GEMIN; DEBORAH BRUEL - Caetano de Almeida: Injunções da alegoria na arte contemporânea

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DEBORAH ALICE BRUEL GEMIN | CAETANO DE ALMEIDA | INJUNÇÕES DA ALEGORIA NA ARTE CONTEMPORÂNEA FLORIANÓPOLIS SC 2008

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dissertação de mestrado

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DEBORAH ALICE BRUEL GEMIN

| CAETANO DE ALMEIDA |

INJUNÇÕES DA ALEGORIA NA ARTE CONTEMPORÂNEA

FLORIANÓPOLIS SC

2008

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE ARTES – CEART

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS

DEBORAH ALICE BRUEL GEMIN

CAETANO DE ALMEIDA

INJUNÇÕES DA ALEGORIA NA ARTE CONTEMPORÂNEA

Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do CEART/UDESC, para obtenção do título de Mestre em Artes Visuais.

Orientador: Drª Rosangela Miranda Cherem

FLORIANOPOLIS SC 2008

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DEBORAH ALICE BRUEL GEMIN

CAETANO DE ALMEIDA

INJUNÇÕES DA ALEGORIA NA ARTE CONTEMPORÂNEA

Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em

Artes Visuais do CEART/ UDESC, para obtenção do título de Mestre em Artes

Visuais, na linha de pesquisa de Teoria e História da Arte.

Banca examinadora:

Orientador: ___________________________________________________ Profª. Drª. Rosangela Miranda Cherem

CEART/UDESC

Membro: ____________________________________________________ Profª. Drª. Dária Goreti Jaremtchuk

EACH/USP

Membro: _____________________________________________________ Profª. Drª. Teresinha Sueli Franz

CEART/UDESC

Florianópolis, 10|06|2008

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| AGRADECIMENTOS |

Agradeço em especial à professora Rosangela Cherem, a quem devo a

erudita orientação, o acompanhamento sério e generoso, dando-me autonomia e

liberdade.

Reconheço a importância das questões levantadas pela banca de

qualificação. Sou grata a Dária Jaremtchuk por suas importantes sugestões, e pelo

incentivo desde o início desta trajetória. Agradeço a Teresinha Franz pelas

respeitáveis considerações.

Agradeço ao Caetano de Almeida pela generosidade e acesso às suas

obras.

Não posso deixar de mencionar a importância do corpo docente do PPGAV

– UDESC, para o amadurecimento da pesquisa.

Sou grata especialmente à Sandra Lima, da secretaria do programa de

mestrado, cuja dedicação e carinho foram fundamentais, tornando leves as árduas

tarefas da vida acadêmica.

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Agradeço em especial aos amigos que me incentivaram indicando

caminhos. A Fabio Noronha e Juliana Gisi pelo constante estímulo e interlocuções.

Ao Atila Regiani pelas infinitas e interessantes conversas. A Marisa Weber por sua

sensibilidade e sincera amizade.

Sou muito grata aos amigos e familiares que possibilitaram a realização

deste projeto. Agradeço a Jeane e Aurêa por sua generosidade e apoio. Aos

amigos Ana Paula, Zé e Chico pela afetuosa acolhida.

Agradeço as amigas de todas as horas Patrícia, Letícia e Rosangela, por

seus ouvidos alugados por tanto tempo. A Camilla e Marice pela amizade

construída nas estradas desta jornada. E a todos aqueles que me ajudaram, por

estarem sempre por perto: Beto, Aline, Assis, Maria Rita, Stephanie, Paulo, Carol,

Cris, Maria Bernadete, Vanessa, Luana, Alice, Patrícia, Sônia e Lu.

Agradeço ao querido Hector por nutrir meu corpo e meu coração com tanto

desprendimento e serenidade.

E, por fim dedico esta conquista aos meus pais, Livaldo e Alice pelo amor

incondicional e total apoio aos meus sonhos e interesses, e a Heloisa pelo suporte,

amor e carinho irrestritos.

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|RESUMO|

O reaparecimento do debate sobre a alegoria na arte contemporânea pode ser encarado como retorno de uma questão recalcada, que embora já anunciada por Walter Benjamin, desde então pouco avançou. Neste sentido, a produção artística de Caetano de Almeida, colocada em diálogo com trabalhos de outros artistas e textos teóricos, permite que se retome uma problemática pertinente à História, Teoria e Crítica de arte, atualizando-a, especialmente no que se refere à natureza da imagem e sua relação com a temporalidade. No sentido mais convencional, uma definição de alegoria advém tanto da filosofia de Platão como da literatura, sendo considerada como uma figura de linguagem onde é possível dizer uma coisa através da outra. Na arte, trata-se de uma noção, atributo ou possibilidade da obra dizer outra coisa para além dela mesma, ou seja, a alegoria comparece como recurso destinado a ultrapassar o que apresenta como mais visível ou imediato. Problematizar este conceito para além de uma mera definição, constitui-se num modo de abordar a imagem artística não somente como aquilo que é olhado, mas também como algo que olha e faz pensar para além de sua visibilidade evidente. Trata-se menos de propor axiomas e mais de discutir suas reverberações e rebatimentos, especialmente considerando três aspectos: a anacronia, a duplicação e a visualidade. O primeiro discute a montagem como procedimento presente nos trabalhos da série Mundo Plano, considerando as ações de fragmentação e justaposição, bem como possibilitando a ressignificação e constituição de uma cartografia anacrônica da história da pintura moderna. O segundo aspecto propõe a duplicação como uma operação que revela a diferença presente nas séries As Madames e Exposição de Quadros, sendo que ambas têm como ponto de partida a apropriação de imagens da história da arte, as quais afirmando a reduplicação colocam em xeque os princípios valorativos da originalidade contrapostos aos da repetição como diferença. No último aspecto, discute-se a carne da pintura, ou seja, a própria constituição da visualidade artística como uma alegoria. Têm-se então os vestígios da busca do artista desvelada sob a superfície pictórica, questão presente na exposição Borda, assim como nos trabalhos de Adriana Varejão, Nuno Ramos e Dudi Maia Rosa. Estes três aspectos permitem considerar que a obra fala nos seus próprios termos, sendo portanto, criação de um mundo que aponta sempre em duas direções, onde a alegoria possibilita a fala, tanto para um dentro a partir de um fora, como de um interior lançado para além de seus limites.

Palavras-chave: alegoria, montagem, pintura e arte contemporânea.

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| ABSTRACT |

The reappearing of the debate about allegory in the contemporary art may be

faced as the return of a reiterated question, although already announced by Walter Benjamin, since then little advanced. In this sense, the artistic production of Caetano de Almeida, in dialogue with other artists` works and theoretical texts, allows that a problematic pertinent to Art History, Theory and Critics, modernizing it, especially in what refers to the nature of image in its relation to temporality. In the more conventional way, a definition of allegory comes such from the philosophy of Plato as from literature, being considered as a figure of speech where is possible to say one thing through another. In art, this is about a notion, attribute or possibility of the work to say another thing to beyond itself, it means, the allegory appears as a resource destined to surpass what presents as the most visible or immediate. To problematize this concept to beyond a simple definition is constituted in a way of approaching the artistic image, not only as what is looked, but also as something that looks and makes to think beyond its evident visibility. This about less proposing axioms and more discussing its reverberations and rebuts, especially considering three aspects: the anachrony, the duplication and the visuality. The first one discusses the assembly as procedure present in the works of the series Mundo Plano, considering the actions of fragmentation and juxtaposition, as well as allowing the resignification and constitution of an anachronical cartography of the modern painting history. The second aspect proposes the duplication as an operation that reveals the difference present in the series As Madames and Exposição de Quadros, in which both have as starting point the appropriation of images of the art history, which affirming the reduplication bounce the appraised principles of originality opposed to the ones of repetition as difference. In the last aspect, it is discussed the meat of the painting, it means, the very own constitution of the artistic visuality as an allegory. There are then the vestiges of the artist’s search unveiled under the pictorial surface, present question in the exposition Borda, as well as in Adriana Varejão, Nuno Ramos and Dudi Maia Rosa’s works. These three aspects allow considering that the work speaks in its own terms, being therefore, creation of a world that points always in two directions, where the allegory allows the speech, such as to an inside from an outside, as from an interior launched to beyond its limits. Key-words: allegory; assembly; painting; contemporary art.

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| LISTA DE ILUSTRAÇÕES |

fig. 1 | Caetano de Almeida, Anfitrite da série Mundo Plano, 2001. ____________ 29 fig. 2 | Caetano de Almeida, Sala dos Espelhos da série Mundo Plano, 2003. ___ 32 fig. 3 | Kurt Schwitters, Merz Picture 32A (Cherry Picture). 1921 _____________ 38 fig. 4 | John Heartfield, The Meaning of the Hitler Salute: Little man asks for big

gifts. Motto: Millions Stand Behind Me! 1932. _______________________ 39 fig. 5 | Vik Muniz, Jorge da série Retratos de Revista, 2003. ________________ 42 fig. 6 | Vik Muniz, sem título da série Pictures of Dust, 2000. ________________ 44 fig. 7 | Caetano de Almeida, As Madames, 1999. _________________________ 50 fig. 8 | Jean-Marc Nattier, Madame Louise-Elisabeth, 1751._________________ 51 fig. 9 | Caetano de Almeida, Madame Louise-Elisabeth Duchesse de Parme

(Madame L'Infante), La Terre, da série As Madames, 2000. ____________ 51 fig. 10 | Jean-Marc Nattier, Madame Marie-Louise-Thérèse-Victoire de France

1751. _______________________________________________________ 55 fig. 11 | Caetano de Almeida, Madame Marie-Louise-Thérèse-Victoire de France,

L'Eau, 1999. _________________________________________________ 55 fig. 12 | Jean-Marc Nattier, Madame Anne Henriette de France,1751. _________ 56 fig. 13 | Caetano de Almeida, Madame Anne-Henriette de France, Le Feu 1999. 56 fig. 14 | Walker Evans Hale County - Alabama, 1936.(esquerda) / Sherrie Levine

sem título (after Walker Evans), 1979.(direita). ______________________ 58 fig. 15 | Jean-Marc Nattier, Madame Marie-Adélaïde de France, 1751. ________ 59

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fig. 16 | Caetano de Almeida, Madame Marie Adelaide de France, L Air, da série As Madames, 1999. ______________________________________________ 59

fig. 17 | Honoré Fragonard, O progresso do amor: perseguição, 1771-73.______ 61 fig. 18 | Gerhard Richter, Tote (morta), da série 18 Oktober, 1988. ___________ 63 fig. 19 | Caetano de Almeida, Frutas (detalhe), da série Exposição de Quadros,

1997. _______________________________________________________ 64 fig. 20 | Pablo Chiuminatto, Biblioteca do artista, 2006. ____________________ 66 fig. 21 | Pablo Chiuminatto, sem título, 2006. ____________________________ 66 fig. 22 | Caetano de Almeida, Retratos das crianças de Eduard Holden Cruttenden

da série Exposição de Quadros, 1996. ______________________________ 70 fig. 23 | Caetano de Almeida, Frutas da série Exposição de quadros, 1999. ____ 71 fig. 24 | Vik Muniz, Still life with lemons, oranges and a cup of water, after Francisco

Zurbarán, 2004._______________________________________________ 72 fig. 25 | Caetano de Almeida, Exposição de Quadros, galeria Luisa Strina,1997. _ 74 fig.26 | Nuno Ramos, sem título, 2005. _________________________________ 78 fig. 27 | Adriana Varejão, Azulejões, 2000. ______________________________ 80 fig. 28 | Adriana Varejão, Ruína de Charque Chacahua, 2000. ______________ 82 fig. 29 | Nuno Ramos, sem título, 2005._________________________________ 84 fig. 30 | Dudi Maia Rosa, sem título, 2005. ______________________________ 91 fig. 31 | Dudi Maia Rosa, sem título, 2003. ______________________________ 92 fig. 32 | Caetano de Almeida, Exposição Borda,2007. _____________________ 94 fig. 33 | Caetano de Almeida, sem título da Exposição Borda, 2007. __________ 95

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| Sumário |

| Introdução | ____________________________________________________ 11

| Capítulo I | _____________________________________________________ 20

A montagem ou a alegoria como procedimento de criação e pensamento

1 | Walter Benjamin e a alegoria como possibilidade no re-pensar a história 21 2 | Caetano de Almeida e a alegoria como procedimento pictórico _______ 27 3 | A arte contemporânea e o recurso da alegoria ____________________ 33 4 | Montagem contemporânea ou alegoria do pensamento pictórico______ 41

| Capítulo II |_____________________________________________________ 46

O duplo ou a alegoria do procedimento que re-vela a diferença

1 | A re-apresentação da diferença na repetição _____________________ 47 2 | A série As Madames e a duplicação como re-velação da obra _______ 53 3 | Exposição de Quadros e o duplo sem original ____________________ 64

| Capítulo III | ____________________________________________________ 76

A carne da pintura ou a alegoria da arte desvelada sob a superfície da pele da

pintura

1 | A constituição da pintura: o paradoxo de jamais ser o que alega______ 77 2 | Pintura moderna: autotelia como discussão da carne da pintura ______ 86 3 | A exposição Borda: desfazendo a trama para revelar a carne ________ 93 4 | O campo expandido e sua relação com o outro ___________________ 98

| Referências Bibliográficas | _______________________________________ 105

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| Introdução |

É que existe, talvez uma invisibilidade que é ainda uma maneira de deixar-se ver, e uma outra que se afasta de

todo o visível e de todo o invisível. Maurice Blanchot

A arte apresenta imagens, objetos, pensamentos e mundos re-criados e re-

descobertos à maneira do artista, inventando e propondo desdobramentos da

realidade por meios que lhes são próprios e problematizando questões que

parecem se repetir no decorrer da história. Como se as inquietações ou o que

interessa ser discutido, ou ainda, aquilo que não se pode realmente acessar e

responder, fosse sempre o mesmo objeto de impulso criativo. Assim, o artista,

através de seu processo de trabalho re-apresenta e re-configura a matéria artística,

num sistema aberto, onde não existe início e fim, onde o novo é sempre uma re-

construção, não se trata da volta do idêntico mas do que se faz diverso, tal como a

diferença e repetição de Deleuze que estabelecem o desvio no retorno.1 O retorno

que acontece no rasgo atemporal que se abre a partir da imagem, na cintilação de

sua potência como obra. E, o artista opera re-criando mundos, na busca desse

movimento, ou seja, cria porque esquece, sendo que o retorno do recalque não se

dá pelo idêntico nem pela generalização, mas pelo que volta como deslocamento e

lapso.

A alegoria ressurge, portanto, como uma necessidade posto que possibilita

falar uma coisa através de outra, então, o que pode ser descrito de acordo com as

técnicas, os modos e os processos estabelecidos, passa a ocultar-se por trás dos

véus da alegoria, para assim se tornar mais visível. Ela tornou-se inevitável nos

tempos atuais, pois para alcançar as complexidades vividas talvez seja preciso

pensá-las de outro modo. Pressuposto que funciona como um gatilho para o

estudo que segue, por entender que à arte cabe sempre a alegação de um outro.

Desta forma propõe-se uma abordagem alargada deste conceito, que permita

tangenciar as questões contemporâneas, que vão além das postulações

tradicionais da alegoria, e ultrapassam as discussões formais dos processos

artísticos, considerando a imagem como limite que não se fecha em si, mas aponta

1 DELEUZE, 1988.

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aquém e para além de si. Portanto, problematizar a alegoria constitui-se num modo

de abordar a imagem artística não como aquilo que é olhado, mas considerando

que ela também olha e faz pensar, e isso diz respeito à sua vocação essencial2

para além de sua visibilidade evidente. Assim, questões se colocam: como a arte

contemporânea opera para dizer o outro? O que se pode considerar como alegoria,

ou seja, o que vem a ser na atualidade aquilo que a obra alega?

Alegoria um conceito, um rótulo, um assunto, que desde a antiguidade vem

sendo usado, discutido, codificado, e como todo conceito até mesmo esquecido ou

rechaçado em outros momentos. A definição de alegoria advém da filosofia de

Platão, e também da literatura, como uma figura de linguagem onde é possível

dizer uma coisa através da outra, encontrando-se muito próxima do sentido de

metáfora. Enfim, trata-se de uma noção, atributo ou possibilidade da obra de arte

em dizer outra coisa além dela mesma, de ultrapassar o que apresenta como

visível. Uma potência de arremesso para além da imagem explorada pelos artistas,

através da mescla de linguagens, materiais, técnicas e procedimentos. Capacidade

problematizada por Caetano de Almeida, artista cujos trabalhos permitem

reconhecer possíveis presenças da alegoria na arte contemporânea, por dirigirem-

se a questões caras à arte moderna e contemporânea, como originalidade,

duplicação e visualidade.

Este estudo foi realizado levando em consideração as reflexões de Didi-

Huberman, para quem uma investigação teórica sobre imagens não deve

apresentar axiomas, mas sim refletir sobre os aspectos heurísticos da experiência,

quer dizer, por em dúvida as evidências do método quando se multiplicam as

exceções, os sintomas, os casos que deveriam ser ilegítimos e que sempre

demonstram ser fecundos.3 Neste sentido esta pesquisa apóia-se em reflexões e

análises das obras de Caetano de Almeida, propondo inter-relações entre as

mesmas e analogias com os textos teóricos sobre a alegoria em arte.

Acrescentando diálogos com obras de outros artistas que contribuem para a

discussão, ora por apresentarem semelhanças em relação aos procedimentos,

como nos trabalhos de Vik Muniz; ora por apresentarem diferenças como é o caso

de Adriana Varejão e Nuno Ramos, cujos processos são divergentes entre si e em

relação a Caetano de Almeida. Todavia trata-se de repertórios que enriquecem a

2 DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 87. 3 Id, 2006, p.26-27.

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pesquisa, pois alargam as possibilidades do raciocínio. Foram também incluídas

conexões com obras de tempos distintos da história da arte, como as colagens

dadás de Kurt Schwitters, cujo procedimento de montagem revela forte indício

alegórico, num momento onde o conceito de alegoria não tinha espaço dentre

digressões teóricas. Sendo assim, a partir de certas aproximações empáticas,

trata-se de uma pesquisa caracterizada pela análise dos processos empregados

por Caetano de Almeida, encontrando reverberações em outras obras de arte,

apoiando-se nos escritos de Walter Benjamin, importante teórico que tem servido

de base a historiadores e teóricos da arte para abordar o conceito da alegoria

desde a modernidade4, e aproximando-se de certas noções operatórias contidas

no pensamento de Gilles Deleuze, Rosalind Krauss e George Didi-Huberman.

Caetano de Almeida demonstra em seus trabalhos uma preocupação com a

imagem da arte, em discutir seu poder de cintilação e acesso, de que maneiras ela

tem sido apresentada na história da arte e como suas recepção e distribuição têm

sido exploradas pelos meios culturais. Portanto, seus trabalhos permitem pensar a

alegoria como a potência da imagem em não convergir e nem divergir, mas

tangenciar a contemporaneidade. Por suas características, a alegoria, destrói o

conceito de originalidade e unicidade do trabalho de arte, porque permite e

trabalha com o impostor, com aquele que se passa por, que se disfarça de diverso

para continuar. Esse caráter de impostura, de aproximação pela distância é o que

atualiza sua contemporaneidade, possibilitando relações anacrônicas,

fragmentadas e justapostas.

Em relação às imagens de uma maneira geral, sejam elas artísticas ou não,

a alegoria pode se configurar de maneiras distintas. Quando a imagem é

representação, o outro da imagem é o referente, ela remete a um outro que está

ausente, mas que se faz presente por esta aparição, que o representa pelas suas

características físicas. E, nisto consiste o potencial alegórico da fotografia. O

mesmo ocorre em outros processos que circundam a produção artística, como

curadorias e edições curatoriais para livros, catálogos e impressos. Porém, esta

alegação do ausente por uma figuração dele mesmo, não é da mesma ordem

ontológica da alegoria presente numa obra de arte. 4 Existem outras leituras alegóricas e usos da alegoria possíveis para trabalhos artísticos, é preciso esclarecer que a alegoria é uma das alternativas para se pensar a arte contemporânea. Este estudo não pretende apontá-la como única possibilidade ou como aquilo que figura entra as mais novas descobertas da teoria da arte contemporânea.

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A alegoria entendida de maneira clássica e histórica, situa-se num tempo

onde a arte almejava o sublime e o transcendente via cenas históricas, religiosas e

mitológicas. Esta configuração alegórica servia-se do poder de representação

legado à imagem. O que seria evitado enfaticamente pelas vanguardas modernas.

No entanto, baseando-se nos escritos de Walter Benjamin sobre o impulso

alegórico, constata-se que este passa a ser reconhecido nos procedimentos e

processos artísticos, os quais dão características alegóricas às obras de arte

modernas e contemporâneas. Ou seja, as maneiras de construção do trabalho de

arte, tornam-se juntamente com sua visualidade, fundadoras de significado.

Nos trabalhos conceituais, o outro é o conceito da obra, é aquilo que ela

indica a partir de sua constituição, nas relações que estabelece intrinsecamente,

para dentro de si, ou externamente, com o mundo alheio ao meio artístico. Onde o

contexto completa o seu existir, como o urinol de Duchamp, cuja história e

conjuntura são imprescindíveis para se chegar ao outro5, ou seja, aquilo que a

obra alega. Porém, na presente pesquisa, ao contexto será dada pouca

importância, não por considerá-lo irrelevante, mas porque este estudo pretende

pensar a alegoria a partir das estruturas e procedimentos dos trabalhos de arte.

Isto significa, pensá-la através dos processos que engendram a obra, pelas

relações que propõe, abrindo-se para tempos distintos e contextos diversos. Sendo

assim, encontra-se em Caetano de Almeida, uma produção artística que postula

preocupações dessa ordem. Seus trabalhos propõem questões que apontam

possibilidades de entendimento da alegoria na arte contemporânea, porque vão

além da sua identificação nos procedimentos alegóricos, suscitando um

pensamento sobre a imagem, para antes e depois de seu tempo, para aquém e

além de sua aparência figural, para fora e para dentro de seu corpo pictórico.

Algumas séries de trabalhos de Caetano de Almeida revelam

características e procedimentos que possibilitam pontuar a alegoria na arte

contemporânea a partir de três eixos: a anacronia, aparente nos procedimentos de

montagem como alegoria do pensamento; a duplicação, presente nas citações e

5 O outro é aquilo a que a obra remete, o querer dizer da obra. Não se caracteriza por algo inalcançável, nem tem um caráter de transcendência ou essência, mesmo porque esse caráter mítico ou religioso ficou suprimido desde a arte moderna. A escolha deste termo se dá justamente pela própria indefinição que seu significado confere. Outro pode ser alguém, algo, coisa, ser ou idéia, portanto é próprio para a indicação das possibilidades de fruição do objeto artístico.

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cópias, como alegoria do duplo; e a configuração do corpo, revelada na

constituição da matéria pictórica, como a alegoria da carne.

Essa tríade da alegoria é pertinente à definição dos níveis de leitura de

Orígenes6, um erudito da igreja antiga, que definiu três níveis de leitura para as

escrituras, que se referiam à capacidade de compreensão: o literal, o moral e o

alegórico ou místico. Naquele período somente os mais preparados espiritualmente

chegariam ao último nível, ou seja, o alegórico. Para justificar essa classificação

Orígenes recorre a uma metáfora: o sentido literal corresponde ao corpo, o sentido

moral à alma, e o sentido místico ou alegórico ao espírito da escrita, pois a escrita

é composta pelos mesmos elementos que o ser humano: corpo, alma e espírito. O

corpo é o literal, ou seja, a aparência, a superfície, a pele, o que podemos ver; para

a arte é o corpo do trabalho que contém as operações do artista e que configura

sua superfície. A alma é a subjetividade, a narrativa, o sentido do discurso

empregado, que na arte se revela nos procedimentos e processos usados pelo

artista. E o espírito, que é a transcendência no sentido religioso, na arte é a

potência de reverberação, aquilo que se tenta definir em conceitos, mas que

sempre escapa ao limitado recurso teórico e lingüístico, pois só a obra é capaz de

dizer per si e em si 7; é portanto, o que torna a imagem obra, o que faz o objeto

pertencer à ordem do extraordinário.

Porém, a relação aqui estabelecida entre esses níveis de leitura das

escrituras e as três maneiras de pensar a alegoria se dá pelo entendimento de que

assim como as escrituras se referem ao sublime, aos mistérios da fé e foram

escritas para se dizer o Outro, aquele que não pode ser tocado e nem visto no

plano real mas que o transcende, o outro ao qual a arte se refere, historicamente

pertenceu ao sublime, já foi chamado de aura, e é aquilo pelo qual, artistas e

teóricos ainda se debruçam em suas buscas, questionamentos e discussões. No

entanto, diferentemente dos níveis de leitura de Orígenes, que se referem a uma

codificação e leitura verdadeira das Escrituras, na tríade da alegoria proposta neste

estudo, não existe nenhuma valoração ou hierarquia entre os eixos abordados,

pode-se entendê-los como categorias e não como níveis, posto que não se referem

6 Orígenes (185 –253 d.C.), escritor cristão e teólogo que estudou as escrituras bíblicas e seus significados morais, éticos e religiosos, definindo níveis de apreensão e entendimento dos ensinamentos da Bíblia de acordo com a capacidade de interpretação destes escritos. In:GAGNEBIN, 1994, p. 38. 7 PONTY, 2007, p. 133.

