Gláucio Soares Pesquisa Rica em Países Pobres

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Pesquisa Rica em Países Pobres? Gláucio Ary Dillon Soares Há relação entre o custo das pesquisas e o seu valor científico? Pesquisa cara é, realmente, melhor? Não conheço, antecipadamente, as respostas, mas tenho hipóteses e histórias para contar. Não creio que a resposta seja a mesma em todas as disciplinas. Em algumas delas, como a de partículas elementares, é difícil pesquisar na fronteira do conhecimento sem custosos equipamentos de ponta. Mas nas ciências sociais é perfeitamente possível fazê-lo, gastando pouco. Na América Latina, creio que as pesquisas mais produtivas (tanto por causa do pequeno investimento feito, quanto pela importância dos resultados obtidos) foram artesanais e baratas. Questões importantes do ponto de vista social raramente podem ser pesquisadas com dados de um só tipo, como um survey ou séries sobre a renda nacional, ou, como afirmou C. Wright Mills, de um golpe só. (1) Os surveys, por exemplo, entram como parte importante nas respostas a muitas questões importantes, pois são instrumentos privilegiados para aferir o que pensa a população. Exemplifiquemos com o Estado de Segurança Nacional: seu estudo requer, se possível, entrevistas em profundidade, ‘qualitativas’, com militares e outros atores relevantes, análise de conteúdo de documentos, exame da legislação e das ações repressivas, e muito mais. Qualquer pesquisa sobre tema tão amplo e elástico será necessariamente parcial (sempre aparecem mais facetas e relações para pesquisar), mas um estudo baseado apenas em um tipo de dado deixa muita coisa a descoberto. Esta dificuldade tem aspectos positivos: permite uma dialética constante entre o pesquisador e o que é pesquisado, entre sujeito e objeto. (2) Quase todos os dados secundários permitem ‘voltar’ para uma segunda, terceira ou enésima análise, com custo reduzido. Este vaivém traz um grande benefício: permite que, sob o impacto dos dados, as hipóteses iniciais sejam mudadas e, a cada passo, a cada dado novo incorporado, sucessivamente reformuladas. Isto requer um mínimo de abertura do pesquisador, cujo compromisso deve ser o de descobrir a melhor explicação possível, e não o de reafirmar suas convicções prévias. Infelizmente, alguns tomam a necessidade de reformular as hipóteses - seja porque os dados o exigem, seja porque um bom crítico a demonstra - como derrota pessoal e não comoenriquecimento do produto. Embora metodologicamente salutar, a tentativa de aproximar o desenho prévio da pesquisa social e o desenho experimental às vezes conduz a escolhas inadequadas.

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Revista Brasileira de Ciências Sociais 1991

Transcript of Gláucio Soares Pesquisa Rica em Países Pobres

  • Pesquisa Rica em Pases

    Pobres?

    Glucio Ary Dillon Soares

    H relao entre o custo das pesquisas e o seu valor cientfico?

    Pesquisa cara , realmente, melhor? No conheo, antecipadamente, as

    respostas, mas tenho hipteses e histrias para contar.

    No creio que a resposta seja a mesma em todas as disciplinas. Em

    algumas delas, como a de partculas elementares, difcil pesquisar na

    fronteira do conhecimento sem custosos equipamentos de ponta. Mas nas

    cincias sociais perfeitamente possvel faz-lo, gastando pouco. Na Amrica

    Latina, creio que as pesquisas mais produtivas (tanto por causa do pequeno

    investimento feito, quanto pela importncia dos resultados obtidos) foram

    artesanais e baratas. Questes importantes do ponto de vista social raramente

    podem ser pesquisadas com dados de um s tipo, como um survey ou sries

    sobre a renda nacional, ou, como afirmou C. Wright Mills, de um golpe

    s. (1) Os surveys, por exemplo, entram como parte importante nas respostas

    a muitas questes importantes, pois so instrumentos privilegiados para aferir

    o que pensa a populao. Exemplifiquemos com o Estado de Segurana

    Nacional: seu estudo requer, se possvel, entrevistas em profundidade,

    qualitativas, com militares e outros atores relevantes, anlise de contedo de documentos, exame da legislao e das aes repressivas, e muito mais.

    Qualquer pesquisa sobre tema to amplo e elstico ser necessariamente

    parcial (sempre aparecem mais facetas e relaes para pesquisar), mas um

    estudo baseado apenas em um tipo de dado deixa muita coisa a descoberto.

    Esta dificuldade tem aspectos positivos: permite uma dialtica

    constante entre o pesquisador e o que pesquisado, entre sujeito e

    objeto. (2) Quase todos os dados secundrios permitem voltar para uma segunda, terceira ou ensima anlise, com custo reduzido. Este vaivm traz

    um grande benefcio: permite que, sob o impacto dos dados, as hipteses

    iniciais sejam mudadas e, a cada passo, a cada dado novo incorporado,

    sucessivamente reformuladas. Isto requer um mnimo de abertura do

    pesquisador, cujo compromisso deve ser o de descobrir a melhor explicao

    possvel, e no o de reafirmar suas convices prvias. Infelizmente, alguns

    tomam a necessidade de reformular as hipteses - seja porque os dados o

    exigem, seja porque um bom crtico a demonstra - como derrota pessoal e no

    comoenriquecimento do produto. Embora metodologicamente salutar, a

    tentativa de aproximar o desenho prvio da pesquisa social e o desenho

    experimental s vezes conduz a escolhas inadequadas.

  • Em pases pobres, a pesquisa artesanal pode ser mais adequada do que

    a organizacional. Na primeira, o principal fator produtivo o tempo do

    pesquisador ou de um pequeno grupo de pesquisadores. O pesquisador

    principal participa, ainda que em grau varivel, de todas as etapas, reduzindo a

    distncia que o separa dos vrios tipos de informao. Embora a pesquisa

    artesanal possa perfeitamente ser orientada para fins imediatos, ela tambm

    pode integrar um conjunto maior, que a prpria maneira do pesquisador

    viver. Assim entendida, ela geralmente (mas no necessariamente) se estende

    por um perodo considervel e, s vezes, custa a aparecer como pesquisa

    propriamente dita. Quando a coleta de informaes sobre muitos temas parte

    de um estilo de vida, os primeiros contornos para um artigo, conferncia ou

    livro aparecem quando muito material j foi reunido. Dele, surge o prprio

    projeto para o artigo ou o livro, que intensifica e passa a orientar a coleta de

    dados, a busca de conceitos e o aprofundamento de teorias. um tipo de

    pesquisa que geralmente (mas no necessariamente) utiliza diversas fontes,

    coletando dados primrios de maneira barata.

    As pesquisas organizacionais, comuns nos Estados Unidos, diferem em

    vrios pontos das artesanais: so grandes, caras e, alm de produzirem

    conhecimentos, visam, de maneira raramente explcita, ajudar a financiar um

    departamento, parte dos salrios de pesquisadores e alunos de ps-graduao

    que funcionam como assistentes. (3) Como, nos Estados Unidos, a promoo

    e o prestgio dos pesquisadores dependem parcialmente de sua grantmanship,

    sua habilidade em obter recursos, muitos fatores os empurram para

    transformar-se em vendedores de pesquisas. A pesquisa organizacional requer

    um complexo aparelho administrativo e de trabalho: h pesquisadores

    principais, supervisores de campo, entrevistadores, codificadores,

    programadores, administradores secundrios, secretrias. Cresce, nesse tipo de

    pesquisa, a distncia entre, de um lado, o pesquisador responsvel e, de outro,

    o dado e a anlise.

    Historicamente, os superprojetos tm sido surveys, mas podem ser de

    muitos outros tipos. Alguns comearam como projetos ou programas com fins

    determinados, de curto ou mdio prazos, mas se institucionalizaram,

    transformando-se em centros ou institutos. Na medida em que alguns projetos

    se institucionalizam, isto , se transformam em instituies - com diretor

    permanente, papel timbrado, oramento prprio e personalidade jurdica -, sua

    relao insumo-produto pode mudar. Por exemplo: poucos pases na Amrica

    Latina tm uma instituio dedicada memria nacional e histria oral.

    Estimulo, constantemente, pesquisadores desses pases a desenvolverem

    projetos de pesquisa nessa rea, torcendo para que eles se transformem em instituies, salvando parte importante da memria do pas. Toro, tambm,

    para que essas instituies sejam de real interesse e utilizao pblica,

    abrindo seus arquivos a todos.

