GT1 Teixeira Cesar

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1 As Formas de Obsolescência na Sociedade Capitalista Contemporânea Daniel Jorge Teixeira Cesar Resultado de pesquisa finalizada Grupo de Trabalho 01 – Ciência, tecnologia e inovação Resumo: Ciência e Tecnologia, como a tradição sociológica na área demonstra, são campos do conhecimento permeados por valores externos e geralmente seguem interesses políticos e econômicos no desenvolvimento. Este trabalho procura, a partir deste argumento inicial, expor o modo como a indústria utiliza determinados valores para direcionar a tecnologia na criação de bens de consumo que sejam duráveis, porém obsoletos. Isto se dá pela redução da capacidade técnica a partir da linha de produção, algo definido por Bernard London como “Obsolescência Programada”. Neste trabalho serão também exemplificados os outros tipos de obsolescência resultados do processo de industrialização e algumas de suas consequências para a sociedade capitalista Palavras-chave: Obsolescência, Consumo, Tecnologia Introdução Há uma forte tradição na sociologia da ciência voltada para discutir como valores políticos e econômicos se relacionam com a Ciência. Desde Weber, com seu célebre texto sobre as vocações para cientista e político, em que delimita as funções de cada profissional em sua área e o objetivo de cada um, passando por Merton, expoente entre outros autores de sua época na tentativa de conciliar ambas as questões e mostrar de que formas a ciência, e o desenvolvimento tecnológico da mesma forma como se verá a seguir, são afetados por valores. Na atualidade contamos com filósofos como Robert Brown e Philip Kitcher que mostram que a ciência não está apenas cercada de valores, mas sim contaminada por eles. Os autores citados acima criam uma imagem de como Ciência e Valores se relacionam em sociedades modernas. Mas e quanto ao tratamento dado à tecnologia, enquanto aspecto prático e cotidiano dos usos da ciência, e sua relação com valores? O que se pretende aqui é explorar esta outra face desta dualidade, entendendo o foco aos valores e como afetam as decisões tomadas sobre a tecnologia e os modos de produção em consequência. Os estudos sociais da Ciência e Tecnologia sugerem que estas nem sempre seguem uma agenda própria, trabalhando de acordo com os interesses políticos ou econômicos em certos casos. A questão central abordada aqui trata de um aspecto muito específico desta relação: de como valores econômicos e políticos manipulam a tecnologia e forçam escolhas de modelos de desenvolvimento a partir do conceito da obsolescência, da fabricação em grande escala de produtos que durem menos e possam ser substituídos com facilidade. Este modo de produção pode ser considerado um dos pilares do sistema capitalista desde que a ideia foi desenvolvida, no começo do século XX, e demonstra como as escolhas feitas pela indústria e como os valores em que são calcados moldam e afetam a vida social pela tecnologia de produção e uso destes bens. Em sociedades que valorizam o crescimento econômico se crê que se não ocorre o desgaste não há substituição, e assim não há necessidade de novas produções, algo que teoricamente causaria a estagnação do mercado. A capacidade de descartar objetos e sua rápida substituição torna-se parte do capitalismo da era industrial, mas como estas questões se relacionam, por exemplo, com as transformações sociais e de valores que convergem para a proteção do meio ambiente? É possível, por exemplo, uma economia sustentável em uma sociedade baseada na obsolescência? O artigo está estruturado de modo a esclarecer estas questões a partir da redução da capacidade técnica de objetos cotidianos, definida aqui no conceito de “obsolescência programada”, mas

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    As Formas de Obsolescncia na Sociedade Capitalista Contempornea

    Daniel Jorge Teixeira Cesar Resultado de pesquisa finalizada

    Grupo de Trabalho 01 Cincia, tecnologia e inovao

    Resumo: Cincia e Tecnologia, como a tradio sociolgica na rea demonstra, so campos do conhecimento permeados por valores externos e geralmente seguem interesses polticos e econmicos no desenvolvimento. Este trabalho procura, a partir deste argumento inicial, expor o modo como a indstria utiliza determinados valores para direcionar a tecnologia na criao de bens de consumo que sejam durveis, porm obsoletos. Isto se d pela reduo da capacidade tcnica a partir da linha de produo, algo definido por Bernard London como Obsolescncia Programada. Neste trabalho sero tambm exemplificados os outros tipos de obsolescncia resultados do processo de industrializao e algumas de suas consequncias para a sociedade capitalista Palavras-chave: Obsolescncia, Consumo, Tecnologia

