GT1_Meloni Vicente_da Costa M

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Alas 2013

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    XXIX CONGRESO LATINOAMERICANO DE SOCIOLOGA (ALAS) CRISIS Y EMERGENCIAS SOCIALES EN AMRICA LATINA

    Santiago de Chile 29 de setembro a 4 de outubro de 2013

    Novas tendncias participativas no campo dos Estudos Sociais da

    Cincia e Tecnologia.

    Debate ou discusso em teoria social Alexandre Meloni Vicente1 Maria Conceio da Costa2

    GT 01: Ciencia, tecnologa e innovacin

    Resumo: O tema principal deste trabalho so os Estudos Sociais da Cincia e Tecnologia (ESCT), particularmente as discusses sobre Participao Pblica e Democratizao da Cincia. Sua motivao foi a percepo de uma tendncia, entre os pesquisadores do campo, de abandono de uma posio estritamente investigativa e explicitamente assumida de exterioridade em relao aos processos estudados. O construtivismo, ao negar a suposta pureza da cincia, caracterizou o conhecimento cientfico como socialmente criado ou construdo, possibilitando tais discusses. Da deriva a noo de que pressuposto nas sociedades democrticas que todas as decises devem ser, seno totalmente, o mximo possvel pblicas. Evidencia-se, deste modo, uma crescente importncia dada ao engajamento e participao social, resultante de uma nova concepo e percepo da relao entre conhecimento e sociedade, de sua legitimao, e das condies da interveno no somente do pblico, mas tambm do prprio cientista social. O estudo da produo bibliogrfica recente dos ESCT evidencia no somente a crescente preocupao em informar o pblico leigo sobre as incertezas e negociaes que caracterizam os processos cientficos e tecnolgicos, mas tambm um esforo no sentido de contribuir para a discusso sobre questes prticas, sobre como as tecnologias devem ser construdas, quais grupos sociais merecem incluso em determinados processos, e como as controvrsias cientficas devem ser resolvidas. Tal esforo acaba por diferenciar a pesquisa pautada em uma agenda orientada pela justia social daquela orientada por princpios puramente acadmicos, e pode representar uma desejada aproximao entre o campo dos ESCT, a camada poltica e os movimentos sociais. O resultado desta crescente ateno dos ESCT ao problema de como produzir uma pesquisa relevante s questes polticas da atualidade uma produo acadmica mais ativa e politicamente engajada, comprometida em moldar a atividade tecnocientfica, e no somente descrev-la. Palavras Chave: Cincia, Tecnologia e Sociedade, Ativismo.

    1 Aluno de Doutorado do Departamento de Poltica Cientfica e Tecnolgica da UNICAMP 2 Professora Doutora do Departamento de Poltica Cientfica e Tecnolgica da UNICAMP

