História - Mestrado - A Tradição Oral Africana e as Raízes Do Jazz
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA ECONMICA RICARDO ANNANIAS PIRES
A tradio oral africana e as razes do jazz
So Paulo
2008
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS
HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA ECONMICA
A tradio oral africana e as razes do jazz
RICARDO ANNANIAS PIRES
Orientador: Profa. Dra. Antonia Fernanda Pacca de Almeida Wright
So Paulo 2008
Dissertao apresentada ao Programa dePs- Graduao em Histria Econmica doDepartamento de Histria da Faculdade deFilosofia, Letras e Cincias Humanas daUniversidade de So Paulo, para a obtenodo ttulo de Mestre em Histria Econmica.
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Maria Gabriela Brandi Teixeira CRB 8 /6339
P667 Pires, Ricardo Annanias A tradio oral africana e as razes do jazz / Ricardo Annanias Pires. So Paulo, 2008.
136 f Bibliografia: f.81 Dissertao(Mestrado Programa de ps-graduao em Histria
Econmica do Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.
1.Tradio oral 2. Jazz 3. Multiculturalismo I. Ttulo
CDD 301
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FOLHA DE APROVAO
Ricardo Annanias Pires A tradio oral africana e as razes do jazz.
Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas, da Universidade de
So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Profa. Dra.___________________________________________
Instituio_______________________Assinatura ____________
Profa. Dra.___________________________________________
Instituio_______________________Assinatura ____________
Profa. Dra.___________________________________________
Instituio_______________________Assinatura ____________
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DEDICATRIA
Dedico este trabalho a um ex-escravo, meu bisav Annanias, que
com muito trabalho e fora de vida, pde fazer com que mais uma
gerao pudesse seguir adiante. Tambm dedico aos meus pais que
deram a base para que eu pudesse traar o caminho de minha vida.
Dedico com todo o meu amor para minha esposa Gabriela e nosso
lindo filho Eric e jamais me esquecendo de meus parentes de Minas
Gerais, Recife e Rio Grande do Sul
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AGRADECIMENTOS
Agradeo a Deus por conseguir estar onde estou. Agradeo professora Dra. Antonia Fernanda de Almeida Wright
por ter acreditado em minha capacidade. Ao professor Maurcio Waldman pelo brilhantismo de seus estudos
sobre a cultura africana. Agradeo aos amigos que sempre me apoiaram e torceram por mim. Aos ingleses que se redescobriram jazz e o blues e tiraram grandes prolas da concha do esquecimento e mostraram a beleza e a fora
da palavra atravs de novas msicas e novas bandas. Enfim, agradeo a todos aqueles que de uma forma ou outra
contriburam para o desenvolvimento deste estudo.
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EPGRAFE
Na floresta quando as ramas discutem, as razes beijam-se
Tradio oral africana
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OBJETIVOS
Objetivo Geral
Estudar as influncias que a tradio oral africana exerceu na
formao do jazz.
Objetivo Especfico
- Identificar a relao entre o blues norte americano e o canto dos
griots africanos.
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JUSTIFICATIVA DO TEMA
notrio que tanto o jazz, quanto o blues receberam uma grande
contribuio da cultura africana, porm, este estudo se justifica pela
contribuio que o mesmo pode oferecer ao tratar do tema proposto
com uma maior imerso.
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METODOLOGIA
Esta pesquisa apresenta uma orientao descritiva, onde seu
delineamento visa identificar a existncia de relaes entre a tradio
oral africana e a oralidade do blues americano. A coleta de dados da
pesquisa ser a partir de levantamento bibliogrfico e documental.
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RESUMO
Este trabalho tem como objetivo estudar as peculiaridades da
tradio oral africana e suas influncias na criao do jazz. Os
africanos, sendo um povo onde sua cultura tem como principal
caracterstica enfatizar o emprego da oralidade na transmisso do
conhecimento, o faz de forma muito distinta aos padres culturais
europeus. Sob a tica do povo africano, a palavra expressa de forma
oral possui um grande valor, sendo atribudo mesma, um nvel de
relevncia tamanho que chega a ser vista como um elemento mstico
capaz de criar ou at mesmo destruir. Os africanos, presentes em
solo americano, pela imposio da escravido, fundiram seus
elementos culturais cultura europia, dando luz uma nova
concepo musical, o jazz. O jazz desde sua criao at os dias
atuais, passou e passa por diversas transformaes. Estas
transformaes, mesmo que de forma implcita, contribuem para que
o jazz esteja presente nas mais diversas manifestaes culturais. O
jazz no pode ser considerado apenas um gnero musical de origem
americana. O jazz est presente em diversas partes do mundo,
inclusive no Brasil, onde se torna renovado devido riqueza e
diversidade cultural deste pas.
PALAVRAS-CHAVE
Tradio oral; Jazz; Multiculturalismo, frica, Brasil.
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ABSTRACT
This work studies the peculiarities of the oral African tradition and his
influences in the creation of the jazz. The Africans, being a people
where his culture has like principal characteristic emphasizes the job
of the orality in the transmission of the knowledge, it does it in the
very different form to the cultural European standards. Under the
optics of the African people, the definite word of oral form has a great
value, when attributed to same, a so great level of relevance that
comes being seen like a mystic element able to create or even to
destroy. The Africans, presents in American ground, for the
imposition of the slavery, fused his cultural elements to the European
culture, giving there shines a new musical conception, the jazz. The
jazz from his creation up to the current days, passed and it suffers
several transformations. These transformations, even that in the
implicit form, they contribute so that the jazz is present in more
several cultural demonstrations. The jazz cannot be considered only a
musical type of American origin. The jazz is present in several parts
of the world, including in Brazil, where it becomes renewed due to
the wealth and cultural diversity of this country.
KEY WORDS (5)
Oral tradition; Jazz; cultural exchange, Africa, Brazil.
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SUMRIO
OBJETIVO
JUSTIFICATIVA DO TEMA
METODOLOGIA
Resumo 02
Abstract 03
INTRODUO 07
1 O FUNDAMENTO DA TRADIO ORAL AFRICANA 09
2 DA FRICA PARA AS AMRICAS 24
3 OS PRIMRDIOS DA CULTURA AFRO NORTE AMERICANA 39
3.2 Os Spirituals e a msica Gospel 56
3.3 O Ragtime 60
4. NEW ORLEANS 63
5 - A TRADIO ORAL AFRICANA NO BLUES 74
CONSIDERAES FINAIS 79
BIBLIOGRAFIA 81
ANEXOS 83
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Lista de Figuras
Figura 1 - Mandingo Jalis, The Gambia, 1974 91
Figura 2 Vista do forte escravo em Ilha Bance 92
Figura 3 Anncio datado de 1779 do Jamaica Mercury 93
Figura 4 Am I not a Man and a Brother 94
Figura 5 Acar das ndias Ocidentais 95
Figura 6- Publicao sobre a Revolta de Nat Turner 96
Figura 7 - Novos cativos sendo amarrados 97
Figura 8 - Inspeo e venda de negro 98
Figura 9 - Leilo de escravos em Richmond, Virginia 99
Figura 10 - Anncio de venda de escravos 100
Figura 11 - Anncio sobre escravo foragido 101
Figura 12 - Soldados negros da 107th Infantaria da Unio 102
Figura 13 - Soldado montando guarda 103
Figura 14 - Refugiados negros saindo de Richmond 104
Figura 15 - Uma cena da guerra civil americana 105
Figura 16 - Assinatura da Bone dry. 106
Figura 17 - Apreenso de bebida alcolica 107
Figura 18 - Eliminao da bebida 108
Figura 19 Poema sobre John Henry 109
Figura 20 Mapa da localizao da lenda de John Henry 110
Figura 21 Delta do Mississipi 111
Figura 22 Billie Holliday 112
Figura 23 Ella Fitzgerald 113
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Figura 24 Mapa do Imprio Mali 117
Figura 25 Itinerrio de Sundjata Keita 118
Figura 26 Eric Clapton 119
Figura 27 Elmore James 120
Figura 28 The Doors 121
Figura 29 Willie Dixon 122
Figura 30 Muddy Waters 126
Figura 31 Bo Diddley 127
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INTRODUO
A histria do jazz j foi abordada e estudada atravs de
diversas formas, porm sempre tiveram como ponto de partida, um
cenrio obscuro quando eram citadas suas influncias culturais
africanas. Por outro lado, desenvolver um estudo historiogrfico
sobre gneros musicais, muitas vezes nos inclina apenas a
abordarmos biografias de msicos e fatos importantes de suas
pocas. Mesmo apresentando uma forte inclinao para tal, este
trabalho tem como foco abordar de uma forma mais profunda a
tradio oral africana e seus reflexos na cultura dos Estados Unidos e
no Brasil. Seria um grande equvoco acreditarmos que o jazz
representa integralmente uma msica de origem africana, mas sim
o resultado do intercmbio da tradio da cultura ocidental com a
cultura africana. A tradio cultural proveniente da Europa contribuiu
com a lngua inglesa, estilos musicais, escrita e tcnica musical, alm
de instrumentos musicais ainda no conhecidos pelos africanos e por
parte da tradio cultural africana, houve uma presena marcante da
dana, do ritmo mais intenso e principalmente da improvisao
associada a um estilo muito particular de se cantar.
Para muitos, o jazz um gnero musical extremamente tcnico
e complexo, onde s os apreciadores conseguem entende-lo por
completo, mas importante assegurar que este gnero musical
possui diversas ramificaes onde pode apresentar um perfil
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extremamente tcnico como, por exemplo, o bebop, ou ser
caracterizado pela oralidade do blues. Do sculo XVIII ao XX, os
gneros musicais que contriburam para a formao do jazz passaram
por diversas evolues, tanto por influncias de ordem social, quanto
cultural, conferindo assim, uma vasta gama de estilos e atendendo a
diversos pblicos. importante identificar como o jazz pde
contribuir para a ocidentalizao do afro-descendente e ao mesmo
tempo tambm contribuir para a sua aceitao na cultura ocidental.
Se pudssemos definir o jazz com uma palavra, ela seria
improvisao. E no h improviso sem sentimento, sendo assim
talvez esta seja a razo de sua constante reinveno atravs do
sculo XX. Com o passar dos anos, o jazz ultrapassou a fronteira
americana, recebendo influncias e influenciando gneros musicais
na Europa, sia e Amrica Latina.
