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Actas – IV Congreso Internacional Latina de Comunicación Social – IV CILCS – Universidad de La Laguna, diciembre 2012 ISBN-13: 978-84-15698-06-7 / D.L.: TF-969-2012 Página 1 Actas on-line: http://www.revistalatinacs.org/12SLCS/2012_actas.html Imagens sobre ciência e meio ambiente em jornais da Amazônia Brasileira Jimena Felipe Beltrão 1 - [email protected] Resumen: Análise de material visual na forma de cartuns publicados nos dois principais jornais produzidos na Amazônia Brasileira. O material foi publicado no ápice da discussão de problemas ambientais momento da realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, em 1992. A controvérsia nas discussões da problemática ambiental gerou maior cobertura jornalística. Tomando uma perspectiva regional e utilizando a comunicação e a antropologia como referenciais teóricos, a pesquisa apresenta algumas imagens (imagens construídas a partir de imagens) e discursos revelados sobre a Amazônia. Ao produzir uma perspectiva local baseada em análise interpretativa, as imagens coletadas revelam estereótipos e reforçam dicotomias como as que marcam oposições entre natureza e sociedade, rural e urbano, saber moderno e tradicional. Tais resultados se encontram nas representações de autoria de cartunistas regionais e discutidas em um cenário de problema social, no qual se constitui o meio ambiente. As imagens construídas acerca do conceito de Amazônia refletem e se refletem a/na imagem construída do próprio Brasil. 1 Journalist, Ph.D. in Social Sciences, Science & Technology Analyst, Ministry of Science and Technology - Goeldi Museum. E-mail: [email protected]

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Imagens sobre ciência e meio ambiente em jornais da Amazônia Brasileira

Jimena Felipe Beltrão1 - [email protected]

Resumen: Análise de material visual na forma de cartuns publicados nos dois principais jornais produzidos na Amazônia Brasileira. O material foi publicado no ápice da discussão de problemas ambientais momento da realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, em 1992. A controvérsia nas discussões da problemática ambiental gerou maior cobertura jornalística. Tomando uma perspectiva regional e utilizando a comunicação e a antropologia como referenciais teóricos, a pesquisa apresenta algumas imagens (imagens construídas a partir de imagens) e discursos revelados sobre a Amazônia. Ao produzir uma perspectiva local baseada em análise interpretativa, as imagens coletadas revelam estereótipos e reforçam dicotomias como as que marcam oposições entre natureza e sociedade, rural e urbano, saber moderno e tradicional. Tais resultados se encontram nas representações de autoria de cartunistas regionais e discutidas em um cenário de problema social, no qual se constitui o meio ambiente. As imagens construídas acerca do conceito de Amazônia refletem e se refletem a/na imagem construída do próprio Brasil.

1 Journalist, Ph.D. in Social Sciences, Science & Technology Analyst, Ministry of Science and Technology - Goeldi Museum. E-mail: [email protected]

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O estudo de imagens criadas acerca dos mais variados assuntos tem rendido uma extensa produção científica. Assim é que, em alguns estudos mais recentes se dedicam à análise de representações da ciência, da política, das artes, de valores culturais (Belting, 1994; Redner, 1994; Sttaford, 1994; Doty, 1995), Outros trabalhos analisam imagens sobre ciência (Toumey, 1992 e 1996; Ford, 1993), sobre o perigo nuclear (Weart, 1987 e 1988), sobre genética (Nelkin, 1995; Van Dijck, 1998). Quando pensei em analisar processos de construção do conceito de Amazônia, decidi fazê-lo a partir da perspectiva regional (Beltrão, 1996 e 1997). São inúmeras as análises de textos os mais diversos entre os quais os produzidos por viajantes, naturalistas, missionários (Gondim, 1990; Orlandi, 1990, Moreira Leite, 1994 e 1997) e por jornalistas (Bendix & Liebler, 1991; Palmer, 1993; Dalby, 1996). Um pouco cansada de ver e ouvir o Outro2 falar, me coloquei no lugar de intérprete de um mundo que considero meu também e persisto nessa trajetória. Esta tomada de lugar representa a interveniência do ator em sua história, retomada de uma construção própria deixada em parte para os outros durante muito tempo (Orlandi, 1990).

Insistindo em que os modos de construção, o lugar de quem as faz e as conseqüências de tal processo é o que de mais importância há no desvendar de significações, Orlandi argumenta que:

... esses modos e conseqüências é que produzirão efeitos de sentidos específicos à nossa história, ao sentido que se vai construindo para o Brasil. Sermos falados pela memória, pelo domínio de saber europeu [ou de qualquer Outro a que se possa tomar como referência], resulta em certos efeitos que refletem esse modo de fazê-lo. (Ibid., p. 88).