    2 Professora Doutora do Departamento de Poltica Cientfica e Tecnolgica da UNICAMP

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    Introduo impossvel deixar de notar os avanos no campo dos Estudos Sociais da Cincia3. Pouco restou da abordagem internalista mertoniana, onde o que havia para se explicar no era o mtodo ou o conhecimento cientfico, mas somente a dinmica e a posio social da empreitada cientfica na sociedade. A cincia deixou de ser vista como pura e imparcial, como uma cultura autnoma, dotada de acesso privilegiado natureza, para ser caracterizada como um processo social. O interesse excessivo na comunidade cientfica e em seu alto grau de autonomia deu lugar s preocupaes com a relao entre a produo cientfica e a sociedade, de maneira mais ampla. O foco de anlise passou de ser, portanto, a cincia em si, e no somente os usos do saber cientfico nas instituies sociais. Trata-se, segundo Collins & Evans4, de trazer fatores extra-cientficos para o debate cientfico-tecnolgico. O construtivismo caracterizou o conhecimento cientfico como socialmente criado ou construdo (Collins & Pinch, 1979), e desafiou, atravs de investigao sociolgica, a premissa considerada positivista5 da autoridade cientfica como formadora de opinio e palavra final nos debates cientfico-tecnolgicos, independente de condies histricas, sociais ou culturais. A concluso de uma controvrsia cientfica passou a ser entendida, portanto, resultado no de testes rigorosos realizados exclusivamente no mbito cientfico, mas de presses e demandas da comunidade, que refletiam no somente o conhecimento aceito por essa comunidade, mas tambm seus interesses e objetivos sociais. Foi descartada, deste modo, a premissa de que seria final a palavra dos cientistas e experts, imparciais e livres de qualquer contaminao de ordem poltica ou social, sobre aspectos tcnicos e tomada de decises em qualquer assunto que envolvesse cincia e/ou tecnologia. A recusa da ideia de que a resoluo das controvrsias cientficas dava-se somente baseada em conceitos de verdade e eficcia e na autoridade cientfica abriu espao para as discusses sobre a participao do pblico leigo, e alguns pontos tornaram-se centrais. Primeiro, pressuposto nas sociedades democrticas que todas as decises devem ser, seno totalmente, o mximo possvel pblicas. So as excees a esta regra que devem ser justificadas devidamente. Segundo, a participao pblica necessria para confirmar ou contestar no s as decises, mas tambm a relevncia das questes que so ou deveriam ser tratadas pela comunidade cientfica. Por fim, o saber cientfico construdo e praticado dentro de instituies, e o grande poder de algumas dessas instituies pode lev-las a tentar manipular informaes e impor decises, caso no sejam continuamente contestadas e criticadas pela opinio pblica (Jasanoff, 2003). O conhecimento cientfico s se torna socialmente aceito quando envolve, alm de um extenso grupo de experts, os possveis usurios e o pblico considerado leigo. Sua validade testada no somente dentro de laboratrios, mas sim em um mundo em que fatores sociais, econmicos, culturais e polticos moldam os produtos e processos resultantes da inovao cientfico-tecnolgica. Das premissas construtivistas surge a noo de que uma maior participao pblica nas tomadas de deciso relativas a assuntos de natureza tcnica melhora o valor pblico e a qualidade da cincia e da tecnologia. Um modelo participativo seria um grande progresso em relao ao modelo decidir, anunciar, defender, pois este ltimo requer muito mais tempo, aliena o pblico, e produz recomendaes uniformes (Futrell, 2003). Exerccios de participao pblica costumam obter mais xito, pois seus participantes representam a populao, so independentes, envolvidos desde o incio no

    3 O campo passou posteriormente a ser conhecido como Estudos Sociais da Cincia e Tecnologia (ESCT).

    4 COLLINS, Harry. M.; EVANS, Robert. The Third Wave of Science Studies: Studies of Expertise and Experience. Social Studies of Science, London, Sage Publications, v. 33, n. 2, 2002.