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1 - O FUNDAMENTO DA TRADIO ORAL AFRICANA
Ao abordarmos os princpios fundamentais da oralidade africana
e seus reflexos nas manifestaes musicais nos Estados Unidos
importante ressaltarmos que na cultura africana, o emprego da
articulao da palavra como forma de expresso da lngua, detm um
alto grau de importncia. A oralidade pode expressar aspectos
msticos, ou apenas relatar fatos ocorridos durante um determinado
perodo histrico1. Para os povos do Ocidente africano, a fala humana
vista como o poder da criao. Na frica Ocidental, a fala
considerada a materializao das foras msticas interiores do
esprito. Devemos entender que de uma maneira geral, todas as
tradies africanas postulam uma viso mstica do mundo. Enquanto
na Europa, a palavra magia vista em um sentido negativo, na frica
vista como a manipulao das foras visando prover o equilbrio do
Universo.
Em Mali, acredita-se que Maa Ngala, figura divina considerada o
Deus criador, fez o homem designando-o como um guardio de tudo
aquilo que foi criado no Universo. Maa Ngala animou as foras
csmicas que dormiam estticas atravs da fala. Da mesma forma, a
fala humana pode animar e dotar de movimento aquilo que est
inerte. Para que a fala possa surtir efeito, a mesma dever ser
dotada de ritmo, sendo assim, fala considerada o grande agente
1 Segundo P. Diagne cita no livro Histria Geral da frica, cap. 10, pg. 247, que a tribo Fulbe afirma que a narrativa o lugar onde se encontra o passado: Hanki koy daarol awratee.
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ativo da magia africana devido ao fato da mesma ser dotada tanto de
poder para criar, quanto para destruir. A partir destas crenas,
poderamos identificar o quanto importante para os africanos o uso
da palavra associada ao ritmo, onde os mesmos acreditam que
segundo (HAMPAT B, 1972)
Nas canes rituais e nas frmulas encantatrias, a fala , portanto, a materializao da cadncia. E se considerada como tendo o poder de agir sobre espritos, porque sua harmonia cria movimentos, movimentos que geram foras, foras que agem sobre espritos que so por sua vez, as potncias da ao."
De acordo com (VANSINA, 1961), as civilizaes africanas,
tanto no Saara quanto ao sul do mesmo, eram em grande parte
civilizaes baseadas na palavra falada, mesmo na frica Ocidental
onde j existia a escrita, a partir do sculo XVI, poucas pessoas
sabiam escrever e o ato de se escrever ficava relegado a um plano
secundrio diante dos interesses da sociedade. Diante de tais fatores,
seria um grande erro considerarmos que a civilizao africana era
primitiva por priorizar a comunicao oral em detrimento da escrita.
Para que as tradies orais de uma civilizao sejam bem
compreendidas, faz-se necessrio observar a atitude da mesma em
relao ao discurso. Tal postura completamente diferente das
civilizaes que registram de forma escrita todas as mensagens
importantes. Por outro lado, uma sociedade oral faz o uso da palavra
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como uma forma de se preservar a sabedoria ancestral atravs do
testemunho verbal. Diante de tais argumentos, ainda de acordo com
(VANSINA,1961), a oralidade representa uma atitude diante da
realidade dos fatos vividos e no uma ausncia de habilidade para
reproduzir os acontecimentos ocorridos. De forma bem diferente de
textos escritos, no que se refere leitura e interpretao de um
registro, um registro oral deve ser executado, decorado, digerido e
muitas vezes exigem-se um retorno constante fonte para que o seu
verdadeiro significado seja literalmente compreendido. Muitos
estudiosos africanos como Amadou Hampt-B2 afirmam que ao se
estudar a tradio oral africana, deve-se aprender a trabalhar mais
lentamente para que sejam entendidos e assimilados elementos de
uma memria coletiva de uma sociedade que se explica a si mesma.
Existem diversas definies sobre a tradio oral, porm
dificilmente conseguem defini-la completamente, devido imensa
gama de elementos que a caracterize. Sendo assim, para
entendermos a tradio oral, precisamos identificar elementos como
o verbalismo e suas diferentes formas de transmisso. Muitas vezes a
tradio oral delimitada por rigorosas regras que tm por objetivo
padronizaes da verbalizao e seus meios de difuso. Porm,
existem tradies onde os seus difusores, tambm chamados de
griots, apresentam uma total liberdade de transmitir o conhecimento.
2 B, A.H. 1972. Aspects de la civilization africaine. Paris, Prsence Africaine .
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Os griots so considerados os menestris, ou trovadores que tm
como funo animar as recreaes populares, atravs da msica,
contos populares e poesia. Muitas vezes os griots percorrem um pas
divulgando a sua arte de forma solitria e itinerante ou
acompanhando alguma famlia importante fazendo parte de uma
grande comitiva. Os griots so classificados em trs categorias: griots
msicos; griots embaixadores; griots genealogistas, historiadores,
poetas ou os trs ao mesmo tempo.
Os griots msicos so compositores e instrumentistas que
podem tocar diversos instrumentos musicais como: monocrdio,
guitarra, cora, tant, kalimba entre outros. Normalmente so grandes
cantores que preservam e transmitem as tradies antigas. Os griots
embaixadores so responsveis pela mediao em casos de
disputas entre famlias. Esto sempre ligados a uma famlia nobre ou
real e algumas vezes esto ligados a apenas uma pessoa. Os griots
genealogistas, historiadores ou poetas (ou os trs ao mesmo tempo)
so grandes contadores de histria, alm de grandes viajantes dos
quais no esto necessariamente ligados a uma famlia.
Na lngua bambara3 , os griots tambm so chamados de dieli
que significa sangue. O termo sangue (dieli) denomina em um
sentido figurado, que a funo do griot disseminar a informao
3 Lngua falada na regio da antiga frica Ocidental francesa.
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dentro da sociedade, assim como o sangue percorre pelo corpo. Os
griots so dotados de grande liberdade no falar, devido a importncia
de sua funo na sociedade que lhes do direitos nicos, como por
exemplo, falar de forma imprudente a algum membro da nobreza ou
de alguma famlia importante. O griot no tem compromisso nenhum
em ser discreto, ou respeitar a verdade e inclusive pode at mentir,
sem que isso seja visto de forma negativa diante da sociedade. Uma
tradio pode ser permissiva diante das mentiras dos griots, ou
invenes dos dielis, inclusive a sociedade pode aceita-la estando
ciente de que a mesma no totalmente verossmil.
Como j foi dito anteriormente, uma das mais importantes
funes dos griots o papel de porta-voz dos nobres. Enquanto um
nobre no pode retroceder em suas palavras, muito menos faltar com
a verdade, os griots podem atuar como negociadores nas mais
diversas situaes como, por exemplo, assuntos matrimoniais,
disputas territoriais e at mesmo assuntos militares. Na cultura
africana, a designao mais importante para um griot quando o
mesmo tambm exerce a funo de tradicionalista-doma, ou seja,
Grande Conhecedor.
Quando o ttulo de tradicionalista-doma atribudo a um griot,
significa que o mesmo dotado de grande credibilidade e a fidelidade
de seus relatos nunca dever ser alterada. E por esta razo que ao
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ser transmitida uma tradio oral, costuma-se perguntar se a mesma
provm de dieli ou doma. Em outras palavras, poderamos entender
tal pergunta, como um questionamento sobre a credibilidade da
tradio a partir de sua fonte. Porm, ser um tradicionalista-doma
em uma frica colonizada, passou a ser um grande desafio, pois,
para o colonizador, as tradies sendo cultuadas por um povo,
impedem ou ento dificultam o seu domnio. Sendo assim, os
tradicionalistas passaram a ser perseguidos ou ento desacreditados
pelo poder colonial para que suas prprias idias pudessem
prevalecer ao invs da tradio original4.
Diante de tamanha importncia da funo comunicacional e da
manuteno das tradies culturais de sua sociedade, poderamos
afirmar que os griots atuaram como agentes ativos nas transaes
comerciais e na disseminao das informaes entre os pases
africanos. Independentemente das diversas verses que os griots
possam relatar sobre um mesmo fato histrico importante
ressaltarmos que a legitimidade da tradio narrada vlida a partir
da existncia de uma mesma seqncia de fatos ocorridos. Para uma
tradio oral, o testemunho ocular um elemento primordial para
conferir o mnimo possvel de distores.
4 B, A. H. apud Histria Geral da frica p. 188
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muito comum que o boato a partir de concluses
especulativas e pouco focadas em relao veracidade de fatos
ocorridos no passado, possa vir a ter valor como expresso popular e
at mesmo dar origem a uma nova tradio quando o mesmo for
repetido por vrias geraes. A oralidade apresenta uma grande
diversificao no que se refere escolha e transmisso das palavras,
onde as mesmas podem ser decoradas, em outros casos, podem ser
utilizadas livremente pelo artista que as dissemina. O contedo da
mensagem a ser transmitida em uma tradio oral africana pode ser
caracterizado por quatro formas bsicas que so: poema, frmula,
epopia e narrativa.
O termo poema utilizado por (VANSINA,1961), refere-se a
todo contedo decorado e dotado de uma estrutura especfica
incluindo canes. J o termo frmula, trata de uma formatao
esttica no muito rgida apesar de tambm ser decorada.
Identificamos a estrutura frmula em provrbios, charadas, oraes
e genealogias. importante observarmos que as tradies no
compreendem s a mensagem, mas tambm as palavras que servem
de veculo de difuso. A epopia representa uma forma de tradio
oral africana, onde o artista ou griot tem completa liberdade na
escolha das palavras dentro de um conjunto pr-estabelecido de
regras formais como rimas, padres tonais, nmero de slabas entre
outras formataes. A epopia devido liberdade de ao do
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artista, como j foi citada anteriormente, pode apresentar vrias
verses sobre um fato ocorrido no passado. Diante de tal contexto
cabvel ao historiador observar que provavelmente todas as verses
de uma epopia baseiam-se de um nico fato original.