Um projeto de estudo mais abrangente e cobrindo uma variedade de aspectos que contribuem na composição do imaginário social sobre a Amazônia3 se originou na elaboração de tese de doutoramento de minha autoria.4 Inúmeras questões surgiram e foi preciso definir região, espaço, identidade. Foi necessário também estabelecer parâmetros de amostragem, contexto, eixo, etc. A análise daquele trabalho se concentrou nos processos de construção da Amazônia nos textos dos dois principais jornais da região brasileira (Beltrão,

2 Lanço mão de uma pertinente discussão por Pearce (1994) para definir o entendimento do Outro neste trabalho. Diz o autor que uma forma de abordagem é a de Richard Rorty que “embraced the hermeneutic perspective as a way of dealing with others without reducing them to a common foundation.” (p. 62). 3 A região a qual nos reportamos se refere à Amazônia brasileira conforme a divisão política vigente no país. Não engloba outros países ou outros estados componentes da Amazônia Legal. 4 “Sustainable development issues in the Brazilian Amazon Press: A Regional Perspective 1990-1994”, defendida em novembro de 1997, na University of Leicester, Inglaterra.

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1997).5 Muitas facetas se revelaram ao longo da análise do material publicado em O Liberal e em A Crítica. Uma vez concluída a análise dos textos jornalísticos e das construções visuais6 a partir de fotografias, e outras formas de expressão visual como charges, mapas, gráficos, etc., proponho a análise detalhada das charges coletadas.7

1. Imagem e contexto

Nesta oportunidade, trato de uma pequena fatia do trabalho acima referido. Tal porção foi identificada entre os elementos visuais que acompanham os textos jornalísticos analisados. O elemento de humor surgiu nas raras charges publicadas dentro do período estudado entre 1990 e 1994, anos de muita controvérsia acerca do tratamento dispensado à Amazônia e seus ecossistemas. Nem tanto as temáticas, nem sempre oportunas como matéria-prima humorística, mas as próprias condições de produção do material jornalístico são fatores para que tão poucas charges sejam encontradas nas páginas dos jornais regionais. Não pretendo, porém, discutir tais condições. A análise se concentra nas mensagens, interpretações e construções possíveis a partir do tratamento de questões amazônicas nos espaços de humor da imprensa escrita, na forma de charges ou cartuns. A amostragem corresponde a três edições de O Liberal e três de A Crítica por mês durante os anos de 1990 a 1994. Fato limitador da coleta de dados explica nesse caso, o total de imagens coletadas se resuma a 17.

O período estudado corresponde à intensificação das discussões sobre o meio ambiente, então já percebido em sua dimensão de problema social. Como a ênfase do estudo original estava na análise dos textos, julguei importante não desperdiçar o material coletado. Reveladores de uma outra forma de expressão de como se constrói a Amazônia, os elementos visuais que proponho analisar são fundamentais em uma discussão a partir de uma perspectiva regional revelada na imprensa, numa linha proposta desde a elaboração de Beltrão (1994).

Ao escolher charges como alvo da análise, resgato uma ínfima parte de uma dívida histórica da pesquisa em minha área específica do conhecimento, a Comunicação. Repetindo a super valorização à forma escrita, ao se analisar materiais oriundas da mídia, há uma tendência a descartar se não de todo, mas em grande parte, a produção visual acompanhante do textos (Hansen et al., 1998). Esse status de acompanhante, de acessório, e, às vezes, de apêndice precisa ser revisto com urgência.

5 O conceito norteador da busca e análise de material jornalístico foi o do desenvolvimento sustentável, introduzido nos debates regionais a quando da intensificação dos debates sobre o problema ambiental. 6 Análise apresentada em Beltrão, 1997. 7 Na análise a seguir, detalho o conceito de charge em sua conotação política e caráter interpretativo a partir da discussão sugerida no Dicionário de Comunicação (Rabaça & Barbosa, 1987). O conceito de cartum também aparece na análise.

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Não sem razão, a perspectiva regional foi tomada como norte da análise. Têm sido inúmeras as interpretações e construções acerca da Amazônia elaboradas por outrem. Até e principalmente, como forma de nós amazônidas, percebermos as formas que assumem as nossas próprias interpretações sobre a região e por conseguinte, sobre nós mesmos, este exercício é uma necessidade. A observação e análise crítica a partir do lugar daquele sobre quem se fala é uma condição para intervenções na história.

Para Orlandi (1990), “Os discursos estabelecem uma história. A história, em nossa perspectiva discursiva, não se define pela cronologia, nem por seus acidentes, nem é tampouco evolução mas produção de sentidos.” (p. 14). Produzir portanto, sentidos a partir da perspectiva local é um compromisso e uma responsabilidade. É isso, em sua medida e iniciativa, que os chargistas, ainda que incorram em estereótipos e reproduzam imagens e discursos típicos do Outro, fazem. Mas são essas, entre tantas construções que compõem o imaginário, na acepção de Durand (1993), Platagean (1993) e Laplantine & Trindade (1996), de uma sociedade, nesse caso, a amazônica, para ela mesma e para os demais.