    5 Termo utilizado por Martin & Richards (vide bibliografia).

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    processo decisrio, possuem influncia na comunidade local, prezam pela transparncia no processo, tm acesso aos recursos, e possuem tarefas definidas (Rowe et al., 2004). Paralelamente, surge o conceito de core set, caracterizado como o grupo ou os grupos de indivduos dotados de autoridade para opinar e at mesmo decidir uma controvrsia. Collins6 discorre detalhadamente sobre as estratgias utilizadas pelos membros de um core set para enfraquecer seus oponentes, que englobam crticas tcnicas qualidade do trabalho cientfico, dvidas quanto s capacidades experimentais e honestidade dos experimentos, avaliaes de reputao, que levam em conta o prestgio da instituio que abriga os pesquisadores, o histrico de sucessos e falhas, e aspectos de personalidade e inteligncia. As controvrsias apresentam, portanto, uma flexibilidade interpretativa. Materiais, dados, mtodos e ideias podem possuir as mais diferentes interpretaes, para diferentes posies dentro de um debate. Julgamento e Interpretao so, deste modo, conceitos chave, e codependentes; e as controvrsias so resolvidas atravs de aes que definem uma posio particular como racional e correta aos olhos da comunidade cientfica. Inicialmente voltados para os debates de ordem tcnica, travados quase que exclusivamente dentro da comunidade cientfica, os estudiosos do core set passaram a preocupar-se tambm com a incluso de grupos externos a ela, provenientes do pblico em geral. Participao Pblica e Democratizao da Cincia tornam-se, juntamente com a Construo social do Conhecimento cientfico, os assuntos principais das pesquisas do campo. A constituio do conhecimento cientfico depende, portanto, de configuraes sociais particulares. Porm, enquanto muito se discute sobre a participao dos experts e do pblico leigo nos processos decisrios, ainda pouca ateno dada sobre como deve ser a participao do prprio socilogo7 da cincia. Isto porque a maior parte das anlises, que constituem o Alto Clero8 do campo, ainda pautada em princpios metodolgicos de imparcialidade e neutralidade, provenientes da corrente denominada Sociologia do Conhecimento Cientfico (SSK, do ingls Sociology of Scientific Knowledge), em particular do Programa Forte da Escola de Edimburgo; e da chamada Teoria Ator-Rede (ANT, do ingls Actor-Network Theory), que postula a exterioridade dos investigadores em relao aos problemas estudados (Latour, 2005). Conhecimento e interveno O Alto Clero manteve seu foco na interpretao da cincia e tecnologia e desenvolveu um sofisticado arcabouo conceitual para explorar o processo de construo do conhecimento, mas no podemos menosprezar a importncia do Baixo Clero9, menos preocupado com o entendimento da cincia e tecnologia per se, e mais concentrado em adaptar o conhecimento cientfico-tecnolgico ao interesse pblico. Focados em reforma e ativismo, os pesquisadores de tal corrente abordam criticamente assuntos que envolvem poltica, governana e financiamento, bem como os aspectos da cincia e tecnologia mais relevantes para o pblico em geral. Mais que isso, procuram reformar o conhecimento cientfico-tecnolgico tendo em vista a igualdade, o bem estar e o meio ambiente, desafiando as estruturas que permitiram aos fsicos nucleares contriburem para o desenvolvimento de 6 COLLINS, H. M. Changing Order: Replication and Induction in Scientific Practice. University of Chicago Press, 1992.

    7 Para fins prticos, o termo socilogo neste texto, mesmo quando utilizado sozinho, est sempre associado aos pesquisadores do campo da Sociologia da Cincia e Tecnologia.

    8 Termo utilizado por Sismondo (2008).

    9 Idem.

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    armas atmicas, que permitiram aos qumicos se envolver em uma srie de projetos desastrosos para o meio ambiente, ou que deram Biologia uma posio central na industrializao da agricultura. Tais estudiosos enxergam o entendimento da natureza social do conhecimento cientfico como indissocivel da promoo de uma Cincia socialmente responsvel. Para o Baixo Clero, as questes centrais esto ligadas reforma, promoo de um conhecimento cientfico que beneficia o pblico em geral. Como podem as decises tcnicas ser tomadas atravs de processos genuinamente democrticos? Podem as inovaes ser democraticamente controladas? Como as novas tecnologias devem ser regulamentadas? At que ponto elas podem ser consideradas entidades polticas? Quais so as dinmicas das controvrsias tcnicas, e como os diferentes grupos envolvidos procuram controlar suas resolues e os participantes relevantes? (Sismondo, 2008). Como podem os estudos em Cincia, Tecnologia e Sociedade ter valor para os ativistas? (Hess et al., 2008). A opo por uma investigao politicamente engajada evidencia trs dificuldades principais: a primeira diz respeito aos temas a serem estudados, que obrigam uma relao com organizaes e movimentos sociais, dificultada pelas prprias condies institucionais de organizao da investigao; a segunda a dificuldade de conseguir financiamento para investigaes sobre temas suscetveis de entrar em conflito com interesses econmicos privados ou de Estado; a terceira resultado da avaliao assimtrica das pesquisas orientadas para interesses do Estado ou de empresas, notadamente melhor financiadas e pouco questionadas sobre suas implicaes, e as investigaes visando os movimentos sociais e o interesse pblico, muito mais sujeitas a acusaes de panfletarismo poltico e ideolgico (Nunes, 2007). No obstante, Woodhouse, Hess, Breyman & Martin10 afirmam que crescente o nmero de pesquisadores dos ESC que procuram expressar seus valores sociais e preocupaes polticas sem entrar em conflito com os desenvolvimentos conceituais do campo. Este fenmeno, denominado pelos autores de reconstrutivismo11, direciona seus esforos na promoo de uma civilizao mais democrtica, ambientalmente sustentvel, e socialmente justa; e caracterizado pelos esforos deliberados dos estudiosos em estruturar suas descries e explicaes para servir a propsitos sociais, seja documentando e condenando falhas anteriores, seja propondo novas alternativas. Por ser algo relativamente novo e ainda pouco explorado, propem quatro tpicos que contribuiriam para o melhor aproveitamento do que chamam uma nova oportunidade: - Discusses sobre importncia de se incorporar intenes normativas, ativistas ou reconstrutivistas nas pesquisas; - Anlises sobre tpicos que no recebem a devida ateno, e um processo de formulao de compromissos profissionalmente sofisticado; - Participao mais ativa em esforos visando moldar as atividades tecnocientficas em direes progressivas; - Anlises reflexivas sobre as prticas de publicao, o sistema de recompensas, e a prpria fundao conceitual dos Estudos sobre cincia e tecnologia. Argumentam os autores que os estudos politicamente engajados podem ser especialmente importantes em situaes onde interesses comerciais so protegidos em demasia, ou onde grupos

