, o OIBC iria aproveitar o evento
para sensibilizar Governo e a opinião pública em geral para as potencialidades e virtudes do
uso das células estaminais embrionárias.
Além disso, os cientistas ingleses não deixaram igualmente de fazer uma leitura ideológica
das tendências manifestadas por Barack Obama. "Obama's inauguration speech was
significant in its promise that science would be restored to its rightful place. This was a direct
rebuff to the Creationists who have in recent years attempted to stifle scientific research. Now
that US government funding has been restored to embryonic stem cell research we will no
doubt see great scientific advancement, which could not be timelier than in the 200th year of
Charles Darwin's birth. The OIBC for one will be at the very forefront of this evolution‖,
referiu Charles Pasternak, director do OIBC.292
Até ao momento, a maior parte do trabalho desenvolvido no Reino Unido tem-se cingindo
sobretudo às células estaminais adultas, verificando-se vários problemas de financiamento.
291
The Guardian – “Nothing but a sideshow” (16 de Janeiro de 2009) 292
Medical News Today – “Stem Cell Symposium Restores Science To „Rightful Place‟, UK” (29 de Janeiro de
2009)
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 105
Além dos financiamentos do Medical Research Council293
e de entidades privadas, não são
muitas as fontes financeiras.
À semelhança do que tem acontecido em muitos países europeus, a legislação no Reino Unido
sobre esta matéria tem sido praticamente inexistente. A New Statesman sintetizava a situação
da seguinte maneira: ―Under Tony Blair, Britain adopted a go-ahead policy on human
embryonic stem cell research during a period (ending three years back) when the European
Union declined to fund such programmes. Last year Britain went beyond the ethical limits of
most countries in the west by sanctioning the creation of hybrid animal/ human embryos.
After a heated nationwide debate, the Human Fertilisation and Embryology Authority
(HFEA) licensed three British research laboratories, in Newcastle, London and Warwick, to
create embryos in which the ovum comes from an animal (typically a cow or rabbit) and the
nuclear DNA from a human being.‖294
Tal como em outros países, a problemática das células estaminais no Reino Unido tem estado
centrada nas embrionárias e na destruição dos embriões. Em Dezembro de 2000, o parlamento
inglês deu o passo importante em termos de legislação, ao votar no sentido de permitir a
investigação em células estaminais embrionárias sob orientações tidas como liberais,
nomeadamente quando comparadas com os padrões da legislação da União Europeia.
A Human Fertilisation and Embryology Authority (HFEA)295
foi a entidade responsável para
supervisionar as pesquisas nos embriões “descartados” ou que sobram dos processos de
fertilização in vitro. Embora progressista, esta legislação não era suficiente para os cientistas,
que em 2006 pediram autorização para criarem embriões híbridos, compostos por núcleos
humanos injectados em óvulos de coelhos. Em finais de 2006 a história desenvolve-se da
seguinte maneira: ―Faced with furious opposition, the government proposed legislation
banning the creation of hybrid embryos; but in September 2007, the HFEA decided that there
was no fundamental reason to prevent cytoplasmic hybrid research. A revised Human
Fertilisation and Embryology Bill was drafted. In January last year [2008], the first licences
were granted to carry out projects involving hybrids; but within days, 16 MPs had rebelled,
calling for a free vote. The Catholic Church also vocally opposed the proposed bill – among
them Cardinal Keith O‘Brien, who claimed that the bill endorsed ―experiments of
Frankenstein proportion". Nevertheless, in April, the first human-animal embryos were
created in the UK, and in October, despite a further attempt by Edward Leigh to have the
293
www.mrc.ac.uk 294
New Statesman – “The dilemma on the tip of a needle” (22 de Janeiro de 2009) 295
www.hfea.gov.uk/
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 106
technique banned, the Human Fertilisation and Embryology Bill was passed in October 2008,
on its third reading.‖296
A mesma New Statesman enquadrava ideologicamente a problemática da investigação em
células estaminais embrionárias no Reino Unido e noutros países europeus, assim como no
Japão. E, tal como aqui tem sido referido, os modelos de pensamento vigentes nas sociedades
acabam por influenciar de forma directa as legislações e as políticas adoptadas:―Individual
European countries have pursued their own national funding policies on embryonic stem cell
research, reflecting traditional ethical attitudes, in some cases to the detriment of commercial
advantages. While Italy has banned funding because of the influence of the Catholic Church,
Germany has been equally reluctant as a consequence of its sensitivity to human ex-
experiments in the light of its Nazi history. Japan has adopted similar policies, for the same
reasons. Both Germany and Japan invoke the ‗slippery slope‘ argument. In other words, they
are less preoccupied with doctrinal issues due to their caution based on national historical
experience. Britain's more liberal ethical attitudes are largely based on classic utilitarian
principles. The ideas of John Stuart Mill and Jeremy Bentham - the greatest good for the
greatest number - hold more sway than arguments about ensouled embryos. When I served on
an HFEA inquiry panel two years ago, exploring public attitudes towards hybrid embryos, it
was noticeable that the majority of the participants, which included an ordained Church of
England ethicist, emphasised the consequentialist clinical benefits - finding cures for
Alzheimer's disease, multiple sclerosis, and cancer.‖297
296
New Statesman – “The dilemma on the tip of a needle” (22 de Janeiro de 2009) 297
Idem, ibidem
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 107
VI - União Europeia: diferentes países, diferentes modelos
A 3 de Abril de 2003 a Comissão Europeia divulgava um relatório298
no qual se referia às
células estaminais como uma das mais promissoras áreas da biotecnologia299
. Apesar desta
ideia, o grupo de trabalho do Executivo comunitário levantava também a problemática dos
valores éticos e dos limites da investigação que envolve a pesquisa em células estaminais
embrionárias, nomeadamente, por causa do recurso a embriões humanos para tal fim.
Convém relembrar que já antes, a Comissão Europeia tinha debatido sobre este assunto
aquando da definição do The Sixth Framework Programme (FP6, 2002-2006)300
, o
mecanismo europeu que rege e orienta as actividades europeias no campo da investigação,
desenvolvimento tecnológico e demonstração (RTD) a partir daquele período. Ou seja, no
fundo é através deste documento que, ao estabelecer uma série de princípios e obrigação, se
definem as atribuições de fundos e apoios à investigação.301
E, de acordo com este documento, ficava bem claro que qualquer apoio comunitário à
investigação em células estaminais só poderia ser feito se aquela estivesse ao serviço dos
interesses de saúde.302
O relatório de 2003 da Comissão realçava os princípios definidos no FP6, relembrando que
estava proibido qualquer financiamento a projectos que envolvessem embriões humanos ou
células estaminais embrionárias, com duas excepções: embriões que estivessem armazenados
resultantes do excedente de processos como a fertilização in vitro; células estaminais
cultivadas artificialmente.