    Introduo

    H uma forte tradio na sociologia da cincia voltada para discutir como valores polticos e econmicos se relacionam com a Cincia. Desde Weber, com seu clebre texto sobre as vocaes para cientista e poltico, em que delimita as funes de cada profissional em sua rea e o objetivo de cada um, passando por Merton, expoente entre outros autores de sua poca na tentativa de conciliar ambas as questes e mostrar de que formas a cincia, e o desenvolvimento tecnolgico da mesma forma como se ver a seguir, so afetados por valores. Na atualidade contamos com filsofos como Robert Brown e Philip Kitcher que mostram que a cincia no est apenas cercada de valores, mas sim contaminada por eles. Os autores citados acima criam uma imagem de como Cincia e Valores se relacionam em sociedades modernas. Mas e quanto ao tratamento dado tecnologia, enquanto aspecto prtico e cotidiano dos usos da cincia, e sua relao com valores? O que se pretende aqui explorar esta outra face desta dualidade, entendendo o foco aos valores e como afetam as decises tomadas sobre a tecnologia e os modos de produo em consequncia. Os estudos sociais da Cincia e Tecnologia sugerem que estas nem sempre seguem uma agenda prpria, trabalhando de acordo com os interesses polticos ou econmicos em certos casos. A questo central abordada aqui trata de um aspecto muito especfico desta relao: de como valores econmicos e polticos manipulam a tecnologia e foram escolhas de modelos de desenvolvimento a partir do conceito da obsolescncia, da fabricao em grande escala de produtos que durem menos e possam ser substitudos com facilidade. Este modo de produo pode ser considerado um dos pilares do sistema capitalista desde que a ideia foi desenvolvida, no comeo do sculo XX, e demonstra como as escolhas feitas pela indstria e como os valores em que so calcados moldam e afetam a vida social pela tecnologia de produo e uso destes bens. Em sociedades que valorizam o crescimento econmico se cr que se no ocorre o desgaste no h substituio, e assim no h necessidade de novas produes, algo que teoricamente causaria a estagnao do mercado. A capacidade de descartar objetos e sua rpida substituio torna-se parte do capitalismo da era industrial, mas como estas questes se relacionam, por exemplo, com as transformaes sociais e de valores que convergem para a proteo do meio ambiente? possvel, por exemplo, uma economia sustentvel em uma sociedade baseada na obsolescncia? O artigo est estruturado de modo a esclarecer estas questes a partir da reduo da capacidade tcnica de objetos cotidianos, definida aqui no conceito de obsolescncia programada, mas

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    considerando tambm outras duas formas de obsolescncia, a tecnolgica e a percebida. A obsolescncia por si s j pode ser considerada um valor, uma forma de aliar os interesses polticos e econmicos baseados para reduzir a vida til de bens durveis. o resultado da conjuno de valores da sociedade de consumo para frear ou direcionar o desenvolvimento tecnolgico. Trs Tipos de Obsolescncia