    A pesquisa artesanal e a organizacional so apenas dois dos muitos

    tipos de pesquisa, que podem ser classificados em vrias dimenses. No auge

    do entusiasmo com as pesquisas comparadas e as contribuies dos surveys,

  • houve, na Amrica Latina, esforos no sentido de

    realizar surveys comparados. No fim da dcada de 1950 e no incio da de

    1960, houve dinheiro para lev-los a cabo, ensejando custosas pesquisas sobre

    estratificao social na Argentina, no Brasil, no Chile e no Uruguai. Foram,

    talvez, as primeiras grandes pesquisas comparadas feitas na Amrica Latina e

    geraram certo entusiasmo. Mas produziram pouco. Os dados argentinos foram

    mais ou menos analisados e artigos foram publicados, graas pertincia e

    competncia de Gino Germani, mas nos demais casos os resultados no foram

    significativos. Algumas pesquisas no chegaram sequer a ser analisadas, o

    que, alis, no era situao incomum.

    Por que as pesquisas no eram - e, em algumas instituies, ainda no o

    so - analisadas em detalhe? Por que a relao insumo/produto to alta e a

    atividade de pesquisa to ineficiente?

    Em primeiro lugar, porque a preparao de muitos pesquisadores

    termina onde a anlise comea. Nas duas dcadas passadas, depois de certa

    luta, da realizao de muitas pesquisas e da divulgao de suas contribuies,

    a pesquisa emprica ganhou adeptos na Amrica Latina, ficando claro que ela

    no era propriedade exclusiva de americanos, americanfilos e reacionrios.

    Desprovida de cor ideolgica, tambm poderia ser usada para fazer denncias

    sociais. (4) Muitos cientistas sociais progressistas, que antes se dedicavam

    exclusivamente ao trabalho conceitual passaram a namorar a pesquisa. Mas namorar uma coisa, saber fazer outra. Devemos, mais uma vez, fazer jus

    influncia muito positiva de alguns programas, como a srie de pesquisas sobre

    relaes tnicas e raciais, patrocinada pela Unesco, e a dirigida e estimulada por

    Florestan Fernandes e o grupo de jovens pesquisadores paulistas, incluindo nomes de

    esquerda, como Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni. Este grupo lanou um

    programa que, embora no conjunto fosse institucional, inclua pesquisas individuais que

    tinham muito de artesanais. O programa identificou uma temtica social e teoricamente

    relevante e distribuiu tarefas entre os pesquisadores. Anos mais tarde, haviam sido

    publicados vrios livros que influenciaram uma gerao de socilogos. Haveria que

    agregar, tambm, a influncia muito positiva de Donald Pierson que, embora no

    desenvolvendo uma linha de pesquisas, contribuiu para divulgar e legitimar a pesquisa

    social, alm de treinar muitos pesquisadores.

    O resultado foi o incio do fim da posio-absurda que colocava a

    pesquisa de campo, em si, na condio de instrumento reacionrio. Entre os

    que antes a rejeitavam, muitos passaram a querer realiz-la. Mas nem todos

    estavam preparados para isso. Em uma dcada, foram criados vrios centros e

    institutos de pesquisas e surgiram as primeiras dotaes para essa atividade.

    Em suma, institucionalizou-se a pesquisa. Entretanto, aps tantos anos de

    resistncia, a preparao de muitos pesquisadores deixava muito a desejar, e

    poucos tiveram a coragem e a firmeza necessrias para uma reciclagem,

    mesmo individual. No sei at que ponto a atmosfera intelectual que existia no

    mundo intelectual da poca contribuiu para isto. Esses cientistas sociais no

    parecem ter percebido que a formao profissional um processo realmente

    contnuo e que, com freqncia, necessrio dar uma parada para aprender

    algo novo ou para saber melhor algo que se sabia mal.

  • Repetindo: uma coisa a abertura para pesquisar; outra, a competncia

    para faz-lo. No survey, por exemplo, o mais fcil elaborar o questionrio.

    Em certo sentido, qualquer um pode fazer isso, embora a ausncia de tcnica

    traga problemas, alguns dos quais passam desapercebidos aos pesquisadores,

    levando-os a concluses falsas. Treinar os pesquisadores tambm no um

    problema do outro mundo, ainda que, mais uma vez, se isto for feito sem

    cuidado e sem tcnica, a qualidade dos dados ser prejudicada. (5) Nos casos que citei acima, os maiores problemas apareceram quando os dados j

    estavam coletados. Para comear, poucos eram os pesquisadores treinados para

    trabalhar com equipamento minimamente eficiente (na poca, eram as classificadoras-

    contadoras de cartes). Alguns foram, ento, obrigados a trabalhar manualmente, s

    vezes fazendo pilhas com os prprios questionrios, para depois cont-los, s vezes

    fazendo pauzinhos no papel. Com tais procedimentos, uma simples tabulao cruzada era, literalmente, uma mo-de-obra. Conseqentemente, pouqussimas tabulaes eram

    feitas. Os problemas, entretanto, no terminavam a. A falta de treinamento formal,

    ainda que elementar, em mtodos de pesquisa, estatstica e matemtica (6) impediu que

    se usassem os dados de maneira apropriada e efetiva. Muitos pesquisadores coletaram

    dados, mas no os analisaram. Lembro-mede um convite feito por Darcy Ribeiro, ento

    no CBPE, creio que no incio da dcada de 1960, para analisar dados de vrias

    pesquisas que estavam insuficientemente trabalhados ou que, simplesmente, haviam

    sido abandonados aps a coleta.

    Pouqussimos usavam computadores naquela poca. Quase todos

    necessitavam trabalhar com vrios intermedirios - estatsticos e

    programadores, alm dos entrevistadores e supervisores de campo - criando

    uma distncia muito grande entre o pesquisador e o dado, ou entre o

    pesquisador e a anlise. Essa situao rouba duas importantes fontes de

    inspirao. A primeira a prpria situao de entrevista, particularmente no

    caso das mais demoradas, qualitativas, com mltiplas visitas. Elas colocam

    problemticas e explicaes que provm dos prprios entrevistados, cujo

    mundo social e cultural, freqentemente, muito distante do mundo do

    pesquisador. Infelizmente, muitos rejeitam esse contato direto e extenso,

    preferindo impor questionrios produzidos no escritrio, inspirados s vezes

    em leituras sobre realidades muito diferentes. Praticam, no mundo da

    pesquisa, a mesma espcie de vanguardismo e verticalismo que rejeitam no

    mundo da poltica.

    A segunda fonte de inspirao que fica prejudicada a possibilidade do

    pesquisador brincar com osdados, excelente fonte de problemas e questes no previstas. Robert Merton fez questo de enfatizar o papel. do acaso, o que

    chamou de serendipity, nas descobertas da cincia. Devemos aumentar a

    probabilidade de novas descobertas atravs da serendipity,manuseando

    exaustivamente os dados e visualizando suas possveis combinaes. Isso era

    trabalhoso antes do advento e da generalizao dos computadores. Os pacotes

    interativos, no entanto, permitem brincar com os dados, de forma fcil e

    barata, modificando as tabelas, grficos ou equaes, com o resultado

    aparecendo na tela em pouco tempo.

  • Outro fator que contribuiu seriamente para reduzir a rentabilidade das

    pesquisas foi a instabilidade poltica. Nas ditaduras, a priso de cientistas

    sociais rotina. Muitos foram exilados; outros abandonaram os seus pases

    por causa do receio, muitas vezes real, de uma priso iminente. A opresso

    no reconheceu fronteiras ideolgicas. O sufoco afetou cientistas sociais

    marxistas e burgueses. A solidariedade de muitos burgueses, que surpreendeu muitos marxistas, e o convvio pessoal no exlio contriburam para diminuir a distncia entre os dois grupos, com benefcios mtuos. O

    exlio trouxe outros benefcios: proporcionou, para um grupo, a importante

    descoberta da Amrica Latina, sobre a qual os brasileiros eram atrozmente

    ignorantes; para outro, um saudvel realismo a respeito da vida cotidiana em

    pases socialistas; para terceiros, um saudvel realismo a respeito da vida

    cotidiana nos pases capitalistas centrais. Mas, com o exlio forado,

    deixavam-se para trs, s vezes para sempre, dados e todo o resto do material

    de pesquisas, incluindo entrevistas, fitas magnticas, cartes (na poca ainda

    no se usavam disquetes). Alm disso, as freqentes invases das

    universidades, ocasionalmente com destruio de laboratrios, queima de

    livros, interrupo do fornecimento de energia (que destrua experincias em

    curso) acarretavam, no mnimo, srios inconvenientes e, no mximo, a perda

    de anos de trabalho. Mas, num exlio, h muito mais do que isto. Os

    pesquisadores que tinham funes polticas subjetivamente relevantes, que

    acreditavam estar contribuindo para melhorar seus pases, tiveram que passar

    por um reajustamento profundo. Podemos citar a experincia muito positiva

    da maioria dos brasileiros que buscou exlio no Chile na dcada de 1960, mas

    preciso no esquecer a difcil adaptao dos prprios chilenos, alguns anos

    mais tarde. A magnitude deste problema se refletiu no fato de termos

    discutido seriamente, no Conselho Latino-Americano de Cincias Sociais

    (Clacso), a criao de um fundo destinado a transferir pesquisadores e

    materiais de pesquisas de um pas para outro.