Este relatório, para ser apresentado na altura ao Parlamento e ao Conselho Europeu,
enunciava as propostas da Comissão para se legislar sobre a problemática das células
estaminais embrionárias. Numa, altura em que as novas tecnologias já potenciavam novos
298
Report on Human Embryonic Stem Cell Research (Comission Staff Working Paper, 3 de Abril de 2003) 299
De acordo com a Comissão Europeia, em 2001 cerca de 30 empresas por toda a Europa dedicavam-se à
investigação em células estaminais embrionárias. 300
―A total of around 104 projects are currently supported within the Sixth Framework Programme that involve
at least one component of stem cell research. These 104 projects represent in total an EC contribution of around
€500 million. Out of these 104 projects, 18 involve human embryonic stem cells (hESC). This means that
currently around 83% of the projects only involve somatic stem cells (adult & foetal stem cells) and essentially
adult stem cells (at least 95% of these projects) and around 17% also involve hESC. It may be estimated that
when all FP6 projects have come to an end, around €21 million will have been dedicated to hESC research. This
means around 0,85% of the budget of the health research programme in FP6 (which is around €2,45 billion)
and around 0,10% of the total FP6 budget (more than €17,5 billion).‖ Fonte: Comissão Europeia 301
O FP6 tinha um orçamento de 17,5 mil milhões de euros. Actualmente, está em vigor o FP7 (2007-2013) com
um orçamento de 50,5 mil milhões. 302
―Research will focus on…development and testing of new preventive and therapeutic tools, such as somatic
gene and cell therapies (in particular stem cell therapies‖ (FP6)
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 108
tratamentos, como por exemplo a reparação de tecidos ou a regeneração celular. Uma das
ideias interessantes referidas no relatório era o facto de sustentar que ainda não se sabia quais
as células estaminais potencialmente mais ricas para o tratamento de doenças: se as somáticas
se as embrionárias.
Hoje, poucas dúvidas existem de que as células estaminais embrionárias são de facto as mais
apetecidas devido às suas características de transformação. No documento, a Comissão
Europeia admite que na governação sobre as células estaminais embrionárias são levantadas
questões complexas.
Tal como aqui tem sido referido, também o grupo que elaborou o relatório chegou facilmente
a um conflito de valores e ideias: ―The question whether it is ethically defensible to do
research on embryonic stem cells can be described as a conflict between different values,
between different actors‘ rights and obligations, or between the short- and long-term interests
of different groups. On the one hand, there is interest in new knowledge that can lead to
treatment of hitherto incurable diseases. On the other hand, when this research involves the
use of human embryos, it raises the question of ethical values at stake and of the limits and
conditions for such research9. Opinions on the legitimacy of experiments using human
embryos are divided according to the different ethical, philosophical, and religious traditions
in which they are rooted. EU Member States have taken very different positions regarding the
regulation of human embryonic stem cell research. It confirms that different views exist
throughout the European Union concerning what is and what is not ethically defensible.‖303
Para definir as fronteiras éticas e legais, este estudo recorreu à legislação e doutrina existente
no âmbito do edifício comunitário. Por exemplo, citou o ―Ethical aspects of human stem cell
research and use‖, um estudo feito pelo The European Group on Ethics in Sciences and New
Technologies (EGE) entregue à Comissão Europeia a 14 de Novembro de 2000. Aqui,
ficavam estabelecidos alguns princípios fundamentais que jamais pudessem ser violados na
investigação em células estaminais embrionárias.304
O estudo de 2003 da Comissão lembrava também que o documento do EGE referia que: ―The
creation of embryos for the sole purpose of research raises serious concerns since it
303
Report on Human Embryonic Stem Cell Research (Comission Staff Working Paper, 3 de Abril de 2003) 304
“The principle of respect for human dignity; The principle of individual autonomy (entailing the giving of
informed consent, and respect for privacy and confidentiality of personal data); The principle of justice and of
beneficence (namely with regard to the improvement and protection of health); The principle of freedom of
research (which is to be balanced against other fundamental principles); The principle of proportionality
(including that research methods are necessary to the aims pursued and that no alternative more acceptable
methods are available).‖ - Report on Human Embryonic Stem Cell Research (Comission Staff Working Paper, 3
de Abril de 2004)
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 109
represents a further step in the instrumentalisation of human life‖ and deemed ―the creation
of embryos with gametes donated for the purpose of stem cell procurement ethically
unacceptable, when spare embryos represent a ready alternative source‖.
Furthermore the EGE considered ―that, at present, the creation of embryos by somatic cell
nuclear transfer for research on stem cell therapy would be premature, since there is a wide
field of research to be carried out with alternative sources of human stem cells (from spare
embryos, foetal tissues and adult stem cells.‖305
Numa análise sucinta relativa ao que se descreveu acima chega-se à conclusão que, embora
sob determinados limites, a Comissão Europeia estaria disposta a avançar no aprofundamento
da investigação em células estaminais embrionárias. No entanto, há poucos anos não existia
propriamente uma legislação comunitária comum sobre esta problemática, sendo que no
âmbito dos Estados membros era possível encontrar-se diferentes quadros legais, como
comprova o Quadro 1.
Quadro1306
Regulation of human embryonic stem cell research in EU Member States
EU Member States have taken different positions regarding the regulation of human embryonic stem cell
research and new laws or regulations are being drafted or debated. Taking into account the situation, as of March
2003, the following distinctions can be made:
– Allowing for the procurement of human embryonic stem cells from supernumerary embryos by law
under certain conditions: Finland, Greece, the Netherlands, Sweden and the United Kingdom.
– Prohibiting the procurement of human ES cells from supernumerary embryos but allowing by law for
the import and use of human embryonic stem cell lines under certain conditions: Germany. The import and
use of human ES cell lines is not explicitly prohibited in e.g. Austria, Denmark and France and authorisation is
still being discussed.
– Prohibiting the procurement of human ES cells from supernumerary embryos: Austria, Denmark, France,
Ireland and Spain. The legislation in Spain only allows the procurement of human ES cell from non-viable
human embryos under certain conditions.
305
Report on Human Embryonic Stem Cell Research (Comission Staff Working Paper, 3 de Abril de 2003) 306
Fonte: Report on Human Embryonic Stem Cell Research (Comission Staff Working Paper, 3 de Abril de
2003)
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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– No specific legislation regarding human embryo research or human ES cell research: Belgium, Italy,
Luxembourg and Portugal.
– Allowing by law for the creation of human embryos for research purposes: UK is for the moment the only
Member State, which allows by law for the creation of human embryos either by fertilisation of an egg by a
sperm, or by somatic cell nuclear transfer (SCNT, also called therapeutic cloning) for stem cell procurement.
The bill under discussion in the Belgian Parliament would allow for the creation of human embryos for research
purposes including by SCNT. The Dutch Embryo Act of 2002 includes a five-year moratorium for the creation
of embryos for research purposes including by SCNT.
– Prohibiting the creation of human embryos for research purposes and for the procurement of stem cells
by law or by ratification of the Convention of the Council of Europe on Human rights and Biomedicine
signed in Oviedo on 4 April 1997: Austria, Denmark, Finland, France, Germany, Greece, Ireland, Netherlands,
Portugal and Spain.
New regulations under discussion in EU Member States:
Belgium: A bill on research on human embryos in vitro was approved by the Belgian Senate in 2002 and it is
now under discussion in the Parliament. The draft legislation proposes to authorise the procurement of
embryonic stem cells from supernumerary embryos under certain conditions, and to create a “Federal
Commission for scientific medical research on embryos in vitro”.
Denmark: A revision of the current legislation to allow for the procurement of human ES cells from
supernumerary embryos is under discussion.
France: A revision of the Bioethics Law of 1994 has been approved by the Senate in January 2003 and should
be discussed by the Parliament in the first semester of 2003. It proposes to allow research on supernumerary
human embryos including the procurement of human ES cells for 5 years under certain conditions. A central
authorizing body will be created.
Italy: a law on in vitro fertilisation is under discussion.
Portugal: A committee has been established in Portugal for the preparation of a law on human embryo and
human ES cell research.