2. O humor como recurso

E o que é humor? Não só comicidade, sentido de hilário e cômico. Pode ser visto como uma postura, uma “posição de espírito” que permite uma visão fora do comum, fora das regras, convenções e normas (Rabaça & Barbosa, 1987). Ainda numa outra definição, essa do Oxford English Dictionary, humor é a “faculdade de perceber o que é ridículo ou divertido em um fato e a capacidade de transmitir essa percepção através de conversação, de escrita ou de qualquer outra forma de expressão.” (apud Rabaça & Barbosa, ibid).

Como forma comunicativa, o humor tem alcances ainda mais complexos que qualquer texto explicativo ou mesmo analítico. No caso das charges em sua representação visual, este alcance e as interpretações são ainda mais variadas. Situações geradoras de humor têm as mais diversas origens e motivações. O riso, por exemplo, advém do inesperado, do ridículo, do incongruente, do ambíguo. Ocorre ainda quando se fala, se enuncia sobre o proibido, sobre aqueles que se considera inferior. Obviamente que o entorno do processo de produção desses significados é essencial (Ross, 1998).

A charge pode ser entendida como uma subdivisão do cartum. Com origem no trocadilho, do francês trouvaille, o cartum “é uma anedota gráfica” centrada na crítica mordaz, satírica, irônica, cujo objetivo é fazer rir o leitor (Rabaça & Barbosa, Ibid.). O cartum substitui o jogo de palavras, típico do trouvaille, pelo elemento visual.

Enquanto elemento e recurso, a charge se utiliza da caricatura para estabelecer os significados oriundos na crítica, na ironia, na mordacidade. Lançando mão do não convencional, a caricatura destaca certas características do ser humano em questão e as amplia ao limite do grotesco, do despropósito. Para tal simplifica ou apura os traços do desenho, ressaltando, de forma muitas vezes atroz e impiedosa, o que é visto como defeito do indivíduo.

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Dada a sua natureza, em geral, política e eminentemente interpretativa, a charge se constitui em “crítica humorística” de caráter imediato e se relaciona a uma temática de interesse corrente, despertada por fato ou acontecimento do cotidiano. Aqui reside sua importância no contexto do jornal e a utilização da imprensa escrita regional como universo de estudo. Nos grandes jornais, a charge do dia costuma aparecer na página do editorial também conhecida como página de “Opinião”, onde se apresenta o pensamento do jornal, sua linha editorial, sua orientação. Tal posicionamento permite inclusive que a charge substitua em diversas ocasiões o próprio editorial (Rabaça & Barbosa, ibid.).

3. Temas e valores recorrentes

Jogando com elementos de impotência, medo e vergonha, as charges nos jornais da Amazônia exploram temas de relevância para a região. É a ambigüidade8 com a qual as situações regionais são de uma forma geral tratadas que geram humor. A ambigüidade se dá aqui pela ausência de comprometimento e definição políticos, geradora de tantas situações graves, assume nas charges a nuance do que “O que dá para rir, dá pra chorar”. A charge também se utiliza da ambigüidade ou se favorece de uma talvez multiplicidade de sentidos em nela contida e funciona como instrumento de denúncia diante da irresponsabilidade do Estado e demais instituições no trato de questões cruciais na Amazônia. É um espaço que permite “dizer” o indizível, o inenarrável nos textos jornalísticos. Além disso, aproxima grupos sociais e possibilita a formação de alianças. O humor é bem mais sério do que se imagina. De acordo com Ross (1998), “There may be a target for the humour – a person, an institution or a set of beliefs – where the underlying purpose is deadly serious.” (p. 2).

O contexto social é elemento fundamental da análise. Ainda que não se postule estudar em detalhe as condições materiais em que foram produzidas as peças sob análise,9 na medida da necessidade de contextualização, os devidos esclarecimentos são fornecidos. Aqui o que se propõe, isto sim, é a análise dos discursos que perpassam mensagens oriundas dos trabalhos de cartunistas que publicam em jornais amazônicos.

De um outro lado e, logicamente, que relacionado à análise de discursos que perpassam as charges, proponho a identificação de imagens que revelem as representações sobre ser amazônida, ser índio, ser caboclo, ser pesquisador, ser autoridade etc. A análise dessas formas simbólicas permite inferências acerca de como nós amazônicas, e, no caso específico, os chargistas

8 Segundo Orlandi (1990), “A ambigüidade repousa sobre certas concepções de comunicação ... decorre do apagamento das noções de conflito, de contradição, de mal-entendido, de lapso, de jogo de palavras, pensando a relação do sujeito e do social como repousando sobre a distinção clara e irrecusável entre, de um lado, a transparência e, de outro, a dissimulação do sentido ...” (p. 151). 9 Para discussão detalhada sobre a importância da análise de tais condições, ver Orlandi (1990) e Wolf (1987).