E por ltimo, as narrativas, apresentam tambm uma ampla
liberdade de expresso por parte do artista, onde o mesmo pode
fazer uso de diversas combinaes, enfatizaes, remodelaes alm
de outros tipos de desenvolvimentos. Apesar de o artista poder se
expressar livremente nas narrativas, no ponto de vista social,
muitas vezes o mesmo poder estar condicionado a uma maior
fidelidade s fontes. Os africanos que foram para a Amrica, levaram
consigo aquilo que segundo H. Moniot5 chama de superfcie social,
ou seja, a identidade prpria que traz consigo elementos de um
passado inscrito nas representaes coletivas de tradies que o
explica e o justifica. Sem esta superfcie social, as tradies no
seriam mais transmitidas e por conseqncia, no haveria sentido da
mesma continuar a existir.
Para elucidarmos um pouco mais a respeito da tradio oral
africana importante observarmos o trabalho que o historiador
senegals Djibril Tamsir NIANE (1982) desenvolveu respeito do relato
que rene os notveis feitos que cercam a memria do imperador
5 Moniot, H. 1962. Pour une histoire de l`frique noire.
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Sundjata Keita, soberano do Mali, Senhor do Umbigo do Mundo,
Pai do Pas Luminoso, Heri dos cem reis vencidos e Senhor dos
mltiplos nomes(NIANE, 1982: 12/13). Do sculo XII D.C ao sculo
XV, o Imprio Mali, conforme afirma (Waldman 1998) foi uma das
grandes formaes estatais do passado permeado pelo curso dos
grandes rios Senegal e Niger, espalhando-se sobre a Savana, onde
cultivava um pujante comrcio que atravs de diversas rotas,
entendia-se do Golfo da Guin, do Sudo Oriental, do Magreb e do
Egito.
importante destacarmos que esta vasta poro territorial
ocupada pelo Imprio Mali, era composta por uma grande diversidade
de etnias e mesmo diante de tantas particularidades, tais diferenas
foram respeitadas sem comprometer a governabilidade.Conforme
afirma (Waldman 1998:3), o resgate da atuao de Sundjata e dos
fatos que cercam seu reinado (entre 1230 e 1255 d.C.), foi baseado
naquilo que o autor denominou de memria viva consignada na
atividade secular, ou mesmo milenar dos griots. Ainda (Waldman
1998) define os griots como interlocutores de uma cosmoviso
negro-africana que possui na oralidade a principal forma de garantir
conciso e beleza na narrativa, alm de tambm apresentar uma
viso muito particular do conceito Tempo e Espao.
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E esta forma de se manifestar, baseada em uma narrativa
carregada de simbolismos nos d uma grande compreenso daquilo
que (Leite 1992) denomina como frica Profunda. A definio do
termo frica Profunda apresentado por Leite, teria origem num
pensamento dominado por uma metodologia no diferencial, eivada
de preconceitos e fundamentada nos limites de suas proposies, no
atingindo o ncleo de outras realidades histricas (Leite 1992: 85).
A Epopia de Sundjata Keita narra o confronto de dois
soberanos altamente influentes e ao mesmo tempo significativos no
que se refere aos respectivos mundos que ambos representavam.
Sundjata Keita representa um personagem fortemente islamizado,
onde h muito tempo o isl j estava presente nas elites de toda a
regio do Sudo Ocidental6. E Suamoro Kant, o grande heri da
savana e rei do Sosso7, representa a tradio africana carregada de
rituais, crenas e valores baseados no misticismo. interessante
ressaltarmos que Sudjata Keita, apesar de ser seguidor do isl, no
6 O termo Sudo, procede de um topnimo de origem rabe: o Bilades-Sudan, isto , o Pas dos Negros (PAULME, 1977: 37). Esta expresso foi incorporada pela Geografia Colonial Europia, dizendo respeito, como para seus proponentes originais, aos pases localizados entre o Mar Vermelho, a Oeste, e o Atlntico, a Leste, acompanhando a faixa de Savanas e de Estepes que se sucedem latitudinalmente aps o Deserto do Saara. Nesta linha de compreenso, passou-se a falar em Sudo Oriental ou Sudo Anglo-Egpcio (a atual Repblica do Sudo) e em Sudo Ocidental, que predominantemente dominado pela Frana, foi tambm nomeado como Sudo Francs. 7 Sosso, grupo tnico existente na regio da Guin.
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abandonou totalmente suas tradies seculares da prtica do
misticismo.
Essa era uma prtica muito comum na frica sub-saariana onde
os indivduos islamizados normalmente viviam em uma dualidade de
crenas e tradies, onde mesmo os seguidores do isl mais
fervorosos, normalmente no abandonavam por completo as
tradies msticas de seu povo. Sendo assim, o confronto de
Sundjata Keita e Suamoro Kant no foi de ordem religiosa, mas sim
de ordem poltica, pois o islamismo era visto como um cone de
modernidade que poderia vir a corromper as tradies seculares de
todas as etnias regionais8. Em outras palavras, ambos eram
tradicionalistas, mas apenas Sundjata apresentou uma postura
menos ortodoxa procurando incentivar a pluralidade tanto em termos
religiosos, quanto em termos sociais.
O confronto entre Suamoro e Sundjata apresenta outras
peculiaridades. De acordo com (Waldman 1998, 22:23), Suamoro
tambm era conhecido como o Rei Feiticeiro e Ferreiro, pois o mesmo
governava um cl do povo manden especializado em metalurgia do
ferro e completamente obstinado a banir os islmicos da regio. O
fato de serem hbeis nas artes da metalurgia, naturalmente os
8 Bantus e Sudaneses constituem dois dos principais grupos negroafricanos, cada um deles reunindo centenas de etnias. (WALDMAN 1998:43)
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propeliam para as aes militares. Na Epopia, Suamoro foi visto
como um rei saqueador combatendo os islmicos impedindo suas
transaes comerciais, especificamente o trfico de escravos, que
antes mesmo da colonizao europia j era uma prtica nos
mercados do Mediterrneo, alm de outras regies islamizadas. Outro
fator importante foi o seqestro da meia irm de Sundjata e de seu
griot Balla Fassk.
A Epopia dividida em trs partes, a profecia, o exlio e o
retorno do rei. A profecia citada na Epopia referente Nar Fa
Maghan, rei de um pequeno reino em Mali no ano de 1200 D.C. O rei
Magnan era descendente de uma longa linhagem de grandes
caadores, conhecido por sua bravura e tambm pela habilidade de
se comunicar com os djinns, espritos que exercem influncia sobre
os vivos. Nessa poca, os governantes Mandinkas eram seguidores
do islamismo, porm ainda mantinham suas crenas nos espritos.
Certo dia, um caador vindo do norte veio at Maghan e fez uma
profecia. A profecia dizia que dois caadores iriam at o rei com uma
mulher muito feia, mas apesar de sua aparncia o rei deveria casar-
se com ela, pois dessa unio surgiria o maior soberano de todos os
tempos. Tempos depois, dois caadores chegam diante do rei,
acompanhados de uma mulher feia e corcunda chamada Sogolon
Kedju. Era conhecida como a mulher bfalo que dotada de poderes
mgicos assolou a terra de Do matando caadores e cidados
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igualmente. Os caadores contaram ao rei que tambm fizeram o uso
de poderes mgicos para capturarem Sogolon Kedju e, por
conseguinte a ofereceram para o soberano.
Ciente da profecia, o rei logo se casou com Sogolon e dessa
unio tiveram um filho, Mari Diata. Sendo filho de Sogolon, Mari
Diata passou a ser chamado de Sogolon Diata, e eventualmente de
Sundjata. A Epopia narra uma srie de intrigas que constantemente
ameaam a subida de Sundjata ao trono de Mali logo aps a morte
de seu pai. Diante da crescente ameaa a sua vida e de seu filho,
Sogolon Kedju exilou-se para poder criar seu filho Sundjata livre de
possveis atentados por parte daqueles que cobiavam o trono de
Magnan. Aps anos de exlio, o trono de Mali estava nas mos do
poderoso rei feiticeiro Suamoro Kant que associando magia e um
poderoso exrcito, consegue exercer poder sobre os diversos
soberanos e etnias adjacentes ao reino que antes pertencera ao rei
Magnan, pai de Sundjata.
Surge na trama a presena de um griot, Balla Fassk que
dotado de poderes mgicos e consegue atravs de seu instrumento
musical, o balafon dominar os animais peonhentos, alm de utilizar
a prpria msica para controlar o inimigo de seu rei, no caso,
Suamoro Kant.
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A Epopia narra vrios confrontos entre Suamoro, o rei
usurpador e Sundjata, o legtimo soberano na linha de sucesso do
trono de Mali. Finalmente a Epopia chega ao fim aps uma srie de
embates onde a utilizao da magia foi a chave para a vitria de
Sunjata sobre Suamoro. Sudjata Keita tornou-se um lder respeitado,
morrendo em 1255, deixando um imprio que durou mais de dois
sculos. O papel dos griots, tanto na prpria trama da epopia,
quanto na difuso da mesma durante os sculos, permeia uma ntida
valorizao da imagem de Sunjata Keita em detrimento a Suamoro
Kant. Esta generosidade com a imagem de Sundjata est
diretamente ligada ao imaginrio popular, onde inclusive os griots
atribuem ao poderoso e legtimo Imperador de Mali, a inveno dos
principais instrumentos musicais utilizados por eles, balafon e o dan.
De um modo geral, o pensamento africano bem distinto no
que se refere relao espao, tempo e fora vital. Em outras
palavras, o tempo um eixo dinmico no qual o ciclo da vida entre
outros ciclos, permeia atravs de uma sucesso de eventos.
... Este sentimento estava traduzido no pensamento africano como uma permanente reconstruo do mundo pela constante renovao do equilbrio entre as foras vitais. Nas culturas africanas, o passado era honrado por sugerir aos homens do presente seus compromissos como devedores das geraes ancestrais. Graas ao passado, existiam as linhagens e se prognosticava a proteo para as geraes seguintes, ligando o homem do presente aos antepassados mais remotos e ao prprio Pr-existente. (WALDMAN 1998: 19).