Spain: A revision of the current legislation is under discussion. In 1998 the National Committee for Human
Artificial Reproduction was created. In its second opinion, delivered in 2002, it advised to conduct human
embryonic stem cell research using as a source supernumerary embryos, estimated in Spain to be over 30 000.
The Ethics Advisory Committee for Scientific and Technological Research was established in April 2002 and
gave in February 2003 its first opinion on research on stem cells. It recommended to the government that
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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research on both adult and embryonic stem cells should be implemented; that the legislation should be modified
to allow the isolation of human embryonic stem cells from supernumerary embryos.
Sweden: A revision of the current legislation is under discussion. The Parliamentary Committee on Genetic
Integrity proposed, in their report published 29 January 2003, not to implement a general prohibition against
producing fertilised eggs for research purposes.
It should also be noted, however, that in the view of the Committee the creation of embryos by transfer of
somatic cell nuclei (so called therapeutic cloning) should be treated in the same way and thus in principle be
allowed.
Regulations in countries acceding to the EU
Cyprus, Czech Republic, Estonia, Hungary, Lithuania, Slovak Republic, Slovenia have ratified the Convention
of the Council of Europe on biomedicine and human rights. Concerning the countries acceding to the EU, no
specific regulations regarding human embryonic stem cell research have at present been implemented.
Estonia, Hungary, Latvia, Slovenia have implemented legislation authorising research on human embryos under
certain conditions. In Lithuania, Poland and the Slovak Republic human embryo research is prohibited. No
specific regulation regarding embryo research exist in Cyprus, Malta and the Czech Republic. A bill is under
preparation in Czech Republic.
Após o levantamento feito pela Comissão Europeia em Abril de 2003, verificaram-se algumas
evoluções nos últimos anos307
, no entanto, não se pode falar numa verdadeira revolução
legislativa.
Nalguns casos nacionais passou a haver um enquadramento legal na área da biotecnologia em
geral, mas não necessariamente ao nível da investigação das células estaminais embrionárias,
sendo Portugal um bom exemplo, e que se verá mais adiante. Ou seja, de certa forma, as
iniciativas legislativas têm sido tímidas, mantendo-se nalguns Estados um vazio legal. Apesar
de tudo, houve países que adoptaram, pela primeira vez, leis sobre esta matéria, embora com
carácter muito restritivo, como é o caso da Itália.
A Europa ainda dá os primeiros passos para a integração
Na sequência das recomendações do grupo de trabalho da Comissão de 2003, o Parlamento
Europeu deu luz verde ao financiamento à investigação em células estaminais embrionárias308
já perspectivando financiamentos do FP6. Mais uma vez, tratou-se uma vitória conseguida
307
Ver apêncides(Quadros 3, 4 e 5) 308
Ciência Viva/Público – “Parlamento Europeu aprova investigação com células estaminais” (20 de Novembro
de 2003)
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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pela ala liberal do Parlamento Europeu, já que o Partido Popular Europeu (PPE) votou contra.
Por exemplo, os eurodeputados Ribeiro e Castro (PP) e Carlos Coelho (PSD) justificaram o
seu voto com argumentos “conservadores” semelhantes àqueles que se encontraram no debate
americano. Por outro lado, as representantes do PCP, Ilda Figueiredo, e do PS, Elisa Damião,
alinharam pela corrente liberal ao dar o seu voto favorável ao financiamento à investigação
em células estaminais embrionárias.309
Seja como for, no Conselho de Ministros de 3 de Dezembro de 2003, que deveria ter
ratificado a decisão do Parlamento e a proposta da Comissão, não se conseguiu alcançar um
consenso.
Desde então que os avanços para uma legislação comunitária sobre investigação em células
estaminais têm sido parcos. Em Novembro de 2008, o European Patent Office (EPO) rejeitou
qualquer processo de patente no desenvolvimento de novas culturas de células estaminais
embrionárias. Com esta medida, as empresas europeias que operam na área da biotecnologia
sentem-se pouco protegidas para investirem vastos recursos financeiros numa tecnologia que
não estará protegida comercialmente. A decisão do EPO vem apenas confirmar a directiva
comunitária de 1998, que proíbe patentes industriais no uso de embriões humanos.
Estando a decisão do EPO alinhada pelo tom mais conservador, não é de estranhar terem-se
ouvido vozes de regozijo por parte de membros do Parlamento Europeu mais à direita.
Também a Conferência Europeia de Bispos congratulou-se com a posição do EPO.
Se em termos legislativos a União Europeia não tem revelado uma tendência particularmente
progressista, na área da investigação das novas biotecnologias o cenário é diferente, com a
evolução de diversos projectos financiados pela Comissão Europeia. Neste momento ao
abrigo do FP6 existem 104 projectos em curso. Além disso, o Executivo comunitário
anunciou, a 29 de Março de 2007, a criação de um banco de registos de linhas de células
estaminais embrionárias, à semelhança daquele que têm os Estados Unidos.310
O projecto
europeu apresenta-se, porém, mais ambicioso, juntando 81 linhas disponíveis e reunindo 10
países da UE.311
O processo de registo ficou a cargo do Centre of Regenerative Medicine in
Barcelona (CRMB)312
e do CellNet do Berlin-Brandenburg Centre for Regenerative Therapies
309
Ciência Viva/Público – “Parlamento Europeu aprova investigação com células estaminais” (20 de Novembro
de 2003) 310
http://www.hescreg.eu/ 311
Bélgica, República Checa, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Espanha, Holanda e Reino Unido 312
O CRMB é um dos centros de investigação em Espanha, que possui embriões humanos congelados, e é
financiado pelo Ministério da Saúde espanhol e pelo Governo da Catalunha.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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(BCRT)313
em Berlim. Os vários projectos financiados pela Comissão Europeia são geridos
pela respetiva Direcção-Geral (DG) responsável pela investigação nas áreas das ciências,
genómicas e biotecnologias aplicadas à saúde.
Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, na Europa são escassas as iniciativas
comuns de investigação e pesquisa entre países. Isto deve-se em parte por não ter existido
durante muitos anos qualquer modelo comum ao nível europeu. Foi apenas com o FP6 que se
estabeleceram critérios de abrangência comunitária e que permitiram colocar sobre a mesma
plataforma projectos de diferentes países.
Foi precisamente para impulsionar a parceria e a troca de informação entre os vários países
envolvidos em projectos ao abrigo do FP6 que se criou o ESTOOLS314
, o maior grupo
europeu de investigadores de células estaminians embrionárias que reúne pessoas de 10
Estados.
Trata-se de um projecto integrado que pretende aumentar a competitividade científica e ir de
encontro às necessidades da sociedade em termos de pensamento e de modelos. No site do
ESTOOLS pode lêr-se o seguinte:―Support objective-driven research, where the primary
deliverable is new knowledge. (…) Aims to do both – to build a strong scientific foundation
for biotechnological and biopharmaceutical applications of human embryonic stem cell
research, which will in turn, we hope, be applied to serious and complex medical problems.‖
O ESTOOLS315
poderá ser visto como um projecto integrado europeu de investigação em
células estaminais embrionárias. Dividido em nove ―workpackages‖, sendo oito dedicados às
questões técnicas e científicas e um relativo às implicações éticas. No âmbito do trabalho que
aqui se apresenta é precisamente o último “workpackage” que merece uma reflexão mais
aprofundada.