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representam a Amazônia.10 Emprestando à Antropologia de Geertz (1983), tento descobrir, sendo eu mesma uma “nativa”, “what the devil they think they are up to” (p. 58), não os informantes, mas os chargistas e suas representações de situações e de atores sociais amazônicos.

Colocar de lado, pré-concepções e me deter às imagens elaboradas pelos cartunistas é a proposta. Deixar que essas imagens contem as suas estórias e se delineiem em representações as mais diversas constitui o objetivo desta análise. Quaisquer alusões a estereótipos e preconceitos acerca da Amazônia que surgem na análise de tal iconografia serão inevitáveis na medida em que representam repetições de outras interpretações sobre a Amazônia a partir de referenciais não necessariamente locais, mas também apropriadas localmente. As tonalidades que cada significado assume é tão importante quanto as que assumem as diversas interpretações.

4. Charges nos jornais: Humor nas representações da Amazônia

Reveladoras do ridículo, do absurdo das situações, as charges se utilizam do sarcasmo, do exagero, da caricatura para denunciar, protestar e retratar mais alguma faceta da existência amazônica. Se protesta contra a miséria, a violência, a devastação, a falta de saneamento. Entre os símbolos mais comuns estão a floresta e os animais, associados ou não ao elemento humano índio ou não-índio, mas invariavelmente do sexo masculino.

As charges repetem as temáticas encontradas nos textos jornalísticos analisados por Beltrão (1997). Pesquisa, saúde ( a ausência dela), falta de saneamento básico, o desmatamento, o garimpo são alguns dos exemplos de temas tratados nas ilustrações. Mas a linguagem visual revela formas diferentes de traduzir conteúdos relevantes à problemática amazônica do que os encontrados nos textos de reportagens e artigos. Ao se utilizarem de recursos de sarcasmo, comicidade e protesto, as charges sugerem interpretações as mais diversas para os problemas sociais da região. Apesar de ainda manter uma forte característica de elemento complementar ao texto jornalístico, esse tipo de material visual tem capacidade de identificar e criticar problemas de impacto na Amazônia: saúde, poder, meio ambiente. Os chargistas padecem com a reprodução de estereótipos, porém imprimem seu humor a situações trágicas, calamitosas de forma irreverente e inteligente.

Como dito anteriormente, o contexto é fundamental para a proposição do humor e as reações a ele. Assim o é na análise das manifestações que se propõem humorísticas: “O conhecimento prévio do assunto de uma charge é, quase sempre, fator essencial para a sua compreensão” (Rabaça & Barbosa, ibid.).11 Apresentada aqui como resultante de um trabalho mais abrangente de análise textual, minhas observações acerca das mensagens e interpretações contidas e provocadas nas/pelas charges advém também de um conhecimento sobre as construções acerca da Amazônia. 10 Utilizo aqui algumas das abordagens de Geertz apresentadas em Local Knowledge (1983, p. 58). 11 Ver vocábulo Charge.

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Aqui se insere a discussão acerca das ambigüidades encontradas, dos estereótipos reproduzidos e do sentido caricatural que assumem com freqüência as imagens tidas como representativas da Amazônia. Ao todo são 17 charges publicadas n’O Liberal e n’A Crítica entre os anos de 1990 e 1994. O Liberal , 20 de outubro de 1990

Usada para ilustrar artigo que se referia à realização de evento para discutir meio ambiente na Amazônia, realizado em

Belém, naquela ocasião, o cartunista lançou mão de um sarcasmo apurado. J. Bosco introduz as figuras de cartola para revelar

aqueles que usufruem dos recursos regionais. Ao apresentá-los à mesa, o chargista usa a gula como reforço à

voracidade, expressa, aliás, em seus rostos, com que se refestelam e degustam da

fauna e da flora amazônicas. Numa bandeja vêm jacarés, cobras e árvores frondosas,

todos símbolos dos recursos naturais, numa alusão clara à tão proclamada “riqueza”. Nota-se aqui uma semelhança, como se

terá a oportunidade de verificar posteriormente, entre os chargistas

regionais.

A preferência é marcada pela escolha de elementos que imprimam sentido às

questões amazônicas. Animais e vegetais surgem de forma recorrente, enquanto que o elemento humano aparece como ameaça. Tal abordagem reforça dicotomias como a oposição entre sociedade e natureza, além

de dificultarem transformações na percepção de tais elementos. A contribuição

para reforçar as oposições é percebida também em outras imagens. O intuito é, iminentemente, de denúncia pela via do

sarcasmo. Note-se que a presença masculina marca a escolha dos

personagens por este chargista, assim como é pelos demais.

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A Crítica , 20 de janeiro de 1991

Coerente com as principais temáticas que surgem para nortear a cobertura no período

em análise, a Saúde surge também nas charges. O cidadão corre esbaforido e

apavorado sob a ameaça de uma série de insetos, bactérias e vírus. Sob o título

“Doenças Tropicais”, o cartum revela uma ameaça permanente na região e foi a

principal ilustração na página de Opinião do jornal naquela data. Uma vez mais a

oposição homem-natureza surge de forma clara. Aqui se invertem papéis e o homem

não se constitui em ameaça, mas em vítima. J. Vicente, o cartunista, não

apresenta, como se observa em outros trabalhos, um elemento mais crítico,

apontando os processos que levam a que a presença de tais doenças persista na

Amazônia.