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à leitura ou entendimento do texto poético, mas a diferentes possibilidades de

abordagem da presença alegórica na arte, quer pelo ponto de vista teórico-

metodológico, quer na relação entre poética e forma, história e crítica. Portanto,

numa possível aproximação entre a arte e os níveis de leitura de Orígenes, propõe-

se que o sentido literal se refere à alegoria da carne como a matéria, o corpo do

trabalho e a sua visualidade sendo objetos do pensamento plástico. O sentido

moral à alegoria do duplo e que se dirige à representação e ao entendimento de

imagem construída. O sentido alegórico ou místico relacionado à alegoria como

pensamento, relativo à dimensão discursiva do pensamento plástico e que

acontece na relação estabelecida pelo recurso narrativo ou processual.

A alegoria do pensamento apresentada no primeiro capítulo, discute a

montagem, que para Benjamin é o emblema da alegoria por agregar todas as suas

características, tornando-se o procedimento contemporâneo por excelência8. Sua

utilização permite a junção de tempos distintos, renovando percepções e propondo

novas relações entre presente e passado. É possivelmente isto que faz Caetano de

Almeida na série Mundo Plano, executada entre os anos de 2000 e 2003,

suscitando a discussão da montagem como o que remete ao conceito da obra pelo

seu poder de cintilação anacrônica, propondo um olhar distinto sobre a pintura

abstrata do século XX e seu conceito de planaridade.

Para dialogar com estes trabalhos deste artista, aponta-se outra via de

montagem na arte contemporânea, como a série Retratos de Revista de Vik Muniz,

trabalhos cuja fatura congrega fragmentação, justaposição e montagem. Embora

sua produção seja fotográfica, este artista utiliza processos plásticos como

desenho e pintura, sobrepondo camadas de técnicas e procedimentos.

Caracterizando a montagem como um procedimento genuinamente alegórico da

anacronia contemporânea.

Ainda no primeiro capítulo é feito um apanhado da tipologia histórica da

alegoria. Tendo sua origem na linguagem a alegoria aparece como gênero da arte

desde o séc XIII, porém seu conceito sofre transformações na arte moderna e

contemporânea, que se baseiam nos estudos de Benjamin sobre o impulso

alegórico. Esta análise das modificações da alegoria no decorrer da história faz-se

necessária para tornar evidente a abordagem sobre a alegoria que se propõe neste

8 BENJAMIN, 1984.

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estudo, e como esta pode servir de indicativo dum modus operandi

contemporâneo.

O capítulo seguinte trata da alegoria do duplo: a imagem como re-

apresentação, discutida em dois momentos da produção artística de Caetano de

Almeida. Na série As Madames de 1999, réplicas de pinturas do século XVIII,

Caetano de Almeida discute a re-apresentação e a instituição do gosto e da

identidade da pintura na contemporaneidade, e problematiza a duplicação da

imagem, pela sua força em dizer o outro, seu potencial alegórico. Essa operação

de retorno e repetição encontra eco no discurso de Gilles Deleuze em Diferença e

Repetição, como aquele que retorna como recalque, porém sempre diferente. Aqui

a interlocução é feita com Gehard Richter, artista cuja obra está pautada na

operação de pintura da pintura, de duplicação da imagem, e ajuda a pensar a

duplicação por um viés bastante conceitual.

Este conceito se encontra também nos trabalhos da série Exposição de

Quadros de Caetano de Almeida que consistem em pinturas que simulam

reproduções de pinturas exemplares da história da arte. A operação que imita a

técnica de impressão nas retículas aparentes, propõe a questão da réplica sem

original, encontrada nas discussões sobre o mito da originalidade das vanguardas

de Rosalind Krauss9. Novamente os trabalhos de Vik Muniz, servem para uma

relativização do processo de duplicação, para pensar o original e o duplo como

diferenças, e enfatizar as questões de percepção sobre a construção das imagens

da arte.

A alegoria da carne como matéria e espírito da pintura será argumentada no

terceiro e último capítulo. A carne entendida como a constituição do corpo da

pintura a partir dos trabalhos de Adriana Varejão e Nuno Ramos, que discutem a

materialidade da arte estruturando um corpo para a pintura, utilizando cada um,

procedimentos diferentes. A alegoria pensada não apenas como procedimento,

mas como corpo da arte, como aquilo que funda o fazer artístico. Retoma-se a

discussão sobre a constituição da pintura moderna, das questões da auto-

referência e da presença alegórica num período onde este conceito foi ignorado

por seus teóricos. E propõe-se a autotelia como um significativo exemplo da 9 Um dos principais exemplos usados por Rosalind Krauss para argumentar a falácia da originalidade das vanguardas é a atitude de Rodin em autorizar a produção em bronze a partir das peças em gesso legadas por ele ao Estado francês atitude que coloca em cheque a noção de originalidade. In: KRAUSS, 1996, p.165-175.

17

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discussão da carne da pintura. A essa problemática soma-se o trabalho de Dudi

Maia Rosa, artista contemporâneo que reconstrói alegoricamente o corpo da

pintura em seus trabalhos, por uma acumulação de camadas, que começam pela

superfície/pele pictórica e migram para dentro do chassi/corpo.

O corpo da pintura que se estabelece na trama como carne e na superfície

como pele, configura a exposição Borda de Caetano de Almeida como uma

alegoria da pintura, que remete às questões da superfície pictórica cujas dobras e

rasgos convidam ao atravessamento do olhar, para que este enxergue seu

verdadeiro corpo. Tendo como interlocutor o livro La Pintura Encarnada de Didi-

Huberman, que propõe a superfície da pintura como a pele que contém seu corpo,

e enfim, o corpo da arte, vislumbra-se nestes trabalhos de Borda uma vocação

alegórica que perpassa seus procedimentos e se instala além da trama, e neste

jogo da mirada revela que existem sempre dois caminhos, um, do olhar que

observa, rasga a pele e ao expor a carne revela o corpo, o outro da mirada que

volta das entranhas do trabalho, que se abre para além do visível.

Este potencial dialético da imagem requer do observador percepção e olhar

ativos que reflitam para além da sua visibilidade, e por isso o último item deste

estudo congrega as intenções destas abordagens alegóricas, numa terceira

possibilidade de outro, que é o espaço que se estabelece com o espectador. Como

o outro que acontece a partir da obra como dispositivo, quando ela só se completa

nessa relação. Momento onde a alegoria se apresenta e manifesta seu enigma,

ponto em que a obra pensa e faz pensar.

Embora, o texto se estruture em capítulos onde são abordadas

características e facetas da alegoria, há uma interface e trama que se constitui

contaminando-os mutuamente, sem a qual o raciocínio sobre o trabalho deste

artista ficaria fragmentado e incompleto. O que interlaça estas questões são os

procedimentos e processos utilizados pelo artista, que instauram marcas nos

corpos dos trabalhos, as quais permitem as fendas e dobras por onde o espectador

percebe sua fala. Para Derrida é preciso considerar a obra como um cheque ao

portador, a obra fala nos seus termos.10 A pintura/obra só vale pelo que está

pintado e não o que diz seu executor ou a quem ela se destina. Por esse motivo é

que o olhar lançado sobre os trabalhos de Caetano de Almeida respeita as 10 DERRIDA, s/d, p. 294.

18

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questões que eles apresentam, embora em alguns casos o próprio artista as negue

como intenção. Por entender que a obra tem uma potencialidade intrínseca de falar

por si é que a escolha metodológica deste estudo foi por uma análise da

visualidade e procedimentos, não inserindo o contexto e a biografia, como causas

ou sintomas mais importantes.

Acreditando que esta pesquisa não encerra as questões que postula e

igualmente não pretende determinar axiomas sobre a presença da alegoria no

trabalho de Caetano de Almeida e por conseqüência na arte contemporânea, a

reflexão não demandou uma conclusão sobre o tema, no seu sentido mais definido

e rigoroso. Entende-se que cada capítulo discute um ângulo possível da alegoria

na contemporaneidade, partindo das operações as quais recorre o artista e

atentando para certas possibilidades contidas na sua obra, bem como buscando a

interlocução com outros trabalhos, enriquecendo e ampliando o conceito da

alegoria e sua apresentação na arte contemporânea.

19

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| Capítulo I |

A montagem ou a alegoria como procedimento de criação e pensamento

As alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino das coisas.

Walter Benjamin Como pensar uma obra de arte reconhecendo-a numa série sem contudo

diluí-la em mero contexto ou incorrer na simples generalização que tudo equivale,

ignorando as diferenças que lhe são próprias? Para encarar esta questão este

capítulo discorre uma análise sobre as séries Mundo Plano e Exposição de

Quadros de Caetano de Almeida, considerando-as através de quatro

desdobramentos. No primeiro aborda a montagem como um procedimento

referenciado em Walter Benjamim e que se constitui como o procedimento que

contém seu conceito de história a-sistêmica e anacrônica. O segundo discute como

a montagem, procedimento operatório das obras da série Mundo Plano de Caetano

de Almeida, deflagra a possibilidade de uma leitura atemporal da história da arte. O

terceiro item discorre como teóricos contemporâneos reconhecem as

características da alegoria estabelecidas por Walter Benjamin como fundadoras de

um pensamento que vai além da auto-referência modernista, e assim estabelecem

os procedimentos de montagem, apropriação e colagem como impulsos alegóricos

da arte contemporânea. Incluindo a discussão das colagens e fotomontagens

dadás como a grande presença alegórica na arte moderna, e como estes

procedimentos deixaram heranças aos artistas contemporâneos. O quarto item

propõe explorar as possibilidades da montagem como procedimento pictórico na

arte contemporânea, através do diálogo entre Mundo Plano e a série Retratos de

Revista de Vik Muniz, cujos processos de produção pressupõem camadas,

enriquecendo assim a discussão da montagem como procedimento que indica um

fazer alegórico.

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1 | Walter Benjamin e a alegoria como possibilidade no re-pensar a história

As séries de trabalhos de Caetano de Almeida: Mundo Plano e Exposição

de Quadros remetem a uma história da arte que segue sendo referência através de

padrões estéticos representados e obras emblemáticas que se multiplicam em

reproduções nos livros e catálogos – principais meios de divulgação dessa história

eucrônica, cuja pretensão envolve uma abrangência ocidental, linear e

verticalizada. Como exemplo: algumas pinturas expoentes do período Modernista,

onde a planaridade foi mestra e a auto-referência vigorou, re-aparecem nos

trabalhos da série Mundo Plano, de Caetano de Almeida, com seus padrões

pictóricos re-combinados, como uma história a ser recontada. A supremacia da

planaridade e autotelia aqui referida reproduz um pensamento hegemônico sobre a

pintura moderna que foi, até as últimas décadas do século XX, imposto pela teoria

e história da arte, mas que, desde então vem sendo repensado no intuito de

resgatar a diversidade de questões presentes no referido momento que haviam

sido ignoradas por aquela teoria. Esta discussão será retomada no último capítulo,

aprofundando as questões sobre a presença alegórica na arte moderna, ainda que

à revelia do pensamento greenberguiano. Neste momento interessa pensar como

Caetano de Almeida resgata imagens da história da pintura e atualiza suas

presenças através de procedimentos de fragmentação e montagem,

recombinando-as.

As obras referenciais de Turner, Velázquez, Pollock e outros importantes

artistas também retornam na série Exposição de Quadros como uma constatação

de Caetano de Almeida de que delas se conhece apenas a aparência, mediada

pelas técnicas de reprodução, e que dessa forma o conhecimento da história da

arte se dá permeado por uma espécie de velamento, o que assinala um

conhecimento e familiaridade sobre a obra sem nunca se ter estado diante dela.

Por sua vez, este mesmo repertório europeu advindo desde os renascentistas

parece despontar como pilar de fundamentação de teorias e conceitos de arte. O

que se conhece da história é o que se conta dela, o que se cria no presente é a

história do passado,...a arte pode intervir na história, se não para redimir (...), então

21

Page 22: GEMIN; DEBORAH BRUEL -  Caetano de Almeida: Injunções da alegoria na arte contemporânea

talvez ao alegorizá-la, para devolver um passado ao presente.1 Neste sentido o

presente refaz o passado, e nessas duas séries o artista retoma estéticas e

padrões sedimentados e reconhecidos, para através de sua fragmentação e

recombinação constatar que a história pode ser sempre revisitada e ter seus

conteúdos renovados, e em arte esta re-criação acontece pela operação de

montagem – a noção operatória benjaminiana por excelência.

Por entender que o historicismo procura manter a coerência dos fatos

através de uma homogeneidade e continuidade cronológica sem abranger o

acúmulo das camadas sobrepostas, e que se sustenta como história pela ótica do

vencedor, Walter Benjamin fez uma crítica à perspectiva monocular, reta e fixa,

predominante na história clássica e início da moderna, e propõe que se considere

a anacronia dos fatos. Importante lembrar que para as vanguardas modernas, o

movimento da arte aconteceu no sentido de ruptura com essa tradição linear e

cronológica, e se caracteriza pela busca da originalidade da obra, perdida pela

repetição, pela duplicação, pela dissolução da aura, conseqüências das novas

técnicas de fotografia e cinema, tendo como concepção uma crítica à sociedade de

consumo. A transformação do sujeito e do objeto em mercadoria, próprio do regime

capitalista, é responsável também pela desvalorização do mundo dos fenômenos,

igual acontecimento ocorreu no barroco durante o século XVII. Este é o impulso

que levou Benjamin a pensar no barroco os fragmentos de valores que ele via

perdidos na rapidez e instantaneidade da vida moderna. Considerando a catástrofe

e a melancolia, o autor usou a literatura barroca alemã e as ruínas como alegorias

da modernidade, reconhecendo-as na fragmentação do mundo moderno e pelos

cacos da história, num período saturnino e marcado por trágicas mudanças. Nesse

palco incontestável e com os fragmentos que recolhe e acumula2, o homem

moderno constrói sua história, encenando-a como uma operação de montagem.

A alegoria que ocupou um lugar privilegiado na história da religião cristã,

posteriormente foi igualmente utilizada como gênero da literatura e da arte. Na

pintura foi assumida como a possibilidade de fazer ver o que não poderia ser

abordado de outra forma, ou seja, a alegoria permitiu encarar conceitos abstratos

como liberdade, pureza, honra e humildade, através das histórias bíblicas ou

mitológicas, das quais não existiam testemunhas, mas que se tornaram fundadoras

1 WOOD, et al., 1998, p. 249. 2 BENJAMIN, 1984, p. 247.

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de ideais de conduta e virtuosidade. É o caso da obra renascentista de Rafael,

Escola de Atenas (1509-11), uma alegoria do conhecimento e do próprio saber na

história ocidental, onde o artista agrega todos os pensadores importantes desde

Platão, une diversos momentos históricos distintos, desfaz o tempo que os separa

e apresenta o saber do seu tempo recombinado com a tradição dos antigos. Pelo

uso do empilhamento de tempos distintos e da montagem cria uma cenografia

impossível que alega o conhecimento humano.

No entanto, para o pensamento iluminista o registro alegórico passou a não

oferecer um fundamento seguro e foi sendo repelido em favor de uma

interpretação mais literal e científica, passível de comprovação. Pela dificuldade de

interpretação que a alegoria impõe, nos séculos XVII e XVIII passa-se a usar o

conceito de símbolo, que permite uma significação mais direta e imutável. Para

Walter Benjamin este conceito, utilizado por muito tempo, e que denomina como

usurpador da filosofia da arte, nada tem em comum com seu conceito autêntico

que está situado na esfera da teologia, e é incapaz de dar conta das questões da

arte, porque aponta para a eternidade da beleza enquanto a alegoria permite

pensar a temporalidade como transitória. O problema desta visão equivocada de

símbolo, é que embora seu conceito aponte imperiosamente para a

indissociabilidade de forma e conteúdo, o uso fraudulento do simbólico passa a

funcionar como legitimação filosófica da impotência crítica, que por falta de rigor

dialético perde de vista o conteúdo na análise formal, e a forma na estética do

conteúdo.3 Benjamin desenvolve seu raciocínio levando em conta a indissolução

das relações de forma/conteúdo, sensível/supra-sensível e fenômeno/idéia, que

são interdependentes, e mostra onde reside a falha da crítica moderna, no

privilégio ora da forma e ora do conteúdo. O símbolo é instantâneo e eterno na

instantaneidade, e a alegoria é sucessiva, é acúmulo, sobreposição de camadas,

de sentido e saberes. A alegoria possibilita a reabilitação da temporalidade e da

historicidade em oposição ao símbolo que encarna um ideal de eternidade.

Se o objeto se torna alegórico sob o olhar da melancolia, ela o priva de sua vida, a coisa jaz como se estivesse morta, mas segura por toda a eternidade, entregue incondicionalmente ao alegorista, exposta à sua graça ou à sua desgraça. Vale dizer, o objeto é incapaz, a partir desse momento, de ter uma significação, de irradiar um sentido; ele só dispõe de

3 BENJAMIN, op.cit., p. 182.

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significação que lhe foi atribuída pelo alegorista. Este a coloca dentro dele e chega até seu fundo: isto não é uma realidade psicológica, mas sim ontológica.4

A alegoria possibilita a representação, no sentido de re-apresentar; sugere

outra leitura, impõe outro significado, enquanto o símbolo implica em sentidos

narrativos compartilhados e permanentes, não cambiantes, fixos. Por estas

características é que Benjamin entende a alegoria a partir dos procedimentos, pois

estes é que vão unir forma e conteúdo. A tentativa de Benjamin em estabelecer as

características da alegoria, demonstra uma preocupação em dar aos

procedimentos da arte maneiras de interpretação. Uma forma de ler a história da

arte, porém a contrapelo. Esta analogia é feita por Didi-Huberman no livro Ante el

tiempo, onde assinala que Benjamin equivocadamente tentou uma aproximação

com Erwin Panofsky no sentido de validar sua teoria. O filósofo alemão queria de

Panofsky senão a aprovação plena de suas idéias, pelo menos uma apreciação

sobre sua visão da melancolia, mas não conseguiu nada além de uma resposta

mal-humorada. Ao passo que deveria, no entender do teórico francês, ter se

aproximado de Abi Warburg, quem com certeza entenderia e assumiria suas idéias

para o repensar a história.5

O que Benjamin propôs provavelmente não passou despercebido ou mesmo

menosprezado por Panofsky, que talvez o tenha ignorado justamente por

compreender que sua aceitação resultaria num repensar a história, alargando os

métodos e assumindo a limitação da iconologia proposta por ele até então. Para

Didi-Huberman a antropologia benjaminiana e a iconologia panofskiana são

antitéticas, porque assim como Warburg, Benjamin colocou a imagem como centro

nevrálgico da história: la imagem no está en la história como um punto sobre uma

línea; a imagem produz uma temporalidade de dupla face, de polaridade para

Warburg e dialética para Benjamin, ou seja, produtora de uma historicidade

anacrônica e de uma significação sintomática.6

O modelo dialético de Benjamin prevê no lugar de uma linha única e

progressiva, rizomas de bifurcação, onde ao objeto do passado se relaciona uma

história anterior e uma história ulterior, todo objeto de cultura e objeto de barbárie,

e todo progresso histórico e a catástrofe. Portanto ele rechaça o mito 4 BENJAMIN, op.cit., p. 205-206. 5 DIDI-HUBERMAN, 2006, p.132. 6 Ibid, p. 125.

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epistemológico, que se resume em: achar, isolar e fazer o relato causal. Para

Benjamin um fato objetivo do passado é um fato de memória, portanto um fato em

movimento. Para ele não existe história sem teoria da memória, a história para ele

não parte dos fatos do passado em si mesmos (uma ilusão teórica), e sim do

movimento que os recorda e os constrói no saber presente do historiador. Não

existe história senão a partir do presente, este é o princípio dinâmico da memória a

partir do qual o historiador deve fazer a vez do receptor, do sonhador e do

intérprete.7 A memória está certamente nos vestígios que atualizam a escavação

arqueológica, mas também está na matéria do solo revolto, nos sedimentos, nos

rastros do escavador, enfim está no presente mesmo da arqueologia, en sua

mirada,8 seus métodos de busca, em sua capacidade para ler o passado do objeto

no solo atual.

Assim como o historiador é para Benjamin aquele que vive sobre um monte

de trapos e cacos da memória, o artista contemporâneo intuitivamente trabalha

com fragmentos e restos, em procedimentos de montagem e justaposição. Para

Benjamin a montagem é o emblema da alegoria, ela é anacrônica, fragmentada,

faz cintilar tempos diferentes, e Caetano de Almeida em seus trabalhos resgata

esse processo bem ao modo benjaminiano. Embora este artista não trabalhe com

cacos e trapos da memória, no sentido da ruína, seus fragmentos resultam da

precariedade do gosto e do olhar do homem comum à história da arte. Não

significa colocar as séries de trabalhos acima citadas como documentos que

resgatam ou demonstram o ideal de história proposto por Benjamin, mas sem

dúvida, a noção operatória da montagem presente nos trabalhos de Caetano de

Almeida é sintoma duma vontade em repensar a história da arte e seus dogmas

fixos. Por quase todos o trabalhos deste artista perpassam questões das imagens

da arte, seus padrões estéticos e as formas de sua distribuição e conhecimento. E

a maneira pela qual o artista articula forma e conteúdo é exemplar do uso dos

procedimentos pela ótica benjaminiana, que enxerga nas características de

fragmentação e justaposição, próprias da montagem, as possibilidades de

anacronismo e retorno.

A história em geral é construída e contada, por documentos e escritos que

resultam em livros e enciclopédias, e a história da arte em particular está registrada

7 DIDI-HUBERMAN, op.cit., p. 136-137. 8 Ibid, p. 145.

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em livros específicos; porém a história das imagens da arte é contada pelas

coleções ilustradas em livros/catálogos de museus, e também por catálogos

devidamente categorizados por escolas e períodos definidos. No entanto essas

classificações e arquivos de imagem sempre foram problemáticos, já que a

imagem não oferece nenhuma facilidade de classificação, não existem dados

claros que permitam classificá-las, nem ao menos por ordem alfabética. Michel

Foucault e Michel De Certeau fizeram duras críticas ao arquivo, advertindo que o

arquivo é algo construído e censurado, que está cheio de lacunas, que a

classificação já é uma interpretação9 e que o arquivo, portanto, não é neutro e

tampouco é ingênuo, ou seja, o arquivo não é um estado puro do documento. Para

Didi-Hubermann o arquivo é fundamental porque determina a forma da

historicidade, portanto não é possível fazer uma história das imagens seguindo

uma crônica linear e sintagmática, porque segundo o teórico una sola imagen –al

igual que un solo gesto–, reúne en sí misma varios tiempos heterogéneos.10

Neste sentido Didi-Hubermann aponta como uma época revolucionária, os

anos 1920-1930, onde diversos historiadores colocaram a imagem como centro de

seu pensamento sobre a história e conceberam sistemas de saber completamente

novos, dentre eles estão: Warburg, Benjamin e Bataille, ao mesmo tempo em que

no terreno artístico surgia um verdadeiro pensamento de montagem com Sergei

Eisenstein, Bertold Brecht, os formalistas russos, podendo-se somar a este grupo

os artistas dadás. Para Didi-Hubermann parece sintomático que num momento em

que a história da Europa está sendo sacudida completamente, haja pensadores e

artistas que expõem a história como estallido y reconstrucción, o que ele chama de

conocimiento por el montaje.11 Para Benjamin uma verdadeira história da arte não

deve contar a história das imagens, mas acessar o inconsciente da visão, algo que

não se dá através do relato ou crônica, senão pela montagem interpretativa, onde

da junção de duas ou mais coisas distintas surge uma terceira que é o indício do

que se busca.

Presente nas pinturas de Caetano de Almeida, a montagem, indica o

conteúdo e propõe a forma, cuja interpretação vai além do apreço estético e da

noção operatória pura. Mundo Plano se constitui em mosaicos, como uma

9 DIDI-HUBERMANN, em entrevista concedida a Pedro G. Romero, 2007. (tradução nossa) 10 Ibid. 11 Ibid.

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cartografia das superfícies pictóricas da história da arte moderna, o artista cria uma

nova padronagem de estampas, uma estamparia pictórica dos padrões estéticos

fixados pelo Modernismo. Essa série pode ser pensada como um catálogo da

pintura moderna, mas com um viés esquizo, onde o gesto do artista, a

expressividade, originalidade e unicidade, presentes nos trabalhos citados,

perdem-se nos fragmentos e na nova composição. Em Exposição de Quadros o

artista re-apresenta pinturas da história da arte enfatizando características formais,

que não são próprias das originais, desconfiando da certeza sobre o conhecimento

daquelas imagens, desestruturando o saber construído pela ótica linear e fixa,

constatando a ilegitimidade das certezas históricas e dando à imagem a

possibilidade de fala pela junção de conteúdo e forma, através de procedimentos

alegóricos.

