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Castelo Branco Científi ca - Ano III - Nº 06 - julho/dezembro de 2014 - www.castelobrancocientifi ca.com.br 1
Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255
O FANTÁSTICO NA OBRA “A VÊNUS D'ILLE” DE PROSPER MÉRIMÉE
Vanessa Gasparini
RESUMO
O gênero Fantástico caracteriza-se por apresentar situações que ultrapassam os limites da realidade e
adentram no espaço da imaginação, onde são traçadas explicações que perpassam do mundo real ao
irreal. A narrativa “A Vênus D'Ille”, de Prosper Mérimée, apresenta em sua inteireza um enigma não
elucidativo planejado pelo autor. Esse mistério percorre toda a narrativa e desemboca ao final da obra,
momento em que a elucidação é possível somente a partir de uma decisão do leitor. A manifestação do
sagrado e do profano na obra será refletida através da representação desses por meio de elementos
evidentes e elucidativos. Diversas hipóteses literárias acerca do gênero fantástico serão discutidas;
entre elas, as do famoso filósofo Tzvetan Todorov, que esboça, sucintamente, fundamentos a respeito
do conceito e obejtivos desse gênero.
PALAVRAS-CHAVE: Fantástico. Prosper Mérimée. Mistério. Todorov.
INTRODUÇÃO
A literatura fantástica envolve um conjunto de textos que delineiam por suas tramas circunstâncias
insólitas, permitindo elementos e conceitos que se harmonizam paradoxalmente. Conflitos se
entrecruzam entre real e irreal, razão e loucura, morte e vida, natural e sobrenatural, corpo e espírito
etc., sobressaindo um efeito discursivo de instabilidades perceptivas. Ambiguidades, que por
momentos se apresentam desprovidas de quaisquer desígnios aparentes, tomam uma dimensão
absurda em efeitos característicos do conto fantástico.
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A comumente sensação de estranheza é o fato predominante em uma narrativa fantástica A fim de
atingir seus objetivos, a obra fantástica esboça fatos anímicos, dimensões e aspectos que aproximam e
relacionam o “possível e o impossível”, ao passo que os leitores e os personagens se envolvem e
acompanham o desencadear da narrativa. As narrativas fantásticas, em grande parte, procuram expor
seus universos o quanto mais próximos do cotidiano, aproximando-se da realidade ao mesmo tempo
em que a deixam em suspenso, dado que, atualmente, tudo que não traz o símbolo da realidade e da
autenticidade causa aborrecimentos aos leitores. O entrelaçamento entre o fantástico e o real ocorre de
tal maneira que a isolação entre eles se torna inviável. Segundo Ray Bradbury, coordenador de uma
magnífica antologia de contos fantásticos, um escritor de narrativas fantásticas visa, indubitavelmente,
levar o leitor à sensação de “irrealidade da realidade”. Conforme Todorov, “o fantástico é a hesitação
experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente
sobrenatural” (TODOROV, 1970, p.29).
Todorov integra o conceito de fantástico ao denominá-lo como um gênero que abrange acontecimentos
denominados duvidosos, misteriosos e improváveis no contexto de suas respectivas obras: “Há um
fenômeno estranho que se pode explicar de duas maneiras, por meio de causas de tipo natural e
sobrenatural. A possibilidade de se hesitar entre os dois criou o efeito fantástico.” (TODOROV, 1968,
p.31). O fantástico também era visto como instrumento teórico de Sigmund Freud. Para esse autor, a
literatura fantástica aproximava-se do mundo dos sonhos, onde uma simples lembrança poderia tornar-
se um evento excepcional. Ademais, Freud estabelece a palavra “estranho” como um sentimento
diferencial de medo.
Diante da exposição da caracterização geral da literatura fantástica, especialmente marcas específicas
desse gênero literário, observam-se fundamentos que edificam problemas típicos da tradição filosófica
e que adquirem, nestas narrativas, características que agregam o discurso filosófico e o literário.
Destarte, discutir-se-ão, neste trabalho, hipóteses literárias acerca do fantástico e demonstrar-se-ão
elementos característicos do sagrado e do profano e a partir dessa etapa, ter-se-á uma concisa discussão
a respeito da presença de elementos fantásticos no decorrer da obra “A Vênus d'Ille”, de Prosper
Mérimée.