    H um conflito entre os objetivos ideolgicos, nacionais e sociais dos

    pesquisadores, por um lado, e os seus objetivos institucionais e interesses

    pessoais, por outro. Os fundos para as pesquisas tambm so usados, com

    muita freqncia, para manter instituies de ensino e pesquisa. Algumas

    delas - particularmente Organizaes No Governamentais (ONGs), como o

    Iuperj, o Idesp, o Cebrap, o Cpdoc ou o Cedec, que tm contribudo de forma

    importante com a pesquisa social e o treinamento de pesquisadores - no

    poderiam subsistir sem o insumo dos fundos que, teoricamente, s financiam

    pesquisas (nas instituies pblicas, o salrio dos pesquisadores e a

    manuteno das instituies esto garantidos, mas

    muitos programas dependem de dotaes para subsistir). As dotaes para as

    pesquisas mantm boa parte destas instituies e financiam muitos estudantes

    de ps-graduao (que no abdicam do status de classe mdia), pois s vezes

    os fundos das dotaes para pesquisas so usados para suplementaras bolsas,

    embora isto seja teoricamente ilegal. O pesquisador socialmente consciente

    fica, ento, na incmoda situao de ver as suas lealdades institucionais e

  • pessoais (ao staff da instituio, aos estudantes de ps-graduao) em

    flagrante conflito com as suas orientaes ideolgicas. Alm disto, as

    dotaes para pesquisa suplementam os prprios salrios, aspecto

    particularmente importante em pocas de escassez de recursos ordinrios.

    Alguns pesquisadores viram empresrios de pesquisas e, para manter um nvel

    de classe mdia alta, asssumem compromissos simultneos em vrias frentes,

    com prejuzo para a execuo e o bom acabamento dos trabalhos, alm de alto

    custo pessoal em termos de tenso e instabilidade familiar.

    Evidentemente, no fcil harmonizar o princpio da justia social com

    privilgio. Alguns se despolitizaram ou se transferiram para uma esquerda

    psicologicamente mais camarada; outros, racionalizaram. A irrelevncia da

    ao individual oportunamente invocada contra toda e qualquer cobrana

    neste sentido - somente a ao coletiva e revolucionria faria sentido.

    Enquanto ela no chega, vive-se de forma burguesa. A fonte da desigualdade

    empurrada sempre mais para cima. Na sociedade, para os empresrios, as

    grandes empresas, as multinacionais; no interior do Estado, para os subsdios

    indstria ou, preferivelmente, os gastos militares. A pesquisa artesanal como modo de vida: a construo de arquivos

    H muitos anos, creio que no incio da dcada de 1960, li "On

    intellectual craftmanship", que poderia ser traduzido como "O artesanato

    intelectual", de C. Wright Mills, um dos artigos - diversas vezes relido - que

    exerceram forte influncia em minha vida profissional. (7) Provavelmente

    influenciado pelos Grundrisse, Mills recomendava tomar notas de tudo -

    leituras, dados, idias, discusses -, organizando arquivos. Desde ento venho

    seguindo seu conselho, e isso muito me auxilia a escrever livros e,

    principalmente, artigos de cunho artesanal. A construo de um arquivo de

    qualquer tipo um seguro contra a devastao causada pelo esquecimento.

    Como disse Gabriel Garcia Marques em El amor en tiempos de clera, "quem

    no tem memria, faz uma de papel". E importante anotar as idias para que

    no se percam. Precisamos acreditar que nossas idias tm algum valor; se,

    honestamente, um cientista social no acredita nisso, ser melhor que mude de

    profisso. Reitero que importante escrever tudo de maneira inteligvel e

    explcita. Nada mais frustaste do que encontrar a nota crtica que voc prprio

    escreveu em um arquivo e no conseguir recuperar a idia a que ela se refere.

    Arquivos deste tipo so, essencialmente, uma conversa ntima e

    solitria. No devemos orient-los para mais alm da nossa prpria vida. Na

    melhor das hipteses, perda de tempo, pois os cientistas sociais no temos

    relevncia para tal. Arquivos pessoais com interesse para o futuro ou mesmo

    para outras pessoas so coisas de estadistas, polticos e generais golpistas, no

    de historiadores, socilogos e cientistas polticos.

    Os arquivos de Mills, por exemplo, to importantes para ele, foram

    herdados por um excelente intelectual que rapidamente escreveu um livro que,

    em minha opinio, no fez justia longa e detalhada atividade intelectual do

    autor original. Lembro-me tambm de que, h vrios anos, conversava com

    um grupo de cientistas sociais brasileiros quando algum veiculou a notcia de

  • que Osny Duarte Pereira, intelectual de renome, com importante participao

    poltica, buscava uma instituio adequada para legar seu arquivo de recortes

    de jornal. Tivemos interesse imediato, mas aproveitar o acervo requeria

    umstaff que no existia nas instituies em que trabalhvamos. O ltimo

    exemplo vem de um professor americano de economia que trabalhou alguns

    anos sobre a Amrica Latina. Aposentou-se tarde e, alguns dias aps,

    ofereceu-me os seus livros, revistas e notas referentes ao continente. Pensei

    em selecionar o que me interessava, mas achei que seria mutilar o passado e a

    obra do homem. A soluo que encontrei foi enviar tudo biblioteca. H, portanto, algo de solitrio e de profundamente individual em arquivos de

    cientista. Somente projetos institucionais sobre histria das cincias sociais podero ter

    interesse neles. Os cientistas sociais, naturalmente, tem os seus prprios projetos. A

    ateno aos projetos dos outros, ainda que intelectualmente respeitados, ser

    necessariamente limitada.

    Os arquivos incluem idias oriundas de fontes as mais diferentes. A

    leitura de bons trabalhos com ambio terica talvez seja a minha principal

    fonte de idias. Outros provocam a imaginao e convidam reflexo; ainda

    que no sejam 'cincia', so fontes de inspirao. As crticas de comentaristas

    bem intencionados so excelentes fontes de inspirao, servindo para retificar

    erros e enriquecer o nosso trabalho. (8) A maneira de comentar e criticar

    talvez seja to importante quanto a crtica em si. Se esta for usada pelo crtico

    como uma oportunidade para exibir superioridade, a discusso vira briga de

    galos. Se, ao contrrio, procurar genuinamente ajudar o autor, ser

    construtivo, delicado, no desafiante nem arrogante, sem que isto prejudique o

    contedo da crtica que, evidentemente, ter que ser sria. (9)

    Os arquivos so um excelente interlocutor para as neuroses noturnas,

    quando geramos algumas das nossas idias: anot-las, consultando outras

    anotaes anteriores, uma atividade que substitui, criativamente, a

    desgastaste espera da manh, to conhecida pelos que sofrem de insnia. A

    neurose de trabalho que, freqentemente, est associada insnia - ou seja, a

    sensao de que o dia seguinte estar perdido por falta de descanso-diminui,

    porque algum trabalho criativo foi feito durante a noite. Cuidado, no

    obstante, porque um arquivo, particularmente se computarizado, pode ser uma

    grande motivao para no dormir noite.

    A pesquisa artesanal na era eletrnica A existncia de computadores pessoais abre novos caminhos para a

    construo de arquivos, mas traz novos problemas. A maneira mais simples de

    se usar um computador para este fim atravs de um processador de texto.

    Alguns programas auxiliares, que buscam palavras no texto, podem ajudar a selecionar, com rapidez, as passagens que tratam de determinado assunto.

    Outra, um pouco mais complexa e que requer certa aprendizagem usar

    um data-base, de preferncia compatvel com o processador de texto. J h

    programas que integram estas duas funes, entre outras. Mas no faz sentido

    usar um processador de texto menos adequado simplesmente porque parte

    de um pacote que inclui um data-base. Este permite construir arquivos,

  • incluindo as informaes e as chamadas (ndices) que o autor desejar.

    Caso o formato bsico elaborado pelo autor seja adequado, as citaes e

    entradas bibliogrficas j so feitas de modo a atender s exigncias da

    revista, jornal ou editora, nos quais se pretende publicar o trabalho.

    Os ndices permitem que o programa faa uma listagem de todas as

    entradas que os incluam, e fcil listar as entradas que tambm

    selecionem combinaes de ndices (podemos puxar, por exemplo, os textos classificados sob as rubricas Brasil e Reforma Agrria). H, tambm, programas que examinam o prprio texto, buscando palavras-chaves ou

    expresses-chaves, mas este procedimento muito mais demorado do que o

    anterior. A possibilidade de classificar os arquivos de acordo com vrios

    critrios ou palavras-chaves uma importante vantagem em relao aos mtodos baseados no papel (escritos, recortes). muito difcil classificar

    papis de acordo com mais de um critrio.