    10 WOODHOUSE, Edward; HESS, David; BREYMAN, Steve & MARTIN, Brian. Science Studies and Activism: Possibilities and Problems for Reconstructivist Agendas. Social Studies of Science, 32 (2), 2002.

    11 Definido pela inteno geral de conduzir pesquisas com objetivos de informar ou ilustrar o pblico leigo, e participar das deliberaes e negociaes democrticas que moldam e modificam as tecnologias (Definio dos autores).

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    privilegiados recebem tratamento privilegiado em detrimento a inmeros outros interessados. Mais do que apontar desigualdades, tais pesquisadores buscam, ou deveriam buscar, desafiar tecnologias problemticas, prover assistncia analtica e credibilidade aos grupos marginalizados e s vozes esquecidas, e articular alternativas. A credibilidade dos grupos marginalizados um ponto crucial. Muitos deles, embora bem representados numericamente, no possuem a expertise considerada necessria tanto para fundamentar suas reivindicaes de forma concisa e convincente, quanto para responder s crticas de modo satisfatrio. Utilizando sua expertise em prol de tais grupos, o socilogo da cincia os confere uma autoridade cientificamente aceita, aumentado suas possibilidades de participao no processo decisrio. Outro ponto abordado diz respeito s pesquisas negligenciadas. As terapias de sade alternativas so um bom exemplo. Graas, em grande parte, ao predomnio do financiamento privado, pesquisas sobre os riscos sade causados por uma serie de compostos qumicos so escassas, notadamente no que diz respeito a poluentes ambientais. Quanto aos tratamentos, pacientes freqentemente so informados sobre os mais convencionais, com altos nveis de toxinas especialmente rdio e quimioterapia, nos casos de cncer e chances moderadas de sobrevivncia, enquanto pouca ateno dada medicina alternativa. O conhecimento sobre substncias botnicas e terapias mente-corpo, por exemplo, permanece, deste modo, limitado. Pesquisas direcionadas para interaes entre ambiente e estilo de vida tambm recebem pouca importncia e financiamento, parte pela manuteno de interesses industriais. Tais pesquisas podem apresentar terapias de extrema importncia para grande parte da populao, e deve ser preocupao do pesquisador engajado a anlise e publicao das diferenas entre o conhecimento necessrio e o conhecimento disponibilizado. Alguns outros exemplos, de ordem mais particular, tambm so apresentados, como a pesquisa de Sharon Beder sobre o sistema de esgotos de Sydney, que inclua dados no informados sobre poluio e crticas ao sistema de engenharia sanitria, e contribuiu para manifestaes ambientais. Ou o trabalho de Todd Cherkasky sobre a introduo de novas tecnologias na indstria panificadora, que apresentava intenes explicitas de apoio aos sindicatos e desenvolvimento de estratgias para proteo de empregos e melhora das condies de trabalho. David Noble, em seus estudos sobre a introduo de tecnologias nos locais de trabalho, procurou revelar o impacto negativo do capitalismo na condio dos trabalhadores e incentivar sua mobilizao. As anlises de Richard Sclove sobre as conexes entre democracia e tecnologia clamavam por maior participao popular nos processos decisrios sobre cincia e tecnologia (Woodhouse, Hess, Breyman & Martin, 2002). Collins & Evans12 tambm contribuem, embora de forma menos direta, para a discusso. Ao englobar o socilogo da cincia na categoria Interactional Expertise, os autores o caracterizam como um indivduo apto no s a realizar anlises sociolgicas, mas tambm a interagir de forma eficaz com os participantes de seu objeto de estudo. No contexto dos ESC, o campo de estudos inclui diversas estratgias de pesquisa e campos de exposio, tais como presena em conferncias, laboratrios, escolas e colquios, entrevistas com um vasto nmero de pessoas associadas com a comunidade, consulta de uma vasta literatura tcnica, trabalhos em arquivos, relaes com informantes, contato com o pblico leigo para assimilar suas percepes sobre a comunidade cientfica e sobre a tecnologia, tornar-se membro de organizaes e movimentos sociais, muitas vezes de forma ativa e preocupada, entre outros. Deste modo, com o tempo, o socilogo desenvolve uma competncia notvel nos aspectos tcnicos de cincia e tecnologia envolvidos, entendendo o contedo e a linguagem do campo, suas terminologias, teorias, realizaes,