    Iniciamos esta anlise classificando os tipos de obsolescncia, suas causas e principais problemas agregados a cada uma delas. A obsolescncia tecnolgica se realiza nos casos em que a melhoria tecnolgica leva a substituio de um bem por outro. Nestes casos a inovao gera a quebra de um paradigma anterior, como os aparelhos de televiso digitais, que gradualmente tornam a sintonia por antena obsoleta. Esta primeira forma de obsolescncia trata do desenvolvimento da industrializao e do surgimento de novos produtos e da quebra de paradigmas em um modelo semelhante ao progresso cientfico proposto por Thomas Khun. Um produto substitui seu anterior por quebrar o paradigma, isto , fazer algo que seu antecessor no poderia, da mesma forma que uma explicao cientfica substitui outra que no pode mais explicar a realidade. J a obsolescncia percebida causada pela alterao de um valor social do objeto. O consumidor convencido, geralmente pela propaganda e marketing sobre produtos, a trocar seu bem por um mais novo, melhor ou mais rpido. Os valores sociais exibidos na propaganda so os responsveis por moldar o consumo e evocar a necessidade de um produto novo mesmo que o antigo continue funcionando. O consumidor estimulado a buscar algo alm, maior e melhor. O que interessante notar nesse tipo de obsolescncia que ela no se d pelo fim da vida til de um produto, mas sim pelo surgimento de outro um pouco melhor que, pela propaganda, torna o anterior obsoleto. Um grande exemplo da ocorrncia disso o da telefonia celular, especialmente dos smartphones. A cada ano so lanados novos modelos que causam uma procura na sociedade pela pretensa inovao divulgada pela propaganda. O consumo passa a existir no por necessidade, mas sim por ansiedade. A ideia de que o produto que se tem no to bom quanto o novo implantada na sociedade que est sempre buscando a satisfao sem nunca encontr-la. Novas necessidades so criadas pela propaganda sem que realmente existam, levando ao crescimento econmico e descarte de objetos com pouco uso. Mesmo que no tenham chegado ao fim de sua vida til, artefatos tecnolgicos so jogados fora. A obsolescncia programada, termo utilizado pela primeira vez por Bernard London no comeo da dcada de 1930, resume o modo como a indstria utiliza da tecnologia para regular a vida til de seus objetos, como das lmpadas feitas para durar apenas 1500 horas, artigos de informtica frgeis entre outros exemplos de objetos feitos para durar pouco. Por ser resultado de decises externas motivadas por valores que alteram o modo como a tecnologia utilizada nas linhas de produo, focaremos mais neste ltimo tipo de obsolescncia, sem, no entanto, deixar os outros de lado. A forma tecnolgica de obsolescncia ser apenas brevemente descrita por no representar o objeto central deste trabalho, visto que as formas percebida e programada so, como ser escrito, formadas a partir de valores sociais. Para exemplificar esta situao dois exemplos sero dados: o modo de produo de lmpadas eltricas durante a primeira metade do sculo XX e a substituio de computadores por outros mais modernos e potentes, paralelamente desdobrando a anlise destes pontos utilizando autores na rea de sociologia da cincia. Finalmente, pretendo demonstrar como alguns destes valores se adaptaram ou no ao novo modelo econmico a partir do conceito de desenvolvimento sustentvel, visto que a obsolescncia programada e o modelo de desenvolvimento proposto para o novo sculo so incompatveis.

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    Contribuio da Sociologia da Tecnologia sobre a Obsolescncia