Uma das principais preocupações do ESTOOLS é manter um paralelismo entre o trabalho
científico e o debate das questões éticas e morais associadas a esta problemática. Um dos
pontos de partida do ESTOOLS é a admissão de que para alguns cidadãos europeus a
investigação em células estaminais é admissível, enquanto outros consideram que os embriões
não devem ser usados para pesquisas científicas. Para gerirar todas estas questões sensíveis, o
ESTOOLS está dotado de um painel consultivo para assuntos éticos.
313
O BCRT resulta da parceria da maior universidade hospital da Europa, a Charité, e a maior organização alemã
dedicada à investigação, a associação Helmholtz. O centro começo a receber apoio do Governo federal alemão
para apoiar o desenvolvimento de técnicas de medicina regenerativa. 314
www.estools.eu 315
Portugal não integra o ESTOOLS
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 114
Outras das entidades integradas ao nível europeu é o European Consortium for Stem Cell
Research316
, um portal que integra várias entidades científicas europeias, com o objectivo de
partilharem informação especializada sobre esta temática.
É um dos principais projectos de financiados pela União Europeia, que pretende ser o
depositário de tudo o que se vai investigando e debatendo sobre a problemática das células
estaminais embrionárias.
Sendo diferente do ESTOOLS, já que este pretende estabelecer linhas de orientação, o
EuroStemCell apresenta-se sobretudo como uma gigantesca base de dados e uma espécide de
plataforma de informação para o que de mais recente se faz ao nível das células estaminais
embrionárias.
Mais uma vez, trata-se de um projecto fundado ao abrigo do FP6, tendo sido criado para um
prazo de quatro anos, terminando no dia 31 de Janeiro de 2008: ―During EuroStemcell's four-
year duration, more than 100 researchers from 27 of Europe's best stem cell labs tackled the
basic, applied, clinical and ethical research needed to build the foundations for regenerative
medicine. Supporting this work we developed state-of-the-art solutions: new methodologies,
media and tools to benefit the whole research community‖, lê-se no seu site.
Durante esses quatro anos, o EuroStemCell317
produziu bastantes conteúdos sobre o tema,
incluindo a elaboração de inúmeros trabalhos, conferências, seminários e, inclusive quatro
filmes.
Foi ainda feita uma apresentação ao Parlamento Europeu pelo comissário europeu para a
Ciência e Investigação, Janez Potocnik. Todo este trabalho mantém-se disponível através do
portal, que embora findo prazo do projecto inicial, o EuroStemCell continua agora sob a
forma de portal de informação.
Portugal, um debate adiado
A investigação em células estaminais embrionárias é inexistente em Portugal. Os poucos
laboratórios nacionais associados a universidades portuguesas dedicam-se apenas à pesquisa
em células adultas. Consequentemente, o debate sobre esta problemática está ainda numa fase
“embrionária”, quer no patamar político, quer no legislativo. Mas, também no campo
316
http://www.eurostemcell.org/ 317
Portugal não integra o EuroStemCell
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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científico Portugal está muito longe daquilo que já se vai fazendo em muitos países do
mundo.
Em Portugal é legalmente proibido qualquer actividade de investigação que envolva embriões
humanos, a não ser que aquela tenha como único propósito beneficiar o próprio embrião318
.
Por isso, apesar de não existir qualquer enquadramento legal no que diz respeito à
investigação em células estaminais em Portugal, a verdade é que existe legislação que proíbe
o uso de embriões humanos para pesquisas científica, seja em que circunstâncias forem.
Deste modo, e não tendo Portugal qualquer linha de células estaminais para investigação, não
existe forma dos investigadores portugueses terem acesso àquele tipo de células.
Sobre o problemática das células estaminais embrionárias, o único enquadramento legal que
existe é que aquele que já aqui foi citado através do relatório da Comissão Europeia de
2003319
: ―Portugal has not enacted legislation but has ratified the Convention of the Council
of Europe on Human Rights and Biomedicine signed in Oviedo on 4 April 1997, which
prohibit the creation of human embryos for research purposes and has in addition the
protocol on the prohibition of human cloning. The National Council of Ethics has adopted
opinions covering these questions. It has taken the position that research with no benefit for
the embryo concerned is not legitimated. The Ministry of Science has created in 2002 a
Steering 42 Committee for the preparation of a law on research on human embryos including
human ES cells.‖
Em 2004, o embaixador português nas Nações Unidas, Sebastião Póvoas, adopta uma posição
conservadora ao apoiar o Governo americano de então, anunciado que Portugal rejeitava
“totalmente o uso de células estaminais” embrionárias, alegando que não existiam provas de
doentes que tivessem beneficiado com as pesquisas.320
Ora, um ano depois é o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Mariano Gago,
que veio admitir a possibilidade de surgir uma mudança legislativa de modo a permitir a
investigação em células estaminais embrionárias.321
Apesar de estarem, desde 2007, alguns projectos-lei no Parlamento para serem aprovados, a
verdade é que não têm sido dados passos significativos, havendo um vazio legislativo na
temática das células estaminais embrionárias.
318
O Decreto 135/VII de 1997 foi reforçado com o artigo 18 da Conveção Europeia para a Protecção dos
Direitos Humanos e Dignidade do Ser Humano no que respeita à Aplicação da Biologia e Medicina (igualmente
denominada de Convenção de Oviedo), que entrou em vigor em Portugal em Dezembro de 2001. 319
Report on Human Embryonic Stem Cell Research (Comission Staff Working Paper, 3 de Abril de 2003) 320
Diário de Notícias – “Mariano Gago favorável ao estudo de células estaminais” (21 de Maio de 2005) 321
Idem, ibidem
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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O efeito Obama
O decreto assinado pelo Presidente Barack Obama a 9 de Março de 2009 foi bem recebido
pela comunidade científica em Portugal, que viu naquela medida um importante incentivo ao
desenvolvimento desta nova biotecnologia. Para o presidente da Sociedade Portuguesa de
Células Estaminais e Terapia Celular (SPEC-TC), Rui Reis, a legislação restritiva imposta
pela administração republicana acabou por ter reflexos negativos em todo o mundo, atrasando
o desenvolvimento de novas descobertas ao nível das células estaminais embrionárias.322
Para este investigador, existe uma relação directa entre a vanguarda da tecnologia e o
financiamento estatal, porque “não pode haver terapias baseadas em células estaminais sem
indústria, mas também não há indústria sem investigação de topo, que tem de ser feita nos
melhores laboratórios e financiada” pelo Estado.323
Perante a ausência de passos concretos no sentido de enquadrar a problemática no nosso país,
o cientista Rui Reis, enquanto presidente da SPEC-TC, já tinha defendido em 2007 a criação
de uma entidade reguladora da investigação com células estaminais embrionárias. Apesar de
na altura já existirem projectos-lei no Parlamento visando esse fim, os mesmos não
contemplavam a presença de cientistas. Por isso, a entidade proposta por Rui Reis deveria
incluir cientistas e profissionais de saúde.324
Nos últimos tempos, Portugal começou a ter um historial interessante na investigação em
células estaminais adultas. Por exemplo, Lino Ferreira, investigador do Centro de
Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra, foi o vencedor do Prémio
Crioestaminal 2008325
com um projecto na área de Ciências Biomédicas que prevê a
utilização de células estaminais no tratamento de doenças cardiovasculares326
. O seu trabalho
tem sido desenvolvido no Biocant – Centro de Inovação e Tecnologia em Cantanhede.