    12 COLLINS, Harry. M.; EVANS, Robert. The Third Wave of Science Studies: Studies of Expertise and Experience. Social Studies of Science, London, Sage Publications, v. 33, n. 2, 2002.

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    mtodos e controvrsias; podendo ento realizar suas anlises com respeito s relaes sociais, estruturas de poder, significados culturais, e histria do objeto estudado (Hess, 2001). Isto se torna particularmente relevante quando consideramos que o tempo da poltica, pressionado pela opinio pblica, aglomera aspectos ticos e cientficos em processos que necessitam rapidez na deciso, enquanto o tempo da cincia funciona em um compasso lento e prudente. E as decises precisam ser tomadas, geralmente, antes que um consenso cientfico tenha sido alcanado. Um bom exemplo deste processo o caso da Lei de Bissegurana no Brasil. Durante a tramitao do projeto, deputados ligados Igeja Catlica procuraram retirar o artigo sobre clulas-tronco embrionrias, aps o pedido da Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil. Durante a votao do projeto na Cmara, estavam presentes membros da Associao Brasileira de Distrofia Muscular, e do Movimento em Prol da Vida. Pessoas que sofriam de degenerao progressiva do tecido muscular e familiares de portadores de doenas neurolgicas, tais como Mal de Parkinson e Mal de Alzheimer, que podem ser beneficiadas pelas pesquisas com clulas-tronco, tambm pressionaram pela aprovao da lei. Conscientes da capacidade teraputica das pesquisas em biotecnologia, os poderes legislativo e judicirio no ignoram os limites das descobertas cientficas, mas so constantemente assediados pelos interesses econmicos das prprias pesquisas, e morais de determinados setores da sociedade, assim como pelos interesses da prpria comunidade cientfica. A permisso legal para pesquisas ligadas biotecnologia, portanto, envolveu uma discusso pblica, tcnica, poltica, jurdica, religiosa e cientfica, em um processo que durou quase cinco anos. Pode parecer muito, mas um tempo muito menor do que a cincia necessita para definir, com segurana, todos os riscos e benefcios deste tipo de pesquisa (Oliveira, 2008). O pblico espera por verdades conclusivas, mas a cincia aponta para teses e hipteses provisrias, que podem ser confirmadas, refutadas ou transformadas, medida que o conhecimento cientfico construdo. Enquanto isso, diferentes interesses de diferentes grupos clamam por regulamentao e ordenamento jurdio deste conhecimento, sobretudo quando ele possui implicaes ticas. Neste panorama de incertezas, o dilogo entre a comunidade cientfica e o pblico essencial, e tanto as possibilidades benficas das pesquisas como seus possveis riscos devem ser conhecidos por todos os participantes. E o socilogo, atravs da competncia adquirida em seus estudos sobre cincia e tecnologia, pode desempenhar de forma competente o papel de interlocutor nestes dilogos, por sua capacidade de interagir tanto com o pblico quanto com os experts. Collins & Evans no chegam a entrar na discusso sobre at que ponto podem produo de conhecimento e interveno poltica caminharem juntos no campo dos ESC, mas Nunes13 o faz, afirmando que podem, e devem. Utiliza-se de exemplos da Unio Europia, onde investigadores dos ESC prestam aconselhamento em comisses para polticas pblicas enquanto portadores de uma forma particular de conhecimento, sobretudo voltado sobre as relaes entre modos de governar e formas do exerccio da cidadania em sociedades que acreditam que as perspectivas de uma melhor qualidade de vida no futuro, em escala nacional e global, dependem em grande parte de avanos cientficos e tecnolgicos. Mas seu principal exemplo vem do Brasil. Em 1976, escreve ele, ainda sob a ditadura militar, Srgio Arouca defendia, na Universidade Estadual de Campinas, sua tese de doutorado, O Dilema Preventivista: Contribuio para a Compreenso e Crtica da Medicina Preventiva. O objetivo geral era, a partir da anlise do programa e das propostas de organizao da medicina preventiva, criticar suas relaes com a organizao do Estado e da economia capitalista, e lanar as bases de uma teoria social da sade. Arouca, militante comunista e opositor da ditadura, viria a ser consultor da Organizao Panamericana de Sade, presidente da Fundao de Investigao Oswaldo Cruz, deputado 13 NUNES, Joo Arriscado. A viragem normativa e a poltica dos estudos sobre a cincia. Centro de Estudos Sociais da Universidade Coimbra, 2007.