Um único elemento pode ser apontado como revelador da gravidade da situação a

partir da diversidade e número representado pelos transmissores de doenças. Além

disso, é importante ressaltar o total desamparo do cidadão a quem resta correr. Tal observação revela a ausência de ações preventivas. Por outro lado, ao centrar no

aspecto quantitativo da ameaça, o cartunista não faz a acusação quase

sempre recorrente de que, na região, as pessoas não cuidam da sua saúde e que

não procuram se informar. Se assim o fosse as implicações seriam de outra ordem,

levando à uma discussão das razões pelas quais a população padece desses males.

Na charge de J. Vicente se repete a opção pelo gênero masculino para o personagem.

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A Crítica , 20 de janeiro de 1991

Acompanhando um artigo intitulado

“Jacaré é quente em proteínas” que ressalta as qualidades proteicas da espécie, o

cartum de Fernando Brumm, segue a linha de uma

controvérsia corrente à época. Na ocasião, algumas lideranças regionais faziam a

apologia da

exploração dos recursos naturais. Sob o argumento

da soberania da região e do Brasil sobre a

diversidade dos recursos regionais, tais lideranças, muitas das quais autoridades

constituídas, como o então governador Gilberto Mestrinho,

defendiam a exploração dos recursos naturais em geral e contínua caça de

espécies como o jacaré, a tartaruga, entre outras. Como porta-voz do governo

amazonense na ocasião, A Crítica abria espaço para um discurso simplista, de

coloração nada verde

como gostariam os ambientalistas e de tom

nacionalista típico dos refrões “A Amazônia

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é nossa”.

Além disso, a exemplo de outros chargistas, o traço de Fernando Brumm se concentra

na idéia e na imagem de animais representativos da Amazônia. Dessa forma,

o chargista se beneficiou sobremaneira do tema explorado no texto.

O Liberal , 29 de janeiro de 1991

Uma chuva de espermatozóides sobre um homem que está protegido por um guarda-chuva e tem às mãos uma prancheta. Sua expressão revela desconsolo diante dos dados que lê. Ao fundo os prédios de uma metrópole. Assim J. Bosco ilustrou matéria sobre a concentração do contigente populacional amazônico no estado do Pará. A matéria intitulada “Mais da metade da população da região Norte está no Pará” apresenta dados estatísticos reveladores da concentração, da pressão populacional sobre cidades como Belém. Plena em problemas típicos de uma grande metrópole que cresceu sem preparo e que não oferece as condições mínimas de existência, Belém ao fundo da ilustração estaria protegida apenas pelo guarda-chuva do cidadão. Ao utilizar o recurso da “chuva” e do guarda-chuva, J. Bosco lançou mão de um elemento mais que pertinente para retratar

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a vida em Belém, conhecida pelo mito da “chuva das duas que não pode faltar” como se canta em “Bom Dia, Belém”.12 Ainda que se possa pensar a chuva em sua carga representativa de amazoneidade, aqui também se observa um fenômeno da natureza em contraposição ao ser humano. O Liberal , 10 de abril de 1991

Ainda tratando o elemento urbano, o cartum revela os problemas que a cidade de Belém enfrenta com a falta de saneamento básico. Ao fundo palafitas típicas das áreas de baixada na periferia da cidade, introduzem o dia-a-dia de uma significativa parcela da população. A ilustração acompanha matéria sobre a utilização dos dejetos como matéria-prima intitulada “Esgotos, como matéria-prima, é muito útil e não polui”. J. Bosco escolheu a figura de cartola como símbolo de autoridade que se mostra numa expressão de constrangimento diante da sujeira que o pesquisador (de óculos e prancheta nas mãos) observa. Mais uma vez, a falta de condições de saúde da população é alvo de discussão

12 De autoria de Edyr Proença e Adalcinda Camarão.

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tanto no texto como na ilustração publicados na imprensa regional. A Ciência representada na figura do pesquisador vem em socorro dos problemas cotidianos. Esta é, no mínimo, uma contradição, já que a imprensa, muitas vezes, se lança contra a Ciência e sua eventual inoperância e ineficiência. O Liberal, 30 de julho de 1991

Charge principal do jornal naquela data, a ilustração de Laurent complementa o editorial do dia “Tragédias cotidianas e assustadoras” que reflete sobre a morte em garimpos da região. O limite da violência é mesmo a morte numa Amazônia onde o

valor atribuído à vida é quase nenhum em especial para os cidadãos não reconhecidos como tal pela sociedade ou pelas autoridades constituídas. Atividade

tradicional na região, o garimpo e o cotidiano dos que vivem nessas áreas estão diretamente relacionados a atos de violência. Correspondem, muitas vezes, ao encontro com a morte e o aumento de cruzes às proximidades dos locais como ilustrado pelo chargista. Neste caso, em particular, o nome Manelão se refere à

denominação do garimpo em questão. Localizado no município de Senador José Porfírio, no sul do Pará, o garimpo continuava a ser alvo da ação de pistoleiros quase

dois anos depois (O Liberal, 20/4/93, em “A lei dos pistoleiros no Manelão”).