    Em alguns anos haver programas integrados, com amplas opes, que

    o pesquisador poder organizar como quiser. Poder trabalhar

    quantitativamente alguns dados, qualitativamente outros, inclu-los (junto com

    citaes e bibliografia, alm de textos de sua autoria) em um documento s,

    sem precisar sair do programa. J h programas assim, feitos para o mundo

    dos negcios, mas algumas empresas esto desenvolvendo programas

    semelhantes para o mundo acadmico.

    Estas facilidades multiplicam eletronicamente a capacidade produtiva

    do pesquisador, mas tambm multiplicam os riscos. Com arquivos de papel,

    os principais perigos so os incndios, as traas, os generais e as crianas em

    idades de rabiscar. A eles, os meios eletrnicos agregam outros: panes dos

    discos rgidos, preguia em fazer cpias de tudo, campos magnticos, xcaras

    de caf... Alm disto, os programas mudam e as novas verses, s vezes, no

    garantem compatibilidade nem com programas anteriores da prpria

    companhia fornecedora. A praxe faz-los compatveis, apenas, com a verso

    imediatamente anterior. Para enfrentar isto, h duas sadas: construir uma

    couraa temporria para resistir s inovaes tecnolgicas, mudando de

    programas e de equipamento a cada vrios anos ou acompanhar as inovaes

    tecnolgicas. A ltima sada perigosa, tendo levado muitos cientistas sociais

    competentes a se transformarem em programadores incompetentes, usurios

    sempre entusiasmados com o mais recente programa disponvel. Esta figura,

    alis, como me informou Sergei Soares, j foi apelidada, no Brasil, de softus.

    Hoje, com a expanso dos PCs e a disponibilidade de computadores,

    por um lado, e com o treinamento mais adequado de grande nmero de

    pesquisadores, por outro, muitas daquelas antigas resistncias pesquisa e

    utilizao de anlises quantitativas, ainda que simples, foram vencidas: um

    nmero muito maior de pesquisadores utiliza e trabalha adequadamente os

    dados. Entretanto, as dificuldades de acesso a terminais e uma certa distncia

    de muitos pesquisadores em relao a este tipo de trabalho criaram uma

    dependncia em relao aos assistentes de computao, inserindo um escalo desnecessrio na organizao da pesquisa e impedindo que o

  • pesquisador trabalhe os dados se e quando desejar. (10) Adquirir esse tipo de

    conhecimento abre a possibilidade de trabalhar em qualquer etapa da pesquisa

    a qualquer hora, sem estar limitado pelos horrios formais de trabalho,

    pesquisando, como fazemos muitos, noite e nos fins de semana. A recente

    adaptao de pacotes estatsticos para os computadores PC, tais como o SAS e

    o SPSS, abre novas perspectivas: o pesquisador, agora, pode analisar os dados

    em casa. Alm disto, pode faz-lo de forma interativa, ou seja, os resultados

    (ou as mensagens sobre os erros...) aparecem imediatamente no monitor, sem

    necessidade de esperar ou ter que ir a outro ponto da universidade (ou da

    cidade), onde est a impressora. Para se efetivar no Brasil, esta possibilidade

    requer um investimento razovel (fora do alcance de pesquisadores em outros

    pases latino-americanos), alm de um modesto esforo de aprendizagem.

    Infelizmente, muitos fincam o p no que acreditam ser um direito, o de que a

    instituio pague pelo seu PC. s vezes, o mesmo pesquisador que no hesita

    em enviar os filhos Disneyworld, ou em ir com a famlia passar frias na

    Europa, ou em comprar um carro do ano, no admite comprar um PC, porque

    definiu que este um gasto de trabalho que deve ser pago pela instituio ou pelo Estado. Muitos no percebem que o PC uma inverso rentvel para sua

    prpria carreira.

    A pesquisa artesanal e os bancos de dados Os bancos de dados, grandes e pequenos, institucionais e pessoais,

    prestam grande auxilio pesquisa artesanal. Os arquivos artesanais so, em

    muitos sentidos, bancos de dados. A idia de criar um instrumento desses j

    passou pela cabea de muita gente. J se cogitou, no Brasil, particularmente

    na dcada de 1970, da criao de um grande banco de dados. No Clacso,

    organizamos um grupo de trabalho sobre a criao de um banco de dados para

    a Amrica Latina. O Instituto Di Tella comeou a organizar materiais sobre os

    censos latino-americanos. J havia, claro, muitas organizaes semelhantes no

    mundo. A Universidade do Texas, em Austin, e o INED, em Paris, tinham

    colees de censos e relatrios censais. O IDLRS, em Berkeley, construiu

    uma razovel coleo de surveys sobre a Amrica Latina. No obstante, por

    motivos quase geopolticos, havia no Clacso a idia de que deveramos ter

    uma instituio semelhante no prprio continente. A idia foi abandonada, em

    boa medida, por trs razes: um banco de dados requer a existncia uma

    instituio aberta e estvel, localizada num pas estvel, o que era (e )

    bastante difcil de encontrar na Amrica Latina; trata-se de projeto caro e

    trabalhoso, pois necessrio limpar os dados, editar os livros de cdigo, adaptar as fitas magnticas etc; por fim, os bancos de dados so relativamente

    pouco usados. Treinados h muito tempo de forma inadequada, os

    pesquisadores sociais (e, certamente, a maioria dos pesquisadores latino-

    americanos) no os utilizam. Isto pode mudar a mdio prazo, na medida em

    que sua utilidade seja enfatizada. Em dez anos pode formar-se uma gerao

    habituada, desde a graduao, a usar dados secundrios. Pequenos bancos de

    dados de tipos diferentes (surveys, discursos, estatsticas econmicas,

  • amostras de Censos, estatsticas eleitorais, por exemplo) so excelente recurso

    didtico. Cada universidade poderia e deveria ter um.

    A utilizao de dados secundrios tem uma rationale econmica clara:

    vrios tipos de pesquisa, inclusive os surveys, so muito caros. Uma pesquisa

    de campo com duas mil ou trs mil entrevistas no sai por menos de vrias

    dezenas de milhares de dlares e, se incluirmos os salrios dos pesquisadores

    atravs dos anos e os gastos institucionais, podemos entrar na casa das

    centenas de milhares de dlares. Muitas vezes esse investimento produz

    pouco. Pode-se extrair muito mais de anlises secundrias, que permitem a

    montagem de cursos inteiros.

    Para tal, necessrio que os pesquisadores tenham uma atitude mais

    nobre (no bom sentido) e menos proprietria em relao aos dados,

    abandonando a reserva de mercado, pois os financiamentos que possibilitam as pesquisas so pblicos. Creio que as instituies financiadoras devem

    estabelecer um limite de tempo para o uso exclusivo dos dados por parte dos

    autores da pesquisa, tomando-os obrigatoriamente pblicos a partir de,

    digamos, cinco anos. Um prazo menor, de trs anos, constituiria excelente

    estmulo para que se trabalhasse com mais afinco e rapidez.

    As dificuldades prticas para a obteno de dados secundrios no se

    limitam aos cimes dos pesquisadores individuais: as instituies pblicas

    sentam em cima das pesquisas durante anos e, at mesmo, dcadas. Esta viso

    econmica da pesquisa se choca com as funes no explcitas que ela tem - como a de financiar instituies, a de suplementar salrios e a de proporcionar

    bolsas de ps-graduao -,algumas das quais indubitavelmente necessrias.

    Isso impele os pesquisadores a buscarem financiamento para mais pesquisas,

    que no podem analisar adequadamente. As pesquisas adquirem, assim, alta

    rotatividade, cada uma com altssima relao insumo/produto.

    conhecida a confabilidade de algumas sries de dados disponveis,

    cujo manuseio requer apenas um pouco de esforo e uma pequena

    aprendizagem. As Pesquisas Nacionais por Amostras de Domiclios (PNADs),

    realizadas periodicamente pelo IBGE desde 1967, incluem dois mdulos: um

    fixo, que trata de questes econmicas como emprego/desemprego, populao

    economicamente ativa, renda etc, e outro varivel, que rene perguntas sobre

    temas especficos. Assim, em 1982, houve uma PNAD com vrios quesitos

    sobre educao; outra, em 1988, versou sobre temas como sade, cultura,

    poltica, cidadania e justia; houve uma com indagaes especficas sobre raa

    etc.

    As PNADs tm a vantagem de ser amostras quase nacionais (esto

    excludas algumas zonas rurais na regio Norte), abranger grande nmero de

    domiclios (81.628 em 1988), permitir muitos cruzamentos e, usando anlises

    de tipo regresso, propiciar um nmero muito grande de variveis

    independentes; a juno de dados a respeito dos domiclios, das famlias e das

    pessoas permite conjugar diferentes variveis.