    Para fins de discusso sobre o problema da obsolescncia, admitamos que a tecnologia socialmente construda, ou seja, parte de um processo em que a sociedade e os diferentes grupos formados dentro dela definem os rumos tomados pelo progresso tecnolgico. Da mesma forma que a cincia socialmente construda a partir do que legitimado e admitido como cientfico, ou seja, provado empiricamente e apoiado por uma comunidade. A diferena que, quando colocada a servio da indstria como meio de produo, a tecnologia se torna uma demanda do grupo com maior poder poltico. Dizer que so os valores que guiam as decises algo muito vago e bvio. Somos guiados por valores na maioria das decises e no seria diferente neste caso. Novamente comparando tecnologia e cincia, Brown e Kitcher expem o quanto a cincia determinada por valores, especialmente pelo valor verdade, mas que h outros, tanto sociais quanto cognitivos, na busca de uma cincia bem ordenada (Kitcher), que aparece aqui como um ideal a ser cumprido pela cincia no bem-estar da sociedade, uma forma de dar responsabilidade social para a cincia na busca da satisfao das necessidades de todos. Neste caso a responsabilidade da indstria para com o pblico a de entregar o melhor produto que esteja dentro da falha presumida. Na cincia bem ordenada de Kitcher os processos so democrticos e a cincia est a servio da sociedade, mas o mesmo no pode ser dito do desenvolvimento tecnolgico regiso pela obsolescncia programada. As decises sobre os rumos da tecnologia so guiadas por valores, mas est claro que o poder de deciso no o mesmo para todos os grupos. Os grupos investidores tm maior poder de deciso que os engenheiros, que por sua vez tm maior influncia que o consumidor no projeto final. Parafraseando Hughes, os sistemas tecnolgicos na construo de artefatos incluem grupos organizados em uma hierarquia. justamente essa assimetria poltica que decide os rumos do progresso tecnolgico na indstria. Com o poder de deciso desequilibrado, resulta que as corporaes tm maior poder de deciso sobre os modelos de produo, maior at mesmo que o de muitos governos, enquanto o poder de deciso do consumidor est entre comprar ou no, ou na liberdade de escolha de produtos virtualmente iguais, como o caso das lmpadas eltricas, por exemplo. Os critrios que definem a limitao da vida til de um produto so aqueles que o tornam mais rentvel, mais lucrativo. Se h elevao nos custos de produo para fabricar um bem superior, no h interesse da indstria em investir nisso se o ganho no for equivalente. Cientistas e tcnicos, aqueles mais diretamente responsveis pela inovao tecnolgica, so submissos s decises dos empresrios e investidores. Aqui temos uma releitura de outros dois conceitos utilizados por Kitcher: o de Deliberadores, responsveis por tomar as decises cabveis dentro de sistemas cientficos ou tecnolgicos; e o que chama de Elitismo externo, que aqui revisto no papel impositivo de investidores e grupos que extirpam a autonomia dos tcnicos e projetistas. Em contraponto ao elitismo externo, o elitismo interno, que daria maior autonomia em um campo pelo poder de deliberao de especialistas, no possui a mesma fora em uma cadeia de produo. O poder de deliberar sobre os rumos da tecnologia est em quem tem mais capital para investir. Kitcher percebe tambm que a cincia regida por uma agenda que nem sempre social. A cincia no est livre de interesses ou de uma agenda moral, e o mesmo pode ser dito da tecnologia e inovao. Ambas so reguladas por uma srie de fatores externos, principalmente pela economia e poltica que guiam a inovao tecnolgica. No caso da obsolescncia, em comparao, a agenda no social de forma alguma. No busca o bem-estar da sociedade como objetivo, mas sim como consequncia. As decises tomadas a respeito de que rumo a tecnologia deve tomar no so democrticas e mais, so assimtricas. Porm a assimetria nas decises polticas ocorre no pela posio social, mas pela

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    hierarquia nas decises sobre o produto. H diferentes nveis de tomada de deciso, e o do indivduo como consumidor a mais baixa. O resultado destes processos de deciso que a responsabilidade dos indivduos voltados para as reas tcnicas da produo de bens de consumo a de fornecer para a sociedade o melhor produto, desde que submetido aos padres delimitados pelos detentores dos meios de produo. Em uma sociedade de consumo marcada pela desigualdade os valores da indstria no esto voltados para a sociedade, mas na manuteno dos prprios interesses de mercado, neste caso da substituio constante de produtos. Os valores econmicos e polticos definem os rumos que a tecnologia dos modos de produo e do cotidiano da sociedade devem seguir e assim moldam a prpria sociedade para no questionarem o modelo de produo por obsolescncia. Assim o desenvolvimento tecnolgico leva criao de caixas pretas, outro termo muito utilizado pelos construtivistas para designar artefatos cujo interesse em saber como funcionam ou o conhecimento em torno deles no existe por parte da sociedade. A obsolescncia programada enquanto forma de sobrepor interesses capitalistas ao desenvolvimento tecnolgico molda a cultura da sociedade de consumo para crer que o modo de produo normal e os cientistas fazem tudo que podem. Da mesma forma como pesquisas cientficas so encomendadas por empresas e o grande pblico aceita os resultados cegamente, o mesmo ocorre com a produo industrial, aceita e esperada pelo pblico. No se espera que uma lmpada dure mais que um determinado nmero de horas e isto sequer questionado pela sociedade, que dir de outros objetos que fazem parte do cotidiano, como computadores e carros. A tecnologia possui componentes para solucionar problemas, mas os bens usados cotidianamente so quase todos projetados e criados pela indstria em uma tica capitalista de substituio constante. A vida na sociedade moderna acaba sendo moldada por decises tomadas sobre a tecnologia, aliadas a decises polticas. As escolhas tecnolgicas implicam decises polticas. Mas, ora, o mesmo no pode ser dito da Cincia? A lio que fica dos ensinamentos de Kitcher e Brown que, seja na cincia bem ordenada, seja na tecnologia e no caso mais extremo da obsolescncia programada, h interesses que se sobrepem estas instituies sociais. Nem sempre vindos das mesmas fontes, os valores podem significar reflexos da moral, poltica, economia ou simplesmente buscar a satisfao da sociedade. Cincia e Tecnologia esto servio da sociedade, algumas vezes de setores mais especficos ou grupos mais poderosos dentro da mesma, mas cercadas por valores sempre. Obsolescncia Programada e Percebida