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O Liberal , 20 de fevereiro de 1991 Empunhando picaretas e usando suas bateias como escudo, indivíduos chegam à beira de cursos d’água com expressão de conquista, posse, desafio e raiva. Todos enchapelados representam a figura dos garimpeiros que segundo a matéria são responsáveis por danos ambientais em sua busca por riquezas minerais. J. Bosco lançou mão também da reprodução da silhuetas dos estado do Pará e Mato Grosso, área geográfica a que se refere o texto. Na ilustração, estão ameaçados os rios, igarapés e também as árvores à sua volta. Mais uma vez a oposição sociedade/natureza se revela como pano de fundo às temáticas tratadas nos jornais amazônicos: o homem- (de novo, o gênero predominante dos personagens nas charges) predador.

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O Liberal , 20 de novembro de 1991

A figura que se convencionou como representativa da morte com a foice oferece um rolo de papel higiênico a uma criança que se serve de um penico. A falta de saúde é retratada novamente. O elemento de humor se mescla a uma possível boa notícia

anunciada no título da matéria “Resultados da vacina contra o rotavírus podem sair em abril”. A matéria dá conta de pesquisas que buscam a prevenção conta mais um vírus que assola a região amazônica. A expressão de sofrimento da criança aponta um dos

principais sintomas da doença, a diarréia.

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Actas on-line: http://www.revistalatinacs.org/12SLCS/2012_actas.html

O Liberal , 10 de junho de 1992

Por J. Bosco, a charge em O Liberal se refere ao processo que se movia à época

contra o índio Paiakan, acusado de estuprar uma jovem. Numa alusão à acusação

inicialmente feita a Paiakan e que, posteriormente, se estendeu à Irekran, sua mulher, o desenho introduz a figura desta

última em traje listrado utilizado para identificá-la como prisioneira. Envergando

tal indumentária a representação de Irekran se depara, num ambiente de aldeia, com

dois índios que apresentam expressão assustada diante da suposta ameaça que

ela impõe. Única mulher retratada nas charges coletadas no período, Irekran

aparece acusada, sem direito a julgamento. Enquanto representante do seu gênero é

retratada em condição mais que desfavorável.

Além disso, diante da acusação de “participação ativa” em estupro, sua etnia viria reforçar a atribuída selvageria dos índios, posto que não se tem notícia de mulher branca acusada de “participação ativa” em estupro. A charge principal do

jornal na data, se contrapõe ao editorial que discute o compromisso ético dos

ecologistas no auge da realização da Rio 92, quando explodiu a situação envolvendo a liderança indígena (Paiakan) reconhecida

internacionalmente pela defesa do meio ambiente amazônico. A tendência a

misturar as situações serviu a um propósito de levantar suspeita contra a ética de

Paiakan, em particular, com conseqüências graves à sua credibilidade e a luta das

nações indígenas.

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A Crítica , 20 de setembro de 1992

Um cidadão numa rede comendo uma fruta, vestindo camisa estampada se deleita com a luz da lua que entra pela janela. Misturando elementos regionais com outras visões de atitudes relax para com a vida, mais que o caboclo a que procura se referir o texto, o indivíduo se assemelha ao estereótipo de turista presente no imaginário universal. Sem identificar o ilustrador, a charge revela uma visão distorcida de qualquer acepção ainda que distante da figura do caboclo amazônico. Ainda que o artigo que acompanha a charge declare a retomada do sentido da caboclice ou da “caboquice” como chamam no texto, a charge não é de forma alguma representativa do tipo étnico.

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O Liberal , 10 de novembro de 1992

J. Bosco se utiliza de signos reveladores de autoridade científica ao apresentar três

indivíduos (sempre homens!) em uma mesa com microfones em postura de debate,

discussão. Tal composição está cercada por troncos de árvores cortadas e por

construções com chaminés que emitem fumaça escura. A alusão à devastação

ambiental além de alimentar os debates, assume duas dimensões: uma centrada na

natureza, a partir do corte de árvores e outra urbana, a partir da imagem de industrialização, das chaminés. É, no

mínimo, interessante que a abordagem mescle esses dois aspectos.

Na maioria das ilustrações analisadas a natureza está sempre apartada dos

elementos urbanos aqui representados pela indústria. A charge acompanha matéria

intitulada “Amazônia no centro das discussões” numa época em que eram constantes os eventos para discutir a

problemática amazônica, o ano de 1992, quando se realizou a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro. Lamentável, porém, que a autoridade científica ou de qualquer outra ordem,

esteja ainda associada à figura masculina.