2 | Caetano de Almeida e a alegoria como procedimento pictórico

Pode-se considerar o procedimento operatório da montagem em arte

através de três maneiras: mantendo vínculos e situando estilos e formas

historicizadas; relendo e recombinando obras existentes; e fazendo uso dos

símbolos e imagens de outras esferas como moda e mídia. Ou seja, é um

procedimento que possibilita fazer conviver diferenças, mesclar tempos distintos,

juntar coisas díspares, e/ou propor hiatos. A montagem para Benjamin é o grande

emblema da alegoria, e o Livro das Passagens pode ser considerado o maior

exemplo desse uso. Seu texto funciona sob o princípio da montagem, justapondo

fragmentos textuais do passado e do presente na expectativa de que eles

faiscando entre si iluminassem uns aos outros12.

Na série Mundo Plano, Caetano de Almeida recorre a citações e referências

à história da arte, mas a fragmenta, justapõe tempos e estéticas distintas, e com

isso instaura uma alegação histórica da imagem. A partir desses procedimentos

retorna às formas de apresentação da imagem, e seus significados na história da

arte. Para Benjamin as citações são como salteadores no caminho, que roubam a

convicção daqueles que passeiam a esmo, não têm intenção de reverenciar o

passado, já que a imagem recuperada do passado tem seu sentido destruído e 12 COETZEE, 2001, p. 110.

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passa a valer na maneira como se relaciona com o presente. Não há repetição

vazia, mas destruição do sentido em seu contexto original; sentido que pode,

porém ser redimido na condição que se constitui no presente.13

De acordo com Didi-Huberman, Benjamin faz da história uma arqueologia

material e também psíquica, que retoma o feito, reatualizando-o como uma criança

que brinca com los jirones del tiempo. Assim como o historiador de Benjamin que

vive sobre um monte de trapos é o erudito das impurezas, dos resíduos da história,

Caetano de Almeida trabalha com os restos e fragmentos da memória da imagem,

com os vestígios da história oficial da arte, com as imagens que ela produziu, ou

seja, opera con les despejos da memória da arte.14 Seu processo de trabalho

compõe uma nova coleção de pensamentos sobre essa mesma história,

enriquecendo a vivência da imagem. De acordo com Walter Benjamin, esses

resíduos da história só oferecem o suporte sintomático da ignorância – verdade de

um tempo reprimido da história – e também o lugar mesmo e a textura do

contenido de las cosas e do trabajo sobre las cosas.15

Ainda que, sem aspirações idealistas, Caetano de Almeida nos apresente

imagens/mosaicos, compostas com fragmentos de imagens saqueadas da história

da arte, a leitura de seu trabalho à maneira de Warburg, permite entender que a

potência está na imagem e não na intenção ou consciência critica do artista. Quer-

se dizer que a crítica ou consciência histórica aparece como recalque nos

trabalhos de Caetano, se esta não é sua declarada intenção. Mesmo que este

artista seja um manipulador de signos, como Hal Foster denomina os artistas

contemporâneos que utilizam apropriações e citações sem maiores

questionamentos, suas ações, sejam de ordem crítica ou ética, assim como as de

seus pares, resultam em imagens que permitem a um olhar crítico e atento fazer

leituras mais complexas, estabelecendo relações anacrônicas como defende Didi-

Hubermann inspirado em Warburg e Benjamin.

13 BENJAMIN, op.cit., p. 205. 14 DIDI-HUBERMAN, op.cit., p. 141. 15 Ibid.

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fig. 1 | Caetano de Almeida, Anfitrite da série Mundo Plano, técnica

mista sobre tela, 2001.Fonte: catálogo de exposição, 2003.

Caetano de Almeida utiliza procedimentos que não deixam dúvida quanto ao

seu caráter alegórico do ponto de vista benjaminiano: apropriação das imagens,

citação da técnica, justaposição e montagem dos elementos. A série Mundo Plano

apresenta em seus trabalhos citações da pintura moderna e da constituição de um

olhar moderno, que revelam a neutralidade incorpórea dos procedimentos, e

propõem pensar no futuro da pintura e na sua potência de cintilação. Se a

compreensão da história de que fala Benjamin é a compreensão da imagem, então

pode se conceber que o entendimento se dá pela supervivência – Naschleben –,

que é para ele o fundamento da história geral e expressa ao mesmo tempo um

resultado e um processo: os rastros e o trabalho do tempo na história.16 A

sobrevivência da imagem se dá pelo rasgo no tempo, pela cintilação que ela

provoca, e no processo de montagem que permite sua reaparição, no entanto, 16 DIDI-HUBERMAN, op.cit., p. 143.

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como uma permanência cambiante, que cintila diferente a cada época,

dependendo das relações que estabelece com o tempo presente.

Enquanto se reconhece em Benjamin um sentimento melancólico no Drama

Barroco Alemão, em relação às técnicas de reprodutibilidade, sua visão é moderna

e positiva, ainda que catastrófica. Ele prevê que a relação com a imagem, no que

tange sua aura e originalidade estaria irrevogavelmente transformada, o que

realmente ocorre frente às novas tecnologias oriundas do cinema e da fotografia.

Em Caetano de Almeida como em artistas contemporâneos já há uma assimilação

dessas mudanças e o uso dos novos processos acontece sem uma ênfase crítica

tão acentuada em relação a essas perdas essenciais da modernidade. Por uma

vertente mais leve e irônica, porém não menos eficaz, os trabalhos deste artista

apresentam rearranjos de imagens, como combinações possíveis, embora

inesperadas, a partir de padrões de gosto estabelecidos e idealizados. Sua

intenção é subversiva, mas não revolucionária, bem à maneira contemporânea.

Caetano de Almeida trabalha com a memória visual construída pela história

da arte dos livros e museus, e a sua denúncia é justamente a arbitrariedade das

normas de representação, que seguem sendo assimiladas e usadas como padrão,

assumidas como gosto e como essenciais. Através dessas pinturas, ele constata

como a imagem é uma questão de construção ideológica e histórica, e propõe que

o olhar lançado sobre estes trabalhos descubra através da decifração do processo

de empilhamento o conceito de imagem que se quer pensar na

contemporaneidade. Sua discussão está relacionada ao gosto e padrão impostos,

e não ao contexto histórico e crítico, é menos uma crítica revolucionária que uma

atitude cínica. Seus trabalhos são mais uma constatação de que as coisas assim

são e continuarão a ser, do que uma provocação à mudança.

Na série Mundo Plano, o artista prima pelo uso de uma técnica de pintura

precisa, sobrepõe não apenas tempos distintos, mas fragmenta e justapõe poéticas

dialéticas da pintura do século XX. O trabalho Anfitrite |2001| [fig 1], parece uma

colcha de retalhos construída com estampas de Matisse, Volpi e Pollock. Sua

composição remete ao construtivismo, formas hexagonais que lembram flores, que

ora se sobrepõem, ora perfuram a pintura de Volpi, e nesses furos geométricos o

padrão se intercala entre a pintura de Matisse e a de Pollock.

Essas sobreposições também atuam como acúmulos de saberes, que não

reforçam uma linha temporal, mas propõem buracos que permitem relacionar

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distintas estampas pictóricas de diversos tempos. Uma operação que propõe

novos enquadramentos, e faz com que fragmentos das imagens da pintura

moderna cintilem como rasgos no tempo, e apareçam como um despertar para a

noção de imagem que a história da arte descreve. Para Rodrigo Moura, Caetano

de Almeida coloca questões cruciais para o espectador por conta da sua

ambigüidade em aceitar e assumir seu aspecto citacionista, fruindo toda a

abstração que marcou a arte do século 20 e que é revisitada de maneira tão

evidente por suas telas e ao mesmo tempo em se preocupar com a questão que

esta apropriação coloca: esvaziar o grande esforço de singularização dos mestres

do século 20 que se apresentam ali misturados, corrompidos, rebaixados e

ressignificados.17

O padrão que Caetano de Almeida constrói em Anfitrite |2001| nada tem da

estética formalista e autônoma que vigorou no início de século XX, além da

semelhança aparente em seus fragmentos. E, embora tenha sido feita de maneira

cuidadosa com uma técnica pictórica impecável, sua composição inusitada descola

estes trabalhos do seu lugar confortável na história, e os apresenta

descombinados. O trabalho é sedutor porque a estética abstracionista ensinou que

formas e cores podem ser combinadas no plano pictórico, e esse é o assunto da

pintura abstrata. No entanto, cria um desvio quando se reconhecem nos padrões

que compõem a montagem aqueles cânones imaculados da história da pintura. O

artista demonstra entender que qualquer procedimento artístico, à medida que vai

sendo assimilado, tem a tendência de se transformar em norma de atuação, em

regra, e relembra, no entanto, que a arte não conta com nenhum procedimento

específico e eterno.

Na obra Sala de Espelhos |2003| [fig.2], o artista instaura ainda outro desvio,

quando distorce as formas, dando-lhes uma ilusão espacial. Cria um espaço

convidativo à imersão como se o espectador pudesse ser envolvido pelos padrões.

O título da obra dá pistas sobre essa intencionada imersão, Sala de Espelhos,

refere-se àqueles espaços de parques ou circos, onde se tem a imagem distorcida

por jogos de reflexos e ondulações da superfície espelhada. A maneira como os

pequenos pedaços de superfície pictórica se sobrepõem criam relações de figura e

fundo, onde as áreas em tons mais claros e planos avançam como se flutuassem

17 MOURA, 2003.

31

Page 32: GEMIN; DEBORAH BRUEL -  Caetano de Almeida: Injunções da alegoria na arte contemporânea

sobre o fundo indefinido de plantas e espaço etéreo, ao mesmo tempo em que a

perspectiva criada pela distorção destas formas faz surgir um espaço que se

aprofunda para o interior da tela. O artista cita as possibilidades ilusórias da

perspectiva renascentista, porém sem instaurar um plano figurativo.

fig. 2 | Caetano de Almeida, Sala dos Espelhos da série Mundo Plano, técnica mista sobre tela, 2003.Fonte: catálogo de exposição.

Referindo-se à escrita alegórica benjaminiana como uma nova forma de

composição materialista histórica Coetzee diz que, se o mosaico de citações é

construído corretamente deve emergir um padrão, um padrão que é mais que a

soma de suas partes, mas não pode existir independentemente delas.18 É como a

constelação, impossível sem estrelas. A virtude da montagem está na relação que

se estabelece entre suas partes, relação proposta pelo alegorista. O que Caetano

de Almeida propõe é um olhar que procure combinar padrões já assumidos, dentro 18 COETZEE, op. cit., p. 111.

32

Page 33: GEMIN; DEBORAH BRUEL -  Caetano de Almeida: Injunções da alegoria na arte contemporânea

de uma outra composição, que formalmente adquire vida própria como se fossem

retalhos de uma estampa pictórica universal. Esses novos padrões de Caetano de

Almeida da mesma maneira que interpelam o gosto com suas combinações

aestéticas funcionam como uma cartografia das superfícies pictóricas da história

da pintura moderna.

3 | A arte contemporânea e o recurso da alegoria

Compreender ou problematizar o mundo, desvendar ou renovar seus

mistérios, situar-se ou propor maneiras de se relacionar com ele, estas são

algumas das possibilidades encontradas pelo homem desde o momento em que o

primeiro desenho foi feito numa caverna. Seus procedimentos artísticos envolvem

poética e fatura, sendo estes os meios e recursos que usam para construir

perceptos19, ou seja, materializar suas percepções e sensibilidades conferindo um

corpo que se sustenta como obra, constituindo um ser que vale por si como um

bloco, que pode ficar em pé sozinho e se conservar, posto que uma obra excede o

vivido e está para além do registro biográfico, devendo legar ao mundo as

sensações persistentes e assim acrescentando-lhes novas variedades. Ocorre que

persiste na arte contemporânea um entendimento e uma vontade de tocar e trazer

uma parte das afecções do mundo, numa empreitada para articular uma realidade

alhures através da arte, concebendo o mundo como um imenso arsenal no qual o

artista se serve como um espaço aberto e passível de reapropriações e

ressignificações infinitas. Assim ao artista cabe re-elaborar o mundo, multiplicando

sentidos e povoando-o com as imagens, pois é na imagem que el ser se disgrega:

explota y, al hacerlo mostra – pero por muy poco tiempo – el material con que está

hecho. 20

No entendimento de Didi-Huberman o essencial da imagem é seu potencial

de liberar primeiro o despertar, ela cintila, não é imitação, não representa as

coisas, é o intervalo feito visível. Benjamin propõe que a imagem seja o umbral

como uma passagem que permite esse despertar, a entrada em um novo mundo,

um outro espaço de conhecimento, ele a vê como o centro originário e turbulento

19 DELEUZE; GUATTARI, 1991. 20 DIDI-HUBERMAN, op.cit., p. 148-149.

33

Page 34: GEMIN; DEBORAH BRUEL -  Caetano de Almeida: Injunções da alegoria na arte contemporânea

do processo histórico como tal. Para Benjamin a história se decompõe em

imagens, não em narrativas, pois a história narrativa impõe causalidade e

determinação a partir de fora, e as coisas deveriam ter a chance de falar por si

mesmas. Não preciso ‘dizer’ apenas mostrar 21. Por isso a necessidade de usar

termos como o da alegoria, que podem indicar questões e caminhos abordados

pelo processo do artista, entendendo que a imagem não é imitação das coisas, é

justamente o intervalo feito visível, ela pode ser ao mesmo tempo material e

psíquica, externa e interna, espacial e da linguagem, morfológica e informe,

plástica e descontínua.22 É criação de mundo, não representação dele.

Na arte contemporânea as ferramentas e técnicas se tornam cada vez mais

os indicativos do conceito do trabalho. Porque mesmo que se considere apenas a

ordem da tecnologia, os artistas são aqueles, que diferentemente dos cientistas,

entendem que a técnica, ou melhor, sua escolha determina em grande parte o que

é o trabalho, posto que cada linguagem visual, cada procedimento empregado, tem

suas especificidades, e estas é que permitem ao artista alegar o que deseja. Tal é

o caso de Andy Warhol que, além de chamar seu atelier de fábrica, produzia as

serigrafias como uma linha de produção e se apropriava de imagens de ícones

culturais – pessoas célebres ou produtos pop –, numa referência à banalização da

imagem e ao poder que ela possui. Mesmo a fatura impessoal e nada artesanal da

arte minimal indica a elaboração e o projeto como significados da obra, negando o

caráter genial da fatura do artista. A montagem cenográfica que faz Cindy

Sherman, bem como a apropriação de elementos do cotidiano das colagens de

Braque e Picasso, e até o gesto duchampiano emblemático do Urinol são práticas

onde se somam apropriação, deslocamento e justaposição de significados. Os

processos escolhidos pelos artistas têm um significado maior do que apenas

produzir o objeto, e neste sentido, uma apreciação unicamente retiniana fica

impossibilitada, requerendo do processo de contemplação o entendimento do

processo de criação como integrante da poética do trabalho. Assim, a análise dos

procedimentos e noções operatórias supõe o encontro do outro a que a obra

remete ou alega.

A partir da definição de alegoria de Walter Benjamin alguns teóricos, e

dentre eles, Benjamin Buchloh e Craig Owens apontam como procedimentos

21 BENJAMIN apud COETZEE, op.cit., p. 110. 22 DIDI-HUBERMAN, op.cit., p. 148-149.

34

Page 35: GEMIN; DEBORAH BRUEL -  Caetano de Almeida: Injunções da alegoria na arte contemporânea

alegóricos na arte contemporânea: a apropriação, a colagem e a montagem, por

possuírem as características alegóricas apontadas por Benjamin, que são:

apropriação e subtração do sentido; fragmentação e justaposição dialética dos

fragmentos; e separação do significante e significado.23 Esta definição serve à arte

contemporânea por ser o meio através do qual se resgata a maneira de dizer o

conceito, sem no entanto, voltar à narrativa tradicional de representação, pois o

discurso se dá na noção operatória. Benjamin compara a alegoria à maneira como

os hieróglifos estão para escrita, pois estes complexos de sinais é que garantem a

validade sagrada -, pois a escrita alfabética, enquanto combinação de átomos

gráficos está afastada (...) da escrita sagrada. O que vale dizer que quanto mais

complexa a linguagem mais valor impõe ao sagrado. Externamente e

estilisticamente – na contundência das formas tipográficas como no exagero das

metáforas – a palavra escrita tende à expressão visual. Não se pode conceber

nenhum contraste mais flagrante com o símbolo artístico, o símbolo plástico, a

imagem da totalidade orgânica, que esse fragmento amorfo que constitui a escrita

visual do alegórico.24

Na mão do alegorista a coisa se transforma em algo diferente, através da

coisa o alegorista fala de algo diferente, ela se converte na chave de um saber

oculto, e como emblema desse saber ele a venera. Nisso reside o caráter escritural

da alegoria.25 Não se está afirmando que o artista é ou deva ser um alegorista,

mas as diversas possibilidades que ele encontra nestes procedimentos alegóricos

o aproximam do alegorista de Benjamin, pois o artista lança mão de uma

linguagem, a visual, que não conta a priore com um alfabeto decodificado. Embora

no decorrer da teoria da arte encontrem-se inúmeras tentativas no sentido de se

estabelecer codificações, há obras que sempre escapam ao entendimento que se

apóia em regras estabelecidas. Didi-Huberman relembra que é a partir da situação

do presente dialético que o passado mais longínquo deve atualizar-se em seus

efeitos de auto-deciframento profético26, ou seja, essa re-atualização da imagem é

fruto da alegoria como processo. Segundo Owens a capacidade para resgatar do

23 BUCHLOH, 2000, p. 197. 24 BENJAMIN, op.cit., p.197-198. 25 Ibid, p. 205. 26 DIDI-HUBERMAN, op.cit., p. 127.

35

Page 36: GEMIN; DEBORAH BRUEL -  Caetano de Almeida: Injunções da alegoria na arte contemporânea

esquecimento histórico aquilo que ameaça desaparecer é a maior característica da

alegoria.27

Portanto a alegoria aparece ora como sintoma, ora como causa, ou ainda

efeito, denunciando a fragilidade dos dogmas incontestáveis de alguns momentos

históricos da arte. Na arte contemporânea, esses processos artísticos cada vez

mais são entendidos como estratégias de funcionamento da obra, e justamente

nessas estratégias é que se encontram os procedimentos alegóricos discutidos por

Benjamin e seus pares. As estratégias de suspensão, ou não enunciação,

caracterizam a separação do significante e significado, enquanto as estratégias de

deslocamento são referentes aos procedimentos de apropriação e caracterizam a

subtração de sentido. E, finalmente, as estratégias de justaposição trabalham com

a fragmentação das montagens e das instalações e se caracterizam pela

justaposição dialética de seus fragmentos.

Estes tipos de estratégias vão receber nos anos setenta, pela primeira vez,

a denominação de pós-modernismos pelo crítico americano Leo Steinberg, que se

referia à arte dos anos cinqüenta, mais especificamente as pinturas mistas e

combinadas de Rauschenberg. Este termo de maneira geral tem sido usado para

fazer referência a uma série de práticas freqüentes a partir dos anos 70, que

contestaram o paradigma Modernista da produção de arte.28 No entanto nas artes

visuais este conceito de pós-modernismo aparece com certa importância

primeiramente em Rosalind Krauss e Craig Owens29, e é justamente aqui que se

encontra fôlego para discutir a alegoria. Considerando a dificuldade e o caráter,

muitas vezes vago, acerca de discussões sobre o conceito de pós-modernismo,

Paul Wood e Charles Harrison isolam algumas tendências críticas e (...)

apresentam uma divisão esquemática em três temas amplos com relação aos

quais essa idéia tem sido orientada e discutida no campo das artes visuais. Onde

eles apresentam o pós-modernismo como crítica de questões fundamentais do

Modernismo grenberguiano: 1. Como crítica dos fundamentos da diferença: classe,

raça e gênero; 2. Como crítica do mito da originalidade; 3. Como crítica das

narrativas históricas.30

27 OWENS, 2004, p. 113. 28 WOOD. et al., op. cit., p. 237. 29 Ibid. O autor refere-se a Krauss em The originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths e Owens em The Allegorical Impulse. 30 Ibid, p. 237-238.

36

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A alegoria pela ótica benjaminiana, estaria relacionada com a crítica do mito

da originalidade, porque através das estratégias de apropriação, fragmentação e

acúmulo impossibilita essa existência. Porém é preciso deixar claro que assim

como estes três temas, mesmo que amplos, não dêem conta das questões

envolvidas no conceito de pós-modernismo, o conceito de alegoria não é

onipresente na arte contemporânea, e nem o único viés pelo qual podem ser

pensados os procedimentos artísticos, ela é uma das condições da arte

contemporânea dentre inúmeros processos.

Um profícuo exemplo da presença da montagem na arte moderna, que sem

dúvida serviu de esteio para o que se entende como arte contemporânea, são as

colagens e fotomontagens dadás e que foram de alguma maneira ignoradas pela

crítica Modernista. Kurt Schwitters foi um artista que realmente utilizou a montagem

em sua obra. Pode-se dizer até mesmo que ele tornou esse procedimento o seu

viver. O conceito Merz31 que utiliza para nomear trabalhos, uma revista e ações, se

mostra como uma tentativa de denominar um procedimento de acumulação e

montagem ainda inédito para época, início dos anos 20. Merz é uma palavra que

surgiu da fragmentação de Commerzbank feita por Kurt Schwitters, e adotada por

ele como um conceito de arte, do qual ele era o único representante e cuja

definição, um tanto incerta, propõe uma arte absoluta e irrestrita, porém sua

abrangência não é da mesma ordem de Ball ou de Kandinski, que previam a

combinação e interação de todas as artes, mas Merz significava o esmaecimento

constante das fronteiras, o amálgama das artes, sim, até mesmo a integração da

máquina na arte, ou seja, para Schwitters não existiam procedimentos e materiais

específicos à arte, tudo estava no mundo e podia converter-se em seu conceito

pela sua operação de acúmulo e montagem, de pernas de cadeira ao canto e ao

sussurro.32

Montagem não era um processo assumido na arte; e, Schwitters o fez de

maneira inovadora para o momento. Ele recolhia todo e qualquer pedaço de papel,

objeto e coisas que estivessem descartados pelas ruas e lugares onde andava, e

dava-lhes uma nova conformação nas composições de suas colagens. Seu senso

estético formal é aguçado e muito pictórico, a obra Merz Picture 32A (Cherry

Picture) |1921| [fig. 3] é uma colagem cuja estruturação nada deve às abstrações

31 RICHTER, 1993, pg. 186-187 e 207-208. 32 Ibid.

37

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modernas no que diz respeito às características formais, sua superfície pictórica

apresenta temperaturas de cor muito bem estruturadas, com equilíbrios e

contrastes cromáticos. Em Schwitters, assim como em outros artistas deste

período, essas montagens são feitas a partir de despojos do mundo, de pedaços

de jornal, de bilhetes, postais e qualquer material impresso e também pedaços de

tecido, onde explora diferentes texturas e cores. A técnica da assemblage torna-se

popular entre os artistas, que têm aí uma possibilidade de fugir da pura

representação via coleção, acúmulo e apropriação. Assim como Caetano de

Almeida que reorganiza as superfícies pictóricas da história da arte, dando a elas

nova roupagem e características, roubando-lhes o mito de pinturas originais e

únicas impingindo-lhes aparência de estamparia, nas colagens de Schwitters os

fragmentos que acrescenta nas telas, perdem seu significado de uso, objetual, e

ganham significado formal na estrutura pictórica.

fig. 3 | Kurt Schwitters, Merz Picture 32A (Cherry Picture). 1921. Fonte: Catálogo do Museu Osacr Niemayer, 2008

38

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As fotomontagens de John Heartfield são outro exemplo de montagem

alegórica, porém de cunho eminentemente político. Suas imagens serviram ao seu

engajamento anti-nazi e suas composições são narrativas e explícitas quanto ao

seu credo político-social. Por isso mesmo, sua estética é panfletária e seu discurso

é claro e inteligível. O que interessa a essa discussão é o uso do recurso da

montagem significativamente alegórico, e que permite uma leitura histórica diversa

da hegemônica na Alemanha Nazista. O uso alegórico da imagem permite dizer

aquilo que não pode ser dito em palavras, portanto o recurso alegórico foi sempre

bem recebido em momentos onde a liberdade de expressão estava cerceada por

poderes políticos restritivos.

fig. 4 | John Heartfield, The Meaning of the Hitler Salute: Little man

asks for big gifts. Motto: Millions Stand Behind Me!, 1932

No entanto, ao analisar estas fotomontagens pelas características alegóricas

de Benjamin, nota-se que fragmentação e justaposição estão presentes, mas a

elas falta a subtração de sentido, embora a apropriação de fragmentos e imagens

também aconteça, seu sentido não é de todo subtraído, já que para uma crítica

39

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engajada é interessante que alguma relação com o referente permaneça. Não que

isso determine a exclusão do conceito alegórico destes trabalhos, mas sua

presença ainda se dá pela via da narrativa, do discurso empenhado na imagem,

que representa uma ação. A montagem que Heartfield trabalha não retira dos

fragmentos e imagens seu sentido inicial, justamente porque isto prejudicaria seu

intuito de alegação da crítica. Ou seja, enquanto nas montagens de Caetano de

Almeida o contexto das pinturas citadas foi ignorado, e em Schwitters os

fragmentos assumem um significado pictórico como imagens que falam por si

mesmas, na montagem de Heartfield, o contexto assegura o entendimento e

significado da imagem.