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    federal, Secretrio Estadual e Municipal de Sade do Rio de Janeiro e Secretrio Nacional da Gesto Participativa do Ministrio da Sade no Brasil. Sua tese constituiu uma das principais referncias tericas que alimentaram a reconstruo da sade pblica no Brasil e sua redefinio como Sade Coletiva: A trajectria intelectual, profissional e poltica de Srgio Arouca condensa de maneira exemplar as dinmicas de co-construo de uma rea do saber, a Sade Colectiva ela prpria o culminar de mudanas institucionais em curso no mundo acadmico desde a dcada de 70 de polticas pblicas e de intervenes institucionais e de formas de aco colectiva... Esse intenso trabalho de renovao intelectual e cientfica viria a influenciar a convergncia de profissionais de sade e de cientistas sociais no chamado Movimento Sanitarista (Nunes, 2007). A redefinio histrica e processual do campo da sade, derivada da tese de Arouca, afirmava a indissociabilidade da produo de conhecimento e da interveno baseada em procedimentos participativos, e viria a influenciar a criao e organizao de um Sistema nico de sade, pautado na Constituio de 1988, que define a sade como direito de todos e dever do Estado. Outro caso que constitui um claro exemplo de interveno dentro dos ESCT relatado por Lynch & Cole (2005), e diz respeito ao processo penal Povo contra Hyatt, ocorrido nos Estados Unidos da Amrica em 2001, onde o prprio Simon Cole, um dos autores, foi chamado a depor como testemunha de defesa. James Hyatt havia sido acusado de cometer um roubo em Nova York, e suas impresses digitais, encontradas no local, eram a nica evidncia apresentada pela acusao. A expertise de Cole era baseada em sua pesquisa sobre a impresso digital como evidncia criminal, amplamente aceita, desde o incio do sculo XX, como confivel, ou mesmo infalvel, nos tribunais da maior parte do mundo. O dogma de que no existem dois indivduos com impresses digitais iguais veio acompanhado da confiana nos examinadores de tais provas, sem questionamentos sobre as taxas de erros e outros dados estatsticos. Dogma baseado em uma viso positivista, da cincia como objetiva e pura. Minar esta viso positivista e caracterizar o conhecimento cientfico como socialmente criado ou construdo resultaria no enfraquecimento deste dogma. O intuito do advogado de defesa, ao chamar Cole como testemunha, era restringir a admissibilidade da cincia forense (no caso, a impresso digital) no tribunal. Enquanto um tcnico perito em impresses digitais levado a acreditar na infalibilidade de seu trabalho, baseado na pureza da cincia, um estudioso dos ESCT capaz de problematizar esta suposta pureza com certa autoridade. Cole foi, portanto, chamado a depor no somente por seu conhecimento especfico sobre identificao de impresses digitais, resultante de sua imerso em tal assunto, mas tambm por sua expertise mais geral, como socilogo da cincia. Evidencia-se, por estes exemplos, uma crescente importncia dada ao engajamento e ao ativismo, resultante de uma nova concepo e percepo das condies da interveno pblica dos ESC, da relao entre conhecimento e interveno, e de sua legitimao. Seja propondo mudanas de ordem tcnica e poltica, servindo de porta voz para grupos menos privilegiados, prestando aconselhamento em comisses para polticas pblicas, ou mesmo intermediando os debates entre experts e publico leigo, percebemos a multiplicao de um novo tipo de socilogo da cincia, menos preocupado com os princpios de neutralidade e imparcialidade, e politicamente engajado. Concluses Interrogar a suposta pureza e imparcialidade da Cincia, seu acesso privilegiado natureza; indagar sua autoridade, abalar seu status de verdade e superioridade; caracterizar o conhecimento cientfico como socialmente criado ou construdo, dependente de condies histricas, sociais ou culturais, possibilitando os estudos sobre Participao Pblica e Democratizao da Cincia; no foram tarefas fceis. Foram necessrias dcadas de anlises e debates para que os ESC reivindicassem, baseados em