-
23
E tambm (SERRANO 1983), afirma que o pensamento africano
observa o tempo de forma mtica e estreitamente ligado a um espao
especfico numa relao de espao-tempo na qual as foras sociais se
confrontam e se revitalizam constantemente. A relao espao-tempo
na tica africana envolve um dinamismo baseado na dinmica de
ordem espiritual e material, onde ambos esto intimamente ligados
s foras vitais. Amadou HAMPAT-B demonstra como o mtico e a
relao espao-tempo se manifestam no contexto africano:
Tomemos o exemplo de Thianaba, a serpente mtica peul, cuja lenda narra as aventuras e a migrao pela savana africana, a partir do Atlntico. Por volta de 1921, o engenheiro Belime, encarregado de construir a barragem de Sansanding, teve a curiosidade de seguir passo a passo as indicaes geogrficas da lenda, que ele havia aprendido com Hammadi Djenngoudo, grande Conhecedor peul. Para sua surpresa, descobriu o antigo leito do Nger (1993: 216).
Na tica da tradio oral africana, o mundo no visto como
um cenrio onde os acontecimentos apenas ocorrem, mas sim como
um todo onde tudo est interligado. Nada supera a fora da oralidade
africana, onde a escrita, considerada um fator externo pessoa, e
por esta razo, impacta negativamente os processos de
comunicao (LEITE,1992: 87).
-
24
2- DA FRICA PARA AS AMRICAS
Em meados do sculo XV, a frica9 estabeleceu uma relao
nica com a Europa que levou devastao e a despovoamento do
continente, mas por outro lado contribuiu para a prosperidade e o
desenvolvimento da Europa. Do sculo XVI at o final do sculo XIX,
os europeus comearam a estabelecer um comrcio de cativos
africanos. No incio este trfico s complementou um comrcio de
seres humanos que j existia dentro da Europa, no qual os europeus
tinham escravizado um a outro. Alguns Africanos escravizados
tambm foram enviados para a Europa, o Oriente Mdio e outras
partes do mundo antes de meados do sculo XV. Esta prtica era
comum e o comrcio de seres humanos existia h muito tempo na
frica.
Estima-se que no incio do sculo XVI, aproximadamente 10
por cento da populao de Lisboa fosse de origem africana. Muitos
desses cativos africanos cruzaram o Saara e chegaram a Europa e
outros destinos da frica Norte, ou foram transportados atravs do
Oceano ndico. O comrcio escravo transatlntico comeou durante o
sculo XV quando Portugal, e posteriormente outras monarquias
europias, foi finalmente capaz de expandir-se para o ultramar e
conseguir chegar frica. O portugus primeiro comeou a raptar a
gente da costa do Oeste da frica e os levavam Europa como
9 Acessado em 23/03/2007
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25
escravos. Depois da descoberta europia do continente americano, a
exigncia do trabalho africano gradualmente cresceu como outras
fontes do trabalho tanto a mo-de-obra o europeu como o do
americano - foram vistas como insuficientes.
A Espanha capturou os primeiros africanos e os levou para as
Amricas e Europa no incio de 1503 e a partir de 1518 os primeiros
cativos passaram a ser enviados diretamente da frica para a
Amrica. A maior parte da dos africanos cativos era proveniente da
Costa Oeste da frica, aproximadamente uns 5000 Km entre o que
hoje chamamos de Senegal e Angola. E tambm a maior parte de
Benin, Nigria e Camares.
Os historiadores ainda discutem exatamente quantos Africanos
foram forosamente transportados atravs do Atlntico durante
quatro sculos. Estima-se que seja por volta de 11 milhes de
pessoas. Dos 11 milhes de indivduos, menos de 9.6 milhes
sobreviveram assim chamada de meia passagem atravs do
Atlntico, devido s inumanas condies nas quais eles foram
transportados, e a supresso violenta de qualquer resistncia de
bordo. Muitas das pessoas que foram escravizadas no interior
africano acabaram morrendo na longa viagem costa. Estima-se que
o nmero total de Africanos capturados na costa Leste do continente
e escravizados no mundo rabe esteja entre 9.4 milhes e 14
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26
milhes. Essas referncias so imprecisas devido ausncia de
registros escritos.
A retirada forada de at 25 milhes de pessoas do continente
obviamente teve um efeito principal no crescimento da populacional
da frica. Sendo assim, podemos supor que no perodo de 1500 a
1900, a populao da frica tenha se estagnado ou diminudo. Os
seres humanos, alm de muitos recursos minerais e naturais que
foram tomados da frica, contriburam para o desenvolvimento
capitalista e a prosperidade da Europa. A frica foi o nico continente
a ser afetado de forma to drstica e esta perda da populao
demogrfica e potencial foi um fator principal que levou ao seu
posterior subdesenvolvimento econmico. A relao de desigualdade
que foi gradualmente criada como conseqncia da escravizao de
Africanos foi justificada pela ideologia do racismo - a noo que os
Africanos foram naturalmente inferiores a europeus. Esta ideologia,
que tambm foi perpetuada pelo colonialismo, um dos legados mais
significantes deste perodo da histria.
O desenvolvimento econmico e social de frica antes 1500
esteve indiscutivelmente frente da Europa na mesma poca. Isso
por que houve grandes imprios na frica do Oeste, o Ghana, o Mal
e Songhay que forneceram os meios de alavancagem econmica da
Europa antes dos sculos XIII e XIV e inevitavelmente despertando o
interesse de europeus na frica ocidental. O imprio africano do
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27
oeste do Mal foi maior que a Europa Ocidental e se empenhou para
ser um dos Estados mais ricos e poderosos no mundo. Para
fundamentar essa afirmao (ADI, 2007) explica que quando o
imperador do Mal, Mansa Musa visitou o Cairo em 1324, trazia
consigo tanto ouro, que o seu preo caiu dramaticamente e no
recuperou o seu valor at 12 anos depois. O imprio de Songhay era
conhecido, entre outras coisas, por sua universidade de Sankore
baseado em Timbuktu.
Os historiadores discutiram por muito tempo como e por que as
monarquias africanas e os comerciantes estabeleceram um comrcio
que foi to desvantajoso para frica e os seus habitantes? Alguns
argumentaram que a escravido foi endmica na frica e que, por
isso, a demanda da Europa rapidamente levou ao desenvolvimento
de um comrcio organizado. Essa demanda por mo-de-obra escrava
por parte da Europa passou a ser to crescente, que rapidamente a
busca por escravos em solo africano comeou a ser feita ou por
intermdio de grandes caadas, ou at mesmo atravs de guerras
incentivadas para finalidade de aquisio de prisioneiros.
Os africanos poderiam ser escravizados como punio por um
crime, como pagamento de uma dvida de famlia, ou o mais
comumente de todos, sendo capturado como os presos da guerra.
Com a presena de barcos europeus e americanos, mercadorias para
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28
serem comercializadas em troca da gente, os africanos tiveram um
estmulo majorado para escravizar um a outro, muitas vezes at
mesmo exercendo a prtica de rapto. No h dvidas de que os
europeus no se arriscaram no interior do solo africano na busca dos
milhes de cativos que foram transportados da frica. Nas reas
onde a escravido no foi praticada, como na regio do povo Xhosa
da frica do Sul, os capites europeus foram incapazes de comprar
escravos.
No lado africano, o comrcio escravo foi geralmente o negcio
de soberanos ou comerciantes ricos e poderosos, preocupados com
os seus prprios interesses egostas ou estreitos, e no aqueles do
continente. Ento, no houve nenhum conceito de ser africano. A
identidade e a lealdade foram baseadas em parentesco ou scio de
uma monarquia especfica ou sociedade, e no ao continente
africano. Os africanos ricos e poderosos foram capazes de exigir
vrios artigos de consumo e em alguns lugares at ouro de
prisioneiros, que podem ter sido adquiridos pela guerra ou por outros
meios, inicialmente sem perturbao macia a sociedades africanas.
Contudo, em meados do sculo XVII, a demanda europia por
cativos, em particular das plantaes de acar nas Amricas, ficou
to grande que eles s puderam ser adquiridos por intermdio de
invaso, ou e guerra.
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29
No h dvidas de que algumas sociedades se alimentaram de
outros para obter prisioneiros em troca de armas do fogo europias,
na crena que se eles no adquirissem armas de fogo se proteger,
eles seriam atacados e capturados por seus rivais e inimigos que
realmente possuram tais armas. Contudo, alguns soberanos
africanos realmente tentaram resistir devastao da demanda
europia por escravos. Em 1526, o Rei Afonso de Kongo, que
anteriormente gozava de boas relaes com o trono portugus,
queixou-se ao rei de Portugal que os comerciantes escravos
portugueses raptavam os seus sditos, despovoando a sua
monarquia.
Em 1630, a Rainha Njingha Mbandi de Ndongo (na Angola
moderna) tentou expulsar os portugueses do seu reino, mas foi
finalmente persuadida a negociar com eles. J em 1720, o Rei Agaja
Trudo de Daom no s se ops ao comrcio escravista, como
chegou a atacar os fortes que os poderosos europeus tinham
construdo na costa. Mas a sua necessidade por armas do fogo
forou-o a chegar a um acordo com os comerciantes europeus.
Outros lderes africanos como Donna Beatriz Kimpa Vita em Kongo e
Abd al-Qadir, no que agora o Senegal do norte, tambm exerceram
uma grande resistncia contra a exportao forada de africanos.
Muitos outros, especialmente aqueles que foram ameaados com a
escravizao, bem como aqueles que foram mantidos como
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30
prisioneiros na costa, rebelaram-se contra a escravizao e esta
resistncia estendeu durante a meia passagem.
Estima-se agora que houve rebelies em pelo menos 20 por
cento de todos os barcos escravos que cruzaram o Atlntico. O
comrcio transatlntico de escravos realizou a maior migrao
forada de uma populao humana na histria. Milhes de africanos
foram transportados para o Caribe, Amrica do Norte e Amrica do
Sul, bem como para Europa alm de outros lugares. Embora a
escravido fosse efetivamente ilegal em Inglaterra desde 1772 e na
Esccia desde 1778, as campanhas para aboli-la tanto o comrcio
como a sua prtica continuaram desde ento. As mulheres
participaram de campanhas abolicionistas iniciando suas
manifestaes nos cenrios domsticos e sociais, culminando at nas
instncias polticas. Aos poucos esse movimento passou a conquistar
membros da aristocracia britnica como a Duquesa de Devonshire,
evanglicos e intelectuais.