A presença da alegoria na arte moderna percebida e discutida por Benjamin

tem Craig Owens como outro defensor que aponta exemplos históricos onde se

percebe que somente na teoria e crítica modernas o impulso alegórico foi

reprimido. E, portanto a reemergência do impulso alegórico no pós-modernismo é

por ele considerada como aquilo que permite ao trabalho de arte colocar outro

significado na forma de sua apresentação e entende o imaginário alegórico como

um imaginário apropriado, em que as imagens são confiscadas e pela manipulação

do artista, esvaziadas de seu significado primário para receber outro, ou seja, dizer

o outro.33 Esta seria a primeira aproximação entre a arte contemporânea e a

alegoria, proposta por Craig Owens; a segunda ligação emerge no site-specificity,

onde o principal impulso alegórico é a transitoriedade, a efemeridade de todo o

fenômeno e a concernência em resgatá-los da eternidade34. A terceira ligação

consiste nas estratégicas de acumulação, que concebem a estrutura como

seqüência e, portanto, camadas.

No entanto, este exame de Craig Owens resulta da aplicação da teoria

alegórica de Benjamin ao que chama de estratégias da arte contemporânea, e que

julga distingui-la de seus predecessores modernistas, são elas: apropriação, site-

specificity, impermanência, acumulação, discursividade e hibridização.35 Isto

denota uma visão que persiste em admitir que o pensamento em arte opera por

ruptura e evolução, enquanto o que se percebe, e assim já o defendia Benjamin, o

33 OWENS, op. cit., p.114 34 BENJAMIN, op. cit., p. 223 35 OWENS, op.cit., p. 118.

40

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que o impulso alegórico demonstra é o retorno do recalque, em cujos exemplos

citados se revelam na noção operatória da montagem.

4 | Montagem contemporânea ou alegoria do pensamento pictórico

A discussão sobre colagens e fotomontagens demonstra o quanto a

montagem pode ser também uma operação de estruturação plástica. Uma noção

operatória que não se limita às estratégias de deslocamento e subtração de

sentido, mas que possibilita o acúmulo de camadas e nesta justaposição dialética

incrementa o sentido. Embora a montagem seja uma estratégia operatória comum

a vários artistas contemporâneos nas mais diversas linguagens, há um artista

brasileiro, cuja produção é materialmente diversa da de Caetano de Almeida, seu

processo resulta numa montagem mais sutil, porém não menos complexa,

propondo questões de ordem pictórica que podem enriquecer o viés da alegoria

em discussão. Este artista é Vik Muniz e suas imagens são resultado de um

processo extenso de apropriação, acumulação, coleção, construção pictórica

(desenho, pintura, colagem, assemblage, etc) e fotografia, são camadas

acrescidas de mais camadas que ao final resultam na imagem fotográfica que é a

obra. E, ainda que o resultado seja uma imagem bidimensional impressa, na

maioria dos casos, um C-print ou processo cromogênico de ampliação, ela não

esconde essas camadas de processos, que se revelam na aparência do material

com que foram feitas.

A série Retratos de Revistas [2003], é a que mais se aproxima da idéia de

montagem já discutida no trabalho de Caetano de Almeida, por serem trabalhos

feitos a partir da montagem de pequenos círculos coloridos, compondo mosaicos

dos retratos de pessoas ilustres e/ou conhecidas da sociedade brasileira do início

do século XXI, a era do culto à celebridade. Vik Muniz combina fragmentos da

mídia impressa, especificamente as revistas, cujo intuito maior, além do dever de

informar, é vender notícia, inclusas aquelas referentes à vida particular das

pessoas públicas. O artista à maneira pop faz esses retratos com o mesmo

material de que são constituídas suas personalidades públicas, as folhas das

revistas. Este material é recortado, transformado em confetes coloridos que

servirão de matéria pictórica para a construção dos retratos.

41

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As imagens de Vik Muniz começam com uma primeira fotografia que faz do

retratado. Num segundo momento, a partir das fotografias, e com os inúmeros

confetes pinta os retratos, cor por cor; como um jogo de pixels, ou de pontos a la

pontilhismo, seus confetes se sobrepõem como pinceladas soltas, mas exatas, na

elaboração pictórica do retrato. Seus fragmentos são apenas parte de algo que não

se acessa e nem se recupera, mas quando agrupados passam a funcionar na

nova constelação. É a montagem, o procedimento que propicia a imagem, o

retrato, sua re-apresentação. Porém, ao ser vista por uma lente de aumento, a

mesma imagem perde as características do retrato, se desfaz em um amontoado

de pequenos círculos coloridos. Provoca o flagrante da precariedade da

percepção, pois esta, ao menor indício, identifica imediatamente uma forma

concreta reconhecível, num jogo de identificação e imagem, de ser e negação.

fig. 5 | Vik Muniz, Jorge da série Retratos de revista, 2003, chromogenic print, 100 x 72 inches. Fonte catálogo Pinacoteca,

2004

42

Page 43: GEMIN; DEBORAH BRUEL -  Caetano de Almeida: Injunções da alegoria na arte contemporânea

Para esta série, a maioria dos 14 retratos foi realizada no Rio de Janeiro,

utilizando uma câmera de médio formato. A composição destas fotos lembra as

fotos de identificação para documentos de identidade e passaporte, como 3x4 cm,

ou 7x9 cm. Esta escolha revela uma preocupação com a identificação das

características faciais de cada retratado, até porque o artista não inclui na

composição nenhum elemento que identifique as pessoas além de seu semblante.

O título do trabalho é outro indicativo desta intenção já que se refere apenas ao

primeiro nome da pessoa, excluindo sobrenome ou nome artístico, e até mesmo os

apelidos pelos quais alguns são publicamente conhecidos, como no trabalho Jorge

[fig.5] retrato do cantor e compositor Seu Jorge, ou no trabalho João I, |2003|,

imagem de Joãozinho Trinta, carnavalesco famoso, e ainda Edson |2003|, retrato

de Pelé, muito menos conhecido pelo seu nome verdadeiro. Portanto resta à

identificação da imagem o reconhecimento das características pessoais pelo banco

de dados da memória visual do espectador.

Toda essa seqüência de ações que engendra a obra de arte, requer

estruturação e produção semelhantes às do cinema, cujas partes vão sendo

acumuladas e somente depois de passar pela montagem e edição se completam,

formando uma constelação. Não por acaso, o teórico e curador Borriaud nomeia

esses processos da arte atual de pós-produção, numa alusão ao processo

cinematográfico de edição e montagem. As camadas de Vik Muniz, assim como

Caetano de Almeida, são camadas de processos. Para Craig Owens o paradigma

para o trabalho alegórico é (...) o palimpsesto36, formado por várias camadas de

informação que se sobrepõem e interagem na leitura do documento, na construção

do sentido. Por sua vez pensada desta maneira a alegoria torna-se o modelo de

todo o comentário de toda a crítica, pois estes se constituem na reescritura da

significação figural de um texto primário, o que interessa para este teórico é

quando esta relação, a justaposição de camadas, acontece no interior dos

trabalhos de arte, quando ela descreve sua estrutura.37O alegorista confisca as

imagens, às quais reivindica o significado culturalmente, não se trata portanto, de

restaurar um significado perdido, mas de anexar-lhe outro, de suplantar o

antecedente, e o faz a partir das relações que estabelece entre aquilo que confisca

e o procedimento de construção.

36 OWENS, op.cit., pg.115. 37 Ibid.

43

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A questão de Vik Muniz não é a representação do referente, esta – a

primeira foto que faz do seu retratado – vai servir para a construção do que chama

de matriz, que são as imagens construídas a fim de serem fotografadas. Os

materiais que utiliza, são indicativos do discurso poético que pretende instaurar nas

imagens, nos trabalhos aqui analisados: os fragmentos de revistas que remetem

ao discurso crítico às imagens e identidades das personalidades pop. A montagem

está nos processos de tradução empregados pelo artista, que junta matérias,

texturas e imagens diversas, para reconstruir conceitos e identidades. Por

exemplo, na série Pictures of Dust [fig.6], Vik Muniz recolhe durante um tempo a

sujeira e pó acumulados no local da futura exposição, e com este material

reconstrói imagens deste espaço. Apresenta ao espectador, desenhos feitos com

os restos e dejetos colhidos no lugar onde as imagens se encontram. São restos e

pó, cabelos e pêlos, pequenos fragmentos depositados por num cotidiano passado.

Como se sua atitude transformasse o impalpável tempo pregresso em uma

imagem concreta e visível, um registro.

fig. 6 | Vik Muniz, sem título, da série Pictures of Dust, 2000. chromogenic print.

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A questão que aproxima o trabalho de Vik Muniz das propostas de Caetano

de Almeida, é a problematização da imagem da memória, e o que difere a série

Retratos de Revista de Mundo Plano, é o arcabouço da memória visual a que se

referem. Enquanto Caetano de Almeida trabalha com fragmentos da história da

arte, recombinando seus padrões, Vik Muniz, trabalha com a fragmentação da

memória visual e do olhar que constitui retratos e identidades. Vik Muniz propõe a

desconstrução da idéia da imagem como algo sensorial, instiga a retomada da

idéia de imagem como cosa mentale, e encara a impossibilidade de uma

impressão não fragmentada do olhar e acrescenta: a fragmentação dos meus

retratos é desenvolvida para interagir com estes movimentos oculares, gerando

uma espécie de vertigem focal, referindo-se à impossibilidade do olhar em captar a

imagem como um todo, devido à limitação de foco da visão foveal. Para Vik Muniz,

a fragmentação nestes retratos é um recurso que visa uma aproximação conceitual

entre a imagem e as complexidades do olhar.38 E é justamente na noção

operatória e na maneira como utiliza os fragmentos que se possibilita essa junção

de conceito e forma. A alegoria dos Retratos de Revista é a falácia do olho como

juiz da memória visual, ao passo que a alegoria de Mundo Plano é o catálogo da

arte moderna e seus padrões estéticos, no entanto, nos dois exemplos, a

montagem se apresenta como a alegoria da produção pictórica enquanto restauro

da memória visual.

38 Vik Muniz, em entrevista a Diógenes Moura, catálogo da Pinacoteca do Estado de São Paulo 2004.

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| Capítulo II |

O duplo ou a alegoria do procedimento que re-vela a diferença

A imagem é a duplicidade da revelação. Aquilo que encobre revelando, o véu que revela

encobrindo na indecisão ambígua da palavra revelar é a imagem.

Maurice Blanchot

Pode-se afirmar que as operações de Caetano de Almeida estão sempre

vagando no tempo, numa repetição de ida e volta, de quem busca referências no

passado, as refaz e devolve, propondo trocas de conceitos, re-elaboração de

padrões e técnicas. Percebe-se que o artista trabalha com a provocação da

memória e da percepção. Da memória porque a re-atualiza na re-apresentação, e

na percepção porque pela estratégia de reprodução e de duplicação revela as

camadas escondidas pela superfície envernizada da estética contemporânea

estabelecida. Para discutir a duplicação como a possibilidade de instauração da

diferença e, portanto, da cintilação, o assunto será abordado em três itens: no

primeiro discutindo a re-apresentação como a possibilidade onde se instaura a

diferença, tendo como apoio os conceitos de diferença e repetição de Gilles

Deleuze; o segundo item analisa o processo de duplicação da obra As Madames

de Caetano de Almeida como aquele que revela as diferenças bem como a

discussão de maneiras de duplicação da arte contemporânea num diálogo com o

artista Gehard Richter; o último item aborda a questão do duplo como paradoxo da

máscara, como a chave do enigma da série Exposição de Quadros, baseando-se

nas discussões de Rosalind Krauss sobre o mito da originalidade, que se encontra

também no processo de reduplicação de Vik Muniz.

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Page 47: GEMIN; DEBORAH BRUEL -  Caetano de Almeida: Injunções da alegoria na arte contemporânea

1 | A re-apresentação da diferença na repetição

Referindo-se ao poder de representação da imagem e também à crença

como pressuposto desse poder, Didi-Huberman diz que a imagem tem o poder de

representar outra coisa que não está nela, pois a ilusão se contenta com pouco,

tamanha é a sua avidez: a menor representação rapidamente terá fornecido algum

alimento – ainda que discreto, ainda que um simples detalhe – ao homem da

crença.39 No entanto, o homem contemporâneo é descrente e seu olhar não se

satisfaz nem com a representação enquanto presentificação de uma ausência e

nem com o objeto autônomo e eterno; assim esse olhar, refém do esquecimento,

segue sua busca pelo outro além da imagem e do objeto, atrás de novas formas.

Para Freud quanto menos se recorda do passado, mais se tem chance de repeti-lo

e a inconsciência do conceito retorna em forma de recalque. A partir da noção de

rememoração e esquecimento de Freud – paradoxo dos objetos enterrados ou das

sepulturas –, Deleuze afirma que se repete tanto mais o passado quanto menos é

ele recordado, quanto menos consciência se tem de recordá-lo.40 No entanto, tais

formas nunca encontram uma idéia que as dote de permanência, posto que

imersas numa contingência inescapável e sem exterior, o tempo delas não dialoga

com a alteridade do eterno. Elas se bastam em si mesmas indissociáveis da sua

condição de imagem. E, portanto essa condição de repetição seria ontológica à

imagem, já que ela sempre serve à memória, restaura conceitos e renova

princípios.

É preciso ter claro que embora figurem no texto inúmeras vezes conceitos

como essência, permanência e eterno, por vezes incoerentes às questões

contemporâneas, estes se tornam indispensáveis neste estudo por se referirem a

uma condição inerente às artes clássica e romântica, e até mesmo à moderna,

onde o status de obra se equivale à aura benjaminiana e a um poder sublime de

enlevo e de envolvimento quase que religioso. Percebe-se em Benjamin a

constante preocupação com estes conceitos, seja nos textos As Passagens ou na

Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica, onde sua preocupação surge do

sentimento de perda da essência, resultado da vida moderna, industrializada,

rápida, descartável e reproduzível, e nessa constatação resgata a alegoria. Privada 39 DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 50. 40 DELEUZE, 1988, p. 42.

47

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de alma, não há uma significação essencial atrás da imagem alegórica: sua

característica está na maneira de reluzir no espetacular, ou como diz Benjamin, no

bombástico. Para ele, é da impossibilidade de se alcançar à essência última das

coisas que nasce a alegoria. Sendo inatingível em qualquer conteúdo simbólico, as

formas das coisas são vagantes sem nunca encontrarem a expressão totalizadora

e a âncora capaz de fazê-las prenderem-se ao eterno.41 Nessa incessante busca a

imagem sempre volta duplicada, ela retorna como recalque e se torna a própria

alegoria do mundo contemporâneo. Não se trata de entender a representação pela

semelhança ou equivalência, mas como re-apresentação, no sentido de duplo de

Deleuze, que retorna, porém diferente. Onde a imagem não está no lugar de algo,

ela é o seu duplo, mas com distinção, reatualiza-o, existe como uma potência do

primeiro.

O duplo a partir da noção deleuziana, é aquilo que se repete como

cintilação, pela potência de obra. A inconsciência é que permite este retorno do

reprimido, que retorna como recalque, e retorna parecido para ser lembrado, mas

diferente porque precisa ser enxergado, visto que já tinha sido esquecido, portanto

repetido e diferente, porém há algo que sempre escapa, e vai retornar à frente pelo

mesmo processo indefinidamente. A alegoria opera na fenda, que se abre neste

escape, é o que permite ver a diferença na repetição.42 Neste sentido é que

podemos entender a alegoria contemporânea também como a alegoria do duplo,

que se encontra justamente na possibilidade de retorno da imagem, cuja potência

de que fala Deleuze não é da mesma ordem da essência, mas da natureza da

imagem. Isto se fundamenta no eterno retorno (Ewige Wiederkunft) de Friedrich

Nietzsche43, cuja tese defende que o mundo passa indefinidamente pela

alternância da criação e da destruição, da alegria e do sofrimento, do bem e do

mal. Trecho de A Gaia Ciência (Die fröhliche Wissenschaft, 1882) na qual o autor

se refere ao eterno retorno: E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência - e do mesmo modo

41 BENJAMIN, 1984, p. 205 42 DELEUZE, op. cit., p. 43. 43 NIETZSCHE apud DELEUZE, op. cit., p. 44.

48

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esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!’. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: ‘Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!’ Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: ‘Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?’ pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?

Como gênero pictórico a alegoria foi importantíssima, predominando nas

taxinomias acadêmicas por muito tempo. De acordo com as mesmas, a

representação alegórica era a possibilidade do sublime se fazer presente, de se

construir como identidade moral e religiosa, e também de imputar mitos e virtudes

dionisíacas ao ser comum e ao cotidiano profano, ela não era a essência da obra,

mas era a possibilidade de se falar dela. Basta lembrar das alegorias de Peter Paul

Rubens em O Nascimento do Maria de Médici e O Desembarque em Marselha, e

ainda as pinturas rebuscadas do Rococó de Francis Boucher ou Honoré

Fragonard, como alegorias do sonho frívolo e decadente de uma vida plena de

prazeres da corte francesa. A tal ponto do pintor Jean-Marc Nattier no século XVIII,

ter executado quatro pinturas em que retrata madames da corte como alegorias

dos quatro elementos – Terra, Água, Ar e Fogo – dando àquelas mulheres uma

importância sublime de existência, bem de acordo com os padrões do classicismo.

Usando então a alegoria como a possibilidade de dignificação pela representação.

Dois séculos depois, em 1999, este trabalho é revisitado por Caetano de Almeida,

que copia as pinturas de Nattier produzindo seu duplo, deslocando-as no tempo, e

pela operação alegórica impõe a tarefa de decifrar o que significa sua presença no

espaço contemporâneo.

Ele denomina esse conjunto como As Madames [fig. 7], e aqui como em

Duchamp e os trabalhos da arte conceitual, não é apenas a visualidade primeira

que está à mostra, a obra não se presta à fruição estética. A obra de Caetano de

Almeida funciona na operação de re-apresentação e na troca que a estética

clássica estabelece com a estética contemporânea, provocando a memória visual

do espectador. As pinturas de Caetano de Almeida se dirigem ao observador de

maneira ambígua, pois este já acostumado com as obras de arte contemporâneas,

49

Page 50: GEMIN; DEBORAH BRUEL -  Caetano de Almeida: Injunções da alegoria na arte contemporânea

que levam para o circuito da arte objetos do cotidiano e reproduções da cultura de

massas, o visitante não se depara com reproduções fotográficas – a operação de

duplicação já entendida como padrão em tempos de pós-modernidade – mas com

uma operação que remonta às clássicas tradições da pintura.

fig. 7 | Caetano de Almeida, As Madames, 1999, óleo sobre tela,135,4 x 574,8 cm. Museu de Arte Moderna de São Paulo SP.

Fonte: Catálogo do MAM, 2005.

Ocorre que as referências deste pintor contemporâneo podem ser

consideradas apenas como citação das imagens e da técnica adotada pelo artista

setecentista, que copia a aparência da pintura histórica, com a frivolidade do

rococó e bem ao gosto do classicismo. Todavia, esta leitura de mera equivalência

implicaria em reduzir esses trabalhos a cópias ou a uma simples discussão da

reprodutibilidade técnica. Para Laymert esta obra sintetiza a complexidade do

trabalho do artista em questão, pois se apresenta como uma porta de entrada para

uma arte que explora o futuro da pintura, não pela atitude de ruptura como os

modernos, e nem pelos procedimentos como fazem os pós-modernos, mas por re-

configurar as questões da pintura num procedimento operatório de grande

interesse estético.44

44 SANTOS, 2007, p. 101.

50

Page 51: GEMIN; DEBORAH BRUEL -  Caetano de Almeida: Injunções da alegoria na arte contemporânea

fig. 8 | Jean-Marc Nattier, Madame Louise-Elisabeth, 1751, óleo sobre tela, 106 x 138 cm, Fonte: Museu de Arte de São Paulo.

fig. 9 | Caetano de Almeida, Madame Louise-Elisabeth Duchesse de Parme (Madame L'Infante), La Terre da série As Madames, 2000.

Museu de Arte Moderna de São Paulo. Foto: Rômulo Fialdini, Fonte: acervo do MAM.

51

Page 52: GEMIN; DEBORAH BRUEL -  Caetano de Almeida: Injunções da alegoria na arte contemporânea

Caetano de Almeida problematiza a representação, enquanto duplicação,

que se repete indefinidamente, e não apenas com relação ao futuro da pintura,

mas, também em relação ao seu passado. Em sentido semelhante, a repetição

para Deleuze pressupõe, que uma coisa é insubstituível, ou seja, a obra só pode

ser repetida, duplicada, porque não pode ser substituída por outra igual, pois não

há igualdade. Esta é da ordem da generalidade e, portanto, escapa à arte, que é

da ordem do singular, do extraordinário, que não permite a troca, já que não há

equivalente, pois a alma não se troca. Há sempre uma diferença de natureza entre

a coisa e seu duplo, mesmo quando a semelhança é extrema, ou há uma

equivalência perfeita.45 O duplo na repetição é o outro, e está investido de

diferença, alega aquela presença, propõe uma sobrevivência que se opõe à

permanência.

O artista diz não ter sido importante a escolha dessas obras, pois são

imagens recorrentes em sua memória, como também na memória de uma elite

paulista burguesa inspirada na elite burguesa francesa, e nesta estética rebuscada. Não sei muito bem quando vi essas obras, na verdade acho que sempre as conheci, pois elas povoam minha imaginação desde sempre em enfeites, camafeus e pequenos quadros usados para uma decoração ‘Francesa’ para a classe média. Nunca dei muita bola pras pinturas em si. Quando comecei as ‘minhas’ madames havia muito tempo que não olhava os originais e permaneci assim até o final. Fui revê-las, as originais, numa retrospectiva do Nattier no Palácio de Versailles.46

Se a escolha de Caetano de Almeida aconteceu de maneira tão

despretensiosa, como afirma em seu depoimento, como justificar sua escolha,

dando uma interpretação que lhe dê peso histórico e crítico sem tirar conclusões

infundadas? A resposta está na supervivência da imagem defendida por Didi-

Huberman, que se refere à discussão sobre o poder de cintilação da imagem,

Naschleben para Warburg. Não obstante, foi a memória imagética do artista que

certeiramente pinçou estas obras através deste rasgo no tempo. Essa leitura

embora pareça intempestiva, é coerente com o conceito de anacronia, de retorno e

acima de tudo leva em consideração o que as imagens revelam na sua re-

aparição. A escolha não foi descuidada ou isenta, como o artista proclama ter sido,

45 DELEUZE, op.cit., p. 22 e 23. 46 ALMEIDA, entrevista por e-mail em 30/02/2008.

52

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o que explicaria a feliz coincidência senão o poder de reverberação da imagem,

revelado no eterno retorno?