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    observaes e investigaes empricas da cincia como atividade social, sua autoridade e sua institucionalizao como um novo campo de estudos interdisciplinar. Seu mrito digno de reconhecimento. No obstante, uma pergunta deve estar sempre presente quando analisamos criticamente no somente nosso campo de estudos, mas a ns mesmo, como socilogos da cincia e tecnologia: Podemos fazer mais? Podem nossos estudos ter valor para os ativistas e movimentos sociais? A literatura, embora ainda pouco numerosa, sobre ativismo e engajamento poltico dentro dos ESC indica que sim. Tal literatura engloba tpicos de importncia poltica clara, colocando as relaes entre cincia, tecnologia e interesse pblico no centro do programa de pesquisa. Deste modo, o Baixo Clero transformou a interao entre conhecimento cientfico-tecnolgico, poltica e interesses pblicos, normalmente tratada como um contexto de estudos, em um tpico de pesquisa dentro dos ESCT. A poltica se torna um objeto de estudos, ao invs de um modelo de anlises. As experincias relatadas mostram que o socilogo da cincia pode, atravs das habilidades e competncias adquiridas nos estudos e anlises sobre os mais diversos campos cientficos, no somente contribuir emprica e teoricamente para uma literatura fora dos ESC, mas tambm identificar fenmenos, significados, interpretaes e relaes sociais que por vezes passam despercebidos pela comunidade cientfica e pela camada poltica; possibilitando-o opinar de forma competente sobre a formulao e implementao de polticas pblicas. Ademais, os conhecimentos sobre cincia e tecnologia, e sobre as particularidades tcnicas de campos de estudo especficos, quando somados s competncias sobre cultura, interesses e sociedade necessrias aos estudos sociais, fazem do socilogo da cincia um interlocutor altamente capacitado a intermediar os debates entre campos especficos de pesquisa e o pblico em geral. Seja como for, sua participao, como agente ativo e participativo politicamente, e como suporte para criao e avaliao de novas polticas pblicas, pode trazer benefcios ao processo decisrio. Podemos, portanto, ir alm da imparcialidade e neutralidade dos SSK, e da exterioridade postulada pela ANT. Alm da retrica, e focar diretamente nos problemas, conflitos e contradies decorrentes do avano cientfico. Podemos ir alm das observaes e estudos que demonstram como a cincia e a tecnologia so socialmente construdas. Podemos sugerir como elas podem ser melhoradas. Bibliografia COLLINS, H. M. Changing Order: Replication and Induction in Scientific Practice. University of Chicago Press, 1992.

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