Também no âmbito do Programa MIT Portugal, cientistas da Universidade de Coimbra
desenvolveram uma biotecnologia que pode ser potencialmente utilizada no tratamento de
patologias cerebrais como Parkinson ou Alzheimer, introduzindo-se células estaminais nas
322
Jornal de Notícias – “EUA vão financiar investigação em células estaminais embrionárias” (10 de Março de
2009) 323
Idem, ibidem 324
Ciência Hoje – “Rui Reis defende entidade reguladora da investigação células estaminais” (10 de Julho de
2007) 325
O Prémio Crioestaminal vai na sua quarta edição e foi criado pela empresa Crioestaminal e a Associação
Viver a Ciência, com o objectivo de estimular a investigação de excelência. 326
Público – “Investigador português recebe Prémio Crioestaminal 2008” (24 de Novembro de 2008)
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zonas afectadas do cérebro pela doença. A nova descoberta foi desenvolvida durante três anos
pelo Centro de Neurociências e Biologia Celular do Instituto de Bioquímica da Faculdade de
Ciências da Universidade de Coimbra e é considerada verdadeiramente revolucionária. De tal
forma, que já foi patenteada comercialmente nos Estados Unidos, seguindo-se o seu registo a
nível internacional.
Em Portugal, a temática das células estaminais embrionárias tem sido praticamente
inexistente, não querendo isto dizer a ausência de posições ideológicas bem definidas.
Algumas organizações, como aquelas que estão associadas a universidades ou a centros de
investigação, defendem claramente uma maior amplitude no que diz respeito às novas
biotecnologias. O Biocant ou a SPEC-TC são exemplos desta corrente. Por outro lado,
existem também entidades que, à semelhança do que acontece nos Estados Unidos, são
contrárias à investigação em células estaminais embrionárias nos actuais moldes, ou seja, que
implica a utilização de embriões humanos. A Igreja Católica327
ou a Federação Portuguesa
pela Vida são exemplos, sendo que esta última não se opõe à investigação em células
estaminais adultas ou de outros métodos que permitam recriar em laboratório células
estaminais embrionárias.
De facto, ao contrário do que se passa com as células estaminais embrionárias, Portugal
começa a registar um desenvolvimento interessante na biotecnologia das células estaminais
adultas, seja ao nível científico, como já aqui foi referido, seja no patamar económico, com o
surgimento de diversas empresas a operarem nesta área. Concomitantemente, cada vez mais
pessoas começam a ficar sensibilizadas para as potencialidades das células estaminais adultas,
podendo ser este um primeiro passo para um debate mais alargado quanto as virtudes das
células estaminais embrionárias.
327
Como reacção ao decreto do Presidente Barack Obama, o Vaticano reiterou a sua oposição ao uso de
embriões para investigação em células estaminais embrionárias. O Vaticano apelou ao Presidente americano para
não mexer na legislação dos Estados Unidos sobre esta temática, sustentando com o facto das células estaminais
adultas já serem bastante satisfatórias no que diz respeito a terapias. Perante esta posição oficial do Vaticano, é
normal que a Igreja Católica em Portugal siga o mesmo registo. Também a Federação Portuguesa pela Vida,
através da sua presidente Isilda Pegado, mostrou-se desagradada com a decisão de Barack Obama e enfatizou as
virtudes das células estaminais adultas.
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Conclusão
O pressuposto basilar do trabalho aqui apresentado partiu da ideia de ruptura de um modelo
de pensamento sem paralelo na História da Humanidade, já que dada a inevitabilidade do
progresso da ciência, como também ficou aqui demonstrado, o Homem depara-se hoje com
um conhecimento e novas biotecnologias que, pela primeira, vez podem alterar a forma de
olhar sobre si próprio não apenas enquanto ser social mas sobretudo como entidade biológica.
Ao longo da História viveram-se várias rupturas de pensamento do Homem enquanto ser
social, fruto de revoluções culturais e científicas, no entanto, a descoberta da “genética” no
século XIX desbravou caminho para algo desconhecido. O Homem biológico colocou-se no
centro da própria ruptura, e ao longo deste trabalho tentou enquadrar-se essa questão.
Mas, como não podia deixa de ser, efectuou-se também abordagem sociológica, na qual se
pretendeu estabelecer um modelo de pensamento correspondente a determinada decisão ou
comportamento. E, de certa forma, tal relação é baseada numa forma simples, apesar da
complexidade desta temática.
A problemática das células estaminais embrionárias no pensamento político reflecte-se de
diversas formas, consoante as sociedades e a sua evolução face a esta temática. Sem qualquer
dúvida e, de certo modo, sem surpresa, os Estados Unidos são o melhor modelo de análise e
aquele aqui mais explorado, encontrando eco mais ou menos tímido noutros países.
Uma das coisas que se conclui é que de facto se está perante uma problemática, que dará
ainda os primeiros passos, tendo em conta as potencialidades que ainda estão por descobrir ou
aplicar.
Porém, no que diz respeito à decisão enquanto acto de governação exercido pelo Poder, esta
temática não difere muito de outras rupturas da História. Veja-se que, à semelhança de outros
momentos da História, existe um tema fracturante, com impacto nos modelos de pensamento
vigentes, e duas correntes que se opõem: a conservadora, interessada em manter o status quo,
pouco receptiva a grandes mudanças que impliquem alterações significativas na ordem das
coisas; a segunda corrente é mais liberal, dinamizada pelo progresso da ciência na ânsia da
descoberta.
Na problemática das células estaminais embrionárias ficou evidente que este modelo se aplica
bastante bem, tal como já tinha acontecido em todos os momentos anteriores em que a
Humanidade se viu perante rupturas. Em termos genéricos e no âmbito dos apoios a esta nova
biotecnologia, é assim previsível a decisão de um membro do Partido Republicano ou do
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Partido Democrata nos Estados Unidos, da Igreja Católica ou da Genentech, da Federação
Portuguesa pela Vida ou da Biocant.
A grande novidade desta temática não se prende tanto ao envolvimento do modelo de análise
mas sim nos contornos que esta problemática introduz. De Mendel a Watson, a ciência
progrediu de tal forma que o Homem descobriu um novo mundo, impelindo autores como
Fukuyama a falar num futuro pós-humano. Já antes, outros o tinham feito, mas desta vez as
bases de sustentação científica são cada vez mais sólidas.
E isto tem colocado desafios aos decisores políticos, porque como aqui foi sublinhado, não
estão apenas em causa alterações de comportamentos sociais, mas sim uma potencial
transformação da própria Humanidade enquanto fruto de um processo biológico intocável
desde a criação/aparecimento do Homem.
Tal como se tentou desde início demonstrar, esta problemática coloca-se a dois níveis: uma
mais imediata e que tem sido aquela que mais atenções tem gerado, por ser também a mais
compreensível e acessível a decisores e à opinião pública. E aqui ressaltam as consequências
morais e éticas associadas à destruição de embriões humanos necessários para a investigação
em células estaminais, porque apesar das várias tentativas ainda não existe qualquer
tecnologia eficaz que permita ultrapassar este problema. E é neste patamar que a problemática
das células estaminais embrionárias se tem centrado e para os holofotes se têm virado.
No entanto, é no segundo estádio da problemática que residem as potenciais implicações no
modelo de pensamento das sociedades futuras e que resulta de uma alteração profunda na
forma do Homem de olhar para si próprio. A ideia do livre arbítrio pode ser substituído pela
vontade individual, uma transição que levou Fukuyama e outros a falarem em mundo pós-
humano.