O movimento abolicionista ingls teve uma grande participao
das mulheres por entenderem que o tratamento desumano e
preconceituoso direcionado ao escravo era semelhante ao direcionado
s mulheres por ocuparem um papel de submisso em relao aos
homens. Esse tipo de discurso estendeu at o incio do sculo XX
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31
quando as mulheres passaram a reivindicar melhores condies de
trabalho, sufrgio universal e igualdade social.
As aes abolicionistas em geral eram pacficas culminando em
boicotes de produtos fabricados com mo-de-obra escrava10, como
por exemplo, o acar, onde houve uma mobilizao na qual
trezentas mil pessoas se recusaram a comprar tal produto. Estas
manifestaes normalmente eram praticadas por elementos da classe
mdia e os seus reflexos logo influenciaram as estratgias comerciais
do mercado, como por exemplo, as embalagens de produtos
manufaturados de origem estrangeira apresentavam dizeres em seus
rtulos que negavam a utilizao de mo-de-obra escrava em sua
produo.
A Amrica Norte colonial figurou no Comrcio Escravo
Transatlntico tardiamente neste captulo da histria. Diferentemente
do ingls, holands e francs, a Amrica Norte nunca se destacou no
que se refere ao mercado de cativos africanos, atingindo um quinto
do volume de negcios realizados na poca. Contudo, a escravido
profundamente formou o desenvolvimento demogrfico, social,
econmico e tnico dos EUA. Por volta de 1730 os norte-americanos
comearam a importar significativamente e escravizar africanos
estima-se que em solo norte-americano tenha sido trazido cerca de
10 Anexo figura 5
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32
aproximadamente seis por cento dos africanos trazidos da frica para
as Amricas.
A maioria dos africanos que foi trazida para a Amrica Norte,
veio do Oeste da frica (especialmente final do sculo XVII). Existiam
postos comerciais estabelecidos pelos ingleses ou de origem africana
situadas em Gmbia e ao longo da costa da Guin, onde trocavam
cativos por tecidos, artigos metlicos, contas, armas entre outras
mercadorias. Quando os Estados Unidos era colnia Inglesa, os
postos comerciais ingleses na frica eram freqentados por
americanos. Aps sua Independncia, os americanos no chegaram a
estabelecer seus prprios postos comerciais em solo africano,
comercializando basicamente rum com os postos ingleses de
comrcio. O estado americano de Rhode Island era o ponto de
partida para as aes comerciais na frica, perfazendo quase mil
viagens e transportando mais de cem mil africanos para as Amricas.
Nos Estados Unidos, no final do sculo XVIII, enquanto na
regio norte, existia um crescente desenvolvimento industrial, alm
de pequenas propriedades agrcolas, a regio sul era caracterizada
pelos grandes latifndios dos quais, a mo-de-obra escrava de
origem africana era a base de sua economia11. O total de escravos
trazidos para o continente americano totalizou aproximadamente
11 Anexo figura 4
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33
doze milhes de indivduos, onde um milho e meio sucumbiu
durante as viagens. Somente na Amrica do Norte, de 1618 at
1786, foram introduzidos como escravos 4,3 milhes de africanos.
Dos estados americanos, os do Sul12 eram os que tinham o
maior nmero de escravos, onde antes de 1780, Virgnia, Carolina do
Norte, Carolina do Sul e Maryland concentravam 85% da mo-de-
obra escrava em solo americano. Porm, em 1776 o Congresso
Americano proibiu a importao de cativos para qualquer uma das
Treze Colnias. Essa ao do Congresso desencadeou uma grande
movimentao interna da mo-de-obra escrava. Como j foi dito
anteriormente, havia muitas vezes insurreies durante o trajeto dos
navios negreiros para as Amricas, mas tambm houve uma grande
revolta em solo americano, a revolta de Nat Turner. A revolta de Nat
Turner13 foi a mais famosa das revoltas nos estados do Sul de
Amrica do Norte. Ocorreu em Southampton, Virginia no dia 22 de
Agosto de 1831.
Nat Turner nasceu em 1800 de pais escravizados na plantao
de Benjamin Turner. Aprendeu sozinho a ler e escrever e foi
estimulado por seu mestre a ler a Bblia, onde a partir de ento se
12 13 Anexo figura 6
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34
viu predestinado a libertar o seu povo. Seu pai escapou para o norte
e Benjamin Turner, seu proprietrio morreu em 1810 e Nat e sua
me passaram a pertencer a Samuel Turner - o filho de Benjamin
Turner. Nat foi posto para trabalhar nos campos pela primeira vez e a
sua liberdade em todos os sentidos lhe foi roubada. Um nmero de
exemplos e os acontecimentos na vida de Nat moveram-no em
direo insurreio sangrenta que ele conduziria finalmente em
1831. Nat tinha sido considerado um profeta por outros africanos
escravizados.
Isso porque ele descreveu eventos que tinham acontecido antes
de seu nascimento. Ele tambm teve um nmero de vises onde os
espritos brancos e os espritos pretos se enfrentavam em batalha
onde viu o muito sangue pairar sobre os campos. Estas vises
fizeram de Nat Turner um pregador Batista, onde passou a divulgar
para as congregaes escravas sobre o dia em Deus levantaria os
escravos acima de seus mestres e eles seriam libertos da escravido.
Apesar das suas crenas profundamente religiosas, em 1827 as
igrejas locais recusaram-no a permisso de batizar um e a sua
desiluso cresceu. Em 1831 ele foi vendido a Joseph Travis e foi sob
este novo mestre insurreio realizou-se. Ele esperou por um sinal do
Deus acreditando que um eclipse do sol era um sinal divino. Na
Segunda-feira, 22 de Agosto, a revolta de Turner comeou na casa
de Joseph Travis, com somente seis seguidores.
-
35
Ento os insurgentes foram de casa em casa, matando homens
brancos, atraindo mais seguidores e armas elevando o grupo para
aproximadamente 60 homens a cavalo armados com machados,
espadas, armas de fogo entre outros instrumentos blicos. Eles
mataram aproximadamente 55 homens, mulheres e crianas. As
notcias da insurreio estendem-se rapidamente e logo apareceram
grupos armados de brancos chegaram para suprimir a rebelio,
resultando na morte ou a disperso de muitos de homens de Turner.
Finalmente Turner foi capturado no dia 30 de Outubro, sendo
julgado, declarado culpado e enforcado no dia 11 de Novembro de
1831. Esta insurreio levou o estado de Virginia a um debate srio a
respeito do trmino da escravido nos estados mais ao Sul do pas,
porm acabaram instituindo leis severas para policiar as suas
populaes escravas e prevenir revoltas.
Outro episdio importante na histria dos afro-descendentes
nos Estados Unidos foi a Guerra Civil americana. A Guerra Civil
americana comeou depois de dcadas da discordncia entre estados
do Norte e estados do Sul. Houve muitos fatores econmicos,
polticos e sociais que levaram a isto, mas a escravido esteve muito
presente em cada um desses fatores. No sculo XIX durante a dcada
de 30, os sulistas acreditavam que a escravido era necessria tendo
entre outros argumentos, a referncia sobre os povos da antiguidade,
como os gregos e romanos que atingiram o mximo de
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36
desenvolvimento econmico, social e tecnolgico fazendo o uso de
mo-de-obra escrava. Isso fez com que escravido se desenvolvesse
nos estados do Sul do pas.
J na dcada seguinte, no mesmo sculo, o debate nacional
sobre a escravido dividiu o pas, com os estados do Sul que
acreditavam ser o seu direito em utilizar a mo-de-obra escrava nos
territrios ocidentais e os nortistas que opuseram a expanso da
escravido uns por motivos morais e outros por razes econmicas.
A questo de escravido causou divises severas nos partidos
polticos. Em 1860 o Partido Republicano elegeu Abraham Lincoln
como o Presidente dos Estados Unidos. Isto despertou a ira dos
estados do Sul, muitos sulistas acreditam que no houvesse mais
lugar para eles na Unio, composta de 34 estados ento. A Carolina
do sul foi o primeiro estado a separar-se da Unio, seguida por seis
outros (Mississipi, a Flrida, a Alabama, a Gergia, a Luisiana e o
Texas). Esses sete estados formaram os estados Confederados de
Amrica e elegeu Jefferson Davis como Presidente.
Em 1861 se uniram a mais quatro estados (Virginia, o
Arkansas, a Carolina Norte e Tennessee). Lincoln declarou que a sua
inteno foi proteger a Unio e nos primeiros dias ele no interferiu
no tema da escravido. Inclusive ele at ordenou que os seus
generais devolvessem qualquer escravo fugitivo alm das linhas de
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37
Unio. Mas a sua postura no satisfez a Confederao, onde no dia
12 de Abril eles atacaram o Forte que Sumter, uma base militar
federal em Charleston, a Carolina do Sul e a Guerra Civil iniciou-se.
Com decorrer da Guerra, Lincoln enfrentou uma srie de
crticas por parte dos abolicionistas que desejavam que este
confronto terminasse com a escravido. Lincoln no estava
convencido de que negros e brancos pudessem viver em unio, mas
ele sentiu que a emancipao pudesse ser o nico modo de acalmar
os seus crticos internacionais e conservar a unio do pas. Em
primeiro de Janeiro de 1863, Lincoln emitiu a Proclamao de
Emancipao que concedeu a liberdade a todo o escravo em rebelio,
exceto os ocupados por tropas de Unio. Finalmente a Dcima
Terceira Emenda Constituio foi aprovada em Janeiro de 1865,
abolindo a escravido em todas as partes dos Estados Unidos. A
Guerra Civil terminou no dia 18 de Abril de 1865 quando o exrcito
Confederado se rendeu s foras de Unio. A Guerra Civil, tambm
conhecida como a Guerra entre os estados, a Guerra da Rebelio, a
Guerra de Separao e a Guerra de Independncia do Sul, foi uma
luta longa e dolorosa.