    O conceito de obsolescncia gira em torno da ideia de criao e manuteno de um ciclo de consumo de constante reposio ou substituio de bens. Nestas duas formas tratadas a partir daqui, so reflexo de um modelo de industrializao e do aumento da produo, ou seja, frutos de um modelo econmico insustentvel como ser visto a seguir. Lmpadas que duram cem mil horas, roupas de tecidos sintticos que no rasgam e eletrodomsticos capazes de durar dcadas soam como objetos de contos de fico cientfica, mas so realidades ignoradas pelas indstrias simplesmente porque no convm produzir nenhum destes itens aparentemente milagrosos. Como exposto na introduo, Bernard London foi o primeiro a utilizar o termo para explicar este modelo de produo. Na poca da publicao de seu livro A Nova Prosperidade, no captulo Acabando com a Depresso pela Obsolescncia Programada, London explicava como a produo e consumo constantes seriam a sada vivel para a crise econmica dos anos 30 ao impor um prazo de validade para bens durveis, j que os indivduos buscavam economizar ao mximo e tentavam consertar seus aparelhos ao invs de comprar novos. O plano de London era que ao acabar a vida til de um produto, este deveria ser devolvido a uma agncia do governo onde seria destrudo. Caberia

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    ento ao governo e indstria estimular o indivduo a comprar bens novos. Obviamente uma ideia que nunca saiu do papel para se tornar realidade, mas, durante os anos 50, ressurgiu com uma nova proposta de seduzir o consumidor. Em 1954 o designer Brooks Stevens aprimorou as tcnicas e implantou a obsolescncia programada em eletrodomsticos, que logo se tornou o modelo de produo vigente em toda a indstria pela reduo de capacidade tcnica. O bordo de Stevens era que a obsolescncia programada instigava no consumidor o desejo de ter algo um pouco mais novo, um pouco melhor e um pouco antes do necessrio. Por que no possvel ter bens mais durveis que poderiam simplificar a vida em sociedade? A resposta est nas escolhas feitas pela indstria quando optou por um modelo capitalista de desenvolvimento pela obsolescncia programada. No ano de 1958 Brooks Stevens, em entrevista a True Magazine, afirmou que toda a nossa economia baseada na obsolescncia programada e todo aquele que consegue ler sem mover os lbios sabe disso. Fabricamos bons produtos, induzimos as pessoas a compr-los e no ano seguinte deliberadamente introduzimos algo que far este produto parecer antiquado, anacrnico, obsoleto. Fazemos isso por uma razo clara: fazer dinheiro.1 Em sociedades com alto ndice de desenvolvimento, torna-se mais barato substituir um aparelho eletrnico, por exemplo, do que consert-lo. Isto gera crescimento econmico pela explorao. O capitalismo moderno se estabeleceu sobre valores econmicos de realimentao constante destas coisas cotidianas e satisfao de desejos de consumo, da massificao da propaganda que estimula a compra constante de objetos que no so necessrios e sim desejados. Esta propaganda induz a ideia de obsolescncia percebida. Simplificadamente, a obsolescncia programada e a percebida podem ser explicadas por Juliano quando diz: a primeira planeja, intencionalmente, um produto que tem uma vida til pr-determinada, geralmente curta. A segunda est relacionada com a moda ou com a tecnologia, quando um produto, ainda til, cai em desuso ou descartado porque sua cor no est mais na moda ou pelo surgimento de um produto que tem uma nova funo, que geralmente ser pouco utilizada pelo seu usurio.2 Sabendo como opera a lgica da obsolescncia, como esta se relaciona nas sociedades capitalistas? O consumo nestas sociedades pode ser descrito no quadro abaixo, um fluxograma do modelo de economia de materiais:

    1. Extrao 2. Produo 3. Distribuio 4. Consumo 5. Descarte

    A sequncia resume a vida til de um bem e pode ser aplicado para a produo em larga escala e muito semelhante a outro quadro proposto pelos construtivistas Pinch e Bijker sobre o processo de inovao tecnolgica:

    1. Pesquisa bsica 2. Pesquisa aplicada 3. Desenvolvimento tecnolgico 4. Desenvolvimento de produto 5. Produo 6. Utilizao

    1 SLADE, Giles. Made to Break: Technology and Obsolescence in America. (pp. 153, traduo prpria) 2 JULIANO, Marcio de Cssio. Consumo Excessivo e o Modelo de Economia de Materiais. Revista Terceiro Setor. V3, N1, 2009

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    Se inserimos as formas de obsolescncia nesta ordem, baseada em decises tomadas por aqueles que possuem mais poder dentro do campo, temos um ciclo vicioso em que o descarte se torna a principal fora da indstria e o desenvolvimento tecnolgico direcionado para este fim, o que se torna uma questo essencialmente cultural dentro de sociedades capitalistas. A obsolescncia gerada pela imposio de valores econmicos e decises polticas sobre a tecnologia e os modos de produo adotados pela indstria. Acontece que muito mudou desde a publicao das teorias de London. Por se tratar de um outro contexto, as ideias e valores tambm mudam. Nos anos 1930, em plena depresso econmica, o plano era de produzir mais, vender mais e movimentar a economia pelo descarte forado de produtos. De 1950 em diante, isto , a partir do perodo de prosperidade econmica ps-guerra, a obsolescncia se dava pela simples existncia de algo mais moderno, que deixasse o consumidor mais prximo do futuro. Era o desejo que guiava a vida til dos produtos. Foi um perodo de crescimento desenfreado na sociedade norte-americana. Mas enquanto Brooks Stevens divulgava a felicidade pelos bens materiais, do outro lado da cortina de ferro a realidade era outra. Em Comprar, tirar, comprar podemos ver a diferena cultural do consumo de bens materiais nos pases comunistas. Enquanto os Estados Unidos procuravam meios para criar bens descartveis, na Rssia a lgica de produo era de bens mais durveis. Esta questo atinge os nveis bsicos de produo, desde o planejamento at a fabricao de bens, pois do mesmo modo que em um pas os engenheiros eram pagos para piorar um produto, em outro eram estimulados a encontrar meios de torna-lo mais eficiente e procurando economizar em materiais de produo. Os valores solidificados na sociedade capitalista, de insatisfao do consumidor e possibilidade de substituio ao descartar influenciam no modelo de produo. Percebe-se que so lgicas absolutamente distintas guiadas por ideais diferentes. A obsolescncia fora a movimentao de um ciclo vicioso de produo e consumo, forando o aumento de mercados, e, pela maior produo, a quantidade de empregos disponveis. A lmpada moderna: um exemplo de obsolescncia