Este debate em particular está ainda muito longe dos decisores e da opinião pública em geral,
mas é central quando se aborda a problemática em causa. E ao longo deste trabalho tentou-se
enquadrar a questão das células estaminais embrionárias em toda a sua amplitude e antecipar
potenciais implicações nos modelos sociológicos futuros.
Sem certezas absolutas ou visões deterministas, o trabalho aqui apresentado retira ilações
importantes sobre o processo decisório ao nível do poder político, demonstrando a sua
previsibilidade quando enquadrado nos modelos ideológicos vigentes, conseguindo-se, assim,
antecipar-se as escolhas dos governantes ou outros intervenientes no que diz respeito à
legislação ou enquadramento da problemática das células estaminais embrionárias.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 120
Por último, sem qualquer tipo de pretensão premonitória, pretendeu-se com este trabalho
lançar luz sobre as potenciais consequências que tal tecnologia poderá ter na definição e na
concepção/adulteração do Homem biológico, tal e qual o conhecemos há milhares de anos, e,
consequentemente, e na forma de como a Humanidade olhará para ela própria. As novas
biotecnologias abrem assim uma imensa porta para admiráveis novos mundos, que permitem
vislumbrar sociedades mais próximas da utopia, onde as pessoas podem viver para lá dos 110
anos, auto-regenerando-se com os seus próprios órgãos geneticamente compatíveis desafiando
as leis naturais que têm imperado até hoje. A ausência de qualquer flagelo degenerativo ou a
erradicação da dor e da doença.
Tal modelo de sociedade será, à primeira vista, o procurado por todas as pessoas de bom
senso, sobretudo quando nos dias que correm tantos desafios há a vencer, mas como as
utopias positivas e negativas têm revelado através do trabalho intelectual de muitos autores, a
busca da perfeição pressupõe quase sempre alterações drásticas de comportamentos sociais e
humanos.
Independentemente das potencialidades de uma sociedade dominada em toda a sua plenitude
pelas novas biotecnologias, existirão certamente implicações nos paradigmas da sua
organização. Ao longo deste trabalho não se pretendeu discutir as virtudes de uma sociedade
homens sãos e de vidas prolongadas, mas sim alertar para a inevitabilidade que tal
transformação terá nas ideologias políticas e, consequentemente, nos seus modelos
organizacionais.
Poderá não ser para um futuro próximo, mas, atendendo ao que aqui foi demonstrado, as
novas biotecnologias poderão ainda fazer chegar o dia em que nascerá o primeiro “homem”
feito à medida da vontade de um seu semelhante. Da cor dos olhos e do cabelo, ao valor do
QI, passando pelo sexo da criança ou pelo nível de agressividade das suas emoções, tudo será
possível manusear como se fosse uma encomenda por catálogo. Neste momento, e pela
primeira vez na História da Humanidade, vive-se a ruptura entre os mundos humano e o pós-
humano.
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
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Índice remissivo
A
A,C,G,T · 59 Academia Nacional de Ciências · 68, 92 Adam Smith · 28 adenina · 54, 59, 60 administração · 7, 73, 75, 80, 82, 85, 92, 93, 94, 96, 97,
98, 99, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 133 ADN · 41, 43, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 62, 64, 68, 69,
70 Albert Jacquard · 34 Aldous Huxley · 31, 42, 52 Alvin Toffler · 41 Alzheimer · 94, 102, 122, 134 ambiente · 33, 34, 44, 45, 47, 80, 81, 82, 83, 91 Arábia Saudita · 116 Ari Patrinos · 71 Aristóteles · 10, 11, 33, 49, 68 Arnold Schwarzenegger · 97, 103, 104 August Weismann · 43 Austrália · 64, 88, 104, 116
B
Babilónia · 42 Barack Obama · 107, 108, 109, 110, 111, 112, 120, 133,
135 bases · 28, 54, 55, 59, 60, 68, 78, 79, 101, 137 bill · 65, 95, 96, 104, 106, 112, 121, 126, 127 Bill Clinton · 69, 80, 87, 88, 89 Biocant · 134, 137 biologia · 33, 35, 36, 41, 48, 62, 69, 72, 79, 102 biotecnologias · 6, 7, 8, 20, 21, 23, 26, 37, 40, 41, 42, 49,
60, 61, 63, 66, 67, 70, 71, 72, 73, 78, 82, 86, 89, 97, 104, 108, 129, 134, 135, 138
biotecnológica · 6, 13, 21, 30, 32, 33, 37, 40, 41, 42, 64
C
Califórnia · 41, 52, 56, 59, 62, 63, 96, 97, 103, 104, 111 Caltech · 52, 55, 56, 59 Câmara dos Representantes · 65, 95, 104, 108, 113 capital de risco · 64 Carlos Coelho · 128 Casa Branca · 69, 75, 87, 91, 92, 93, 95, 99, 105, 106,
107, 108, 109 Celera · 70, 71 CellNet · 129 células estaminais embrionárias · 6, 7, 8, 20, 23, 31, 49,
63, 69, 71, 72, 73, 74, 75, 77, 78, 82, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138
Centre of Regenerative Medicine in Barcelona · 129
Cetus · 63, 64, 66
Ch
Charles Darwin · 39, 43, 44, 48, 120 Charles Krauthammer · 75 China · 30, 116 Chris Lauzen · 102 Christopher Reeve · 95
C
ciência · 9, 11, 18, 23, 26, 27, 31, 32, 37, 38, 39, 42, 43, 44, 47, 52, 55, 60, 61, 62, 63, 74, 79, 80, 85, 95, 96, 98, 99, 102, 107, 118, 135, 136, 137
Ciência Política · 7, 8, 78 cientistas · 6, 26, 27, 36, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 51, 53, 55,
56, 57, 59, 61, 67, 68, 69, 70, 71, 73, 74, 78, 79, 90, 91, 94, 98, 99, 100, 101, 102, 104, 105, 113, 116, 118, 120, 121, 133, 134
citosina · 54, 59, 60 Claire McCaskill · 103 clínicas · 89, 91, 95 clonagem · 41, 67, 72, 74, 97, 113 Colin MacLed · 54 Comissão Europeia · 123, 124, 125, 128, 129, 132 conferência · 69, 71, 116, 120 Conferência Europeia de Bispos · 129 Congresso · 70, 79, 80, 81, 82, 87, 88, 89, 90, 95, 96, 97,