MATERIAL E MÉTODOS
O processo de pesquisa constitui uma atividade científica que, por meio da indagação e reconstrução
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do objeto de estudo, alimenta a atividade de ensino. Vinculado a esse pensamento, esta investigação
baseou-se, quanto à sua natureza, em uma pesquisa básica, apresentando um caráter exploratório-
descritivo, por meio da pesquisa bibliográfica. O discurso expõe, pelo Método Fenomenológico, os
conhecimentos que surgem na obra de Proper Mérimée, ainda que a realidade não seja única diante das
várias interpretações do fantástico existentes na obra. Elaborou-se um estudo teórico a partir de
reflexões de autores como Todorov, Freud, Rodrigues, Eliade e outros. Sucederam-se leituras
sucessivas de materiais que abordam o fantástico, tanto em bibliotecas como a inserção em base de
dados em busca de artigos e outros formatos de textos, seleção de informações pertinentes e relevantes
que pudessem relacionar as ideias impressas na obra, assim como possíveis contribuições que
pudessem levar às categorias conceituais para validar as afirmações da pesquisa.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Um acontecimento, supostamente irreal, eclode no cotidiano das personagens da obra “A Vênus d'Ille”,
de Prósper Mérrimé. O texto, escrito em 1835, desencadeia, em um fato concreto, questionamentos
sobre o fantástico e cria um ambiente literário propício a reflexões histórico-culturais de uma narrativa
pertencente ao tardio romantismo francês.
A hipotética humanização da estátua, na obra “A Vênus d'Ille”, acarreta o repensar acerca do real
enquanto ideia. A concepção de traços humanos ao monumento desencadeia uma série de polêmicas
ligadas à veracidade dos acontecimentos a personagens e leitores. Conforme Rodrigues, no gênero
fantástico a temática das estátuas que ganham vida surge, historicamente, por meio da separação das
crenças ligadas à religião e das superstições que transcorrem eras, relembrando períodos pertencentes à
antiguidade greco-romana ou ademais civilizações,
[...] pois os gregos antigos cuidavam das estátuas dos seus deuses como se fossem os
próprios deuses, capazes de atos de vinganças ou bendições. Na Idade Média, o
mesmo acontecia: às estátuas (de santos), aos ícones sagrados atribuíam-se poderes
de cura, de castigo, etc. (RODRIGUES, 1988, p. 38).
Um conjunto de referências e marcas, presentes na narração, faz com que a estátua torne-se portadora
de traços humanos e, consequentemente, seja vista como um caso indecifrável e até mesmo irreal. Esses
“indícios” são destacados em alguns trechos: “Ela fixa na gente os grandes olhos brancos”
(MERIMÉE, 2004, p. 243), “não engulo o rosto dessa estátua. Ela tem um jeito malvado... ela também
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é malvada” (Ibidem, p. 244).”Ela me rejeitou!, gritou” (Ibidem, p. 249). Esses acontecimentos,
conjecturavelmente considerados de autoria da estátua, poderiam ser naturalmente ou racionalmente
explicáveis. Os grandes olhos brancos poderiam ser compreendidos como uma camada de bronze
incrustada, pois esse é um atributo típico das esculturas romanas; e as expressões faciais a que a
atribuíam eram resultado de uma equivocada interpretação ou até mesmo devido ao medo relacionado
à queda espontânea do monumento sob a perna de um personagem. Com a queda, a estátua provocou a
ruptura do membro do figurante, com isso, os personagens criaram enorme aversão à Vênus, pois
julgaram intencional o ato cometido por ela.
Por meio das atribuições concedidas à estátua, entende-se que ela é vista pelos personagens como um
objeto extremamente malicioso e temido. Essas características surgiram devido à percepção da mente
humana em relação aos limites da realidade e provocam, consequentemente, uma tensão entre o
verossímil e o inverossímil. A discussão que surge, a partir dessa situação, baseia-se na reflexão acerca
das dimensões e limitações da percepção humana relacionada a questões que exigem interpretações
complexas ligadas à realidade figurada. Como relata o narrador, “Aqueles olhos brilhantes produziam
uma certa ilusão que lembrava a realidade, a vida.” [...] Porém, nesse rosto de inacreditável beleza liam-
se desdém, ironia, crueldade” (Mérimée, 2004, p. 250). O estranhamento e a ambiguidade
demonstrados nesses trechos sintetizam o efeito “macabro” elaborado em torno da Vênus. A inscrição
desconhecida “TVRBUL”, encontrada sob a estátua, reforça ainda mais a ambivalência acerca da
“personalidade” do monumento.