2 | A série As Madames e a duplicação como re-velação da obra

O que torna as imagens da série As Madames de Caetano de Almeida tão

descontextualizadas, é o descompasso temporal causado pelo choque entre a

estética clássica em contraste à estética pós-moderna. O anacronismo que

trabalha com o poder da imagem em desmontar a história, desorientar seu

caminho linear operando dobras, encontros de temporalidades diversas, detidas

em lampejos e cintilações. O artista refaz os retratos que em seus referentes eram

mulheres nobres como alegorias dos quatro elementos essenciais da natureza:

água, fogo, terra e ar, pinturas do tempo em que ainda se acreditava em

idealizações. Madames de France – Os Elementos, constituem o conjunto mais

importante executado por Nattier para a família real. Encomendados por Luís XV

em 1749, os retratos de suas irmãs foram destinados às sobreportas do Grand

Cabinet du Dauphin. Há, contudo, uma sobreposição alegórica nestes retratos,

pois, cada madame além ser representada como um elemento, este está

associado a uma entidade mitológica que o simboliza: a Terra à Cibele, o Fogo à

uma figura sagrada de uma vestal; o Ar à Juno, e a Água à uma deidade fluvial

(como o indica a ânfora) ou à Galetéia.47

No entanto, ao refazer estas madames, Caetano de Almeida não retoma a

alegoria tradicional, nem devolve à imagem aquilo que literalmente elas

representam, senhoras ilustres da corte, ele refaz Nattier, desfazendo o caminho

trilhado por este48, ele destitui seus significados, subtrai o sentido dado por Nattier,

sua operação alegórica do gesto de duplicação dá a essas imagens outro ser. O

que se coloca, portanto, é a questão da representação da pintura e não a

representação na pintura. Caetano de Almeida demonstra entender que a

duplicação como re-apresentação está impossibilitada de repetir o mesmo, como

igual; percepção que está presente nos pequenos detalhes que diferem as suas

das pinturas barrocas, como o tratamento da cor e pincelada, ou o falso paspatour

47 Pierre de Nolbac apud – Catálogo do Masp, 1998 , vol II p 27-28. 48 SANTOS, op.cit., p. 102.

53

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que varia de tamanho em cada retrato, e na diferença exacerbada e irônica da

inversão da Madame Marie-Louise-Thérèse-Victoire de France [fig 11] em relação

à pintura de Nattier de 1751 [fig 10], como num espelho, onde nunca se vê o

mesmo, mas sempre o invertido.

Os procedimentos da montagem e da reprodução permitem o impulso

alegórico da duplicação, possibilitando, de acordo com Benjamin, ver o tempo

passado no presente, re-atualizando-o nesta fenda, neste devir. Caetano de

Almeida aposta nesta possibilidade de transformação da duplicação, no entanto,

parece operar com o estigma da codificação da imagem, ele não postula uma

discussão de original e cópia, mas seu trabalho funciona na clave contemporânea

da representação da representação.49 Em relação às margens inseridas, o artista

diz: gosto dos cortes das madames pois, elas parecem telas de cinema. É só uma

imagem. Uma imagem vazia. Já se foram os originais há muito tempo.50 Esta

semelhança à tela de cinema remete ao lugar da imagem na estética

contemporânea, e seu suposto descompromisso com a história, reforça ainda mais

a noção de que a imagem sobrevive na memória, e só retorna como recalque.

Sua atitude aparentemente descrente, irônica e até mesmo cínica, é

pertinente a uma postura cética da arte contemporânea frente aos feitos engajados

e panfletários, comuns a partir dos anos 60, os quais não pretende repetir, pois

parece acreditar que à arte não cabe ser revolucionária e nem deve postular

soluções, mas indicar questões a partir da junção de poética e forma, apontando

brechas e desvios. O artista não pretende resolver os problemas da reprodução da

imagem, nem resgatar antigos valores a ela atribuídos, ele aponta para a ferida,

deixa exposta esta mácula. Desnuda a pintura dos seus significados sublimes, de

suas verdades tradicionais, pelo devir de sua re-aparição.

49 SANTOS, op.cit., p. 102. 50 ALMEIDA, em entrevista por e-mail em 15/02/2008.

54

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fig. 10 | Jean-Marc Nattier, Madame Marie-Louise-Thérèse-Victoire de France 1751, óleo sobre tela, 106 x 138 cm, Fonte: Museu de

Arte de São Paulo.

fig. 11 | Caetano de Almeida, Madame Marie-Louise-Thérèse-

Victoire de France, L'Eau da série As Madames, 1999, óleo sobre tela, Museu de Arte Moderna de São Paulo. Foto: Rômulo Fialdini.

Fonte: Acervo do MAM.

55

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fig. 12 | Jean-Marc Nattier, Madame Anne Henriette de France,

1751, óleo sobre tela, 106 x 138 cm, Fonte: Museu de Arte de São Paulo.

fig. 13 | Caetano de Almeida, Madame Anne-Henriette de France,

Le Feu da série As Madames, 1999, óleo sobre tela, Museu de Arte Moderna de São Paulo. Foto: Rômulo Fialdini. Fonte: Acervo do

MAM

56

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A pintura de Nattier é fiel à época em que viveu, resultado de exaustivo

trabalho de cópias. Pois a cópia ou duplicação não é propriedade das técnicas de

reprodução surgidas no séc XIX, era prática comum na Academia; desenhar e

pintar eram aprendidos copiando-se os grandes mestres, reproduzindo seus traços

e temas. Jean-Marc Nattier que tardiamente na academia, se torna o retratista

favorito dos Órleans, apreciado especialmente pelas jovens. Retratando várias

vezes as madames da côrte. Quando recebe a encomenda de Madames de

France, baseia-se nas pinturas anteriores, repetindo penteados, drapeados e

poses. Copiando e duplicando as próprias imagens, servindo-se disso como

técnica para resolver a pintura e não como a constatação de um problema. No

entanto nas madames de Caetano de Almeida a duplicação apresenta-se como

uma questão da imagem, que problematiza sua existência atemporal. A aparência

tradicional de pintura desloca As Madames do contexto contemporâneo, remete a

existência de um tempo que persiste através das suas pinturas. São alegorias do

deslocamento anacrônico.

O artista poderia ter usado o meio fotográfico para duplicar estas pinturas,

pois este tem o caráter de representação do outro como a duplicação assumida

desde a modernidade. Como o fez Sherrie Levine por exemplo [fig.14], que

fotografou trabalhos de fotógrafos modernos, e os apresentou como seu próprio

trabalho, desconstruindo segundo Rosalind Krauss, a noção moderna de origem e

autoria.51 A artista não deixa nenhum vestígio de sua interferência, a não ser no

título onde faz referência à sua apropriação. O espectador de Levine precisa ser

avisado de que as fotos são imagens produzidas a partir de uma reprodução de

uma fotografia original feito por um outro artista, ou então ser um conhecedor de

Walker Evans, fotógrafo moderno norte-americano, reconhecer as imagens e dar-

se conta do desconforto provocado pela artista. Seus procedimentos de citação e

duplicação é que dão espessura ao trabalho, as pistas dadas pela artista, não

estão na imagem, que não contém nada que a torne diferente, a não ser o título e

os processos pelos quais foi produzida. Um duplo que se mostra e se esconde. O

trabalho de Sherrie Levine opera neste limite, tornando-se eficaz dentro de um

contexto, requerendo um observador crítico e atento. O duplo de Levine é perverso

51 KRAUSS, 1996, p. 182.

57

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porque exclui a diferença na forma, seu desvio está no seu procedimento de

duplicação, sua questão é da aura e da autoria. Walke

fig. 14 | Walker Evans hale county, alabama, 1936.(esquerda) Sherrie Levine sem título (after Walker Evans), 1979.(direita)

O contrário ocorre com Caetano de Almeida, que inclui o processo na

duplicação, feita através da pintura onde instaura diferenças, sua questão refere-se

à imagem, à sua aparência. Ele afirma que suas imagens não são as originais,

deixa traços do seu trabalho, as emoldura com margens diferentes, repete e

duplica transformando-as. Deixa as marcas de um modo de tradução empregado.

A imagem é manipulada por ele: transportada de um padrão para outro. Faz a re-

apresentação dessas imagens como quem procura lembrar que as cópias não

repetem o original [fig. 15 e 16]. O tratamento que Caetano dá a sua pintura

reforça sua intenção de cópia que não almeja ser semelhante, visto que não imita a

aparência pictórica, pois ressalta o colorido, ignorando a atmosfera da pintura

rococó original, não esconde suas pinceladas toscas, como uma imitação mal feita

da técnica pictórica tradicional. As madames de 1999 não possuem a mesma

suavidade da pintura rococó. Segundo o artista, que não via as originais há muito

tempo, realiza suas cópias a partir de reproduções, o duplo do duplo, o que justifica

sua indiferença em relação a pinceladas e cores originais.

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fig. 15 | Jean-Marc Nattier, Madame Marie-Adélaïde de France, óleo sobre tela, 106 x 138 cm, 1751. Fonte: Museu de Arte São Paulo.

fig. 16 | Caetano de Almeida, Madame Marie Adelaide de France, L’Air da série As Madames, óleo sobre tela, 110,7 cm x 135,6 cm,

1999. Museu de Arte Moderna de São Paulo. Foto: Rômulo Fialdini. Fonte: Acervo do MAM

59

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No Modernismo a categorização das linguagens artísticas, foi uma tentativa

de resguardar a originalidade, já que a reprodutibilidade permitiu a ilusão de

acessar qualquer imagem pela sua reprodução, com a certeza da duplicação como

semelhança, colocando a cópia como algo que substituía o original. No entanto,

sabe-se que há diferença de natureza entre o ser e sua cópia, e as imagens de

Caetano de Almeida se afirmam como o duplo que potencializa essa singularidade.

Quando o artista re-apresenta As madames, ele resgata uma consciência da frágil

lembrança que aquela estética clássica deixou, e esse esquecimento possibilita

que a memória seja re-configurada a partir da sua provocação.

O esquecimento é potencializado na repetição, que para Deleuze é o

pensamento do futuro: ela [repetição] se opõe à antiga categoria da reminiscência

e à moderna categoria do habitus52, mas essa potência do esquecimento é

positiva, pois dá espaço à recepção do duplo. Não interessa quem são estas

mulheres, mas a reflexão que provocam sobre a noção de reprodução, e o

esvaziamento que ocorre nas repetições de padrões, sejam eles, gráficos, visuais,

ou morais e estéticos. Essas imagens de Caetano de Almeida operam na dialética

da imagem, pois, são presença e re-apresentação, propõem o devir e suscitam o

êxtase da sobrevivência. Cintilam neste intervalo, ou ainda, são o intervalo em uma

história da imagem que se propõe existir e recomeçar sempre sob a forma de uma

história das mesmas obras.53 A alegoria do duplo é, portanto, a potência da re-

apresentação, na forma de um outro, por não pertencer à ordem da igualdade e

semelhança, mas à ordem do eterno retorno, que opera pelo regresso na

diferença, e nesse desvio refaz a memória, produz seu rasgo.

Nos quatro retratos das madames, de todas as coisas representadas,

figuras, objetos, animais, céus, algo que chama a atenção é o panejamento das

roupas, esvoaçantes, volumosas, brilhantes, cromaticamente saturadas. Tecidos

que se interpõem como as dobras temporais que sobrepostas e acumuladas em

camadas remetem ao empilhamento benjaminiano. São da ordem do intempestivo,

da anacronia, e ocupando quase todo o primeiro plano das pinturas, parecem

cobrir não apenas os corpos das madames, mas as próprias pinturas, como os

véus do tempo.

52 DELEUZE, op. cit., p. 31. 53 DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 121.

60

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Nas obras de Fragonard no Rococó [fig 17], que se constituíam alegorias da

corte, havia um outro escondido atrás de densidade da vegetação de suas cenas.

A mesma vegetação que emoldura a cena apresenta-se como uma alegoria da

cegueira da côrte, que não desejava ver a ruína em que a França se tornava.

Como um muro de proteção, as árvores e arbustos densos em suas pinturas

protegiam, não somente o ideal de uma vida plena de alegrias, como a ilusão de

que a pintura é a sua revelação. Numa mesma operação Nattier usa a roupagem, e

os tecidos se transformam nesta cortina que encena proteger, serve como

máscara, mas uma máscara que não esconde, não disfarça, ao contrário revela a

falácia da imagem como impossibilidade de apreensão, e como possibilidade única

de indicação de alegação do outro que está fora dela. A alegoria de Fragonard é a

frivolidade, a alegoria de Nattier é a dignificação daquelas mulheres, no entanto a

alegoria de Caetano é a falência da representação da imagem como idêntico.

fig. 17 | Honoré Fragonard, O progresso do amor: perseguição, óleo sobre tela, 1771-73, 317x215 cm.

A duplicação como um fazer diferente do mesmo, por uma mesma operação

é explorada por Gerhard Richter, artista contemporâneo alemão, que usa a história

contemporânea alemã como motivo para seus trabalhos figurativos, se é que

podem ser chamados assim. Com uma produção muito extensa e diversa, este

artista é fiel à linguagem que escolheu e que explora por variados meios, tanto que

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se pode dizer que sua pintura começa antes e vai além da pintura contemporânea,

ou seja, Richter parece suscitar suas questões justamente do reconhecimento da

ruína da metafísica Modernista efetuado pela arte conceitual.54 O trabalho de

Richter oscila entre o figurativo e o abstrato, contrariando os ditames da arte

moderna de exclusão e recusa, quando se tinha que escolher entre um ou outro.

No entanto, a livre circulação dos trabalhos de Richter nos dois pólos extremos

apóia-se na consciência do fato de que a pintura ocorre hoje no contexto da

tradição visual mais geral e disseminada da reprodução mecânica.55Com uma

figuração que tem por base a imagem fotográfica, Richter apresenta, na opinião de

Wood e Harrison, um discurso dual: pra uma história além da arte e para uma

história da arte,56 o que ocorre também com alguns de seus trabalhos abstratos

cuja produção envolve técnicas associadas às tecnologias de reprodução em série.

Numa de suas séries figurativas Richter faz uma seqüência de quinze

pinturas, intituladas 18 Oktober 1977, [fig. 18] que consistem em trabalhos pintados

em variações de preto e branco, baseados em fotografias policiais e jornalísticas

de membros da facção do exército vermelho Baader-Meinhof. Independentemente

das questões políticas implícitas e contraditórias que estas imagens provocaram na

época, mas talvez também por elas, suas pinturas segundo Wood e Harrison, se

recusam à proibição feita à pintura pela arte moderna de engajar-se na história.57

O que suscita outra questão: o artista escolhe um meio, a pintura, alheio ao meio

da imagem informativa e de registro da história: a fotografia documental e o retrato

de jornal (instrumentos de registro de fatos da história), o que enfatiza uma

inversão de procedimentos. Ele refaz estas imagens, tendo como referentes fotos

de jornais, com uma linguagem – a pintura – que historicamente pressupõe

permanência, se nega à finitude e ao esquecimento, e esta é a grande força deste

trabalho de Richter, além do deslocamento que provoca inserindo imagens dum

veículo de informação de massa, para o círculo restrito da arte, eleva aquelas

imagens a um estatuto de sobrevivência.

Seus procedimentos são de apropriação e duplicação; apropriação de

imagens da cultura de massa, imagens feitas para serem consumidas, e por esta 54 WOOD, et al, 1998, p. 249. 55 Ibid. 56 Ibid, p. 251. 57 O artista foi muito criticado, tanto por pessoas da direita, que acreditavam que suas imagens não condenavam abertamente o grupo de terroristas, quanto pela esquerda por não denunciar abertamente o suposto assassinato destes membros pelo Estado.(WOOD, p.252)

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lógica, rapidamente esquecidas; e duplicação porque as refaz impondo-lhes uma

igualdade e uma diferença: uma igualdade pela aparência, o original e a cópia se

parecem entre si, e uma diferença de natureza, uma é informativa, tem o intuito de

representação, e a outra de re-apresentação do mesmo com distinção, com a

carga conceitual dada pela operação pictórica, pelo gesto do artista que ao

transformá-las em pinturas deixam de ser meras imagens.

fig. 18 | Gerhard Richter, Tote (morta), da série 18 Oktober 1977, óleo sobre tela, 1988 62 x 62cm. Fonte: Livro Gerhard Richter,

MuMA, 2002, Nova York.

A atitude deliberada de Richter difere neste ponto de Caetano, cujo

engajamento do trabalho não se dá pela ótica histórica, senão da história da

imagem. Enquanto Caetano de Almeida escolhe as madames para questionar a

estética barroca como a que perdura como bom gosto, nas diversas formas de

reprodução daquelas e outras imagens semelhantes; Richter dirige-se à história da

arte, enfia-lhe um punhal, usando a pintura – linguagem condenada pela arte

moderna a restringir-se à estética formalista e não engajada – dignifica as

imagens pela operação de duplicação e deslocamento. Ao revés, Caetano de

Almeida retira das madames do séc. XVIII a aura de dignidade e poder a elas

conferida pela alegoria clássica de Nattier, sua duplicação as devolve para a

história da arte como imagens-arauto da potência de cintilação da imagem. Já,

Gehard Richter devolve às imagens confiscadas dos jornais um poder de

63

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transposição do lugar comum da imagem contemporânea como produto de

consumo, para um lugar de pulsão, da obra de arte.

3 | Exposição de Quadros e duplo sem original

Numa exposição intitulada Exposição de Quadros, realizada no final da

década de 90, Caetano de Almeida apresenta na galeria Luisa Strina obras como

se fossem pertencentes a um livro aberto, imagens exemplares da história da arte.

São pinturas que simulam as retículas de impressão das reproduções, sem utilizar,

contudo técnicas de reprodução de imagem: fotocópia, fotografia, fac-símile,

scanner ou qualquer outra tecnologia. O artista imita fazendo pintura dissimulada

de retícula, provocando: o que é uma pintura, se tomada pela sua reprodução?

Sua técnica pictórica remete a dois outros imediatamente: a imagem re-

apresentada, duplicada, porém com diferença, e à retícula como processo de

reprodução infinita [fig. 19]. Por conseqüência, destitui a origem, posto que não há

original, já que o duplo é sempre um outro, e esta cópia se origina nela mesma.

fig. 19 | Caetano de Almeida, Frutas da série Exposição de Quadros, 1997. guache sobre papel, 76cm x 91cm. (detalhe). Fonte

Catálogo, Galeria Luisa Strina,1999.

A imagem re-apresentada em cada pintura desta série refere-se a um

quadro da história da pintura, que se reconhece por figurar em livros de história da

arte. São pinturas que re-apresentam pinturas, porém que tomam como referentes

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Page 65: GEMIN; DEBORAH BRUEL -  Caetano de Almeida: Injunções da alegoria na arte contemporânea

suas reproduções em impressos, portanto sua aparência reticular. Todavia, a

intenção deste artista não se resume em alertar para o fato da reprodução ser feita

de retícula, ou qualquer outra técnica de impressão, esse é um discurso inicial,

importante também, mas que introduz um problema: o problema da pintura e da

sua carne. Não se tem acesso ao corpo da pintura por sua reprodução, sua

materialidade não se faz presente, porque a fotografia só dá uma aparência da

superfície, de sua pele, portanto. A imagem fotográfica reproduzida é incapaz de

revelar o corpo da obra e o conceito implícito na constituição de sua carne. Nesse

sentido a reprodução não é mais do que uma imagem pop, que usa a fotografia

como meio de igualar a pintura e a arte a qualquer outra imagem do mundo.

Caetano de Almeida contesta o repertório visual formado por imagens impressas,

ou seja, as entende como resultantes da experiência homogênea e passiva das

interferências de veiculação: seleção, edição, escala, e corte das imagens,

transposição para fotolito e qualidade da impressão.58

Quando um trabalho de arte é fotografado, implica em vários recortes:

escolha do ângulo, da luz, enquadramento. A imagem depende igualmente do

procedimento que a armazena, processo digital ou químico, grãos ou pixels,

traduzindo as ondas de cor em áreas planas (porções mínimas, quase invisíveis).

A primeira captação, película ou arquivo, será lida, decodificada por um processo,

químico ou digital, cujo cuidado técnico vai influenciar também o resultado da

imagem. No processo químico, a qualidade dos produtos e o tempo de revelação

são fundamentais, escolhas que o profissional faz para definir alguns aspectos da

imagem. No processo digital o tratamento da imagem pode acentuar a cor, ajustar

o enquadramento, distorcer a imagem, etc, as possibilidades são inúmeras. Logo,

estes processos além de justapor técnicas, fazem uma montagem cênica para

apresentar imagens que alegam outros corpos. A fotografia que já esteve

relacionada à veracidade das coisas e relegou à pintura a idéia da representação,

tem seu mito revelado. Pois ela também alega, não apresenta a verdade, mas

aspectos dela, o duplo simulado. E, o repertório visual é formado por estas

imagens duplicadas, uma memória imagética construída através de imagens que

codificam e transformam aquilo que apresentam.

58 CHAIMOVICH, 1997.

65

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Não da mesma forma, mas apontando para o mesmo problema Pablo

Chiuminatto apresentou na 6ª Bienal do Mercosul [fig. 20 e 21], obras que fazem a

reflexão da herança da pintura européia no continente americano e questionam

também os problemas da representação da realidade por meio da pintura, uma das

questões centrais da história da arte. Para sua sala nesta mostra, o artista

escolheu os livros de sua biblioteca numa referência de que a sua formação de

artista, dentro da herança européia, deu-se muito mais por reproduções do que

pelas pinturas em si. As pinturas de Pablo Chiuminatto lembram as paisagens da

pintura européia, porém são tão suaves como se uma camada de poeira ou neblina

impedisse a sua visualização. Proporcionando uma experiência visual correlata ao

trabalho da Caetano de Almeida, são imagens que povoam a memória pois estão

em todos os livros de arte, mas que exigem do expectador um esforço no sentido

de perceber que sua real vocação não é a de ser parecida, mas justamente nesta

semelhança se fazer diferente.

fig. 20 | Biblioteca do artista Pablo Chiuminatto, 2006, 80 x 400 x 25cm. Coleção do artista, Santiago, Chile. Foto: Deborah Bruel

fig. 21 | Pablo Chiuminatto, sem título, 2006, óleo sobre tela, 114 x 200 cm. Coleção do artista, Santiago, Chile. Foto: Deborah Bruel

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Page 67: GEMIN; DEBORAH BRUEL -  Caetano de Almeida: Injunções da alegoria na arte contemporânea

Nos dois artistas, a apresentação de seus questionamentos acerca da

imagem e da formação artística é feita através da linguagem pictórica trazendo à

discussão implicações sobre esses procedimentos e essa escolha. A pintura da

pintura foi um processo acadêmico erudito de formação e aprendizado nas escolas

de Belas Artes do mundo todo, lançar mão dessa fatura denota não apenas

erudição e conhecimento por parte dos artistas, mas principalmente uma

consciência do contexto institucional em que a arte se configura. Entretanto, suas

propostas são diferentes, enquanto Chiuminato faz um discurso literal trazendo sua

biblioteca ao espaço expositivo e confrontando sua pintura às reproduções dos

livros de arte, Caetano de Almeida refaz as pinturas a partir de seus duplos nos

livros de arte, refaz o duplo do duplo, reproduz suas cópias, imita sua aparência,

mas exacerba essa re-apresentação.

O processo de impressão acontece em camadas, por justaposições de

aparatos técnicos, caracterizando-o como uma montagem. Este processo assim

como todas as mídias contemporâneas têm a fotografia como base tecnológica,

conceitual e ideológica (...) e, por essa razão, compreendê-la, defini-la é um pouco

também compreender e definir as estratégias semióticas, os modelos de

construção e percepção, as estruturas de sustentação de toda a produção

contemporânea de signos visuais e auditivos, sobretudo daquela que se faz

através de mediação técnica.59

Para Arlindo Machado essas camadas de aparatos técnicos denotam a

expressão de um conceito que vai além da mística do clique do instante decisivo

de Henri Cartie Bresson, para quem cada foto é única porque contém rigor e

riqueza suficientes e um conteúdo com bastante ressonância, e a gente não tem

direito de reuni-los à força, encená-los seria uma trapaça.60 Este autor se refere à

estratégia de montagem, que aponta como farsa; Bresson não considera a

fotografia, ou esses processos operatórios como véus constituintes da retícula.

Para ele a foto é capaz de apreender um instante, é o caminho para se chegar a

uma verdade. Enquanto no conceito de Arlindo Machado a fotografia e seus

aparatos são um meio, através do qual não se chega ao referente, mas a uma

tradução deste, sendo um conceito tecnicamente construído. Este teórico se apóia

nos estudos de Vilém Flusser, para quem a fotografia, mais que simplesmente

59 MACHADO, 2000, p. 1. 60 BRESSON, 1952, p. 17.

67

Page 68: GEMIN; DEBORAH BRUEL -  Caetano de Almeida: Injunções da alegoria na arte contemporânea

registrar impressões do mundo físico, na verdade traduzia teorias científicas em

imagens, (...) ela ‘transforma conceitos em cenas’.61 Portanto, a duplicação da

imagem amplamente difundida por estas tecnologias traz à tona a discussão dos

processos de sobreposição de camadas e da retícula como a máscara imbuída de

conceito, com os quais operam os artistas contemporâneos.

O problema da alegoria na arte contemporânea parece se dirigir à

duplicação das coisas do mundo, pois, quando o artista re-apresenta algo lhe

acresce significado. O procedimento de duplicar, num sentido mais restrito, contém

em si uma das possibilidades para o entendimento da obra contemporânea. A

pintura de Caetano de Almeida na série Exposição de Quadros [fig. 22],

diferentemente d’As Madames, oferece somente uma breve aparência das obras a

que se refere. Assim, é esta sutil aparência que prepara o enigma, porque

simultaneamente dá e impede o alcance da imagem à qual aquela semelhança

remete. Como a máscara que esconde e revela, impondo um jogo de decifração.

Porque o ciclo nunca se fecha, da mesma maneira que o duplo não foi feito a partir

do original.