    Embora sejam de fcil aquisio e de grande utilidade, as PNADs no

    so de fcil manejo. Alguma programao necessria, e a massa de

  • informaes recolhida requer que o pesquisador tenha urna generosa

    disponibilidade de tempo de computao. Alm disso, requer cuidadoso

    planejamento das anlises, uma vez que cada rodada no computador custa caro. As PNADs poderiam ser fontes ideais de dados para teses de mestrado,

    dissertaes de doutorado, livros e sries de artigos. Por razes econmicas e

    de especializao, dificilmente elas estariam ao alcance de alunos de

    graduao, mas at isto poderia acontecer se os currculos fossem mais

    orientados para a pesquisa, se os prprios professores soubessem pesquisar e

    se as universidades aceitassem a experincia em pesquisa como parte do

    programa de graduao. A fita com os dados de uma PNAD - que permitem

    estudos de mbito nacional ou estadual - pode, no momento em que escrevo,

    ser adquirida por cerca de cem dlares, quantia alta para um estudante, mas

    baixa para uma instituio.

    Pesquisas caras, as PNADs so uma importante fonte de informaes

    para o planejamento econmico; entretanto, aps o seu uso pelo IBGE, pelos

    rgos nacionais de planejamento e por alguns especialistas mais dedicados,

    elas mofam, porque a maioria dos cientistas sociais brasileiros no pesquisa e

    no ensina seus alunos a faz-lo. Outras fontes de dados de natureza

    semelhante so as amostras dos censos, particularmente do demogrfico. Elas

    tm a vantagem de ser amplas, cobrir todo o pas, permitir estudos temporais,

    mas tm a desvantagem de manter periodicidade apenas decenal.

    Dois outros tipos de dados, de natureza muito diferente dos anteriores,

    aparecem, por exemplo, nos arquivos e entrevistas pessoais organizados pelo

    Cpdoc na Fundao Getlio Vargas. Vrios arquivos de pessoas importantes

    para a poltica brasileira foram doados ao rgo, que tambm entrevistou

    muitas dessas pessoas e outras, igualmente relevantes para a histria

    contempornea do Brasil. Muitos arquivos j foram preparados e esto abertos

    ao pblico. Um estmulo para a melhore maior utilizao dos dados

    secundrios, com a conseqente reduo da razo insumo/produto na pesquisa

    brasileira, seria a alocao de certo nmero de bolsas de vrios tipos

    (iniciao cientfica, aperfeioamento, mestrado, doutorado) a projetos,

    pesquisadores e instituies, em funo da utilizao de dados secundrios.

    Para os interessados em estudos comparativos internacionais, os

    problemas so mais difceis, mas no impossveis: h instituies, como a

    Westinghouse, que vendem surveys realizados em diferentes pases a preos

    razoveis (250 a 500 dlares pela fita ou disquetes, com documentao) e,

    muitas vezes, em formato pronto para anlise, em caso de uso de programas

    como SAS ou Lotus. O pas necessita de, pelo menos, um centro no qual

    esteja depositado o conhecimento potencial dos surveys e outras pesquisas. Do

    contrrio, continuaremos a perder a memria nacional. Os surveys de opinio

    pblica feitos nas dcadas de 1950 e 1960 esto quase todos perdidos. O

    centro deveria ser inter-institucional, com acesso livre e amplo.

    No fundo, a receita para melhorar a relao insumo/produto nas

    cincias do homem simples: aumentar o nmero de professores que

    pesquisam e produzem; incorporar a massa, potencialmente criativa, de

  • estudantes produo de conhecimentos; (11) e usar parcimoniosamente os

    recursos de pesquisa, investindo, sobretudo, em dotaes modestas para a

    utilizao de dados secundrios. Entre estes, h os que se referem a dcadas

    antepores e que, segundo alguns, teriam somente valor histrico, pois o cientista social engajado deveria pesquisar temas relevantes atuais. Esta viso

    compara uma definio ideal da pesquisa primria com uma pessimista da

    secundria.

    A pesquisa histrica tem relevncia para o futuro, particularmente para

    os que acreditam que h tendncias (ou leis tendenciais) regendo as transformaes histricas, que podem ser captadas atravs de pesquisas. Alm

    disto, a pesquisa de eventos de muitos anos atrs pode ser politicamente

    importante. Quando, por exemplo, a Nova Repblica comeou a viver sua

    crise de legitimidade, muitos lanaram olhares saudosistas, fantasiando a

    ditadura. Pesquisas sobre o perodo autoritrio tiveram a virtude de recordar

    os muitos aspectos negativos nele presentes. Alm disto, toda pesquisa social

    est condenada, em certo sentido, a seguir atrs dos acontecimentos. Livros,

    relatrios e artigos nascem com certo grau de obsolescncia. Parafraseando

    Weber, as cincias sociais tm a maldio da eterna juventude. As teorias e

    descobertas nascem superadas e, por isto, tm que ser constantemente

    renovadas. A realizao de uma pesquisa cuidadosa e a sua publicao

    requerem tempo. Enquanto isto, a realidade muda, mais ou menos

    rapidamente, segundo os momentos e os aspectos que se deseja enfocar.

    Quando os resultados da pesquisa vm a pblico, j se referem ao passado.

    Toda pesquisa social est defasada, e a extenso da defasagem depende da

    rapidez do seu processamento e da velocidade da mudana social. Assim, a

    diferena entre uma pesquisa primria e uma secundria, no que tange

    obsolescncia, de grau e no de gnero.

    Concordando com a obrigao moral de estar politicamente engajado,

    sublinho que a liberdade de pesquisar talvez seja a maior gratificao do

    pesquisador. Ainda que possamos concordar em uma hierarquia de temas de

    pesquisa de acordo com a sua significao poltica e social, ningum deve

    ser obrigado a seguir esta orientao. A pesquisa artesanal como instrumento didtico

    Como professor, no gosto de dar provas e exames. Prefiro trabalhos,

    idealmente de pesquisa com algum tipo de dado e, caso isto no seja possvel,

    conceitual e de biblioteca. (12) As tentativas de abolir os exames, baseando a

    nota exclusivamente em trabalhos, no foram bem-sucedidas: os alunos

    escreviam bons trabalhos, mas no liam. Para obrig-los a ler; passei a exigir

    que escrevessem um pequeno resumo de cada leitura, estimulando-os tambm

    a que colocassem suas idias, comentrios e crticas, usando, se possvel, um

    processador de texto ou um data-base. Pouco tempo depois, eu e um colega

    que exigia provas num curso semelhante resolvemos avaliar os dois

    procedimentos, comparando-os. O resultado foi claro: os resumos haviam

    levado os alunos a ler muito mais do que os exames e provas. (13) Talvez

    mais importante, um acompanhamento mostrou que, um ano aps, os que

  • escreveram resumos se lembravam muito mais do que haviam lido. Dois

    alunos me procuraram espontaneamente para dizer que o hbito de escrever

    resumos e comentrios havia sido muito til para os exames de ps-graduao

    e para a tese.

    Minhas observaes no sistemticas sugerem que a participao em

    pesquisas e a publicao de um ou mais trabalhos ainda no perodo de estudos

    fazem com que os alunos se fixem mais na profisso, buscando a ps-

    graduao, e continuem publicando. Todos os meus alunos com quem escrevi

    artigos em co-autoria continuaram a produzir. Com apenas duas excees, a

    observao se estende aos que publicaram com outros professores da mesma

    instituio. Estes resultados so muito mais favorveis do que os obtidos por

    alunos de ps-graduo que no publicaram. Mas, como a memria

    altamente seletiva, inclusive a minha, o tema requer pesquisa sistemtica. De

    qualquer forma, creio que um pequeno banco de dados eleva a produtividade

    da pesquisa e fixa o aluno na profisso. A pesquisa artesanal e as obras de flego

    Creio que a pesquisa artesanal a mais adequada para produzir obras

    de flego, que requerem vrios anos de busca de dados e reflexo. O objetivo

    no competir no ilusrio mercado da imortalidade intelectual, no tomar

    o O Capital ou Suicdio como parmetros. estimular o pesquisador a fazer

    trabalhos da melhor qualidade possvel. Para muitos, ser um bom artigo; para

    alguns, um livro; para pouqussimos, uma obra prima em trs volumes.

    Infelizmente, o clima de muitas universidades latino-americanas no conduz

    os alunos a um realismo em relao s suas possibilidades. Alunos claramente

    medocres so estimulados a produzir grandes obras tericas, gerando um

    buraco entre as expectativas do aluno a respeito de si mesmo e sua capacidade

    de preench-las.