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O Liberal , 10 de março de 1993

Uma casa na copa das árvores retrata o sentido do texto intitulado “Fantasia Amazônica”. Em suas inúmeras contradições, a região dá espaço a visões de paraíso e de possibilidade, ainda que vaga (baseada no entretenimento, no lazer, e em valores estéticos e contemplativos), de integração homem/natureza. Assim é nesta ilustração que se utiliza dos recursos de cartum para reforçar uma idéia recorrente entre os que falam e escrevem sobre a região. Importante lembrar que tal idéia de paraíso agora vem acompanhada das facilidades e confortos da vida urbana percebidas na casa, que ainda que simples, em nada lembra as construções regionais. O texto fala de hotéis de selva, de cabanas em copas de árvores e passarelas suspensas protegidas, de onde os visitantes, os turistas podem experimentar a floresta em total segurança e conforto. Este aliás uma das marcas do turismo contemporâneo sob o véu do ecoturismo, do qual a Amazônia não está escape.

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A Crítica , 20 de março de 1993

A ameaça de formigas à agricultura em Envira, município amazonense, está retratada no cartum. Nele se vê os insetos com garfo e faca em punho sendo ameaçadas por inseticida. Um possível desequilíbrio ecológico causado pelo desaparecimento do predador das formigas teria causado a propagação destas pela cidade. Ainda que a ilustração não revele essa faceta do problema, ela apresenta com humor umas formigas com super antenas e “dentes” afiados que emite som voraz típico de sensação de fome expressa em quadrinhos. A onomatopéia, não corrente entre as charges analisadas, se associa à utilização de talheres por parte das formigas. Tais recursos as humanizam e lançam uma vez mais a noção de embate, no que poderia ser uma metáfora relativa à oposição Sociedade/Natureza.

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O Liberal , 31 de março de 1993

Um índio sentado em atitude contemplativa, resignada (?),

desocupada (?) acompanha texto sobre o ciclo da vida entre “Índios e

caranguejos”. Típica das imagens construídas acerca das populações

indígenas, a ilustração pode nos remeter a interpretações de

desamparo, de preguiça, de um ser não produtivo, que leva uma vida sem

maiores preocupações. Valor recorrente quando se fala das

populações humanas regionais, a preguiça ou o que é visto como

despreocupação e marcação de tempo distinta, é encontrada

enquanto argumento de “caboquice” (Ver charge d’A Crítica, 20/9/92).

Aqui, de novo, o personagem é do gênero masculino. Serve ao propósito de condenação da atribuída preguiça.

Não pode ser índia. O preconceito permite às mulheres tal atitude, mas

não aos homens, a quem se demanda produção.

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O Liberal , 20 de maio de 1994

A charge apresenta a imagem da mesa do Conselho Deliberativo (Condel) da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) vazia, à exceção de um homem envergando paletó e gravata, como, aliás, é de praxe em tais ocasiões, que se dirige a ninguém. O esvaziamento de uma instância de decisão crucial para a região está representada na charge de J. Bosco. Historicamente, a importância da região

está na retórica e não no fazer, na tomada de decisão por parte do poder público. Na ocasião em que o Condel se reunia após um período de seis meses, nenhuma

autoridade federal compareceu, salvo o ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal, à época Henrique Brandão, que sequer membro do Conselho era à ocasião.13

Dos governadores dos estados da região, apenas o do Pará se fez presente. A situação revela, de forma mais óbvia e formal dado o ambiente, a inoperância do

Estado no que tange os assuntos amazônicos.

13 A criação do Ministério se deu em 1993 a quando do massacre do índios Yanomami. Supõe-se que nem todas as instâncias às quais a Amazônia estava afeta foram acionadas no sentido de assimilar o novo Ministério.

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O Liberal , 10 de julho de 1994

J. Bosco mescla os elementos da alta tecnologia espacial e a destruição da Amazônia, numa ilustração de matéria sobre a comunicação entre uma astronauta e um cientista amazônico. A ilustração alude às queimadas, à sua visibilidade a partir do espaço e à utilização de tecnologia para detectá-las. Mais que isso, porém o texto aludia à conversa entre a médica e astronauta japonesa, Chiaki Mukai, com o biólogo e especialista em primatologia, Márcio Ayres, diretor da Estação Mamirauá, localizada no município de Tefé, Amazonas. O diálogo, anunciava o texto, discutiria diversidade de ecossistemas na Amazônia. O desmatamento e a queimada são na visão da imprensa as imagens mais

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representativas da destruição da fauna e da flora amazônicas. Não de todo equivocada essa abordagem, é, no entanto, limitada e excludente do elemento humano. Por isso mesmo, reforça dicotomias como a já tradicional: sociedade versus natureza/ natureza versus sociedade. Também se pode lembrar a oposição natureza/tecnologia e a efetiva interveniência da ciência como “salvadora”: Ciência que se aproxima da religião e do credo social em seu poder. O Liberal , 20 de julho de 1994