Sem considerar a montagem como trapaça, mas como um procedimento

que funda um pensamento, e para quem não interessa a originalidade, Caetano de

Almeida refaz essas obras a partir do que elas não são, sua imagem reproduzida,

e a partir da conexão estabelecida com a história da arte e com todo o significado

que possuem, reiterando o repensar da arte contemporânea a partir da dissolução

de seus mitos, assim como ocorreu com a arte moderna. No entendimento de

Rosalind Krauss a retícula62 revela a vontade de silêncio da arte moderna e

também sua hostilidade à literatura, à narrativa e ao discurso e, no entanto,

estabelece um paradoxo – da originalidade e repetição – posto que ao mesmo

tempo em que acena com a liberdade, é extremamente restritiva no que refere ao

exercício pleno [desta] liberdade, já que os artistas a que ela se submetem têm sua

obra caracterizada pela repetição. A retícula condena estes artistas à repetição e

não à originalidade, não que isso sugira uma valoração negativa da obra. A autora

entende uma aproximação dos termos originalidade e repetição, ao contrário do 61 MACHADO, op.cit., p. 2. 62 Rosalind Krauss se refere a retícula enquanto grade, como a superfície plana e esquadrinhada que recobre e representa a própria superfície plana da tela, o écran. Portanto, embora a palavra seja a mesma, a retícula que Caetano de Almeida utiliza é relacionada ao processo de impressão, enquanto Rosalind Krauss se refere ao conceito de planaridade e grade da arte moderna, ou seja a trama pictórica que recobre a superfície e se opõe à narrativa e ao discurso representativo.

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Page 69: GEMIN; DEBORAH BRUEL -  Caetano de Almeida: Injunções da alegoria na arte contemporânea

que propunham as vanguardas, que buscavam o primeiro por garantir a

singularidade da obra e rechaçavam o segundo por ser o seu oposto.63 No

entanto, como a retícula se estende ao infinito em todas as direções, pela

repetição, ela não nega o original, mas reatualiza-o indefinidamente impedindo sua

detecção.

Na problemática da repetição está a questão de Frenhofer64, fazer uma

pintura que não seja pintura, mas que seja o próprio corpo da sua musa, no

entanto, o que ele consegue é o corpo da pintura como um desastre. Frenhofer é o

pintor do romance A Obra Mestra Desconhecida de Balzac, cujo dilema concerne

na busca pela verdade representada na pintura. Tal qual a pretensão de Zêuxis e

Parrácio, Frenhofer trabalha incessantemente buscando o corpo, a expressão viva

da sua musa, o que Didi-Huberman interpreta como a busca da carne da pintura,

que consiste no corpo da obra, e se encontra nas entranhas, para dentro da sua

pele/superfície. O drama de Frenhofer consiste em uma impossibilidade, fruto do

desejo em ter a sua musa no corpo da sua pintura, ele acredita que sua obra será

tão perfeita e verdadeira a ponto de criar o mundo tal qual ele é, criar a carne pela

carne da pintura, algo sublime e mágico como o toque de Midas.

Caetano de Almeida por sua vez, não guarda nenhuma ilusão em relação a

essa possibilidade de re-criação do mundo, ele refaz as pinturas mostrando o que

elas não são: suas reproduções. O que remete ao fato de que a recepção e fruição

dessas obras por suas reproduções em livros, são dadas pela sua aparência/pele,

nunca pela sua presença/corpo. E não é à aura da obra de arte que Caetano de

Almeida se refere, mas ao significado de suas imagens, devolvendo-lhes um

sentido que é outro, não mais aquele da obra que aparece por semelhança na

imagem. Porque o gesto, a pincelada e a cor que imprimem a potência à obra, são

perdidos na reprodução, que traduz as características via processos limitados,

como já apontado por Arlindo Machado. Todavia, o artista apresenta uma fatura

que impõe a questão da possibilidade de reduplicação infinita. A imagem de

Caetano de Almeida se coloca como múltiplo dum sistema de reproduções sem

original. [fig 22 e 23]

63 KRAUSS, op. cit., p.174 64 DIDI-HUBERMAN, 2007.

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Page 70: GEMIN; DEBORAH BRUEL -  Caetano de Almeida: Injunções da alegoria na arte contemporânea

fig. 22 | Caetano de Almeida, Retratos das crianças de Eduard Holden Cruttenden, da série Exposição de Quadros, 1996, acrílica e

verniz sobre voil, 170cm x 130cm

Caetano simula que as obras não são o que são, finge que não são pinturas

pelo processo de fazê-las, finge que a tela não é outra superfície, no entanto

mostra seu chassi, que aparece na transparência do voil, pouco encoberto pela

tinta rarefeita do efeito de retícula. Elas não são réplicas, pois, não existem seus

originais, a nada se igualam. Ela nos dá obras únicas na sua simulação. Mas por

conta da relação desatenta que se tem com a cultura impressa, o artista consegue

iludir por instantes de que isto é reprodução. O processo é tão ironicamente

inverso que um mesmo slide (cópia da reprodução que o artista usa como matriz

para sua pintura) [fig.19 e 23], pode dar vazão a várias pinturas diferentes e por

esse motivo, originais. Estes trabalhos, portanto, não aludem as obras originais,

eles alegam as reproduções dessas obras, a maneira como o mundo

contemporâneo trabalha suas imagens e distribui o conhecimento artístico.

70

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fig. 23 | Caetano de Almeida, Frutas da série Exposição de quadros, 1999, acrílica e verniz sobre tecido, 110 x 135 cm.

Para discutir a questão da duplicação da imagem por outro viés e assim

propor uma abordagem mais completa deste aspecto alegórico, tem-se novamente

no trabalho de Vik Muniz um terreno fértil de questões colocadas por seus

procedimentos, que o artista empilha em camadas sobrepostas, que começam na

fotografia do objeto ou referente servindo de referência para a execução do que

chama de matriz que na última etapa é fotografada, resultando na imagem

impressa que é a obra. Portanto, a questão de Vik Muniz não é a representação do

referente, que se constrói e desconstroi nestes processos de tradução empregados

pelo artista. Ela consiste na montagem destas matérias, texturas e imagens

diversas, como restos de humanidade e memória que restauram identidades.

As matrizes, como o artista gosta de chamar, resultantes da etapa pictórica,

têm dimensões pequenas, mas que através do processo fotográfico, podem ser

aumentados, já que a obra não guarda nenhuma relação com o tamanho original.

Imagens que agigantadas ganham força. Mas seu maior poder é o resgate da

discussão ontológica da imagem fotográfica em fazer presente o seu referente. Um

acúmulo de camadas de tempos distintos e de processos: citação, apropriação e

montagem, num vai e vem da duplicação da imagem. Essa seqüência de ações

71

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requer estruturação e produção, onde as partes são agregadas e editadas,

formando uma constelação. Não por acaso, o teórico e curador Borriaud nomeia

esses processos da arte de pós-produção, numa alusão à produção

cinematográfica, que prevê edição e montagem.

fig. 24 | Vik Muniz, Still life with lemons, oranges and a cup of water, after Francisco Zurbarán, 2004, C-Print 178 x 300 cm.

Assim como Caetano de Almeida, na obra Still life with lemons, oranges and

a cup of water, after Francisco Zurbarán de 2004 [fig. 24] Vik Muniz vai à história

da arte para saquear uma imagem, num declarado entendimento de que a

compreensão da história das imagens sempre é devedora da história da arte. No

entanto para este artista a duplicação é dada a perceber, e sua criação implica em

processos de codificação e interpretação, apesar disso a visão humana assume as

verdades da imagem como sua verdade. Ele duplica Zurbarán, não para se igualar

a ele, e ainda menos para demonstrar quanto uma montagem com bolinhas, quase

reticular pode ser semelhante, mas para fazer ver que qualquer imagem por mais

transparente que seja, mesmo que remeta a presentificação de uma ausência,

ainda assim se encerra em seu ser, em sua materialidade, e todo o demais é mera

ilusão ótica dada pela imensa vontade de nossa memória visual em reconhecer

seus arquivos e dar-lhes forma.

Os dois artistas, Vik Muniz e Caetano de Almeida, são herdeiros de uma

tradição pop da Imagem, problematizando sua transformação em produto. A

retícula de impressão foi explorada na pop art por Roy Lichteinstein, cuja operação

consistia em refazer imagens inspiradas nas histórias em quadrinhos por um

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procedimento extremamente virtuoso de pintura, com um conteúdo crítico ao

modus vivendi da época. Caetano de Almeida não inaugura um novo processo ao

pintar as retículas, mas o que ele agrega ao seu processo é a duplicação das

imagens da história da arte a partir de livros ou impressos, enfatizando os

problemas dessas reproduções: alterações de cor, limitações cromáticas,

cobertura, texturas, enfim as marcas e registros das obras originais se perdem na

impressão, por características da técnica empregada. Enquanto na pop art a

questão estava relacionada às imagens de consumo do mundo capitalista, Vik

Muniz enfatiza o problema da construção das imagens da arte e sua percepção por

um olhar ajustado pela memória visual, ao passo que Caetano se concentra nas

imagens da arte e a maneira como sua história e gosto são construídos.

Caetano de Almeida encena a devolução das obras que duplica,

desmascarando o processo de reprodutibilidade da imagem, mas, justamente aí

ele cria um novo artifício: simula devolver, mas não o faz; desmascara, mas não

revela. Põe em cheque a re-apresentação, encena a desmistificação do processo

artístico, põe em questão a cópia sem original. Caetano de Almeida refaz o

artifício, que deve ser percebido pelo espectador. O outro que o duplo alega, não é

o original, posto que não há originalidade, pois o duplo não é a repetição do

idêntico, nem do semelhante, ele remete a um outro que está fora dele, que é o

mesmo, porém, diferente e que está naquilo que o espectador vai construir como

leitura. Essa duplicação é a alegoria do eterno retorno, situação inescapável e

ontológica à imagem, assumida pelo artista contemporâneo.

Assim como As madames olham ironicamente para o observador,

instigando-o a descobrir o caráter enigmático dessa pintura, e qual é o código da

obra dado no seu duplo, as obras da Exposição de Quadros, jogam com a certeza

de serem cópias sem originais. As madames também podem ser vistas como o

emblema de um sistema de produção e reprodução de um padrão (a alegoria da

pintura clássica) processado por um outro sistema de produção e reprodução de

padrão, que Caetano de Almeida institui na pintura contemporânea.65 A

reprodução da imagem e o que isso significa para a pintura contemporânea são os

assuntos deste artista, e o duplo é a alegoria do seu discurso. Caetano de Almeida

se refere ao artista contemporâneo como o novo artista, aquele que não trabalha

65 SANTOS, op. cit., p. 102.

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mais com o conceito de arte como expressão de seu eu profundo. Ele pinta como

uma máquina, e é essa contradição que cria um espaço para a reflexão.66 Espaço

dado pelo que escapa à duplicação, sua questão vai além do original e cópia,

concerne no jogo de espelhos que se faz nessa incessante repetição.

fig. 25 | Caetano de Almeida, Exposição de Quadros, galeria Luisa Strina, novembro de 1997.Foto do catálogo

Nattier pinta os retratos das mulheres que remetem aos elementos, Caetano

refaz as mulheres, que remetem aos retratos para pensarmos a pintura. A pintura

dum lugar e tempo que não evoca mais o divino pela representação, mas que

evoca a repetição e a diferença unindo-a a outra de outro lugar e outro tempo. E,

em Exposição de Quadros duplica o que não é a obra, apenas sua aparência

codificada pelos meios de reprodução, uma aparência reduzida a retículas e pixels,

novamente propondo um jogo de constatação do paradoxo da imagem, que nunca

é aquilo que alega.

Portanto, a obra acontece no momento em que o observador se dá conta do

jogo que o artista propõe, percebe a presença do enigma, e o desejo de

descoberta o leva em busca da chave deste enigma, este é o rasgo que se abre na

obra. A pintura que imita a reprodução, para um olhar mais cuidadoso, se

apresenta como metonímia fingindo ser mimese, é como a pintura de René

Magrite, cujo discurso não é narrativo, nem mimético, instaurando um jogo de

66 ALMEIDA, C. Em Entrevista a Tadeu Chiarelli, 2001

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decifração. Quando Caetano de Almeida refaz essas obras utilizando em todas o

mesmo procedimento, e as coloca todas juntas [fig 25], ele está intuindo que além

do primeiro discurso sobre o acesso a essas imagens por sua reprodução

mediada, a re-apresentação desfaz qualquer hierarquia e linearidade do

pensamento imposto pela história da arte, revelando sua vocação anacrônica.

75

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| Capítulo III | A carne da pintura ou a alegoria da arte desvelada sob a superfície da pele da pintura

O visível é a superfície de uma profundidade inesgotável.

Merleau Ponty

Desde o aparecimento do que é denominado arte, que artistas e depois

estudiosos têm tentado estabelecer regras e normas de entendimento das

estruturas formais dos trabalhos de arte, com a intenção de alcançar, compreender

ou pensar o que pode se chamar de linguagem ou código da arte. Supõe-se que

este intuito facilitaria o trabalho de artistas e ajudaria na apreensão e entendimento

das obras por seus apreciadores, não obstante as inúmeras teorias, há algo que

sempre escapa às regras e assim, a arte continua a operar sem um código fixo e

estável, sem símbolos e significados pré-estabelecidos e sem uma definição rígida

das linguagens utilizadas pelos artistas. A cada vez que no âmbito da arte forja-se

um novo regime de signos e símbolos visuais, pelo seu uso repetido acabam

sendo decodificados, e se estabelecem como normas de atuação.

Porém, os artistas incansáveis em sua busca, criam incessantemente novas

possibilidades de imagens e signos, renovando a dificuldade do entendimento e

requerendo a constante reformulação das análises dessas relações e

significações, num movimento cíclico entre fatura e pensamento. O mesmo impulso

que permite aos artistas escaparem à rigidez de regras, possibilita perscrutar a

alegoria como uma noção que trata da possibilidade de significação da arte e sua

relação com o alhures. O momento do olhar e da busca de significâncias é o

momento da alegoria e a arte ao dizer o outro o faz via às escolhas operatórias dos

artistas. Nos capítulos precedentes duas possibilidades da alegoria foram

discutidas, a primeira como procedimento, através da operação de montagem, e a

segunda como duplo, pela operação de re-apresentação. Este capítulo tentará

estabelecer um terceiro caminho, para pensar a alegoria pela discussão da

superfície da pintura, como pele que revela sua carne.

Para tanto, o raciocínio será trabalhado em quatro momentos distintos: um

primeiro que tem nos processos de dois artistas: Adriana Varejão e Nuno Ramos, a

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problematização da matéria da pintura e sua constituição, como reveladoras do

paradoxo de jamais ser o que alegam; um segundo item onde a autotelia se revela

como exemplo da discussão da carne da pintura, e o trabalho de Caetano de

Almeida dialoga com o de Dudi Maia Rosa, que constrói um corpo para sua

pintura; no terceiro tópico a carne da pintura será apresentada pela ótica de Didi-

Huberman, na leitura de alguns trabalhos da exposição Borda [2007] de Caetano

de Almeida onde a superfície se constitui como pele e a matéria como carne da

pintura. Ao último item reserva-se à discussão do campo expandido na arte

contemporânea como o espaço onde o outro alegado pela obra se faz na relação

com o espectador. Este entendido como quem percebe o enigma da obra e por

esta operação permite a sua cintilação, sem a qual ela não existiria enquanto tal.

1 | A constituição da pintura: o paradoxo de jamais ser o que alega

Dentre as características da alegoria encontra-se a apropriação, entendida

em muitos textos teóricos como um procedimento genuinamente moderno e por

conseqüência contemporâneo. No entanto, como diz Fábio Noronha1 a arte tem e

sempre teve, ao longo de sua história, em alguma medida uma atitude apropriativa.

Embora se admita esta constatação, a forma e o objeto da apropriação é que

determinam quanto esse procedimento dita o trabalho do artista contemporâneo,

ou seja, aparece como chave ou conceito para seu entendimento. A apropriação é

um dado formal assim como a escolha do tipo de pincel, cor e gesto determinam a

estrutura em uma pintura, dando-lhe sentido.

Nuno Ramos, nos trabalhos que apresentou na 5ª Bienal do Mercosul |2005|

[fig 26], em certa medida também se apropria do saber da pintura, da história da

pintura e dos materiais para construir seu trabalho, mas isso não é uma questão,

isso não determina sua poética, é um dado inerente apenas. Este artista instaura

um mundo novo na obra, não se refere a aspectos desse mundo formal exterior. O

contrário ocorre no trabalho Azulejões [fig. 27] de Adriana Varejão, onde a

apropriação aparece como questão, a partir da citação da história da pintura e da

azulejaria portuguesa. A artista se apropria dessas imagens para instaurar seu

discurso poético. Atitude igualmente importante em Caetano de Almeida, que se 1 NORONHA, entrevista a Deborah Bruel, 2005.

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apropria de imagens da história da arte para produzir seu trabalho, como visto no

capítulo anterior, na série Exposição de Quadros, cujas atitudes de apropriação e

duplicação carregam em si grande parte do conceito da obra. No entanto em cada

artista a forma em que a apropriação é utilizada indica relações dentro do trabalho

que possibilitam a presença de seu conteúdo. Desta maneira percebe-se que

essas estratégias ou procedimentos alegóricos servem inclusive a uma vontade do

artista em escapar da tradução, ou da determinação da obra como um símbolo,

estanque, temporal, fixo; eles alargam suas fronteiras, posto que permitem

interlocuções anacrônicas e paradoxais.

fig.26 | Nuno Ramos, sem título, 2005. 5ª Bienal do Mercosul. Foto: Deborah Bruel

O corpo da pintura que se revela na superfície da tela, corresponde à

presença, àquilo que está ali, que se pode perceber num primeiro olhar. A partir da

discussão de Merleau Ponty, entende-se que a carne não é a matéria no sentido

de corpúsculos do ser, mas consiste no enovelamento do visível sobre o corpo

vidente. Como não existe uma nominação filosófica para a carne, ela seria então

um ‘elemento’ do Ser, elemento que estaria num meio caminho entre o indivíduo e

a idéia.2 Aquele que se desdobra da percepção que o vidente – corpo que olha –

tem do visível – corpo que é olhado. Para este filósofo, a carne é uma noção

última (...), pensável per si, se há uma relação do visível consigo mesmo que me

2 PONTY, 2007, p. 136-141.

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atravessa e me transforma em vidente, este círculo que não faço mas que me faz,

este enrolamento do visível no visível pode atravessar e animar tanto os outros

corpos como o meu.3 A carne da arte consiste na interioridade de seu corpo, pleno

de visibilidade, ocultada pela sua superfície/pele, que é apenas o seu limite.

Adriana Varejão e Nuno Ramos são dois artistas que discutem essa

materialidade, a constituição deste corpo visível. A artista carioca usa a estética

barroca, a azulejaria portuguesa, recorre à história da arte brasileira, à história da

arte ocidental e com essa bagagem reestrutura seu discurso, opera na esteira da

pintura, da re-apresentação como montagem através da instalação, mas simula o

objeto ao qual faz referência, um trabalho de metáforas da memória4. O azulejo é

uma superfície fria, organizada, ascética, que dilacerada apresenta um corpo vivo,

pulsante, caótico e assimétrico. É o revestimento usado na arquitetura barroca de

Portugal e do Brasil, cuja pele Adriana Varejão rasga, e revelando o seu corpo faz

uma dissecação da história da matéria viva. E nesse contexto sua pintura é esta

pele que permite ser esgarçada para que se enxergue a profundidade, a entranha

escondida que sobe à superfície.

A estética barroca que faz o elo de ligação entre o povo e Deus5, é utilizada

pela artista na exposição da sua carne, ela faz a teatralidade do martírio, que

aparece presente por trás de seus azulejos, nas grossas estruturas corporais de

seus trabalhos. A sua atitude alegórica se dá no resgate da estética barroca, e

também nas citações à história e arte brasileiras como na série Varejão Acadêmico

Heróis, onde a artista usa imagens de partes de obras que representam a história

do Brasil, fragmenta sua composição e a reorganiza, numa operação de montagem

cenográfica que se encerra no registro fotográfico. Este, é também utilizado como

forma de apropriar-se dos azulejos barrocos, permitindo lhes copiar a aparência.

Percebe-se portanto que a artista, cita, apropria-se, duplica, justapõe e é na junção

desses procedimentos que sua poética se estabelece, engendra seu discurso

relacionando imagens e tempos anacrônicos, re-apresentando formas, repensando

o passado a partir do presente, e vice-versa.

3 PONTY, op.cit., p. 136. 4 VAREJÃO, Entrevista realizada para a coleção de vídeos Arte na Escola, 2004. 5 Ibid.

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fig. 27 | Adriana Varejão, Azulejões, 2000 1x1m

Atitude semelhante à utilizada por Vik Muniz, nas obras já discutidas, e

também por Caetano de Almeida nas séries Exposição de Quadros e Mundo

Plano. No entanto, enquanto Vik Muniz usa a fotografia para registrar uma

operação pictórica, Caetano de Almeida e Adriana Varejão usam a fotografia como

referência da imagem, mas operam pela construção pictórica, reforçam o poder da

ilusão imaginária6 da pintura. Suas imagens conservam a materialidade de sua

construção. Vik Muniz transforma a matéria em fotografia, resumindo-a a sua

aparência; Caetano e Adriana devolvem matéria às imagens. Para Caetano de

Almeida a discussão que importa é do corpo da imagem, sua questão é ontológica,

e por isso reconstrói a imagem impressa com um corpo de pintura. Adriana Varejão

vai além da opacidade, ela busca um corpo arqueológico, social e culturalmente

6 Para Francis Wolff a ilusão imaginária é a crença de que as imagens não são imagens, que elas são produzidas por aquilo que elas reproduzem, e nisso reside seu poder. WOLFF In: NOVAES, 2005.

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construído, não apenas pelas imagens, mas pela matéria da arquitetura e dos

corpos sociais envolvidos na história do país.

A artista usa os fragmentos e com eles discute o corpo da arte, essa matéria

que se transforma pela sua operação. Ela usa materiais que simulam outro corpo,

parece carne, mas é espuma, parece sangue, mas é tinta, parece azulejo, mas é

massa. Usando o corpo da obra Adriana Varejão recoloca a questão da matéria,

daquele que está alhures, que ela resgata do passado e recompõe com uma

estrutura psicológica. A carne da pintura segundo Didi-Huberman é a chave para o

desvio do olho, desvio que permite ao olho atravessar da superfície à profundidade

e nesse trajeto de ida e volta, nesse desvio que perfura a tela, desvenda-lo. É o

que permite o olho expandir a tela, um quadro é no solamente um tópico, sino una

dinâmica y una energética de lo vivo (lo diáfano pensado como una biologia de lo

visible).7 A obra de Adriana é tecida nas entranhas, sem dúvida, sua poética se

constitui na memória desse corpo, e problematizando a matéria plástica remete à

matéria orgânica que pertence ao humano, e à matéria inorgânica que pertence à

memória na reconstituição de uma identidade histórica e visual.

O corpo da obra de Adriana Varejão alude ao mundo da história e suas

construções, e funda uma alegoria da carne advertindo para a constituição ficcional

que o corpo da arte, e só ele, pode criar. Seu trabalho permite outras leituras

alegóricas, pois cogita questões da história social e cultural brasileira e discute

criticamente temas políticos, como a exploração dos índios e negros pela côrte

portuguesa e a questão da submissão da mulher, sempre através de imagens que

resgatam aquela estética barroca, através de suas imagens e peças decorativas,

bem como obras de artistas que retrataram aqueles momentos históricos. No

entanto a leitura alegórica por este viés histórico e do contexto, refere-se a uma

leitura tradicional da alegoria e, portanto, inadequado neste caso, onde o discurso

da matéria e da construção do corpo emerge com maior potência e permite um

entendimento mais profundo da complexidade deste trabalho.

Adriana Varejão não usa o desenho, como ferramenta de representação,

sua referência é a fotografia, projetada, ampliada, recortada e reproduzida pela

pintura. Numa operação de montagem com todos esse processos, funda uma outra

estrutura: a da obra, que imersa no espaço expositivo parecerá um fragmento de

7 DIDI-HUBERMAN, 2007, p. 41.

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outro tempo, retirado e re-significado, problematizando o corpo da arte. O que a

artista faz não é pintura sob uma ótica convencional, embora a isso se pareça,

suas características são mais escultóricas, mas o ponto de vista é quase sempre

frontal como na pintura, porém, a espessura sugere que se pode escavar, ‘cavocar’

as paredes, arrancar os azulejos para descobrir suas entranhas, para ver pulsar o

seu corpo. Arrancar sua pele e desvendar seus segredos. Seu procedimento é tão

literal ao discurso que Didi-Huberman faz da pintura como carne e pele, que é

preciso não se arrebatar por tal exatidão, para que o olhar sobre seu trabalho não

se esvazie pela simplificação, pois esta destruiria sua vocação alegórica. Mas, é

possível pensar seu corpo a partir do olhar projetado que se frustra sempre por

destruir a entidade da superfície, onde a obra funciona como a aporia da projeção.8

fig. 28 | Adriana Varejão, Ruína de Charque Chacahua, 2000.