A narrativa “A Vênus d'Ille” tem seus limites expandidos ao passo que os elementos para a atuação do
sobrenatural sobre o espaço cotidiano das personagens são elaborados. O conjunto de superstições
ainda correntes na atual sociedade são exemplos relevantes dessa concepção, visto que são
demonstrados pela narrativa por meio da crença supersticiosa de não realizar casamentos às sextas-
feiras, gesto sagrado das famílias tradicionais da época. Essa crendice corrobora a grande atuação do
passado sobre o presente, tornando aquele um elemento de grande significação sobre este.
A diferença entre o fantástico e o maravilhoso molda-se a partir do fato de este, segundo Calvino
(1992), referir-se aos contos de fadas e às fábulas, em que o sobrenatural é totalmente exequível, visto
que o leitor já se encontra preparado a deparar-se com acontecimentos impossíveis e irreais durante a
leitura desse gênero. Já o fantástico é caracterizado pela ideia de causar dúvidas e indecisões aos
leitores. Destarte, quanto maior for a hesitação entre o real e o extraordinário, maior será o sucesso de
uma obra fantástica. Para o autor de uma narrativa fantástica, é essencial que haja incerteza ao leitor
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durante a leitura da narrativa, pois se essa hesitação se extinguir, o fantástico torna-se inexistente,
transformando-se em maravilhoso ou realista.
O sagrado e o Profano
Conforme Mircea Eliade, a compreensão da dimensão do sagrado só é exequível quando o conceito é
abordado em sua conexão binária com o profano. O sagrado é definido como o antagônico ao profano,
este designado comum, normal, enquanto aquele é compreendido como o curioso, incomum, dotado
de uma significação extraordinária. Assim sendo, o sagrado estaria intimamente relacionado à
definição de “hierofania” (ELIADE, 1992, p.17), isto é, de algo que se “declara”; que
concomitantemente se revela e se encobre no mundo sensível. Essa declaração suscita “uma rotura na
homogeneidade do espaço, como também revelação de uma realidade absoluta, que se opõe à não
realidade da imensa extensão envolvente” (ELIADE, 1992, p.17). A referida rotura do ambiente
profano, a qual é imparcial e uniforme, integra um meio de interação entre o visível e o invisível. Ao
passo que o profano incumbe-se à definição de ordinário, ao sagrado compete a do extraordinário.
A representação do sagrado e do profano na obra “A Vênus d' Ille”dá-se, respectivamente, por meio da
adoração à estátua pelo fazendeiro e pela descrença dos demais personagens, os quais conceituavam-
na como um simples monumento.
Mistério
Marcado por um enigma que não foi desvendado, o final da obra acarreta aos leitores a curiosidade
acerca da solução desse mistério. Na verdade, o autor nos concede duas explicações viáveis: a história,
em sua inteireza, pode ser esclarecida por meio de uma sequência de acontecimentos banais, e, caso o
leitor tenha um espírito positivo, ficará satisfeito; de outro lado, sugere-nos uma interpretação
maravilhosa, extraordinária que ultrapassa os limites da realidade e explora o espaço da nossa
imaginação fazendo com que assim, o inexplicável passe a ser explicável.
A ideia de que um narrador desconfiado está presente na obra é tomada e sustentada a partir da posição
dele quanto aos fatos narrados: por estar superior, aparenta colocar-se sob os fatos narrados e olhar
para tudo e para todos por meio de uma visão longínqua, distante e imparcial. A não elucidação da
obra também é um fato que reforça essa ideia, deixando íntegro o desfecho da história – conforme
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decisão do próprio leitor. O narrador é cauteloso e investigativo a tal modo que jamais profere uma dica
sequer acerca da solução do enigma. Em certos momentos, chega até mesmo a ser esquivo pelo fato de
não conceder informações concretas para uma explicação aceitável. O momento em que busca por
plausíveis pistas abandonadas na noite passada é ilustrativo: "Debalde percorria a casa, procurando por
toda parte traços de arrombamento. Desci ao jardim para verificar se os assassinos teriam tido
possibilidades de introduzir-se por aquele lado; mas não encontrei o mínimo indício positivo. A chuva
da véspera de tal modo ensopara o solo, que nele não havia rastos bastante nítidos. Entretanto, viam-se
algumas pegadas profundamente impressas na terra; seguiam duas direções opostas, mas no mesmo
rumo, pois partiam da cerca contígua ao campo de péla, e desembocavam na porta da casa e vice-versa.