A figura de um pesquisador, identificado em seus óculos, jaleco, prancheta e lupa (elementos estes recorrentes nas representações de cientistas), analisa pegadas num

ambiente em cujas proximidades se encontra vegetação densa. De dentro da mata aparecem dois grandes olhos de expressão intimidadora. O pesquisador atento ao seu

entorno tem expressão preocupada. Não é para menos, a ilustração acompanha matéria sobre a possibilidade de se descobrir mapinguaris aos montes na floresta

amazônica. Animais de grande porte desaparecidos há milhares de anos, os mapinguaris são o equivalente amazônico de mistérios como o do homem das neves

ou o monstro do lago Ness. A charge apresenta o absurdo e de certa maneira revela a nuance de ridículo com que a pesquisa é vista. O título da matéria reforça:

“Mapinguaris seriam milhares”. Ciência salvadora?

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5. Conclusão

Também eu elaborei, ao longo do estudo, um discurso para revelar interpretações que encontro nas charges. Não o faço, porém, para desautorizar outros discursos, outros saberes, mas o faço tomando o meu lugar como sugere Orlandi (1990): “As palavras ... não têm o sentido que a gente quer dar, mas o sentido que efetivamente tomam, dadas as condições de sua produção” (p. 134) e do seu consumo, gostaria eu de acrescentar.

A partir de uma proposta de tomar o lugar de cidadã amazônica, utilizei as charges pelo seu potencial revelador de uma forma de expressão não tão estudada, porém essencial às análises de como se constrói a Amazônia.

Identifiquei temas recorrentes e atores mais proeminentes. A falta de saúde, de atenção com a exploração indiscriminada dos recursos naturais, a interferência das autoridades sejam elas governamentais ou científicas, com poder de decisão, de argumentação e o silenciar de segmentos sociais, historicamente excluídos, são alguns dos assuntos e dos personagens principais das charges.

A partir da análise revelei reforços a dicotomias históricas, como as oposições entre homem e natureza, entre rural e urbano, entre as formas de saber moderno e ancestral. A utilização de símbolos da natureza amazônica em contraposição à sociedade regional perpassa todas as representações. Além disso, apontei atitudes discriminatórias. O preconceito se revelou no tratamento do índio e do caboclo como indivíduos preguiçosos. O preconceito também se revelou contra as mulheres, cuja evidência primeira é detectada a partir da predominância masculina entre os personagens nas charges. Tal atitude foi agravada a quando da identificação de uma única mulher representante de minoria étnica e apresentada à luz mais que desfavorável, aquela de criminosa, sem direito a julgamento. Ainda que não esteja tentando estabelecer relações diretas entre autoria das charges e o traço nelas observado, vale ressaltar que a partir da identificação aposta às charges, os profissionais são todos gênero masculino.

Ao apontar tais direcionamentos e destacar tais constatações, vinculo algumas das imagens acerca da Amazônia a discussões de perspectivas diversas, não necessariamente antagônicas, mas de difícil negociação. Os limites nítidos entre uma e outra coisa, situação, ponto de vista, não são uma característica do mundo e muito menos da Amazônia como querem alguns. Assim como lancei mão de diversos instrumentais teóricos e metodológicos, a Amazônia também precisa ser vista a partir de lentes combinadas.

A relação amazônida com o seu tempo, com o seu território se revela em discurso histórico que aponta elementos de sua identidade. Um traço dos mais marcantes é a presença eminentemente masculina tanto na autoria das charges como nos personagens. Mais que revelar imagens através de imagens, este trabalho se propôs a revelar as construções dessas imagens no universo do humor, iniciativa de ilustradores da região. São esses profissionais que ao “descobrir, revelar e analisar criticamente o homem e a vida” (Ziraldo, apud Rabaça & Barbosa, 1987), vem “desmontar, através da imaginação, um falso equilíbrio anteriormente sustentado” e provoca a “descoberta da verdade”.

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Diria, ao menos de uma das muitas verdades. Esta é a contribuição do humor produzido na Amazônia constituindo mais uma entre tantas formas de construir a região no imaginário social.

Ainda que não alentador de maiores esperanças em sua cáustica abordagem da vida, o humor propõe a discussão de temas cruciais. Os desenhos não se encerram em si mesmos e têm uma infinita ressonância. Como detonadores de debates cumprem em parte um papel na esfera pública da região. Se não propõe soluções - e esta não é o seu objetivo -, a charge instiga o interesse, incomoda, perturba uma aparente ordem. Como traço marcante do jornalismo, o humor, assim como a notícia, explora drama, tragédia. Porém distintamente do texto jornalístico, a charge se permite através da ironia e do sarcasmo “dizer” o que não se pode, pelas normas e convenções, “dizer” na matéria de jornal.