Todo o pensamento conhecido advém de uma carne, pois ele é relação

consigo e com o mundo tanto quanto relação com outrem, é preciso sentir ou ver

para poder pensar, afirma Ponty.9 O ver desperta o desejo do toque, o tocar incita

8 DIDI-HUBERMAN, op.cit., p. 47. 9 PONTY, op. cit., p. 143.

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o olhar. A relação imbricada do visível e do tangível dos corpos, permite que a

noção de carne discutida aqui englobe esta experiência do visível, e da produção

de sentido que se engendra nos corpos destas obras. Estas massas que afetam

aquele que olha. O ver transubstancia-se no sentido tátil, porém essa

reversibilidade sempre iminente nunca é realizada de fato.10

Nuno Ramos trabalha com a matéria sob outra ótica, é um artista que

demonstra interesse nas relações que materiais distintos ou opostos possam

estabelecer, parafina e sal, mármore e vaselina, breu e carvão, pedra e espelho.

Relações de natureza: o fosco e o brilhante, a dureza e a maleabilidade, o

previsível e o incontrolável. O artista apresenta como pintura um corpo cujas

únicas analogias possíveis com as especificidades pictóricas são a frontalidade e

as relações cromáticas, o restante é autêntica montagem matérica, espacial, viva e

orgânica. Qualquer possibilidade de representação está abolida, e neste sentido

opera como os minimalistas, porém, ele é artista da experimentação, na qual a

ausência de regras é menos um desafio às normas, e mais uma maneira de

constituir a questão da criação artística. A liberdade do artista não passa por um

conhecimento artístico e sim por uma vontade espontânea de significar, através da

arte, sua perplexidade em relação ao estar no mundo. Para Tassinari, Nuno

Ramos se envolve com problemas relativos aos atos que engendram a obra, e isso

se revela no corpo em que sua obra se transforma, com todas as incoerências das

relações dos materiais instáveis, e também do peso e do tamanho aparentemente

insustentáveis.11

As obras de Nuno Ramos têm vida própria, completamente alheia ao

mundo. Ele dá vida aos objetos e pigmentos, assemelhando-os a organismos

autônomos. São seres, mas não se parecem com o humano, instalam-se entre o

humano e o mundo, e se desenvolvem segundo uma lógica própria, que não se

pode controlar. Essa estranheza radical, a força centrífuga de uma produção de

informações sempre mais acelerada e sempre mais inconsistente projeta o

espectador no vazio. O silêncio da matéria morta, des-espiritualizada, mantém o

observador em órbita. A arte de Nuno nos diz que as coisas não falam, explica

Lorenzo Mammi, seus trabalhos surgem desta fenda entre os significados e as

10 PONTY, op. cit., p. 143.. 11 Texto de Alberto Tassinari in:Fichas do Acervo: Roteiro de Visita. Disponível em: http://www.macvirtual.usp.br/mac/templates/projetos/roteiro/PDF/39.pdf. Acesso em 10 mai. 2007.

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coisas, expõem a face escondida do mundo.12 E, de maneira diferente de Adriana

Varejão ele não faz referência a conceitos que são externos à pintura, não faz

referência à história da pintura, não faz citação e sua pintura não é da ordem da

representação. As relações que ele estabelece em seus procedimentos, em sua

estrutura formal se organizam dentro do próprio corpo do trabalho. O outro desse

corpo é a própria pintura.

fig. 29 | Nuno Ramos, sem título, 2005. 5ª Bienal do Mercosul. Foto Deborah Bruel

As obras aqui apresentadas também podem ser vistas como alegorias da

pobreza, porque remetem ao resto, aos despojos de carnaval, ao lixo. Não

obstante esta alegoria do significado não seja a discussão pretendida, entende-se

que sua presença é indiscutível e está relacionada ao contexto político e social do

artista. Porém, esta leitura alegórica se refere a um atravessamento que opera pela

iconologia dos materiais utilizados e seu significado no mundo, enquanto opta-se

neste estudo perscrutar a presença alegórica pelos procedimentos que dão à

matéria outra significação.

As camadas que Nuno Ramos sobrepõe faz com que a pintura avance em

direção ao observador, um corpo que invade o seu espaço. Pode-se dizer que ele

rompe a pele/superfície da pintura empurrando seu corpo para fora. Assim, se

constitui a clave da pintura de Nuno, e a questão se coloca como um ruído, o que

12 MAMMI, 1994.

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H. Damish chama de paradigma da trança. O quadro é estruturado como uma

trança, es decir, como uma superfície a cuadros, pero cuya apariencia discontinua

sería el resultado del entrecuzamiento, en el espesor del plano de franjas

continuas, una franja arriba, una franja abajo13. As primeiras camadas de tinta e de

matéria que ele põe em sua pintura, muitas vezes nem aparecem ao final do

trabalho [fig. 29]. É impossível saber quais eram esses primeiros acréscimos.

Operação próxima à orientação de Cennino Cennini, quando sugere que camadas

tenham que ser sobrepostas para revelar a real cor da superfície da pele, e mesmo

que a cor da primeira camada não apareça interfere no resultado daquilo que

chamamos de superfície, que na verdade é composta por essa trama corpórea.14 É

aí que Didi-Huberman estabelece a relação com a pele, cuja cor e aparência, só se

dá na diáfana transparência que permite sentir o pulsar do sangue. O corpo da

pintura de Nuno Ramos é um acúmulo de carne que faz da sua superfície/pele

uma massa desmórfica, que faz pensar na arte como a capacidade desse corpo se

fazer pulsar.

A alegoria da carne aparece, portanto, de maneiras distintas nos trabalhos

destes artistas, que têm em comum a discussão do corpo da pintura. O

procedimento pictórico que cada um utiliza serve para a configuração da carne de

seu trabalho revelada na superfície/pele. Adriana Varejão constrói a carne, duplica

sua aparência, cria uma estrutura corporal densa e dramática, e na simulação

deste corpo revela um outro que é o corpo da memória, que permite um mergulho

de fora para seu interior, e esse atravessamento remete a um corpo para além da

sua pintura, criação de um mundo simulado para falar de outrem. Nuno Ramos cria

um corpo novo, onde as entranhas são sua própria pele, expõe as vísceras da

pintura, com a pele está dilacerada para fora de seu plano, seu corpo avança para

o mundo, instaura um organismo que pulsa de dentro para fora da pintura

atravessando o mundo do observador, o invade. Uma carne dum outro lugar que

se arremessa para dentro do corpo de quem se atreve a investigar suas entranhas.

Caetano de Almeida devolve um outro corpo à história da pintura através da 13 DAMISCH apud DIDI-HUBERMAN, op.cit., p. 49. 14 No escrito Il libro dell’arte C.Cennini descreve como devem ser as camadas de tinta acrescidas para que a pele tenha uma cor realista. Deve-se iniciar com um punhado de terra verde (pigmento) acrescido de branco, Sobre essa camada de verde serão acrescidos os rosados, até que a cor da pele esteja correta.Inclusive indica que para a pele dos jovens devem ser usadas as gemas de ovos postos na cidade, por serem mas pálidos que os ovos postos no campo, estes são indicados para produzir a tinta para a pele dos velhos e dos homens morenos. Para Didi-Huberman estas indicações de Cennini concebem O Encarnado. DIDI-HUBERMAN, 2007.

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discussão da pele que tem revestido essa história: a pele da reprodução. A partir

desta aparência que a pintura toma nos impressos, ele opera para resgatar-lhe

carne. Ou seja, a carne da pintura de Caetano é re-criação de um mundo

imagético, que olha para além e aquém da pintura.

2 | Pintura moderna: autotelia como discussão da carne da pintura

A alegoria foi importante em épocas quando era necessário um discurso

mais subjetivo, menos literal. Assim esteve presente nas obras religiosas,

mitológicas e históricas, e também naquelas onde o sentido moral se dava na

construção de identidades cívicas e sociais, como mitos de heróis e heroínas. Nos

períodos antigo e clássico, e no início da história moderna tem-se inúmeros artistas

cuja obra é alegórica: criam personagens, seres que personificam virtudes e

sentimentos, os quais através da representação dizem aquilo que materialmente

não existe, ou que nunca foi testemunhado; figuras que, por exemplo, se referem à

deusa Afrodite ou à Liberdade. Alegorias do transcendente, onde a imaginação era

o mais importante para criar as cenas que ligassem o homem ao sagrado ou ao

seu passado, ou seja, ao inalcançável. Explorando a imagem como representação.

Porém, tanto para a arte neoclássica como para o Modernismo de

Greenberg a idéia da alegoria era inadmissível. Na primeira, porque a alegoria

enquanto representação do transcendente está distante da representação

naturalista idealizada, e no segundo porque a alegoria era entendida como

antitética à especificidade da pintura, que descartava qualquer possibilidade

mimética. Todo o saber científico da idade moderna indica o conhecimento

específico das diversas ciências, e a arte do final do século XIX e início do século

XX, influenciada por essa maneira de investigar o mundo, se debruça em suas

especificidades; procura-se desvendar cada linguagem artística, e nesse sentido

nega-se qualquer possibilidade alegórica. A busca de verdades específicas e da

pretensa originalidade da arte não consente a existência da alegoria, justamente

porque sua presença denunciaria a precariedade das verdades estanques do

pensamento Modernista. Todavia, a auto-referência pretendida se dá de maneira

incompleta, ou melhor, fragmentada, o trabalho, mesmo que genuinamente auto-

referente, sem nenhum traço narrativo ou figural, ainda assim diz algum aspecto

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dum outro – a sua categoria artística – que é muito mais amplo e complexo. A

pintura moderna trabalha, de acordo com Rosalind Krauss, sobre o paradoxo da

retícula, e não consegue escapar da dualidade formalista x ficcional da arte. Pois,

enquanto a retícula indica um materialismo, projetando a pintura em si, os artistas

que a utilizavam, como Mondrian e Malevich, falavam do Ser, do Conhecimento e

do Espírito. Para eles aquela forma reticular era a escada que levava ao Universal,

não lhes interessava o concreto, a matéria, esta era apenas um caminho de

construção.15

Para Craig Owens por muito tempo aceitou-se a idéia de que alegoria e

modernismo são antitéticos, muito mais por uma falta da teoria em aceitar a

alegoria existente no modernismo, do que propriamente por sua ausência em

trabalhos modernos.16 E também, como pondera Krauss, porque a originalidade

almejada pelas vanguardas, previa um início desde um ponto zero, uma origem

literal, como um nascimento do novo, e todo o resto incluindo a alegoria,

pertenciam ao passado, que se pretendia abandonar.17 O que se verifica é que o

rompimento com a tradição almejado no início do século XX não aconteceu

plenamente e as mudanças foram ocorrendo de maneira anacrônica, ou seja,

compondo e assimilando as diferentes temporalidades, refeitas pelas apropriações,

citações e montagens. No lugar de inovação ou avanço, tem-se uma sobrevivência

de aspectos e características, e uma permanência de fragmentos do passado que

reestruturam o presente. Questões fundamentais ao pensamento de Walter

Benjamin, não reconhecido pelos seus contemporâneos, dentre os quais

prevalecia uma refuta a toda e qualquer possibilidade de aceitação da arte como

algo que representasse um outro fora dela. Numa preservação de sua autonomia,

a retícula emblema da arte moderna, nega à pintura qualquer possibilidade

narrativa, e entrincheira as artes visuais na esfera da pura visualidade18, motivo

pelo qual não deixa espaço para a discussão da alegoria.

Numa reflexão mais cuidadosa pode-se perceber que assim como a

autonomia almejada não foi soberana, a alegoria não esteve ausente. O

pensamento de Walter Benjamin e a obra de Baudelaire são exemplos desta

presença, duas figuras importantes para a discussão da alegoria na modernidade, 15 KRAUSS, op.cit., p.24 a 27. 16 OWENS, 2004, p 120 17 KRAUSS, op.cit., p. 171 18 Ibid, p. 23.

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num situando o artista e noutro o teórico.19 O poeta francês, ao revés das

tendências literárias de seu tempo, usa a alegoria para falar da decadência da vida

moderna. A relevância dos pensamentos do teórico alemão está justamente no

deslocamento que incide sobre o conceito de história e na preocupação em negar

a linearidade do pensamento – através de uma nova noção de tempo como

intempestivo, em que a construção histórica se dá por discursos fragmentados e

alegóricos.

As colagens cubistas e dadás são presenças alegóricas na modernidade,

por uma ótica dos procedimentos, como já foi discutido no primeiro capítulo, no

entanto, estes também foram ignorados pela crítica Modernista20, que foi altamente

seletiva em suas explicações da arte moderna. Era constante a presença das

‘outras’,(...) mas elas eram continuamente marginalizadas pela crítica Modernista:

o trabalho dos dadaístas, avanços da fotomontagem nos anos 20 e o

construtivismo russo, por exemplo.21 Além da evidência destes procedimentos

genuinamente alegóricos presentes nestes trabalhos, uma discussão que vale

retomar é a questão da alegoria, nas pinturas Modernistas que se pretendem

autônomas, originais e auto-referentes. Talvez em nenhum outro momento

histórico a questão da especificidade tenha sido pensada tão profundamente,

permitindo encontrar aí o maior exemplo da constituição de um corpo de pintura, e

sua própria carne.

A ampla discussão de suas especificidades fez da pintura Modernista e sua

antropofagia o cerne da questão da pintura que perdura e se reflete até hoje

naqueles artistas que fazem da pintura o seu mote. A angústia de Frenhofer pode

ser claramente imputada à Cezzane, mas também à Mondrian, De Konning,

Pollock, e outros, como a busca incansável pela pintura verdadeira, àquela que

respondesse todas as questões impostas aos pintores pela linguagem planar. A

pintura tratada como superfície pela pintura Modernista, esconde sob sua pele as

entranhas e a carne, nas questões caras a seus artistas: sua poiésis, seu outro,

suas alegorias. Artistas que buscam na auto-referência e na excelência formal de 19 OWENS, op.cit., p 121 20 Usa-se aqui o Modernismo com m maiúsculo para se referir à tradição crítica associada a Greenberg, e com m minúsculo para se referir de maneira mais ou menos neutra à propriedade de ser moderno, tais definições e modos de escrita estão emprestados do livro Modernismo em Disputa, capitulo 3 de Charles Harrison e Paul Wood, onde os autores discutem a consolidação do Modernismo como paradigma teórico no início dos anos 60 e seu abandono ao final desta mesma década. p 170. 21 WOOD, op.cit., p. 185.

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seus trabalhos ir além do seu sentido semântico e sensível, criando novas formas,

novos signos visuais para tratar das questões humanas. Por se oporem à narrativa

negavam ser alegóricos como toda a arte Modernista, pois relacionavam a alegoria

à possibilidade narrativa, quando ela está relacionada ao discurso, ao conceito.

Este que na arte clássica é dado pela estética da representação narrativa, mas na

arte moderna pela estética da abstração formalista, e na arte contemporânea pela

estética da produção conceitual via seus procedimentos operatórios. O que se quer

dizer aqui, é que a forma da alegoria se fazer presente é que mudou, e que seu

conceito esteve por muito tempo atrelado à narrativa, mas que na arte moderna e

contemporânea Benjamin delegou esta tarefa aos procedimentos, que indicam os

conceitos da obra.

Nesse sentido arrisca-se dizer que a alegoria das vanguardas Modernistas

está na sua intenção tautológica, a busca pela opacidade de sua superfície, alega

sua transparência, sendo a revelação de sua carne. A alegoria ali se instala, de

maneira diversa, não mais pela representação, pela narrativa, mas pelo discurso,

que se dá no escavar suas entranhas. A obra moderna pretende-se autônoma,

referindo-se a si mesma, instituindo a grade reticular como sua forma. Porém, a

retícula além de ser um fragmento de um tecido infinitamente maior22, se constitui

como uma ficção do caráter originário da superfície do quadro, projetada, certamente , sobre a mesma superfície que representa, mas segue sendo uma figura, uma imagem de certos aspectos do objeto ‘originário’: mediante sua trama, cria uma imagem na infraestrutura entrelaçada da tela; mediante sua rede de coordenadas, organiza uma metáfora para a geometria plana do campo; mediante sua repetição, configura a extensão de uma continuidade lateral. Portanto, a retícula não revela a superfície, colocando-a a descoberto, e sim a vela mediante uma repetição .23

Os artistas modernos discutem as linguagens e suas categorias: o plano da

pintura, o espaço da escultura, e nessa autofagia, revela-se a mesma angústia de

Frenhofer, a busca pelo inalcançável, a Catherine Lescault da arte moderna é a

revelação de sua carne. Percebe-se, no entanto, que as questões dos artistas com

relação às técnicas pictóricas remontam à constituição da pintura em seus

aspectos materiais, para os clássicos: como dizer a cor do céu com tinta e cor,

como dar expressão a uma face com o gesto que se revela no pincel; para os

22 KRAUSS, op.cit., p. 33. 23 Ibid, p. 175.

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modernos: como dizer a planaridade da pintura, suas texturas e seus contrastes,

como fazer dessa constituição uma linguagem universal; enfim a constituição da

pintura se dá pela forma como o artista opera e as relações que estabelece com os

materiais de que dispõe, sem contudo se transformar no que alega. O personagem

de Balzac pode ser entendido como a alegoria da angústia do pintor, ou do artista,

que espera por seu gênio alcançar o outro, ou seja, espera que sua obra não seja

mais o meio, o espelho, a janela, o duplo, que ela possa encarnar a coisa mesma,

ser tomada como tal, e, como produto de sua genialidade torná-la tangível,

sensível e possuída, pois pertence ao artista. Sua paixão é sua ruína. O artista

modernista, busca através da auto-referência alcançar o inalcançável, a pintura

absoluta, produzindo uma pintura autofágica, que para dentro e para fora de seu

corpo se encerra em si mesma. Esta pintura que se pretende absoluta frustra

sempre a intenção, já que o desejo nunca se satisfaz, pois, o absoluto almejado

transpõe a matéria e se coloca no âmbito mais geral da pintura enquanto

linguagem e não, enquanto coisa.

Um exemplo emblemático da discussão da carne da pintura pelo viés auto-

referencial é o artista brasileiro Dudi Maia Rosa, cujas pinturas são a própria

constituição de seu corpo e sua pele, suas questões dizem respeito à forma

pictórica. A carne da sua pintura problematiza a carne da pintura. Nas palavras do

artista: construo um objeto que é, ele mesmo, uma reflexão materializada sobre o

pintar. Toda a ação (...) ocorre por trás da obra ou em seu interior.24 Ele une a uma

prática alheia à pintura -...construo um objeto...- uma discussão sobre o fazer

pictórico, faz questão de revelar seu processo, deixando a carne de sua pintura à

mostra.

Neste momento, interessa o procedimento operatório de execução dessas

pinturas, que se dá ao revés, ou seja, o artista não acrescenta tinta sobre o plano

do suporte, ele o constrói a partir de seu exterior, a partir da superfície da pintura,

que ficará exposta, próxima ao espectador. Inicia na pele pictórica e vai

acrescentando camadas para dentro do corpo da pintura, e tudo se constrói dali.

Dudi Maia Rosa não pinta sobre um suporte, chassi e tela, ele os constrói com o

mesmo material com que pinta. O corpo da sua pintura é todo um corpo só, as

camadas de resina se fundem e se moldam a uma aparência de pintura. Difere do

24 ROSA, Dudi Maia, texto disponível em http://www.britocimino.com.br/dudimaiarosa.html. Acesso em 18 mar. 2008.

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processo de Caetano de Almeida, que acrescenta camadas de tinta sobre a tela,

sobre o suporte, formando seu mosaico compositivo para fora da pintura, Dudi

Maia Rosa sobrepõe camadas, que começam na pintura e terminam no chassi, ou

suporte, é o próprio corpo que sustenta a obra, que contém desde sua estrutura,

sua carne até sua superfície, tudo feito na mesma operação.

fig. 30 | Dudi Maia Rosa, sem título, 2005. Resina poliéster e fibra de vidro com pigmento, 200 x 200 cm.

Ele não trata a pintura apenas como superfície, procura desvendar suas

entranhas, faz a construção pelo seu interior, e deixa à mostra, na matéria

transparente, o que se esconde dentro de seu corpo. A figura que aparece colorida

no primeiro plano, em vez de identificar a obra ou aquilo diante do qual nos colocamos, mostra um silêncio. Naquilo em que confiaríamos um esclarecimento, encontramos uma transparência que é, paradoxalmente, o próprio assunto em questão: o caráter não localizado, atemporal e inexplicável que a arte pode trazer. No entanto, é a partir dele que nos percebemos diante da obra que, por sua vez, só se realiza inteiramente ao deixar ver uma interioridade que a faz semelhante a quem a vê.25

Assim Dudi Maia impõe questões do ser da pintura, e o faz utilizando

materiais e operações estranhas a esta linguagem. Pelo prisma Modernista sua 25 ROSA, Dudi Maia, texto disponível em http://www.britocimino.com.br/dudimaiarosa.html. Acesso em 18 mar. 2008.

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operação seria completamente condenável, já que constrói um objeto, o que

configuraria uma especificidade da escultura, mas os conceitos com que trabalha

são obviamente pertinentes à constituição matérica da pintura. E esta inversão

coloca seu trabalho muito à vontade nas questões contemporâneas.

fig. 31 | Dudi Maia Rosa, sem título, 2003. Resina poliéster, fibra de vidro e pigmento, 200 x 200 x 6 cm.

As pinturas de Dudi impõem sua presença com a qual o espectador se

depara e estabelece um diálogo de corpos, a pele das pinturas está à mostra, e

permite que se veja seu interior. As formas que utiliza são pequenas armadilhas

que seduzem o olho para que este se aproxime e descubra o seu corpo. Em

Caetano de Almeida, tem-se uma discussão da pele como a imagem, como aquilo

que o olho vê e percebe, em Dudi Maia Rosa, tem-se uma provocação para os

sentidos da imagem enquanto forma física, ocupante do espaço, e constituída por

camadas. Nos trabalhos da série Borda de Caetano de Almeida, discutidos no

próximo item, a capacidade ilusória da imagem é indiscutivelmente o chamariz da

obra, é sedutora, e rapta o espectador para a percepção crítica que impõe a

pintura. Em Dudi Maia Rosa, a aparência cativa não por sua capacidade

representativa, mas por seu aspecto material plástico e distante da idéia de pintura

enraizada na memória pictórica. O corpo não-pictórico de Dudi Maia Rosa é a

alegoria do corpo da pintura.

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3 | A exposição Borda: desfazendo a trama para revelar a carne

Nos trabalhos mais recentes de Caetano de Almeida presentes na

exposição Borda, realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 2007, o

artista apresenta pinturas que simulam tecidos através de camadas de fios de tinta

que se interlaçam tecendo a superfície, compondo uma trama que aparece de

maneira quase literal. Esta fatura de Caetano de Almeida ironiza a produção e o

aparato tecnológico, tornando a pintura quase imperceptível, e mantendo um

artifício onde a impressão da execução mecânica somente é desmentida quando o

olhar se aproxima demasiadamente dos trabalhos, e percebe na observação das

bordas que se trata de pintura no sentido mais tradicional do termo, produzida pela

sobreposição de camadas de tinta, virtuosamente colocadas pela mão do artista.

Assim como nas retículas da série Exposição de Quadros, o artista tange a

questão do imaginário visual e da História da Arte, e segundo Ivo Mesquita

questiona os paradigmas do Modernismo e aponta a falência de suas utopias.26

Aqui, o artista procura interpretar a realidade de reprodução como específica forma

de percepção da Pintura, e de admiti-la como motivo de novas definições e

descobertas pictóricas.27

O caráter intimista do trabalho demonstra a intenção em aproximar o

observador da pintura, ele quer lhe revelar os segredos, quer seus truques

descobertos, o mistério está ali para ser desvendado: a falácia da imagem, a

superficialidade aparente da arte. Atitude semelhante à de Porbus e Poussin no

conto de Balzac, quando dizem a Frenhofer que sua obra mestra não é nada além

de um muro de pintura28, Caetano de Almeida mostra a pintura como possibilidade

de mimese, de simulação, convida o olhar para as extremidades que desvelam a

fatura na supressão do acabamento. Em alguns trabalhos como Oferenda |2007| e

sem título |2006|, que estavam na entrada da exposição, a trama é tão detalhada

que o tecido quase se faz presente. Assim como a cortina que Parrácio apresentou

a Zêuxis, a sensação ilusória dessas pinturas permite toma-las por trompe-l’oeils,

pois encenam as tramas do tecido esticadas adaptando-se sobre o chassi da 26 Retirado do texto de Ivo Mesquita para a Exposição Borda, na Pinacoteca do Estado de São Paulo em agosto de 2007. 27 STEMPEL, 1997, p.09. 28 DIDI-HUBERMAN, op. cit., p 198.