    A lmpada exemplifica bem a obsolescncia programada. At o princpio dos anos 1930 as lmpadas eltricas eram produzidas para durarem mais de 1500 horas. Algumas marcas divulgavam capacidade de durar at 2500 horas e havia uma grande variedade de tipos produzidos, com composies, filamentos e formatos diferentes. No Corpo de Bombeiros de Livermore, Califrnia, h uma lmpada que funciona ininterruptamente desde 1901 e nunca foi substituda. Trata-se de uma lmpada fabricada em 1895, previamente ao tratado mundial dos fabricantes de lmpadas. O criador deste tipo de lmpada, Adolphe Chaillet, criou um filamento que dura at o presente, mas cujo modelo de produo foi abandonado por outro considerado mais lucrativo para a indstria. Havia uma grande variedade de modelos de lmpadas com caractersticas e composies diferentes. Assim foi at 1924, quando houve uma reunio internacional com todas as empresas produtoras de lmpadas no que ficou conhecido como Cartel Phoebus. Este encontro foi mantido em segredo, mas h documentos que provam a formao de cartel pelas decises tomadas quanto ao modo de produo das lmpadas e as limitaes tcnicas impostas pelo grupo. Naquela ocasio foi decidido que os fabricantes encontrariam meios de diminuir a vida til para at mil horas e que haveria padronizao de todos os produtos para que o filamento queimasse no perodo certo e fosse necessrio substituir. interessante notar que, em primeiro lugar, houve uma inverso de valores no modo de produo: as primeiras lmpadas de Thomas Edison, em 1871, duravam cerca de 1500 horas. Com o passar das dcadas e com o progresso cientfico os fabricantes anunciavam orgulhosos a durao de 2500 horas de suas lmpadas. At que em 1924 decidiram que era melhor limitar a vida til para 1000 horas e foraram os fabricantes a encontrar meios de produzir segundo estas novas especificaes. De 2500

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    horas em 1924 passaram a 1000 horas em 1940, aps uma srie de transformaes e adaptaes tcnicas. Em poucos anos foi encontrada uma forma de produzir a lmpada idealizada pela Indstria e este modelo padro passou a ser produzido em grande escala. Todo o desenvolvimento tecnolgico desta rea foi desviado segundo o pensamento da indstria, de que se no houvesse algo que impedisse o progresso, na poca, a durabilidade crescente das lmpadas eltricas continuaria e logo no haveria necessidade em substituir lmpadas. Por esta lgica em pouco tempo no haveria sentido em produzir novas lmpadas e a indstria acabaria. O desgaste seria necessrio para a substituio, o que leva ao desenvolvimento econmico. Ou seja, do interesse do mercado que os artefatos funcionem de um modo determinado pela manuteno de interesses. Considerando que a indstria comanda, desenha e recria objetos para torn-los mais frgeis ao invs de mais durveis, algo que vai contra um preceito do progresso tecnolgico de produzir artefatos cada vez melhores. A indstria deliberadamente freia o desenvolvimento tecnolgico em nome dos valores capitalistas. Da mesma forma que diz-se que a cincia deve perseguir a verdade, a tecnologia deveria criar produtos melhores, no pior-los de acordo com a vontade da indstria. Outros exemplos de produtos cujo design foi piorado pela indstria so o nylon e as baterias de eletrnicos. Quando perceberam as possibilidades em uma fibra superior, mais resistente que todas as outras, imaginaram que logo as mulheres no teriam mais que comprar meias de nylon novas para substituir as velhas. Trataram ento de enfraquecer o fio para que rasgasse com facilidade. A empresa Apple, no passado recente, foi denunciada pela imposio deliberada de um prazo de validade de 18 meses para a bateria de ipods, sendo inclusive processada por isso. O problema maior est na impossibilidade de substituir a bateria sem comprar um aparelho novo, algo que irritou consumidores. Temos ento que com o desenvolvimento da industrializao os tcnicos no buscam produzir o melhor artefato possvel sob a crena de que preciso substituir o produto para provocar o crescimento econmico. Consideraes finais: o impacto social da obsolescncia