Centenas de milhares de pessoas morreram ou foram
prejudicadas, alm de muitas propriedades e reas naturais
devastadas. O perodo que se seguiu passou a conhecido como
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38
Reconstruo. Esta reedificao envolvida da unio despedaada e
criao de uma nova ordem social. Outro ponto importante referente
escravido nos Estados Unidos foi a Underground Railroad14 que era
um sistema onde abolicionistas e simpatizantes auxiliavam os
escravos a escaparem das fazendas onde eram cativos. Faziam uma
longa e penosa fuga dos estados do Sul para liberdade no norte dos
EUA ou o Canad.
Contudo, apesar das histrias de esconderijos secretos,
resgates ousados, no houve realmente um sistema nacionalmente
organizado, na verdade os escravos planejavam e conduziam suas
prprias fugas com uma ajuda relativamente pequena. A lenda da
undergroud railroad foi em parte baseada no fato de alguns
abolicionistas se dedicarem no auxlio de escravos fugitivos. Por
exemplo, houve Comits de Vigilncia formados em algumas
comunidades do norte que forneceram comida, alojamento
temporrio, direes rotas de viagem e s vezes transporte a
escravos que passavam por suas comunidades. Porm, o auxlio que
a underground railroad beneficiou muito poucos escravos.
14 http://www.antislavery.org/breakingthesilence/slave_routes/slave_routes_unitedstates.shtml Acessado em 20/07/2007
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3 OS PRIMRDIOS DA CULTURA AFRO NORTE AMERICANA
Segundo (Aguiar, 2002), a forma mais importante da expresso
da msica Afro-americana so as manifestaes religiosas,
conhecidas hoje como msica gospel, onde a mesma dotada de
uma grande carga emocional e rtmica. A msica negra na Amrica
manteve muitas caractersticas da cultura africana, onde a tradio
da coletividade, ritmos enfatizados e grande improvisao na
execuo musical, confirmam tal afirmao. Mesmo havendo a
proibio de manifestaes musicais entre os escravos por parte da
populao branca escravista, a tradio africana passou assimilar
elementos da cultura ocidental adicionando aos mesmos, ritmo,
emoo e a liberdade no uso das palavras.
Os africanos seqestrados trouxeram consigo para o continente
americano, plantas medicinais, poucos pertences pessoais alm de
toda uma carga cultural intuitiva. Por sua vez, colonos americanos
proibiam os seus escravos de fazerem uso de tambores e outros
instrumentos musicais. Tal postura era devido ao receio de que a
aproximao do escravo a sua origem cultural, pudesse despertar
revoltas e eventuais sublevaes. O nvel das proibies era
tamanho, que at mesmo o uso de dialetos e lnguas nativas, era
passvel de pesadas punies por parte dos colonos. Esta postura
tinha como principal objetivo, desfazer a unidade corporativa dos
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40
grupos ticos entre os escravos, sendo assim, poderia ser exercido
um maior controle sobre os mesmos, pois, sem identidade, no
poderia haver coeso entre os cativos. Ao mesmo tempo,
(HOBSBAWN,1990) afirma que o fator crucial para o desenvolvimento
do jazz, bem como toda msica popular americana, foi condio
dos elementos culturais provenientes das classes superiores no
terem sido to influentes do que os da classe trabalhadora. Ainda
(HOBSBAWN 1990) cita que a cultura musical da classe trabalhadora
inglesa do sculo XIX era baseada em uma msica folclrica pr-
industrial decadente, onde tal decadncia deu-se a partir de 1840.
Mesmo com todas as restries culturais, os escravos enquanto
trabalhavam nas plantaes, ou na construo das estradas de ferro,
criavam e cantavam canes dotadas de ritmo, sem o
acompanhamento de instrumentos musicais e dotadas de melodias
improvisadas. Estas canes passaram a ser chamadas de work
songs ou canes de trabalho, ou tambm chamadas de field hollers.
Geralmente uma pessoa iniciava o canto e as demais respondiam,
repetiam ou improvisavam. Conforme afirma (HOBSBAWN,1990), a
msica folclrica de origem negra passou por um rpido processo de
evoluo, onde a lngua inglesa forneceu as palavras para o discurso
negro e para as canes e a partir das mesmas, foi criada uma
linguagem jazzstica.
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41
Como j foram anteriormente citadas, as origens do jazz so
um tanto imprecisas em termos cronolgicos e at mesmo
controversos quando se refere s origens africanas. Por exemplo,
(HOBSBAWN,1990) afirma que no se pode considerar o jazz uma
msica totalmente africana, pois apesar se suas peculiaridades
rtmicas e intuitivas este gnero musical desperta muito mais o
interesse dos ingleses do que dos povos da frica Ocidental, regio
de origem dos escravos da Amrica do Norte. Basicamente, o jazz foi
desenvolvido a partir de quatro pilares: o blues, os spirituals , gospel
e o ragtime.
3.1 O Blues
O Blues que teve como origem as worksongs e as field hollers ,
onde segundo (ESSEN ,1975), trata-se do resultado de uma
interao do arsenal meldico e declamatrio africano com as
harmonias europias mais simples. O Blues manifestava-se atravs
de cantos calcados em lamentos, dotados de grandes pores de
melancolia, alm de relatar os acontecimentos do dia a dia.
Conforme afirma (HOBSBAWN, 1990:105),o blues no um
estilo ou uma fase do jazz, mas sim um substrato permanente de
todos os estilos; no todo o jazz, mas o seu ncleo. Em outras
palavras, o blues o elo de ligao entre tcnicas instrumentais do
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42
jazz e suas origens basicamente populares. O Blues um estado de
esprito, no necessariamente tristeza, embora na maioria das vezes
se apresente dessa forma. Tambm poderamos ver o blues como:
Em sua forma original uma forma de essencialmente,uma msica antifnica, na longa tradio africana de canto e resposta. Na verdade, o blues um dueto entre a voz e o instrumento.
(HOBSBAWN, 1990)
Os ancestrais do Blues so de imediato, as msicas para a
dana das quais, os escravos tocavam em suas reunies de sbado
noite, as worksongs, por meio das quais eles organizavam seus
trabalhos e as field hollers, que tinham como finalidade a
comunicao durante o trabalho. De acordo com (HOBSBAWN, 1990)
citando Wilder Hobson15, os primrdios do blues podem ter surgido
antes mesmo da Guerra Civil americana.
Com a emancipao dos negros, aps a Guerra Civil americana,
o blues passou por uma rpida evoluo, deixando de ter um aspecto
coletivo dos tempos da escravido, passando a ser divulgado por
artistas menestris itinerantes divulgando a sua arte, talvez de forma
semelhante aos griots. A partir de uma forma derivada dos field
hollers, onde o canto iniciado por um integrante de um grupo
respondido por um coro dos demais, para o bluesman, tal
performance passou a ser feita de forma solitria, onde a resposta 15 ...essa forma pode ter, originalmente, consistindo meramente no canto, apoiado por um ritmo de percusso constante, de estrofes de tamanho varivel, sendo o tamanho determinado pela frase que o cantor tinha em mente, com pausas igualmente variveis (com a continuao do ritmo do acompanhamento) determinadas pelo tempo necessrio ao cantor para pensar em uma nova frase.
-
43
para o seu canto vinha por intermdio de um instrumento de corda
que o acompanhava.
Na lngua inglesa palavra blue16 geralmente associada
tristeza desde o sculo XVI. De acordo com (CHARTERS, 1962), o
termo blues para designar este gnero musical s foi atribudo no
incio do sculo XX. De um modo geral aps a escravido, o blues
sofreu no s uma mudana morfolgica, como tambm uma
mudana social. Devido ao trabalho assalariado para os ex-escravos,
possibilitou um aumento da populao economicamente ativa nos
estados do sul, isso fez com que o houvesse um aumento no fluxo de
dinheiro na regio e, por conseguinte, a expanso do setor de
entretenimento, porm, restrito a pequenos bares e casas de dana.
De acordo com (Hobsbawn 1990), partir da primeira dcada do
sculo XX, houve uma grande migrao de negros para os grandes
centros urbanos como, por exemplo, Chicago, Harlen entre outros.
Essa migrao, consecutivamente possibilitou um grande aumento da
populao das cidades-destino alterando o perfil do mercado. E em
termos de entretenimento o jazz tambm acompanhou essa
migrao.
Apesar da tradio do blues ser puramente masculina, os
primeiros registros fonogrficos deste gnero, foram feitos por
mulheres, Mamie Smith17 e Bessie Smith. Nascida em 15 de abril de
16 Segundo Robert M. Baker em http://www.thebluehighway.com/history.html 17 Mamie Smith gravou o primeiro registro vocal do blues, 'Crazy Blues' em 1920.
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44
1894, em Chattanooga, Tenessee, Bessie Smith teve dez irmos.
Quando tinha a idade de oito anos, Bessie Smith perdeu seus pais
passando a ser criada por seus irmos mais velhos Viola e Clarence.
Seus irmos tutores procuraram incentiv-la s atividades artsticas
como o canto e a dana. Diante de tal incentivo, Bessie Smith e seu
outro irmo Andrew, passaram a fazer shows nas ruas de
Chattanooga enquanto o seu irmo mais velho Clarence, passou a
fazer parte do Moses Strokes Company. Em pouco tempo Clarence
arranjou um teste para sua irm Bessie na Moses Strokes Company
e a mesma foi contratada em 1912.
Nessa poca, Bessie tornou-se amiga de uma da integrante
mais veterana da Companhia, Gertrude Ma Rainey, da qual era
carinhosamente chamada de Mother of the Blues, ou Me do
Blues. Com o passar do tempo, Bessie Smith desenvolveu um estilo
original de cantar, onde o seu timbre vocal marcante, balanceado
com uma suave docilidade e senso rtmico, fez com que conquistasse
os pblicos alm de diversas cidades do Sul, tambm conquistou fs
em Nova Iorque, Filadlfia e Baltimore. Seus shows eram no estilo
vaudeville18, cruzando comdia e canes dramticas. Em 1923,
Bessie Smith deixou sua Companhia apresentando-se com lotao
esgotada no Palace Theater em Memphis, Tennesee. Ainda em 1923,
18 Vaudeville foi um gnero de entretenimento de variedades predominante nos Estados Unidos e Canad do incio dos anos 1880 ao incio dos anos 1930.
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Bessie Smith chegou a vender em apenas seis meses, mais do que
780.000 cpias do disco com a msica Down Hearted Blues.