99, 104, 105, 109, 110 Conselho de Ministros · 128 Conselho Europeu · 124 conservadores · 77, 78, 80, 82, 83, 84, 85, 93, 94, 96, 99,
100, 107, 112, 128 Copérnico · 24, 25 Coreia do Sul · 88, 113, 114, 115, 116, 118 Criação · 47 cristalografia · 57, 58 cromossoma · 52, 53
D
Daniel C. Dennett · 48 darwinista · 53 David Hume · 45 debate · 6, 20, 22, 30, 32, 37, 38, 47, 60, 69, 72, 75, 77,
79, 81, 82, 83, 86, 90, 94, 98, 101, 103, 106, 107, 112, 114, 116, 128, 130, 131, 135, 137
decisor · 9, 12, 21 decreto · 87, 108, 109, 110, 133, 135 democrata · 65, 80, 81, 83, 84, 89, 96, 97, 100, 101, 103,
104, 107, 108, 112 descobertas · 6, 9, 12, 13, 21, 23, 24, 27, 32, 35, 39, 40,
41, 51, 53, 62, 63, 67, 74, 78, 82, 86, 87, 89, 111, 113, 114, 117, 133
determinismo · 38, 45
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 128
Deus · 9, 11, 16, 27, 35, 36, 38, 40, 44, 46, 48, 67, 68, 71, 81, 140, 141
Diana DeGette · 95, 104 Dolly · 67, 74 doutrina · 19, 20, 21, 27, 29, 30, 45, 78, 81, 83, 124
E
Elisa Damião · 128 embriões · 74, 87, 88, 89, 90, 91, 93, 94, 95, 102, 105,
106, 113, 115, 121, 123, 129, 130, 132, 134, 135, 137 empresas · 6, 63, 64, 65, 66, 123, 129, 135 energia · 37, 77 engenharia · 12, 36, 38, 40, 41, 49, 50, 51, 52, 62, 63, 67 Erasmus · 44 Erich Tschermak von Seysenegg · 51 ervilhas · 50, 52 Erwin Chargaff · 54 espécies · 9, 34, 43, 44, 46, 47, 53, 87 espermatozóides · 53 Estados · 6, 13, 16, 29, 37, 56, 57, 64, 66, 67, 68, 74, 79,
80, 86, 89, 91, 94, 97, 103, 105, 112, 113, 114, 115, 116, 118, 119, 125, 128, 129, 130, 134, 135, 136
ESTOOLS · 130, 131 estrutura molecular · 41, 43, 55, 62 éticas · 7, 64, 74, 79, 87, 88, 92, 106, 115, 119, 124, 130,
137 Étienne Baulieu · 39, 55, 57, 144 eurodeputados · 128 European Consortium for Stem Cell Research · 130 evolucionistas · 44 existência · 9, 34, 36, 47, 68, 100, 116
F
farmacêuticas · 71 Federação Portuguesa pela Vida · 135, 137 financiamento · 69, 70, 73, 88, 90, 92, 93, 95, 97, 98, 99,
100, 101, 102, 106, 109, 112, 114, 120, 123, 128, 133 fins reprodutivos · 73, 94 Food and Drug Administration · 110 forças · 27, 32, 44, 79, 103 Francis Collins · 71 Francis Fukuyama · 7, 31, 33 Friedrich Engels · 28 fundos · 64, 70, 75, 88, 89, 91, 92, 95, 97, 99, 101, 106,
108, 109, 113, 114, 123 futurista · 42
G
Galileu · 15, 21, 23, 24, 25, 26, 33, 49, 68 Genentech · 6, 63, 65, 66, 137 genes · 33, 50, 52, 68, 70 genética · 6, 7, 33, 34, 35, 36, 38, 39, 41, 43, 49, 50, 51,
54, 59, 60, 61, 62, 63, 67, 68, 86, 136 Genoma Humano · 6, 41, 67, 68, 69, 70, 71 Genomics · 56, 70, 71 George F. Kennan · 29, 144
George W. Bush · 7, 75, 77, 79, 80, 86, 91, 92, 93, 95, 96, 102, 104, 105, 106, 108, 109
Geron · 86, 111 Gordon Brown · 119 governadora · 97 governo · 15, 17, 20, 28, 30 Governo · 12, 67, 68, 69, 72, 81, 89, 91, 107, 115, 118,
120, 129, 132, 140, 141 Graig Venter · 70, 71 Grécia · 9 Gregor Mendel · 39, 49, 51 guanina · 54, 59, 60
H
Harvard · 41, 67, 102 hélice · 32, 41, 53, 55, 58, 59, 60 Herbert Boyer · 41, 63 hereditariedade · 35, 39, 42, 43, 44, 47, 48, 50, 51, 52,
53, 56, 60, 63 HERP · 87, 88, 93, 94 História · 7, 9, 11, 12, 13, 14, 16, 17, 19, 20, 22, 23, 24,
27, 32, 35, 38, 39, 44, 45, 50, 51, 52, 54, 55, 56, 78, 135, 136, 139, 140, 141, 142, 143
Homem · 6, 7, 9, 10, 11, 14, 27, 28, 30, 31, 32, 34, 35, 36, 37, 42, 43, 46, 48, 52, 61, 67, 68, 135, 136, 137, 138, 142
HPSCRG · 91 Hugo de Vries · 51 Human Embryonic Stem Cell Registry · 73, 92 Humanidade · 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 16, 17, 20, 21, 27,
28, 30, 31, 32, 33, 34, 36, 37, 38, 60, 62, 68, 77, 78, 135, 136, 137, 138, 139
Hwang Woo Suk · 113, 114, 115
I
Idade Média · 10, 29 ideia · 7, 9, 10, 14, 29, 33, 34, 35, 36, 39, 44, 46, 48, 49,
53, 59, 65, 70, 78, 89, 92, 93, 123, 135, 137 Igreja Católica · 22, 135, 136 Ilda Figueiredo · 128 Illinois · 16, 72, 101, 143 Império Romano · 12, 17, 22 Índia · 116 indivíduo · 34, 45, 47, 50, 52 indústria · 41, 63, 64, 65, 97, 112, 113, 133 Inquisição · 21, 25 investigação · 6, 7, 8, 20, 23, 31, 33, 40, 41, 43, 49, 50,
53, 56, 57, 58, 59, 63, 64, 65, 66, 68, 71, 72, 73, 74, 77, 85, 86, 87, 88, 90, 91, 92, 93, 94, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 116, 117, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 125, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 137
Irving Weissman · 110 Israel · 73, 116
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 129
J
James D. Watson · 39, 54, 56, 57, 58, 60, 79 Japão · 64, 65, 67, 74, 112, 116, 117, 118, 119, 122 Jesus Cristo · 11, 12, 14 Jim Talent · 103 John C. Fletcher · 94 John Locke · 9, 28, 45
K
Kansas City · 102 Karl Correns · 51 Karl Marx · 28
L
Laboratório Cavendish · 56, 57 Labour · 119 Laurie Zolotyh · 62 Lawrence Bragg · 56, 57, 144 Lawton Chiles · 65, 112, 113 legislação · 13, 21, 80, 84, 85, 88, 89, 90, 92, 96, 98, 99,
102, 103, 104, 106, 108, 119, 120, 121, 124, 125, 128, 132, 133, 135, 138
legislador · 12, 85, 100 legisladores · 7, 77, 82 lei · 9, 44, 65, 80, 81, 85, 95, 96, 97, 98, 100, 101, 104,
105, 106, 108, 109, 133 liberal · 7, 28, 82, 83, 103, 108, 110, 111, 122, 128, 136 linhas de células · 72, 73, 91, 92, 95, 105, 106, 108, 109,
115, 129 Lino Ferreira · 134 Linus Pauling · 55, 57, 58 livre arbítrio · 7, 31, 32, 36, 38, 42, 137 Lutero · 15, 21, 22, 68
M
Maclyn McCarty · 54 Madeleine Albright · 40 Manuel Castells · 40, 62, 67 Mark Foley · 82 Max Perutz · 57 Miguel Bakunine · 28 Missouri · 29, 102, 103 Mitt Romney · 98, 108 modelo · 7, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 18, 21, 22, 24, 25, 27,