    A probabilidade de que os cientistas sociais produzam trabalhos de

    flego est relacionada ao tipo de instituio na qual trabalham. Nos Estados

    Unidos, por exemplo, onde h muita presso para produzir, particularmente

    durante os primeiros anos, e onde os artigos publicados em revistas

    especializadas so muito valorizados, o sistema funciona contra obras de

    flego, pelo menos no incio da carreira. Durante os primeiros quatro a cinco

    anos, o jovem professor assistente dever produzir grande nmero de artigos

    nas revistas mais importantes da disciplina; obtida a estabilidade, as

    promoes a professor adjunto e a professor titular, ele continua a depender,

    em certa medida, desses critrios, ainda que, teoricamente, as obras de maior

    alcance faam parte dos requisitos para a titularidade. Isto faz com que as

    obras de flego apaream em dois momentos: nas dissertaes e na

    maturidade. Nos Estados Unidos, cada salrio discutido e negociado

    individualmente; caso o pesquisador permanea na mesma universidade,

    grandes aumentos em seu salrio dependem da obteno de dotaes,

    honrarias e prmios profissionais, mas, principalmente, da possibilidade de

    apresentar convites de outras instituies, que se proponham a lhe pagar mais.

    o argumento do mercado. Estatisticamente, os grandes saltos salariais

  • (digamos, de 20% ou mais) acompanham mudanas institucionais, com o

    pesquisador passando de uma universidade para outra. No Brasil, salrios e

    promoes dependem pouco das publicaes e das pesquisas realizadas. A

    varincia entre os salrios universitrios muito menor do que nos Estados

    Unidos, e os salrios no so individuais. A herana corporativista est

    presente nas universidades brasileiras, e as mudanas salariais dependem mais

    de aes polticas, que atingem a classe como um todo, do que da

    produtividade de cada um. Assim, divorciam-se cada vez mais as

    compensaes financeiras e as atividades de pesquisa. Por sua vez, a

    estabilidade dos professores universitrios, extremamente prematura, no

    representa um estmulo para pesquisar e produzir. O emprego garantido,

    como decorrncia de uma relao corporativista com a universidade e no

    pelo mrito de cada um. Este sistema tambm conspira contra a produo de

    obras de flego e, na verdade, contra todos os tipos de produo intelectual.

    As instituies privadas e as ONGs dificilmente podem estimular

    pesquisas artesanais, voltadas para preparar obras de flego, porque nem elas,

    nem seus pesquisadores, tm a subsistncia assegurada. Para sobreviver,

    pesquisador e instituio necessitam de dotaes, efetivadas atravs

    de projetos que no podem durar muitos anos. A falta de trabalhos de flego

    intermedirio tem sido resolvida atravs de uma dualidade do trabalho - h o

    projeto para financiar a instituio e o meu projeto intelectual, voltado para

    satisfazer a minha necessidade de escrever algo inovador. Permanncias em

    outras instituies, freqentemente fora do pas, tambm contribuem para

    remediar a situao. Em geral, infelizmente, a situao pior nas

    universidades pblicas, embora haja importantes excees. Cludio Moura

    Castro demonstrou que as escolas privadas sem fins lucrativos, as ONGs e as

    instituies pblicas isoladas de ensino e pesquisa so muito mais produtivas

    do que as universidades pblicas, particularmente as federais. Creio que, em

    parte, isto se deva ausncia de autocorreo nestas ltimas. No setor

    privado, os erros de contratao se resolvem atravs de demisses; no pblico,

    a incompetncia e a improdutividade so irrelevantes, j que, para fins

    prticos, as posies so vitalcias. Isto, evidentemente, no significa que as

    instituies pblicas impossibilitem a produo cientfica ou o trabalho

    artesanal de indivduos, masque a produtividade das instituies muito

    baixa, por causa do peso morto. (14) Algumas ineficincias do sistema A educao superior no Brasil, principalmente a federal, muito

    ineficiente e, do ponto de vista social, injusta. A ineficincia do sistema

    acadmico brasileiro se revela no custo por aluno, demasiadamente alto. Uma

    estimativa, relativa a 1988, coloca esse custo, nas universidades federais, em

    cerca de oito mil dlares por ano, cerca de trs mil dlares mais do que na

    Gr-Bretanha e mais do dobro do que no Canad, pases com renda per

    capita, produo e produtividade cientficas muito mais altas do que o Brasil.

  • Os dados permitem ver a total desproporcionalidade entre o custo anual do aluno

    e o nvel de desenvolvimento econmico: o Canad e a Gr-Bretanha, muito mais

    desenvolvidos econmica e cientificamente que o Brasil, gastam menos. Os dados

    tambm sugerem que as universidades federais so muito menos eficientes, uma vez

    que seu custo excede consideravelmente a mdia nacional.. A gravidade da situao

    aumenta quando se sabe que 95% dos gastos com as universidades so destinados ao

    pagamento de pessoal.

    Outro aspecto no qual o sistema brasileiro muito ineficiente se refere

    aos prazos para terminar a ps-graduao, que uma preparao para o

    desempenho profissional. H dados de sobra para demonstrar que isso real:

    os mestres produzem mais do que os apenas graduados, e os doutores

    produzem mais do que os mestres. Assim, o tempo uma varivel importante.

    No econmico que, durante dcadas, o pas prepare pessoas para que

    produzam durante poucos anos. No obstante, isto o que acontece: Simon

    Schwartzman (1986) mostrou que na USP, a melhor universidade brasileira,

  • so necessrios mais de treze anos para que os alunos sem bolsa completem

    um mestrado e dezoito para que completem um doutorado. Evidentemente,

    dado o fato de que a aposentadoria se d em idade precoce, por tempo de

    servio, muitos alunos terminam a ps-graduao e se aposentam em seguida.

    Mesmo entre os alunos que recebem bolsa, o tempo necessrio para um

    mestrado e um doutorado consideravelmente superior ao de outros pases.

    Como argumenta Schwartzman, o ttulo no o objetivo.

    Certamente, h muitas variveis que contribuem para essa situao

    indesejvel; algumas so institucionais e derivam de condies e hbitos

    arraigados, como a presena pouco freqente de professores e alunos na

    instituio, o que dificulta a interao de orientando e orientador, subtraindo o

    aluno de um ambiente acadmico onde, presumivelmente, h mais

    estmulos.A legislao aberta, com amplos prazos para terminar o curso, contribui para esta situao. No h presses para terminar a tese,

    particularmente nos departamentos com astral burocrtico. A produo cientfica: a posio internacional do brasil A produo cientifica do Brasil nas diversas reas oscila pouco. No

    plano internacional, a contribuio quantitativa brasileira se situa entre 0,25%

    e 0,5%, menos do que muitos pases que tm produto bruto e renda per

    capita mais baixos, alm de populao muitssimo inferior.

    Em 1983, 113.779 docentes atuavam no ensino superior no Brasil; se

    cada um publicasse um trabalho por ano, o pas estaria - quantitativamente -

    entre as potncias produtivas do mundo, com o dobro dos trabalhos da ndia

    ou da Holanda. O raciocnio ingnuo, porque aproximadamente 1/3 s

    tinham graduao e outros 30% s tinham especializao ou aperfeioamento

    (Campos, 1986, p. 105). Mas uma estimativa grosseira diz que, na atualidade

    j h cerca de cinqenta mil doutores e mestres no ensino superior brasileiro;

    para retomar a simulao acima, um trabalho por ano significaria colocar o

    Brasil no nvel aproximado da ndia e de vrios pases desenvolvidos de porte

    mdio.

    Essa hiptese de um trabalho anual por professor-pesquisador no est

    fora da realidade. Estudo feito em departamentos de Sociologia, Economia e

    Administrao de Empresas da Alemanha Ocidental mostra que, entre 1980 e

    1982, a mdia foi de um artigo por ano e um livro ou monografia a cada cinco

    anos (Backes-Gellner e Sadowski, 1990). O astral dos departamentos e sua produo

    As anlises da produo acadmica tm ressaltado

    caractersticas individuaisassociadas produtividade, como a formao das

    pessoas. No obstante, creio que h caractersticas institucionais, algumas

    intangveis, que influenciam a produtividade. Estou convicto de que muito

    importante o geist, ou astral dominante na instituio. Eles diferem em cada departamento, e tais diferenas tm conseqncias na produtividade. No

    conheo estudos empricos sobre isso no Brasil, mas estudos feitos em outros

    pases apoiam essa hiptese: na Holanda, por exemplo, descobriu-se que o

    esprito burocrtico dos departamentos de economia apresentava correlao

  • de -0,71 com a produtividade, ao passo que o espirito criativo apresentava correlao positiva, explicando metade da varincia na produtividade entre os

    departamentos (Spangenburg et alii, 1990).