Podiam ser os passos do Sr. Alphonse quando fora buscar o anel no dedo da estátua. Além disso, a cerca
era menos espessa nesse lugar do que em qualquer outro ponto. Passando e repassando diante da
estátua, detive-me um momento para examiná-la. Forçoso é confessar que não pude contemplar-lhe a
expressão perversa do rosto sem um sentimento de terror; e, com a cabeça ainda repleta de cenas
impressionantes, que acabara de testemunhar, não é de estranhar que me assaltasse a impressão de que
aquela infernal divindade festejava a desgraça desferida sobre a casa." (MERIMÉE, 2004, p. 152 e
153).
Merimée é um narrador que descreve justamente o que vê, sem mais ou menos informações do que o
necessário. Ele não é elucidativo enquanto não encontra fundamentos para tal, conservando íntegra sua
posição e acondicionando-se de quaisquer erros ou desordem.
CONCLUSÕES
O estranhamento ao leitor sob uma obra fantástica, segundo a teoria de Freud (2003), dava-se a partir
de um abalo emocional contido que ocorreria repentinamente. O universo do estranhamento consistia-
se em um mundo em que acontecimentos incomuns ocorreriam. A fim de provocar esse sentimento ao
leitor, o escritor, inicialmente, simularia uma situação ligada à realidade, mas ao final, desenvolveria
acontecimentos que excederiam o limite do real. Ao adotar essa técnica em “A Vênus d'Ille”, Mérimée
explora elementos que delineiam o fantástico e despertam mistérios e indecisões aos leitores em torno
da estátua. Esses elementos baseiam-se na concessão de traços e ações humanas à Vênus os quais
desencadeiam uma discussão acerca dos limites da realidade e da percepção humana em relação a
acontecimentos sobrenaturais. O mistério ligado à “personalidade” da estátua, pretendido pelo autor,
perpassa a obra por completo e somente pode ser desvendado a partir da interpretação idealizada ou
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racionalizada do leitor. O autor ainda trabalha com elementos que esboçam o sagrado e o profano, este
representado pelos personagens que designavam a estátua como um fútil monumento, enquanto aquele
era demonstrado por meio da adoração à Vênus pelo fazendeiro. Nesse caso, discussões acerca do
fanatismo religioso podem ser relevadas e discutidas por se tratar de uma idolatração a algo fora do
comum.
Finalmente, através de elementos característicos do gênero fantástico, Mérimée tem a capacidade de
“prender a atenção” dos leitores à obra, ao mesmo tempo em que lhes causa dúvida, mistério e
estranhamento, sendo este, segundo Freud, citado por Sá (1980). “...o estranho é aquela categoria do
assustador que remete ao que é conhecido, de velho e a muito familiar”.
REFERÊNCIAS
BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: &PM,1987.
ELIADE, Mircea.“Cosmical homology and yoga”, journal of the Indian Societh of Oriental Art, 1937,
pp. 188-203.
FREUD, S. O estranho. In: Edição Standard Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.17.
Rio de Janeiro: Imago, 1980.
MÉRIMÉE, Prosper, A Vênus de Ille, Carmen e outros contos, editora Ediouro, págs. 152 e 153 -
grifos meus.
ROBLES, Martha. Mulheres, mitos e deusas: o feminino através dos tempos / Martha Robles;
tradução de William Lagos, Débora Dutra Vieira. São Paulo: Aleph, 2006.
RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988.
RÓNAI, Paulo, Mérimée Contista, palavras de Saint-Beuve, Carmen e outros contos, Editora Ediouro,
págs. 10 e 11
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Tradução do francês p/ espanhol: Silvia
Delpy. São Paulo: Perspectiva, p.15/16, 1992.