    A obsolescncia programada possivelmente a principal forma na qual os valores econmicos predominantes afetam a tecnologia e o modo de produo da mesma. Foi um modelo que, durante o sculo XX, predominou como forma de fabricar artefatos com vida til encurtada. Assim, os valores polticos e econmicos vigentes foram o desenvolvimento tecnolgico no caminho contrrio, o que vai contra a lgica da engenharia de produzir algo melhor e mais eficiente, visto que esse deve ser o objetivo da tecnologia da mesma forma que a cincia deve buscar a verdade. Percebe-se a que ambas possuem agendas definidas e deliberadores com maior ou menor poder dentro dos respectivos campos e obedecem a valores de acordo com as posies de tais deliberadores. A questo se torna ainda mais grave quando consideramos que o modelo de produo por obsolescncia no questionado, j considerado algo normal. A sociedade absorveu a ideia de renovao no como algo nocivo, mas necessrio para o progresso. Vimos como surgiu o conceito de obsolescncia programada e como passou a ser o objetivo da indstria capitalista em sociedades de consumo. Vimos tambm que a lmpada, um dos muitos objetos que serve de exemplo singelo para explicar como a obsolescncia funciona, teve sua fabricao revolucionada em nome de valores polticos e econmicos. O desgaste e a substituio se tornaram parte de um ciclo vicioso de consumo e reposio de objetos. Mas e quanto s consequncias do descarte desenfreado de objetos? O Primeiro impacto notado o ambiental dos produtos descartados, tambm citado em Comprar, Tirar, Comprar quando apontam os contineres carregados com computadores e televisores velhos ou quebrados que desembarcam em pases africanos como aparelhos de segunda mo, mas que na realidade, em muitos casos, no podem ser utilizados. A indstria no assume o descarte de objetos,

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    como pretendia London, optando novamente pela soluo mais barata, mesmo que seja prejudicial para as sociedades do chamado terceiro mundo e, principalmente, para o meio ambiente. Quando consideramos que a nova tica de desenvolvimento opera sobre o desenvolvimento sustentvel e divulga esta ideia como a sada para a defesa do planeta, preciso questionar o que de fato a indstria est fazendo para obter este tipo de desenvolvimento. No possvel considerar que haja desenvolvimento sustentvel se no houver mudanas que impeam o desperdcio e o excesso. As atuais mudanas nos valores devem impactar os modos de produo e trazer mudanas sensveis e que acabem com o modelo de obsolescncia tanto para refrear o consumo e o desperdcio, por um lado, quanto por outro que acabaria com o despejo de lixo tecnolgico em pases da costa africana. A soluo para isso est, segundo Michael Braungart, em uma nova perspectiva de produo que chamou de Cradle to Cradle, do bero ao bero em traduo literal. Braungart se refere reutilizao completa de todas as partes de um bem descartado pela mesma indstria que o produziu. uma atualizao da ideia de London, em que retira a responsabilidade do governo e a impe indstria. Em tempos em que o debate ambiental to popular, preciso repensar os moldes de produo. No pode haver uma economia verde ou desenvolvimento sustentvel se no ocorrer esse tipo de mudana nos valores que regem a indstria. Outro fator prejudicial da obsolescncia, tambm causado pelo consumo massivo e substituio constante de bens, o modo como refora a diviso de classes e a estratificao social a partir do consumo. A flutuao dos valores sociais agregados aos bens industriais e o acesso limitado aos mesmos delimita a posio social do indivduo a partir do acesso e da busca pela atualizao e por estar inserido na produo material e cultural. Os valores sociais repassados pela propaganda e pela obsolescncia percebida reforam a disputa de espaos na contemporaneidade a medida que o acesso a determinados produtos se torna um valor hegemnico. Isso nos faz crer que a incluso em um crculo social pela propriedade de um bem tecnologicamente mais avanado em comparao com outro caracteriza uma forma de distino de classe na sociedade capitalista. Concluindo, as formas de obsolescncia programada e percebida dominam o modelo de produo industrial massiva de bens durveis, que se tornam menos durveis do que deveriam ou por uma disposio tcnica ou pela criao da necessidade de algo mais novo. A indstria utiliza a tecnologia e a manipula para projetar objetos com uma vida til encurtada de acordo com os valores da sociedade capitalista que prega o consumo e o crescimento desenfreado. preciso mudar estes valores para romper com este ciclo e procurar um novo modelo que no explore como o modelo atual. Referncias Bibliogrficas

    Video documentrio: Comprar, tirar, Comprar: A Histria secreta da Obsolescncia Programada. Direo de Cosima Dannoritzer. Espanha, 2011

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