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estrutura retangular do papel. As pinturas são maleáveis, ou seja, a aparência da

imagem simula a maleabilidade do tecido, ele falseia e consegue o resultado de

iludir. A trama pictórica está posta sobre papel, material frágil, que quase

desaparece sob estes tecidos ricos em estampas e detalhes. E justamente por sua

espessura irrisória, o papel contribui para a percepção de sua urdidura.

fig. 32 | Caetano de Almeida, Exposição Borda, Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2007, acrílica sobre papel. Foto: Maria

Bernadete Amorim.

Caetano de Almeida, no entanto, usa o efeito como um trompe-l’oeil para

seduzir o olho, que se aproxima e neste movimento, as pinturas devolvem ao olhar,

como numa cintilação, o truque que as concebeu, num efeito de retorno e

retrocesso, o que Didi-Huberman chama de princípio de mirada,(...) o que vemos é

o que nos olha. Na devolução da mirada as pinturas expõem seu ser, sua carne.

As bordas dessas pinturas deixam a pele à mostra, como um corpo que foi

fragmentado e deixa sua ferida exposta. Não por acaso, a pele que recobre o

corpo humano é também chamada de tecido, e neste sentido a pele da tecitura de

Caetano de Almeida provoca uma identificação, uma empatia entre corpos. Suas

tramas revelam-se para além de seu muro de pintura. Em alguns trabalhos o artista

fez buracos, que ora atravessam toda a pintura e deixam a parede aparecer, como

um túnel do tempo que devolve o observador à realidade, e ora são aberturas da

camada pictórica que mostram o papel, branco, incólume, intocado, inerte, sem a

tinta que os faz pulsar.

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Page 95: GEMIN; DEBORAH BRUEL -  Caetano de Almeida: Injunções da alegoria na arte contemporânea

fig. 33 | Caetano de Almeida, sem título, 2007, da Exposição Borda,

acrílica sobre papel. Foto: Maria Bernadete Amorim.

Buracos que abrem uma discussão diversa de Lucio Fontana em seus

rasgos, cuja preocupação era da autonomia da pintura moderna. Buracos que

remetem à discussão do espaço e tempo que retorna na arte contemporânea.

Aberturas que escancaram o plano pictórico ilusório da pintura. Não é a trama do

tecido seu assunto, nem mesmo a aparência representativa dessa imagem em si,

que interessa, mas estes trabalhos se referem à tradição da pintura, e neste

sentido alegam o corpo que a constitui. La piel é o outro dessa pintura, e segundo

Didi-Huberman os pintores invocam a carne para dizer a superfície, seu fantasma,

que engendra e divide a obra, entre o interior do corpo, o encarnado, e a branca

superfície da pele29. O fantasma da pintura, La piel, é a superfície com o que

Caetano de Almeida trabalha, ele a trata como uma maquiagem, uma aparência,

atrás da qual nada se esconde; Mas, para Didi-Huberman essa superfície não é

plana e opaca, e traz o conceito de Lucidezza de Dolce, para dizer que a cor não

está na superfície dos corpos, mas no diáfano que os atravessa, e o diáfano é a

interpenetração que se atualiza no limite do corpo30. Desta maneira pode-se intuir

que Caetano de Almeida aposta no potencial de cintilação da pintura.

29 DIDI-HUBERMAN, op.cit., p. 33. 30 Ibid., p 33-34. Para Dolce limite é diferente de superfície. A superfície é uma coisa separada do corpo e, portanto opaca, já o limite é a borda faz parte do corpo e portanto possui o que ele chama de lucidezza, e a cor acontece nesse atravessamento diáfano.

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Questão presente em outros trabalhos deste artista como as pinturas da

série Exposição de Quadros, discutidas no segundo capítulo, que também se

constituem como trama corpórea e revelam sua superfície como o fantasma de La

piel, quando apresentam e

retratam o trabalho manual e minucioso da distribuição de formas pontilhadas sobre tecido, em nova disposição de detalhes familiares, apropriados de obras já consagradas da História da Arte. Devido aos pontos estourados da reprodução, que abrem espaço à luz e à transparência do tecido usado como suporte da sua pintura, vê-se nitidamente o esqueleto do chassi através da superfície delicada que se sobressai como pele.31

A transparência da pele revelada no tecido voil, a precariedade da superfície

da pintura como aparência, a escolha desse tecido, fino, frágil, transparente, que

revela deixa a fragilidade da pintura à mostra. É mais do que uma escolha estética

é uma decisão pontual do problema ontológico da pintura, da questão da sua

carne, sua constituição e aparência. A fatura e urdidura de seus trabalhos

convertem-se numa auto-análise da pintura e seu poder de reverberação . A noção de superfície pode parecer confusa, principalmente no que diz

respeito à cor, pois pode se referir ao plano, à tela ou apenas à película que os

reveste, sendo assim, a tinta é tanto a superfície como está sobre a superfície,

seus limites que se confundem. No texto para a exposição A Estrutura da Cor,

1971, Márcia Tucker se refere aos trabalhos de Rothko, afirmando que é

impossível separar a cor do modo como ela foi aplicada à superfície, e sobre Helen

Frankenthaler, o fato da sua cor não estar ‘sobre’, mas ‘dentro’ da superfície.32 O

que acontece em Nuno Ramos, onde a cor é a própria constituição do corpo, não

está sobre a superfície, é ela, sua entranha, sua carne. Já em Adriana Varejão, a

cor é aplicada sobre a matéria plástica, forja ser a própria carne, ilude o olhar,

opera na clave da simulação, constrói uma carne que não é ela mesma, remete a

um outro corpo. Através de processos operatórios diversos, estes artistas, geram

com seus trabalhos uma tensão entre suporte, plano e superfície; uma

desestabilização do depósito do pigmento e do significante, o que faz pensar na

problemática de Un-en-el-Outro.33

31 STEMPEL, op.cit., p 9. 32 TUCKER, in: BATTOCK, 1975.p. 270.Grifo da autora. 33 DIDI-HUBERMAN, op.cit., p 48.

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A angústia de Frenhofer, o mestre de Balzac, consiste na problemática da

carne da pintura, questão que impele artistas em busca de resposta às suas

indagações. O que pode ser encontrado nos buracos de Caetano de Almeida, e

nos rasgos de Adriana varejão. Também presente no buraco da tela de

Bruneleschi, que segundo Damish, provoca um sentido de tabularidade, onde

mesmo de maneiras diferentes trata-se de indicar ao quadro seu pleno valor de

idealidade, ou seja, sua dimensão e espessura paradoxais.34 Paradoxo que se

refere ao quadro como subjetio ambíguo: pois se mostra ao outro sob seu olhar ou

dissimula a si sob seu olhar.

O quadro funciona como uma aporia de la proyeción, que destrói a entidade

da superfície e a frustra sempre. A pintura reencarna na atualidade, desprendida

da matéria que a caracteriza e pousa de modo indelével porém reconhecível.35

São obras que para Angélica de Moraes resgatam a memória de um fazer e

principalmente de um pensar pictórico, plasmados em superfícies pintadas que

atravessaram os séculos até nós, uma memória que aciona mecanismos de

associação e leitura diacrônica, capazes de infundir alma e densidade ancestrais

mesmo a expressões visuais nos novos meios digitais.36 Essa potência de ser, é o

que ela chama de tributo a algo imortal que se reconhece como a carne da pintura,

que não se mantém à mesma maneira, mas que reencarna na arte

contemporânea, e se percebe nas pulsações e cintilações do passado: o coração

da arte que pulsa.

Nos trabalhos dos artistas aqui discutidos, não há desapego pela

sensualidade da matéria, ela se transubstancia, evola-se num corpo para existir

num outro como pintura reencarnada.37 Não à maneira de Angélica de Morais, mas

por aproximações e afastamentos dos processos utilizados. A alegoria da carne

remete ao que dá vida ao objeto artístico, à possibilidade de falar das coisas pelo

corpo da arte, que nunca as acessa realmente, mas as alega pelo seu poder de

pulsação anacrônica, tornando-se um outro. Cintilação, que o discurso verbal não

consegue traduzir, e neste sentido propõe-se o conceito de alegoria da carne,

como aquele que se aproxima mais dessa significação.

34 DAMISH apud DIDI-HUBERMAN, op.cit., p. 49. 35 Ibid. 36 MORAES, 2005, p. 19. 37 Ibid, p. 27.

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Caetano de Almeida entende essa concepção quando na série Borda revela

seu procedimento, mostrando que a tecitura urdida pela mão do artista, não é da

mesma ordem da tecelagem. E, quando pela visualidade de suas obras, discute o

quanto o olhar é construção. Borda refere-se ao limite entre o espectador e a obra,

de onde se podem observar e questionar espaços desconhecidos; além de

demonstrar a relatividade dos axiomas frente aos problemas pictóricos. Porém, as

palavras não dão conta do discurso que se impõe para pensar a imagem da arte,

para o qual a obra de Caetano de Almeida se dirige. A obra fala nos seus termos,

instaurando um rasgo ao qual o espectador vai de encontro. E a alegoria pensada

pelo viés dos procedimentos permite entender que a definição de dicionários de

tradução dos aspectos formais, simbólicos ou sensíveis da arte, somente limita seu

entendimento, diminuindo sua capacidade de reverberação e reflexão. Portanto

estas reflexões, não ambicionam estabelecer uma significação única e

convencional, ou criar uma iconologia da alegoria para a arte contemporânea, mas

identificar modos de sua presença e investigar suas possibilidades, ampliando os

caminhos para a discussão da arte atual.

4 | O campo expandido e sua relação com o outro

A obra de arte existe em função do outro: o olhar do espectador38, sem ele a

obra não teria razão de existir. É a ele que a obra se dirige e seu papel, nesta

complexa relação, teve no decorrer da história inúmeras nuances. A atitude mais

tradicional, mas nem por isso menos necessária, ainda nos dias de hoje, é a

contemplativa, cuja etimologia remonta à relação com o religioso e místico, e que

inegavelmente é a respeitosa atitude esperada para uma arte única, aurática,

original, inimitável e irreproduzível, defendida nos últimos séculos por uma visão de

mundo evolutiva e crente. No entanto, o que se espera do espectador desde que a

fruição estética passou a ser imprudente para a grande arte, é uma postura crítica,

inteligível, participativa, interativa, e etc. A arte mais engajada e ativista dos anos

60 e 70 encarou a passividade contemplativa por uma ótica unívoca em relação à

arte moderna. Pois, na arte Modernista foi priorizada uma leitura muito específica,

restrita às questões formais que pressupõem observações de sua visualidade, 38 A definição de olhar aqui entendida de maneira bastante ampla abrangendo toda a experiência fenomenológica, psíquica e intelectual que uma obra de arte possa oferecer.

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ignorando outras possibilidades de fruição da obra moderna, e a arte que a ela se

seguiu, em resposta a seus dogmas, entendeu que todo o espectador anterior

havia sido um contemplador passivo.

No entanto essa presumida passividade como lugar-comum das formas de

arte supostamente pós-modernistas39 entende contemplação por uma visão

estreita e discriminatória. Wood e Harrison propõem em resposta aos dois tipos de

espectador, – que entendem como dois estereótipos ficcionais, apesar de terem

cada um seus fundamentos, o contemplador Modernista de Michael Fried, e o

espectador ativo requerido pelos pós-modernistas –, um terceiro tipo, que chamam

de um espectador propriamente ‘pós-modernista’, que contempla a arte no tempo,

toma consciência de sua posição no mundo e, com isso, é levado a refletir sobre

sua própria inserção na história.40 Um espectador para uma arte que lança

fundamentos para uma ação crítica, ou seja: uma obra provoca, serve como

dispositivo. Este é o espectador que desvenda a obra, frui seu sistema, alinhava

seus nós. A única ressalva a esta definição dos dois teóricos está na ênfase de

uma visão evolutiva, que entende o espectador de Nattier mais passivo e alheio às

questões do artista, e um espectador de Gerhard Richter, mais ativo e crítico

apenas por viver em outro tempo. Não está se afirmando que tudo se equivale,

mas que a obra de arte, independente de seu tempo, sempre exigiu de seu

espectador esforços no sentido de decifrar seus enigmas, sejam eles de ordem

formal, mística, política ou alegórica. E, também se entende que contemplação não

é sinônimo de passividade, como muito se tem afirmado, a interatividade está

presente tanto em ações e gestos exigidos do observador, quanto na formulação

de pensamento que a obra como dispositivo pode desencadear. Portanto o outro

que a obra alega está neste interstício entre o dispositivo/obra e o

pensamento/observador.

Campo expandido é este espaço necessário para que a obra aconteça, não

apenas aquele que está fora da obra no espaço do espectador, mas este que se

forma entre um e outro. Este interstício é o lienzo de Didi-Hubermann, entendido

como aquilo que se dá no movimento de aproximação e distância, entre

observador e obra, entre sujeito e objeto, entre o olho e o corpo. Olhar que

atravessa o muro de pintura/pele, para enxergar para dentro do corpo. A tela, o

39 WOOD, 1998, p. 250. 40 Ibid.

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plano de pintura é em primeiro lugar para Didi-Hubermann a iminência (o não, o

ainda não) de um instante alucinatório do quadro, el lienzo sería la condición de

posibilidad pictórica de una alucinación del ‘soma’, el cuerpo, en el ‘sema’, la

figurabilidad. No entanto a pintura segue sendo pintura, não se metamorfoseia em

coisa, é uma meia metamorfose, ainda que seja em sua dimensão máxima ou de

uma extrema tensão. Para o autor se trata de um acontecimento da pintura, um

debater-se sobre a tela, se trata de um efeito de pintura que ocorre entre la

evidencia de la formalidad del plano y la evidencia de una certidumbre alucinatória

de la piel (...) almocárabe fundamental de un espacio delantero (praeses), el plano

del cuadro, y de una temporalidad de la inminencia ‘precipitada’ (praeses) que

aparece y desaparece. El lienzo no es más que un puro sintoma de pintura.41

Sendo praesens o que está a vista, visível, imediatamente presente. Portanto o

paradigma do lienzo é o nunca ser o que enuncia, na obra mestra de Frenhofer o

efeito do lienzo se apresenta como o anúncio de um corpo feminino que não se

manifesta através de algo que se manifesta, por exemplo, o muro de pintura42

A imagem da arte é dialética, já afirmava Benjamin, uma imagem capaz de

se lembrar sem imitar, capaz de repor em jogo e de criticar o que ela fora capaz de

repor em jogo. Uma imagem nunca é simples, mesmo a mais simples imagem não

dá a perceber algo que se esgotaria no que é visto, e mesmo no que diria o que é

visto43, discute Didi-Huberman sobre a tautologia do trabalho de Tony Smith, e

propõe que a imagem só existe: a pensar radicalmente para além do princípio de

superfície; a pensar radicalmente para além da oposição canônica do visível e do

legível; Só há imagem a pensar radicalmente para além do princípio da visibilidade,

ou seja, para além da oposição canônica – espontânea, impensada – do visível e

do invisível44; de onde conclui: Só podemos dizer tautologicamente ‘Vejo o que

vejo’ se recusarmos à imagem o poder de impor sua visualidade como uma

abertura, uma perda – ainda que momentânea – praticada no espaço de nossa

certeza visível a seu respeito. E é exatamente daí que a imagem se torna capaz de

nos olhar.45 Como um simples cubo pode inquietar o nosso olhar? Neste caso o

que vemos, não é só o que vemos, apesar de sua especificidade formal, seu 41 DIDI-HUBERMAN, op.cit. p. 72. 42 Ibid, p. 75.(tradução nossa) 43 Id., 1998, p. 95. 44 Ibid, p. 105. 45 Ibid, No capítulo A dialética do visual ou o jogo do esvaziamento , o autor discorre sobre a capacidade de transfiguração da imagem, e como ela nos faz pensar.p. 87.

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caráter tautológico. É sim, uma imagem dialética: portadora de uma latência e uma

energética. O nosso olhar é inquietado pela noção de jogo, quando o jogo supõe

ou engendra um poder próprio do lugar46. Essa notação do pensamento da

imagem se dá no afastamento, só à distância é possível vê-la, é preciso não a ter,

perdê-la para então a ter somente pelo que aparenta, mas por aquilo que é ou que

se dá a ser.

Esse jogo dialético é sempre jogado pelo observador, por aquele que vê e é

olhado pela obra, ver também é movimento, ver é sempre ver à distância, mas

deixando a distância devolver aquilo que ela tira. Para Blanchot ver é servir-se da

separação, (...) como meio de imediação, da distância como i-mediadora. Neste

sentido ver é ter a experiência do contínuo. Toda visão é visão de conjunto nunca

se vê uma coisa só.47 Para Didi-Huberman as imagens da arte ainda que simples

sabem apresentar a dialética visual desse jogo no qual soubemos (mas

esquecemos de) inquietar nossa visão e inventar lugares para essa inquietude. As

imagens da arte sabem produzir uma poética da ‘representabilidade’ ou da

‘figurabilidade’ capaz de ‘substituir’ o aspecto regressivo notado por Freud a

propósito do sonho, e de constituir essa ‘substituição’ em uma exuberância

rigorosa do pensamento.48 Portanto é esse jogo da imagem que provoca o

pensamento, jogo que a palavra é incapaz de dizer e que se faz na relação

estabelecida entre obra e observador, nesta ida e volta, na aproximação e

afastamento, no fechar o olho para ver e no calar para dizer a que outro a obra

remete.

Em Caetano de Almeida o outro que o duplo alega na série Exposição de

Quadros não é o original, posto que não há originalidade, pois o duplo não é a

repetição do idêntico, nem do semelhante, ele remete a um outro que está fora

dele, que está naquilo que o espectador vai construir como reflexão. Portanto, o

duplo alega o espectador enquanto parte integrante da obra, que vai fundar

sempre o novo na fenda que se abre da sua relação com a obra. Assim como As

Madames olham ironicamente para o observador, instigando-o a descobrir o

caráter enigmático dessa pintura e qual é o código da obra dado no seu duplo, as

obras da Exposição de Quadros lançam ao espectador a certeza de serem cópias

46 DIDI-HUBERMAN, 1998, p.87. 47 BLANCHOT, 2001, p. 67. 48 DIDI-HUBERMAN, op. cit., p.97.

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sem originais. As madames também podem ser vistas como o emblema de um

sistema de produção e reprodução de um padrão (a alegoria da pintura clássica)

processado por um outro sistema de produção e reprodução de padrão, que

Caetano de Almeida institui na pintura contemporânea.49

O observador é aquele que ao se dar conta do jogo que o artista propõe, faz

com que o enigma da obra se complete e que o outro se revele. Uma pintura que

imita a reprodução, que num olhar mais cuidadoso, se apresenta como metonímia

fingindo ser mimese, é como a pintura de René Magrite, cujo discurso não é

narrativo, nem mimético, instaura um jogo de decifração. Quando Caetano de

Almeida refaz as obras pelo mesmo procedimento que as originou, a pintura, e as

coloca todas juntas, ele está intuindo que além do primeiro discurso sobre o

acesso a essas imagens por sua reprodução mediada, a re-apresentação desfaz

qualquer hierarquia e linearidade do pensamento imposto pela história da arte. Nos

trabalhos da série Mundo Plano o mesmo se requisita do observador, sua atenção

e memória, mas principalmente sua perspicácia em não se perder nos quebra-

cabeças das pinturas como pictografias da história da pintura moderna aparente e

alcançar as relações sobre pintura e imagem problematizadas nestas superfícies.

No entanto em alguns trabalhos da exposição Borda, Caetano de Almeida,

aproxima ainda mais o observador, não somente pelo tamanho dos trabalhos que

requerem esta aproximação, e também nem tanto pela sedução pictórica de um

trabalho virtuoso, mas pelos imprescindíveis rasgos, buracos e cerzidos desses

tecidos/superfícies, que seduzem e repulsam, permitindo um atravessamento que

bruscamente é impedido no encontro com a parede ou com o branco do papel

revelado. Ponto de pulsão que ocorre também, quando o olhar perscruta a

superfície e se depara com as bordas que separam aquele pequeno pedaço de

mundo simulado da realidade da parede, e neste encontro a borda revela sua

falácia ilusória, da mesma maneira que a transparência de Dudi Maia Rosa revela

o corpo de seu trabalho. Neste momento onde a dobra opera, estes rasgos

revelam a carne destas pinturas, e de todas as outras, são alegoria do visível.

Visível paradoxal, já que é o momento em que a obra lança seu olhar ao

observador, devolvendo seu movimento. Momento em que a imagem impõe sua

visualidade como uma fenda, uma abertura e através dela faz pensar.

49 SANTOS, op. cit., p. 102.

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A imagem pensa radicalmente quando consegue enxergar para além de

alguns princípios defende Didi-Huberman, dada a vocação essencial que toda a

superfície que nos ‘olha’, isto é, de toda a superfície que nos ‘concerne’ para além

de sua visibilidade evidente, sua opticidade ideal e sem ameaça. O teórico pondera

que talvez só haja pensamento para além do princípio de superfície: a espessura a

profundidade, a brecha, o limiar e o habitáculo – tudo isso obsidia a imagem, tudo

isso exige que olhemos a questão do volume como uma questão essencial, para

aquilo que se constitui como carne da imagem. As pinturas de Caetano de Almeida

fazem pensar por se instaurarem muito além da superfície da pintura. Mas também

talvez só haja imagem a pensar radicalmente, diz Didi-Huberman, para além do

princípio da visibilidade, ou seja, para além da oposição canônica – espontânea,

impensada – do visível e do invisível. Como uma simples massa de cor pode

inquietar o olhar? Neste caso o que se vê, não é só o que se vê, não é só um

emaranhado de pintura a parecer um tecido. E ainda: só há imagem a pensar

radicalmente para além do princípio mesmo do espaço extenso, extensivo, a saber,

a idéia medida do grande e do pequeno,do próximo e do distante, do fora e do

dentro, etc. A possibilidade de pensar e fazer pensar da imagem, é o outro dado

neste espaço visível e invisível, legível e indizível entre o espectador e a obra.50

Pode-se intuir a partir dessa relação instaurada o quanto a montagem é o

procedimento que congrega as ações e os procedimentos, desde uma

compreensão anacrônica da história às estratégias artísticas contemporâneas

adotadas, pois propõe enunciados, descontinuidades, desvios, para que no

caminho percorrido pelo espectador, ele possa estabelecer as conexões que o

artista propõe, e assim participar desse processo de construção, imerso no

funcionamento do trabalho. A ação do artista não é mais um gesto específico à

arte, o modus operandi é entendido como significativo desde a sua escolha, e

como processo traduz conceitos importantes ao trabalho. O artista é o re-criador,

aquele que re-produz e utiliza para isso todos os meios disponíveis. A

especificidade da arte não está mais em seus processos e técnicas, mas sim

naquilo que é proposto como experiência e relação entre obra e espectador, uma

arte que se volta para o pensamento, acessado pelos sentidos, e que se torna

cada vez mais alegórica, pois enquanto arte só se revela e acontece como o outro

50 DIDI-HUBERMAN, op.cit. p. 87, 95 e 105.

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para além da visualidade, para além da pele. No entanto a noção operatória que

pode indicar os caminhos que o artista percorreu só faz sentido quando a mirada

do observador expande a tela, ou seja, atravessa sua superfície, e encontra o olhar

potente que a imagem lhe devolve.

E somente neste momento a alegoria é desvelada, se abre e se entrega ao

pensamento, alertando para a dicotomia de toda imagem, que é sempre pelo

menos duas imagens, e o faz pela montagem e sua vocação anacrônica, pelo seu

duplo que sempre retorna como um outro, pela sua carne que nunca é o que alega.

É sempre campo e contra-campo, como diz Godard, mesma imagem que se repete

por incapacidade de sobreviver como o mesmo.51

Por isso o retorno anacrônico e a ilusão da imagem acontecem pelo

esquecimento e recalque, e também pelo reconhecimento de visibilidade, numa

tentativa de aderência do vidente e do visível52, e não pela racionalidade ou

expressão de sentimentos que alcançam a obra como reapresentação do mundo e

da vida dos homens. Toda a força da obra só pode se expressar através dela,

apontando sempre para um fora a partir de dentro e para um dentro a partir do

fora. Sendo a alegoria uma estratégia que busca contornar o inalcançável, eis a

impossibilidade de equivaler o visível e o tangível, assim como o visível e o legível.

São duas [imagens] lado a lado. Ao lado delas estou eu. Ela eu nunca vi, mas me reconheço. É como uma imagem, mas que vem de longe...53

51 Jean-Luc Godard em seu filme Nossa Música de 2004, onde representa a si mesmo em digressões sobre a imagem. 52 PONTY, op. cit., p. 135. 53 Fala da personagem Olga no mesmo filme de Godard.

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