Entre 1923 e 1933, Bessie Smith gravou aproximadamente 160
canes e seus shows foram igualmente bem sucedidos. Durante este
perodo ela tambm viajou em todas as partes do Sul e Norte,
executando a grandes pblicos. Em 1929, ela apareceu no filme St.
Louis Blues At l, contudo, o alcoolismo tinha danificado
severamente a sua carreira, como fez a Depresso, que afetou
indstrias de entretenimento e as gravadoras. Bessie Smith faleceu
em 1936 decorrente de um acidente de automvel.
Porm houve poucas mulheres interpretes de blues no incio do
sculo XX. Alguns historiadores afirmam que o primeiro registro de
uma msica utilizando o nome blues foi datado de 1912 e a
composio chamava-se Dallas Blues de autoria de Hart Wand, um
violinista branco da cidade de Oklahoma, mas este gnero musical
realmente passou a ser mais popular entre 1911 a 1914 com as
composies do msico afro-americano W.C. Handy (1873-1958).
William Christopher Handy ganhou popularidade publicando
Memphis Blues (1912) e St. Louis Blues (1914). Conforme afirma
(KAMIEN 518), os primeiros blues instrumentais foram gravados em
1913. De acordo com (Priestly 9), a partir do momento em que o
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blues conquistou uma ampla aceitao popular que o jazz pde
tambm conquistar o seu espao junto ao grande pblico.
A histria das artes pode ser dividida em dois segmentos:
aquele onde a minoria elitizada, culta e segundo (Hobsbawn 1990)
desocupada, usufrui e o segmento da massa de pessoas comuns.
Este isolamento cultural muitas vezes quebrado por motivos sociais
como sentimento de nacionalidade, valores e crenas culturais entre
outros fatores. O jazz conseguiu ser um elemento aglutinador das
massas populares para com a elite. Talvez esse interesse tenha sido
despertado pelo fato do jazz ser uma fuso de culturas e tradies
misturando referncias musicais de origem europia e a capacidade
de improviso proveniente da tradio oral africana, fez com que esse
gnero musical pudesse se renovar atravs dos tempos.
Essa capacidade de renovao despertou e ainda desperta o
interesse das elites que sempre que podem, procuram fugir da
estagnao que muitas vezes outros gneros musicais se encontram,
assimilando elementos do jazz para conferir algum diferencial em
suas manifestaes artsticas. Nas primeiras dcadas sculo XX, a
busca pela renovao da cultura ocidental, fez-se presente em
diversos segmentos das artes, onde o extico passou a ser procurado
e apreciado. Diante deste contexto, o jazz gradativamente deixou de
ser visto como uma manifestao cultural marginalizada, ou at
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mesmo como algum tipo de revolta das massas contra as elites, para
ser visto como uma fonte de apropriao, visando cativar uma gama
maior de apreciadores e claro intensificar a crescente indstria do
entretenimento nos grandes centros urbanos.
Na dcada de 1920, de acordo com (Hobsbawn 1920), nos
crculos intelectuais o jazz era denominado de msica do futuro
pelo fato de seu ritmo produzir um movimento que faz lembrar a
dinmica das mquinas. Ao pensarmos numa possvel ligao entre a
indstria e o jazz, talvez haja pouca ligao no que tange
padronizao, pois a referncia mais prxima existente entre o jazz e
a mquina, foi em relao ao trem. bem possvel que
coincidentemente haja uma ligao do imaginrio popular atravs do
blues que a expresso oral do jazz e o trem no sentido de
movimento, de mudana e at mesmo transcendendo em conotaes
sexuais19.
Atravs do jazz, o imaginrio popular fez muitas ligaes
metafricas sobre o trem. Como por exemplo, a lenda de John Henry
que narra um embate fenomenal entre homem e mquina. Para
construir as estradas de ferro, as companhias contratavam milhares
de homens para o servio de terraplanagem e desobstruo do
19 Riding, rocking e rolling so palavras usadas tanto para a estrada de ferro quanto para o coito. Nas canes de priso e de campos de trabalho, a estrada de ferro tambm o meio que traz a namorada do prisioneiro ao seu encontro. (Hobsbawn 1990: 32)
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caminho da futura ferrovia. De todas as tarefas direcionadas para o
grupo de trabalhadores, a que aparece com bastante nfase a
escavao de um tnel chamado Big Bend Tunel, ou Tunel da Grande
Curva, que era deveria ter mais de uma milha atravs de uma
montanha em West Virginia.
Os ento chamados homens de ao como John Henry usavam
grandes martelos e estacas para abrir buracos na rocha, que ento
foram cheios de explosivos que abririam uma cavidade mais profunda
na montanha. Nas baladas folk, o evento central ocorreu quando, na
nsia de reduzir preos e acelerar o progresso das obras, alguns
engenheiros passaram a usar furadeiras a vapor para abrir seu
caminho na rocha. Segundo algumas contam, ao ouvir a mquina,
John Henry props um desafio aos operadores de furadeira a vapor.
No bate, John Henry morreu de exausto devido ao esforo sobre-
humano. Como j foi dito sobre essa lenda existe uma srie de
verses sobre o local20 do evento, sobre a identidade de John Henry,
entre outros detalhes.
Mas o esforo sobre-humano de John Henry serviu de
inspirao para muitas canes populares e o blues entoa essa lenda
como atravs de diversos intrpretes por mais de um sculo. O cone
John Henry representa a luta do homem contra a mquina. A pessoa
20 Anexo figura 20
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simples e humilde contra os poderosos e quando falamos de msica
popular, muitas vezes essas referncias ficam em evidncia. Existem
algumas referncias21 que afirmam que John Henry era um escravo
nascido nos anos de 1840 ou nos anos de 1850. importante
ressaltar que ningum sabe com certeza se John Henry realmente
existiu.
uma das coisas que faz com que essa lenda seja to
intrigante. Inclusive dizem que ele tinha aproximadamente 1,98m de
altura e 100 kg - um gigante naquele dias. Embora a histria de John
Henry parea ser um grande conto, certamente baseado, pelo
menos em parte, em alguma circunstncia histrica. H discusses
sobre onde lenda se originou. Algum John Henry de algum lugar em
West Virginia22, enquanto pesquisas recentes sugerem Alabama.
Entretanto, todos compartilham de um desfecho semelhante para a
estria. As prises sulistas segundo Allan Lomax23, contriburam para
a tradio do blues, onde os prisioneiros culpados por assassinatos,
roubos entre outros crimes, cantavam seus lamentos sobre a
liberdade tolhida ou por estarem diante de um possvel e prximo
final da vida.
21 Tributaries: Journal of the Alabama Folklife Association, Vol. V (2002). 22 Anexo figura 20 23 Lomax, Alan. _The Land Where the Blues Began_. N.Y.: Pantheon Books, 1993
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Em 1939, John A. Lomax24, pai do folclorista Allan Lomax,
desenvolveu junto Biblioteca do Congresso Americano, um grande
trabalho chamado de Archive of American Folk Song entre outros
gneros musicais, registrou profundamente a tradio do blues em
diversas localidades na regio do Delta do Mississipi25 e at os
grandes centros urbanos do Norte dos Estados Unidos. De work
songs das plantaes ao blues cantado nas penitencirias. Do blues
rural ao blues urbano.O blues se transformou em uma expresso
individual, independente e mais improvisada, contrapondo-se s
worksongs e field hollers. O Blues passou a ser mais atual,
comentando fatos da vida cotidiana, inicialmente sendo acompanhado
por banjo, um instrumento de origem africana.
Na mesma poca, o blues tambm passou a ser acompanhado
por piano em bordis, bares e casas de dana, como tambm em
acampamentos de marinheiros e de outros trabalhadores no
Sudoeste, como afirma (HOBSBAWN, 1990). muito difcil
determinarmos de forma precisa onde originalmente nasceu o blues,
porm sabe-se que cresceu no Delta do Mississipi, onde seus
intrpretes itinerantes acompanhavam o sentido do rio em direo
aos centros urbanizados da regio norte do pas em busca de
melhores oportunidades de vida. De uma forma bem diferente de seu
derivado, o jazz, o blues no era um gnero musical executado em
24 Informao disponvel em: http://memory.loc.gov/ammem/lohtml/lohome.html 25 Anexo figura 21
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grandes eventos e entretenimentos em geral. Inclusive ficou relegado
regio sul e meio-oeste dos Estados Unidos at meados dos anos
30 do sculo XX, como afirma (KOPP,2005).
O blues sofreu muitas transformaes durante os anos e de
acordo com os nveis de contato que seus interpretes tiveram com
outras culturas nas cidades ao longo do Rio Mississipi. Nas ltimas
dcadas do sculo XIX, blues e seus interpretes, como j foi citado
anteriormente tinham um comportamento similar ao dos griots, no
que se refere ao entretenimento de pequenas comunidades vivendo
na maioria das vezes atravs da mendicncia. Porm, ao chegarem a
Chicago, por volta dos anos 20 consolidou-se a maior transformao
do blues.
Com a emancipao dos negros, logo aps a Guerra Civil
Americana, houve uma crescente migrao da populao afro-
americana para o Norte, produzindo assim, conforme afirma
(HOBSBAWN, 1990:60), um novo proletariado, tecnicamente livre
para escolher seu prprio entretenimento. Sendo Chicago um grande
centro urbano, havia uma grande estrutura de entretenimento e
consecutivamente a necessidade de msicos baratos e tanto os
bluesmen, quanto os msicos de jazz provenientes de New Orleans
e adjacncias, preencheram a esta lacuna no respectivo mercado.
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Logo os empresrios do entretenimento identificaram um novo
segmento de mercado, organizando os chamados trent shows
podendo ser caracterizados com uma forma de vaudeville. Apenas
por volta de 1910 a 1914 que surgiram os primeiros teatros com
contedo exclusivamente voltado para o pblico afro-americano,
como por exemplo, o New Palace em Nova York, o Booker T.
Washington em St. Louis, o Pekin e o State em Chicago.