    Outro estudo, de Allison e Long (1990), mostra que pesquisadores

    transferidos para instituies com muito prestgio e alta

    produtividade aumentam sua produtividade, e o contrrio ocorre com os

    transferidos para instituies com prestgio e produtividade mais baixos. Esta

    pesquisa contribuiu para elucidar a questo: os departamentos mais

    prestigiosos e produtivos simplesmente atraem os pesquisadores mais

    produtivos ou se eles os transformam tambm? Na primeira hiptese, a alta

    produtividade dos departamentos se deveria exclusivamente sua

    composio, ao fato de que, uma vez estabelecida a sua reputao, atrairiam

    pesquisadores produtivos (evidentemente, como essa reputao e essa alta

    produtividade inicial foram criadas tambm requer explicao). Neste caso, o

    somatrio das produtividades individuais explicaria a alta produtividade do

    departamento, ao passo que, na segunda hiptese, os atributos do

    departamento tambm influenciariam os indivduos.

    As pesquisas sugerem que forte a influncia dos geiste institucionais

    dos departamentos, centros, institutos ou universidades. No sabemos at que

    ponto esta influncia tambm existe em instituies brasileiras, mas a hiptese

    provisoriamente mais provvel fica sendo a de que existe. Em conversa, os

    pesquisadores brasileiros falam com freqncia do astral dos departamentos, mas no o incluem como varivel em suas anlises. Minha experincia

    corrobora a destes pesquisadores. Creio ter discernido, pelo menos,

    quatro geiste diferentes e acredito que em trs deles difcil produzir.

    Um burocrtico-sindical, com professores e pesquisadores assumindo

    atitude de funcionrios pblicos: conversam continuamente a respeito de

    reajustes salariais, de planos de penses e aposentadorias, de frias de 45 dias,

    de direitos e privilgios, mas raramente falam de suas pesquisas ou de seus

    alunos mais promissores; evidentemente, no um clima compatvel com a

    produtividade. Outro geiste caracteriza os departamentos com profundos

    conflitos internos, freqentemente de origem pessoal, que se transformam em

    conflitos de grupos e faces, em eterna disputa por cargos. s vezes h

    correlatas doutrinrias, tericas ou metodolgicas, mas a resultante que os

    membros de todas as faces produzem pouco, podendo haver tentativas de

    excluir integrantes das faces opostas. A subdiviso do departamento e a

    transferncia de membros so conseqncias comuns. Estes processos so

    semelhantes aos que ocorrem em departamentos marcados pela poltica geral

    do pas. Os conflitos passam a ter uma base poltico-partidria e, como no tipo

    anterior, a nfase deixa de ser acadmica. Onde esses geiste dominam,

    difcil produzir.

    O geist acadmico, favorvel produo, onde o foco na produo

    cientfica, na pesquisa e no ensino, e no em carreiras burocrticas ou

    polticas, no encontrado com muita freqncia no Brasil. As diferenas

    transparecem nas primeiras conversas: fala-se de pesquisas, do estado da

  • disciplina, dos planos de artigos e livros, de leituras interessantes, de

    equipamentos, de alunos brilhantes - e no de cargos, proventos e eleies

    internas. Esses departamentos so politicamente abertos e muitos

    pesquisadores tm participao poltica. Mas tais preferncias so pouco

    relevantes na apreciao feitas pelos colegas, uns sobre os outros.

    Creio que, para poder funcionar, instituies de ensino e pesquisa

    requerem um mnimo de homogeneidade na competncia e na produtividade

    cientificas. Ou seja, os pares tm que ser pares, aceitando-se mutuamente como tais. Quando as disparidades de competncia e/ou produtividade so

    muito grandes, os mais produtivos tendem a negar legitimidade aos pouco ou

    nada produtivos, com prejuzos para a coeso. Neste tipo de conflito

    comum, no meu entender, superestimar o valor das publicaes e das

    pesquisas e subestimar o valor do ensino e das contribuies administrativas e

    promocionais. Em algumas instituies se aceita, inteligentemente, certo grau

    de especializao funcional, no qual uns pesquisam mais e ensinam menos e

    outros pesquisam menos e, por exemplo, dirigem maior nmero de

    monografias de graduao. Esta especializao, porm, nunca deve ser muito

    grande. Todos devem produzir, ensinar, administrar e orientar.

    As divergncias no que concerne legitimidade geram violentos

    conflitos interpessoais, alguns dos quais adquirem conotaes polticas e

    tericas, e o departamento entra em crise. Em departamentos de universidades

    federais que viveram essa situao, a soluo mais comum no foi a sada dos

    improdutivos, protegidos pela estabilidade, mas a dos produtivos, em busca de

    instituies mais homogneas. A poltica dos departamentos americanos, que -

    rotineiramente e sem alarde - no renovam os contratos dos pesquisadores

    menos produtivos aps um perodo de teste, garante padres mnimos e

    elimina essa fonte de conflito.

    As estruturas organizacionais mais produtivas Os centros especializados, as ONGs e as universidades privadas sem

    fins lucrativos, particularmente s PUCs, esto entre as instituies mais

    produtivas do Brasil. O CBPF, o Iuperj e o Idesp, por exemplo, tm mantido

    uma produtividade per capita de dois a trs trabalhos anuais, satisfatria

    diante dos padres internacionais. As melhores universidades pblicas, como

    a USP e a Unicamp, produzem menos de um trabalho per capita e um grupo

    grande de federais apresenta produtividade absurdamente baixa. As

    instituies privadas com fins lucrativos praticamente no produzem.

    Entretanto, esse tipo de anlise, que considera as instituies de

    maneira independente, esquece que os pesquisadores freqentemente

    trabalham em mais de um lugar, numa ONG e numa federal, por exemplo.

    Seus trabalhos aparecem em ambas, inflacionando artificialmente a produo.

    Aqui reaparece a questo dos geiste: a maioria dos pesquisadores que conheo

    prefere passar a maior parte do seu tempo nas ONGs e no nas

    universidades. (15) A pergunta, portanto, tem que ser colocada: o que, nas

    universidades, afugenta os pesquisadores? Mais uma vez, sugiro que

    os geiste so importantes, pois nestas - que gastam 92% do seu oramento

  • com pagamento de pessoal - muito mais heterognea a competncia dos

    pesquisadores e professores e menor o aparelhamento. Pesam muito, por seu

    nmero, os poucos qualificados (Azevedo, 1991). Algumas universidades

    esto solucionando esses problemas, criando internamente centros e ncleos

    mais homogneos e dotados de qualificao mdia muito mais alta que a dos

    departamentos. Se e enquanto esses ncleos no forem invadidos pelo baixo clero, tal soluo aumentar a produtividade do alto clero, mas no contribuir para solucionar o problema do numeroso contingente com pouca

    ou nenhuma produo. Do cio da classe terica ao efeito de Ortega

    O chamado efeito de Ortega nos diz que a cincia moderna permite que pessoas relativamente medocres faam importantes descobertas. Uma

    interpretao ampliada desse efeito nos diz que s possvel construir uma

    cincia nacional com grande nmero de cientistas produtivos, mesmo

    medocres. Essa viso contrasta com a elitista, que afirma serem necessrios

    apenas alguns gnios. Como, por definio, os gnios so muito poucos,

    temos que produzir uma cincia nacional com gente como quase iodos ns,

    medocres no sentido corneto da palavra. Alm disso, os gnios no trabalham

    no vazio, mas promovem saltos qualitativos a partir do acmulo quantitativo

    de trabalhos que resolvem pequenas questes.

    Entretanto, entre os que habitam as universidades brasileiras, a maioria

    no quer ou no pode contribuir para a construo de uma cincia nacional.

    Ocupam posies, excluindo os mais jovens e mais bem treinados, sem

    produzir nada. Apresentam argumentos explicando ou justificando sua

    improdutividade. Os principais so o das gratificaes financeiras escassas e o

    das limitadas condies materiais de trabalho. Os debates e conferncias sobre

    como criar uma cincia nacional terminam inexoravelmente na solicitao de

    mais verbas, as mesmas verbas que faltam, por exemplo, para programas

    sociais. Trata-se de argumento elitista e socialmente desigual, usado com

    freqncia, paradoxalmente, por pessoas que adotam posies de esquerda. O

    argumento entra em crise no mais leve confronto com os dados: em primeiro

    lugar, em dlares constantes, o salrio mdio dos professores universitrios

    tem oscilado no Brasil, mas tais oscilaes no se refletem na produtividade,

    mesmo quando se leva em conta um hiato considervel de tempo. Em segundo

    lugar, h muitos professores produtivos no Brasil, com o mesmo nvel salarial

    dos que no produzem, supostamente, por razes salariais. (16) Em terceiro

    lugar, por causa da isonomia, no h diferenas salariais entre pessoas

    classificadas no mesmo nvel em instituies diferentes, mas h gigantescas

    diferenas de produtividade entre as pessoas e entre as instituies.