29, 30, 32, 33, 34, 37, 43, 46, 48, 52, 53, 55, 56, 59, 62, 63, 77, 79, 82, 84, 86, 98, 100, 101, 106, 107, 110, 112, 129, 135, 136, 137, 138
moléculas · 41, 46, 54, 55, 56, 58 Montesquieu · 28 morais · 6, 7, 33, 74, 79, 83, 84, 88, 92, 96, 99, 101, 105,
106, 115, 119, 130, 137 moral · 61, 74, 75, 82, 84, 86, 89, 90, 93, 94, 96, 98, 99,
105, 106, 110 movimentos · 21, 32, 80, 83, 84, 88, 96, 111, 112
mudança · 55, 80, 100, 111, 132
N
Nações Unidas · 132 Nancy Pelosi · 104, 105, 108 Nancy Reagan · 94 National Institutes of Health · 73, 75, 87, 91, 114, 115 National Library of Medicine · 65 natureza humana · 10, 13, 33, 35 NBAC · 87, 89, 90, 91, 94 Nicolau Maquiavel · 15, 16, 18 nova biotecnologia · 93, 120, 133, 136 Nova Jersey · 96, 97 nuclear · 8, 9, 36, 37, 77, 121, 125, 126
O
O Príncipe · 20 opinião pública · 43, 64, 69, 107, 114, 120, 137 Origem das Espécies · 43, 44, 47, 49, 141 Oswald Avery · 54
P
paradigma · 23, 27, 32, 46, 48, 52, 55, 87, 100 pares · 23, 50, 52, 57, 59, 68 Parlamento · 124, 128, 129, 131, 133 Partido Democrata · 83, 84, 97, 136 Partido Republicano · 82, 83, 84, 95, 98, 136 patente · 64, 70, 128 pensamento · 7, 9, 10, 11, 12, 15, 16, 18, 20, 21, 25, 26,
27, 29, 30, 31, 32, 33, 35, 37, 40, 44, 45, 46, 49, 52, 62, 63, 81, 91, 94, 98, 100, 106, 109, 110, 112, 118, 122, 130, 135, 136, 137
pesquisa · 31, 41, 62, 63, 72, 74, 87, 88, 89, 91, 94, 95, 97, 98, 100, 101, 103, 105, 106, 110, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 120, 123, 129, 131
pessoa · 19, 38, 74, 93 Phoebus Levene · 53 política · 6, 8, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 17, 18, 21, 22, 29,
30, 32, 36, 37, 70, 75, 78, 79, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 94, 95, 100, 101, 102, 103, 105, 107, 112, 117, 119
político · 6, 8, 9, 10, 12, 13, 15, 16, 18, 20, 21, 27, 29, 30, 37, 40, 60, 63, 65, 69, 77, 78, 79, 80, 81, 86, 90, 95, 96, 97, 98, 101, 102, 103, 106, 107, 112, 118, 132, 136, 138
Portugal · 13, 126, 127, 128, 130, 131, 132, 133, 134, 135 pós-humana · 42 pós-humano · 7, 31, 137, 139 Prémio Crioestaminal · 134 Prémio Nobel · 41, 52, 55, 57, 64 Presidente · 69, 72, 73, 79, 80, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 94,
95, 96, 97, 98, 99, 102, 104, 105, 106, 107, 108, 110, 133, 135
problemática · 8, 9, 48, 61, 63, 69, 78, 84, 90, 96, 102, 103, 104, 106, 110, 112, 114, 118, 121, 122, 123, 124, 125, 130, 131, 132, 133, 136, 137, 138
Programa MIT Portugal · 134
Alexandre Diogo Guerra – O Impacto das Novas Biotecnologias no Pensamento Político
ULHT – Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Relações Internacionais 130
progressista · 77, 78, 79, 83, 84, 94, 96, 101, 103, 121, 129
progressistas · 8, 77, 78, 79, 80, 82, 83, 84, 85, 88, 93, 98, 99, 108
progresso científico · 35, 36, 39, 77, 78, 86, 99, 109 Proudhon · 28
R
recombinação · 41, 62 regras de Chargaff · 54 Reino Unido · 88, 116, 119, 120, 121, 122, 129 relatório · 29, 60, 87, 89, 90, 92, 119, 123, 124, 132 Renascimento · 15, 16, 17, 20, 143 Repligen · 66 reprodução · 6, 30, 52 republicanos · 77, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 96, 100, 101,
103, 105, 108, 111 revolução · 6, 12, 13, 20, 21, 27, 29, 30, 32, 33, 36, 37,
40, 41, 42, 48, 49, 60, 62, 63, 64, 69, 87, 113, 128 Ribeiro e Castro · 128 Robert Fildes · 66 Robert Lanza · 75, 111, 115 Robert Owen · 28 Robert Swanson · 66 Roma · 12, 13, 14, 17, 20, 21, 22, 24, 30, 140 Ronald Reagan · 94 Rui Reis · 133, 134
S
Santo Agostinho · 11, 34, 35 São Tomás de Aquino · 11 Science · 23, 61, 62, 69, 74, 76, 86, 87, 89, 105, 107, 109,
113, 114, 120, 132, 142, 144 século · 6, 11, 12, 13, 14, 16, 17, 21, 26, 28, 29, 30, 33,
35, 36, 38, 39, 40, 42, 43, 45, 49, 50, 51, 52, 53, 56, 60, 62, 63, 136
selecção · 32, 43, 45, 46, 47, 49, 91 Senado · 14, 65, 95, 96, 105 senador · 65, 96, 102, 108, 112, 113 sequenciação · 68, 69, 70 Singapura · 116 social · 8, 9, 10, 11, 14, 15, 16, 18, 30, 32, 33, 35, 37, 38,
40, 42, 48, 63, 68, 79, 82, 83, 84, 135, 136 sociedade · 6, 7, 9, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 20, 21,
23, 25, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 36, 38, 40, 42, 43, 49, 52, 60, 61, 70, 77, 79, 80, 81, 82, 83, 85, 98, 100, 108, 130, 138
Sociedade Portuguesa de Células Estaminais e Terapia Celular · 133
sociedades · 8, 9, 20, 21, 24, 26, 29, 30, 32, 37, 40, 41, 42, 52, 61, 62, 79, 86, 122, 136, 137, 138
Sociologia · 78 Sólon · 10 Stanley Cohen · 41, 63 Stem Cell Research Enhancement Act · 95, 97, 104 Stephen M. Maurer · 62
T
Tadeusz Pacholczyk · 74 tecnologia · 13, 31, 36, 37, 38, 55, 65, 68, 72, 98, 112,
120, 129, 133, 137, 138 teoria · 25, 33, 34, 43, 44, 45, 47, 48, 74 Terry Shiavo · 80, 81 The Sixth Framework Programme · 123 Thomas B. Okarma · 86, 87, 111 Thomas Frank · 83 Thomas Hunt Morgan · 52 Thomas Malthus · 44 Time · 75, 76 timina · 54, 59, 60 Tomás Campanella · 26 Tony Perkins · 83 totalitário · 42 tratamentos · 124
U
Universidade · 23, 26, 41, 50, 53, 54, 56, 59, 67, 68, 72, 73, 74, 86, 94, 97, 102, 109, 113, 114, 116, 134
utópico · 42
V
valores · 10, 11, 12, 28, 32, 33, 39, 82, 83, 84, 93, 100, 105, 112, 123, 124
Vaticano · 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23, 24, 25, 135, 141
vida · 7, 18, 22, 24, 34, 35, 40, 41, 44, 45, 47, 48, 63, 67, 68, 70, 74, 75, 80, 81, 93, 105, 112
Voltaire · 28
W
William Bateson · 43 William Bragg · 55
X
X · 52, 55, 57, 58, 59 XX · 6, 11, 13, 25, 26, 28, 29, 30, 36, 39, 40, 52, 53, 62,
142 XY · 52
Y
Y · 52