Nas primeiras dcadas do sculo XX, a cidade de Chicago tinha
mais cabars e casas noturnas, do que toda a regio sul dos Estados
Unidos. Em 16 de janeiro de 1920, o Governo americano instaurou a
dcima sexta emenda da Constituio que passou a proibir a
importao, exportao, manufatura e transporte de bebidas
alcolicas. Essa ferrenha proibio, com origens de carter religioso e
tendo incio de meados do sculo XVII no estado de Massachusetts, a
proibio do uso de lcool era objeto de diversas leis de vrios
Estados americanos, mas aquilo que passaria a ser chamada de Lei
Seca somente veio a ser concretizada a partir do ato Volstead. O ato
Volstead foi ratificado em 16 de janeiro de 1919, aprovado em 28 de
outubro de 1919 e em 16 de janeiro de 1920, foi efetivada como a
dcima oitava emenda da Constituio Americana.
No final da dcada de 1910 e incio da dcada de 1920, o
cumprimento da dcima oitava emenda foi caracterizado por uma
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forte represso policial em todo pas, alm de uma rgida censura e
controle por parte das autoridades polticas e religiosas. Esta postura
era proveniente tanto por parte dos congressistas protestantes do
Partido Republicano, que representavam a maioria nos Estados do
Norte, quanto os do Partido Democrata, que representavam a maioria
das cadeiras do partido nos Estados do Sul. Diante desse cenrio, os
norte-americanos seguidores da religio catlica e os descendentes
de alemes passaram a ser perseguidos por serem acusados de
descumprirem da lei de proibio do consumo de lcool.
Enquanto a fabricao, transporte e venda de lcool era
proibido em solo norte-americano, em outros pases prximos como
Canad, Mxico e os pases caribenhos no era. Esta condio
facilitou a presena de tais produtos e forma ilegal. Nos Estados
Unidos, Chicago passou a ser visto como o paraso da desobedincia
do ato Volstead, incentivando o crime organizado e at mesmo a
indstria de entretenimento.
Porm o ato Volstead passou a ser muito impopular nas
grandes cidades culminando em sua modificao em 1933 por parte
do Presidente Franklin D. Roosevelt atravs da assinatura de uma
emenda conhecida como o ato Cullen-Harrison que autorizou a
fabricao e venda de bebida alcolica a partir das seguintes
especificaes: para as cervejas 3.2% de lcool por peso
aproximadamente e 4% lcool por volume e vinhos leves. Isso por
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que o Ato Volstead havia definido como perigo de intoxicao, o
consumo de qualquer bebida que possusse uma proporo de lcool
superior a 0,5% por volume. O Ato Volsted ou a Dcima Oitava
emenda foi derrubada no dia 5 de dezembro de 1933 com a
ratificao da Vigsima Primeira emenda atravs do ato Cullen-
Harrison. Esta emenda d o direito para que cada estado norte-
americano defina suas polticas referentes ao lcool.
Sendo assim, o ato de Proibio Nacional, ou Ato Volstead que
tinha como princpio, coibir a criminalidade e prover uma maior
qualidade de vida em uma sociedade longe de vcios, acabou
contrariando as expectativas, pois gerou um acentuado aumento da
violncia e um fortalecimento do crime organizado. Os membros de
gangues do crime organizado de Chicago denominados gangsteres,
comercializavam bebidas alcolicas clandestinamente em discretas
casas noturnas. Estas casas noturnas no podiam despertar a
ateno das autoridades policiais, sendo assim, os msicos de jazz
que trabalhavam em tais estabelecimentos, precisavam tocar em
volume baixo, alterando o modo de tocar seus instrumentos fazendo
diversas adaptaes nos mesmos. A adaptao a esta nova realidade,
fez com que o jazz personificasse uma nova mudana em termos
estruturais.
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O blues foi um gnero musical edificado por muitos menestris
que infelizmente no alcanaram grande popularidade, tendo sua
obra consecutivamente fadada ao anonimato. Muitos bluesmen na
esperana de melhores condies de vida e o merecido
reconhecimento de sua arte partiram para os grandes centros
urbanos no Norte, principalmente as cidades de Chicago e Detroit. E
neste caminho o blues sofreu profundas transformaes.
O blues originrio da regio do Delta do Mississipi26 apresenta
um perfil mais rural, onde os menestris se assemelhavam muito aos
griots africanos, tendo apenas um instrumento de cordas para se
acompanhar, sendo grandes intrpretes de suas estrias cantadas. J
o blues proveniente dos grandes centros urbanos, passou a receber
uma maior infra-estrutura, aonde muitos bluesmen chegaram a
integrar bandas de jazz, fazendo parte do circuito principal do
entretenimento nas grandes cidades.
Com o final da Lei Seca, em Chicago, o blues passou a ser
eletrificado, ou seja, ao invs de ser acompanhado apenas por um
violo e gaita, devido s casas noturnas serem barulhentas, o som
dos msicos comeou a ser amplificado. No final da dcada de trinta,
houve o surgimento de um novo advento que contribuiu para a
inovao do blues, a guitarra eltrica. Isto consolidou mais uma
26 Anexo figura 1
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grande mudana para o gnero, tornando-o mais popular, inclusive
mesclando-o ao jazz.
Devido profunda segregao racial nos Estados Unidos,
conforme citado anteriormente, at a terceira dcada do sculo XX, o
blues ficou relegado s minorias afro-americanas e seus
simpatizantes. Durante a dcada de 50 e 60, houve uma grande
identificao com o blues por parte dos jovens britnicos. Esta
identificao ocorreu de tal forma, que o mesmo pde ser resgatado
e at mesmo reinventado, por jovens intrpretes, ou at mesmo
grupos musicais de todo o Reino Unido. Este resgate cultural do blues
por parte dos britnicos foi to intenso que conseguiu influenciar a
parcela branca do pblico americano com os elementos de uma
cultura anteriormente desprezada.
3.2 - Os Spirituals e a msica Gospel
Os primeiros spirituals remontam do sculo XVII e passou por
diversas transformaes a partir de um gnero chamado ring shout ,
que era uma dana de carter religioso originria dos rituais africanos
de dana em crculos. Este tipo de dana religiosa pode ser
considerada um dos grandes veculos de disseminao do
cristianismo entre os afro-descendentes norte americanos. Nos
Estados Unidos, este tipo de dana, assim como o uso de tambores,
foi considerado pela Igreja Batista como prtica profana.
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Mesmo sendo considerado como um tipo de prtica
profana, o ring shout at hoje praticado nas igrejas de afro-
descendentes, logo aps os trabalhos oficiais praticado como uma
forma de louvor e confirmao de f em Deus. O ring shout consiste
em coesas coreografias que envolvem todo o corpo de seus
participantes onde o principal objetivo criar um som percussivo
atravs de palmas e batido de ps onde todos os participantes
tambm em coro respondem aos clamores de um cantor (shouting)27.
Acredita-se que o crculo do ring shout deriva da herana
muulmana28 que se refere volta no sentido horrio que os fiis do
Isl fazem em torno da Kaaba29. O ring shout desenvolveu-se em
South Carolina, Texas, Georgia e Louisiana sendo praticado at no
sculo XXI nestas mesmas regies.
Em resumo, o ring shout uma clara herana das razes
africanas presentes em seus descendentes norte-americanos que
direcionaram elementos como a oralidade, o ritmo, a dana
direcionados ao louvor a Deus (anteriormente na cultura Yorub era
designado sob o nome de Elegba). Muitas vezes esta dana leva a
certo tipo de xtase muito semelhante aos encantamentos e
possesses espirituais de origem africana.
27 http://www.streetswing.com/histmain/z3ringshout.htm 28Aproximadamente 20 % dos africanos levados para Amrica do Norte como escravos
eram provenientes da frica Ocidental. 29 Pedra Sagrada da religio islmica situada na cidade de Mecca.
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Os spirituals, apesar de serem considerados grande fonte de
inspirao para o jazz, so vistos em relao ao mesmo, como uma
forma extremamente europeizada da msica negra norte-americana
apresentando inclusive uma evoluo paralela. Segundo James H.
Cone30, a criao dos spirituals no foi meramente usual e sim
imperativa, sendo assim o mesmo no pode se considerado uma
criao artstica, mas sim, a sua causa.
Isto por que ao abordar os males, temores e demais
sentimentos do povo africano, atravs de meios dos quais os mesmos
apresentavam grande identificao que seriam elementos como a
msica, o ritmo e a dana, serviu como um ajuste mental para que
houvesse uma maior aceitao de uma terra estrangeira. A forma
com que os escravos lidavam com o trauma da servido era
compartilhar suas experincias, seus valores e seus pontos de vista
em relao a um mundo que no conhecem.
Uma caracterstica importante dos spirituals que apresentam
muitas repeties em suas letras. Isto resulta da herana da tradio
oral africana onde tal estrutura musical tinha como objetivo facilitar a
memorizao da mesma, assim como prover uma maior liberdade
30 The Spirituals and the Blues: An Interpretation apud multidisciplinary online curriculum by The Spirituals Project at the University of Denver.
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para a criao de novos versos. importante ressaltar que a msica
tanto para a cultura africana como para os seus descendentes,
apresentou um carter funcional no que se refere disseminao do
conhecimento, onde o conhecimento pode ser considerado o
compartilhamento de experincias, transmisso de tradies
ancestrais entre outros ensinamentos. Assim como o gospel, os
spirituals tinham como tema tpicos como libertao e tendo a bblia
como base, as passagens de Moiss e a queda das muralhas de Jeric
eram tpicos muito presentes em suas letras.
Segundo Michael Tanner31, enquanto o europeu v a msica na
maioria das vezes como um entretenimento, para o africano toda
msica sagrada, mesmo. Diante deste contexto, gospel surgiu
como o resultado do processo de cristianizao dos escravos
africanos, onde os mesmos ao aceitarem a doutrina crist, puderam
incorporar seus prprios elementos culturais nas canes religiosas. A
segregao racial estava presente tambm nas igrejas, comeando a
incidir de forma significativa a partir de 1816 quando a igreja
Episcopal Metodista Africana de Sion se tornou uma seita
independente, desencadeando um movimento de massa no perodo
da Guerra Civil americana.
importante ressaltar que a msica spiritual quando
direcionada para fins religiosos passaram a ser o principal gnero
31 Artigo A Brief History of Anthem, Spiritual, and Gospel Music from Early Slavery to the Mid Twentieth Century escr