    Ironicamente, uma das universidades estaduais que melhor remunera seus

    professores tem um dos mais baixos nveis de produtividade do pas. O

    nmero de alunos per capita tampouco podeservir de desculpa, pois muito

    baixo em comparao com sistemas universitrios mais produtivos. Alm

    disto, a anlise fatorial das atividades das instituies universitrias brasileiras

    (e dos professores tambm) revela um fator geral: os que pesquisam mais,

  • produzem mais e publicam mais, tambm so os que dirigem mais teses,

    obtm mais fundos e administram mais. No nvel nacional, uma percentagem

    pequena dos professores (menos de 20%) responde por uma percentagem alta

    (mais de 80%) da produo. Isto faz com que o sistema cientfico brasileiro

    seja extremamente elitista, no sentido de que poucos fazem muito e de que

    muitos fazem pouco.

    Este artigo objetiva facilitar a atividade produtiva destes 20% e

    estimular os 80% a que faam o mesmo; infelizmente, entre eles h muitos

    que, parodiando Veblen, se dedicam ao cio da Classe Terica... Impressiona

    a capacidade que o professor universitrio brasileiro tem de preconizar

    socialismo para a sociedade, reservando, no obstante, um nicho de

    privilgios corporativistas para si! Recebido para publicao em maio de 1991.

    NOTAS

    1 - "Hoje, bons trabalhos em Cincias Sociais no so - e usualmente no podem ser - feitos com

    uma nica pesquisa emprica, de uma vez s. Ao contrrio: so feitos com muitas pesquisas que, em

    pontos cruciais, conseguem estabelecer normas gerais a respeito da forma e das tendncias dos objetos

    pesquisados." (Mills, 1967, p. 32)

    2 - Nestes pargrafos, desenvolvo uma idia que apareceu em conversa com Manuel Castells, h

    dcadas.

    3 - Estas funes adicionais so sobejamente conhecidas das entidades financiadoras que, em

    alguns casos, conscientemente usam fundos de pesquisas para manter programas e instituies. H, com

    certa freqncia, negociaes sobre ooverhead que a instituio que recebe a dotao pode cobrar. 4 - Nas dcadas de 1960 e 1970 houve projetos cujos objetivos expressos, acadmicos, diferiam

    dos objetivos ocultos, que eram polticos. O mais conhecido foi o Projeto Camelos, amplamente

    denunciado. Estes projetos criaram uma atmosfera quase paranica em relao a qualquer tipo de

    pesquisa social, o que contribuiu para retardar o desenvolvimento das cincias sociais na Amrica Latina. 5 -Talvez o erro mais comum seja o de no verificar as entrevistas. Infelizmente, muitos

    entrevistadores preenchem eles prprios os questionrios (em parte ou no todo), ou entrevistam qualquer

    pessoa da casa, para no perder a viagem. O simples aviso, aos entrevistadores, de que as entrevistas

    sero verificadas e, eventualmente, refeitas, diminui as falsificaes.

    6 - Por algum tempo houve resistncias srias de muitos alunos a aprender estatstica e mtodos

    de pesquisa; alguns chegaram a inclu-los no rol das matrias ideolgicas, que deveriam ser eliminadas do currculo. Mas, entre eles, particularmente entre os que permaneceram na profisso, muitos tiveram

    que obter estes conhecimentos anos mais tarde, para poder efetuar pesquisas. Quanto matemtica, evit-

    la era motivo freqentemente alegado por alunos que buscavam as cincias sociais, agindo assim por excluso. Encontrei estudantes brilhantes, honestamente convencidos de que eram geneticamente

    incapazes de aprender matemtica. Por trs de atitudes assim est muitas vezes um pssimo professor no

    ciclo secundrio ou, at mesmo, primrio. 7 - Mills foi um dos marxistas americanos mais criativos e, por isso mesmo, menos ortodoxos.

    Escreveu alguns livros importantes, como White collar, The power elite e The sociological imagination, e

    outros de impacto poltico e popular, como Listen yankee! 8 - Meu primeiro livro, Sociedade e poltica no Brasil (So Paulo, Dife, 1973) melhorou muito

    com as crticas feitas por Antnio Octvio Cintra e Simon Schwartzman e outros, entre os quais estavam

    alunos da Universidade de Braslia que trabalhavam comigo; meu segundo livro, A questo agrria na

    Amrica Latina (Rio de Janeiro, Zahar, 1976) recebeu contribuies de Jorge Baln e Lcio Geller.

    Muitos artigos melhoraram de qualidade com as excelentes crticas de bons amigos e crticos ao longo de anos, como Adam Przeworski, David Denslow, Eli Diniz, Joseph Kahl, Maria Celina Soares d'Arajo,

    Nelson do Valle Silva, entre outros, que fizeram revises cuidadosas de diferentes trabalhos, em diversos

    momentos da minha vida intelectual. Nada melhor do que bons amigos que saibam ler e criticar.

  • 9 - A atividade em pequenos grupos proporciona excelentes oportunidades para melhorar o

    contedo dos trabalhos dos membros. Para os latino-americanos, isto mais difcil de obter nos Estados

    Unidos do que na Amrica Latina, em parte porque os paradigmas so muito diferentes, faltando

    linguagem e problemtica comuns e, em parte, porque o ambiente universitrio muito mais competitivo

    e muito menos cooperativo. Os americanos so mais mesquinhos com suas idias. As dificuldades, na

    Amrica Latina, derivam menos do carter competitivo e mais das diferenas polticas e ideolgicas, que

    desempenham papel mais reduzido nos Estados Unidos, e certo estrelismo e vedetismo, se houver pblico

    significativo.

    10 - Vejam bem que estamos falando de pesquisadores. A presena de computadores pode ser motivo de escrnio, a partir da perspectiva dos que no acreditam na sua utilizao, entre os quais h

    pesquisadores competentes. Alm disto, oethos burocrtico de algumas instituies impede a utilizao

    adequada deste recurso. Lembro-me de que, quando a Fundao Getlio Vargas (Rio de Janeiro) obteve

    seu primeiro computador, um IBM 1130, sua utilizao ficou condicionada aos rgidos horrios

    burocrticos impostos pelos daspianos que dominavam aquela instituio. Criou-se, assim, o primeiro barnab eletrnico do pas (a expresso, felicssima, de Alexandre Barros).

    11 - Minha experincia no ensino, que ampla e variada, confirma que estudantes de graduao

    bem-orientados aprendem mais e trabalham mais participando de pesquisa do que em aulas tradicionais.

    Ademais, podem produzir trabalhos publicveis. A grande dificuldade induzi-los a transformar noes

    gerais, sobre temas e regies, em hipteses pesquisveis, equacionando-as bem.

    12 - Ao falar em pesquisa de biblioteca como uma opo inferior, refiro-me maneira pela qual nossos estudantes ainda usam as bibliotecas: um lugar cheio de livros e revistas. Esta uma subutilizao

    das bibliotecas, particularmente das mais equipadas, que tambm contm dados e documentos, nos quais

    perfeitamente possvel fazer pesquisas empricas.

    13 - Claro que isto significa uma colossal e tediosa mo-de-obra para o professor que dever ler

    um resumo de cada leitura, escrito por cada aluno. Durante os meus anos de ensino, alguns alunos (quatro

    ou cinco) tentaram verificar se eu realmente lia os resumos, escrevendo algumas coisas no relacionadas

    com o tema e outros, indo mais alm, coisas pessoais.

    14 - H, como veremos, fortes indicaes de que a produtividade dos indivduos depende,

    parcialmente, da produtividade das instituies. Pesquisas feitas no Brasil demonstram que, como em

    outros lugares, a formao profissional o grande determinante da produtividade. Os doutores produzem

    mais que os mestres e assim por diante. Mas, repito, a produo dos doutores varia com a proporo de doutores na instituio (departamento, instituto etc). Como explicar isto? Creio que cada instituio tem

    um geist prprio, que afeta os seus membros. Em poucas instituies o geist acadmico e profissional

    (se as visitarmos veremos que os membros falam das suas pesquisas e do seu trabalho); o geist acadmico

    tem a virtude de reduzir o impacto das divises polticas sobre v trabalho profissional. 15 - Hoje, so poucos os que trabalham exclusivamente numa ONG, o que cria um problema de

    saber a que instituio atribuir os trabalhos. Entretanto, antes da crise da dvida, um nmero maior de

    pesquisadores trabalhava exclusivamentenas ONGs e a produo destas j era muito superior das

    universidades.

    16 - As comparaes internacionais quase sempre vm baila. As diferenas salariais entre

    professores universitrios brasileiros e americanos freqentemente so muito exageradas. Notem que os

    professores de universidades americanas sem cargo administrativo recebem nove salrios por ano (contra

    treze dos brasileiros), ficando desempregados trs meses por ano; no tm frias pagas, nem direito a aposentadoria integral; depois de, pelo menos, vinte anos de servio e contando com, pelo menos, 65 anos

    de idade, recebe-se uma aposentadoria que equivale a aproximadamente 20% a 40% do salrio integral.

    Alm disso, as diferenas no custo de vida so muito grandes. Um dlar compra muito mais no Brasil. Bibliografia

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