Fotografia, memória e história oral

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FOTOGRAFIA, MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL Silvana Louzada Pós-doutoranda do PPGH/UFF, pesquisadora associada ao LABHOI/UFF O objetivo desse artigo é apresentar o Laboratório de História Oral e Imagem – LABHOI/UFF, que compõe o programa de atividades acadêmicas do departamento de História da Universidade Federal Fluminense, onde atuo como pesquisadora associada em projeto de pós-doutorado, juntamente com o resultado de parceria anterior com o Laboratório, durante a realização de minha pesquisa de Doutorado em Comunicação defendida em 2009 no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF – PPGCom/UFF. Em 2012 o LABHOI completa 30 anos de atividade e atualmente está organizado em três linhas de pesquisa: Memória, África e Escravidão; Memória, Arte e Mídias; Memória, Cidade e Comunidades. Cada uma dessas linhas desenvolve projetos que envolvem o trabalho de professores, pesquisadores e seus alunos e cujos resultados hoje caracterizam o LABHOI como arquivo, produtor de conhecimento qualificado de textos acadêmicos, dirigidos ao público especializado, e de textos videográficos 1 , voltados para a apresentação e divulgação dos resultados das pesquisas. Dentro da linha de pesquisa Memória, Arte e Mídias vem sendo desenvolvido, desde o ano 2000, um grande projeto denominado Memória e História da Fotografia e dos Fotógrafos no Brasil Contemporâneo, sob a 1 Sobre o conceito de escrita videográfica cf. MAUAD, 2010.

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FOTOGRAFIA, MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL

Silvana Louzada Pós-doutoranda do PPGH/UFF, pesquisadora associada ao LABHOI/UFF

O objetivo desse artigo é apresentar o Laboratório de História Oral e Imagem –

LABHOI/UFF, que compõe o programa de atividades acadêmicas do departamento de

História da Universidade Federal Fluminense, onde atuo como pesquisadora associada em

projeto de pós-doutorado, juntamente com o resultado de parceria anterior com o Laboratório,

durante a realização de minha pesquisa de Doutorado em Comunicação defendida em 2009 no

Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF – PPGCom/UFF.

Em 2012 o LABHOI completa 30 anos de atividade e atualmente está organizado em

três linhas de pesquisa: Memória, África e Escravidão; Memória, Arte e Mídias; Memória,

Cidade e Comunidades. Cada uma dessas linhas desenvolve projetos que envolvem o trabalho

de professores, pesquisadores e seus alunos e cujos resultados hoje caracterizam o LABHOI

como arquivo, produtor de conhecimento qualificado de textos acadêmicos, dirigidos ao

público especializado, e de textos videográficos1, voltados para a apresentação e divulgação

dos resultados das pesquisas.

Dentro da linha de pesquisa Memória, Arte e Mídias vem sendo desenvolvido, desde o

ano 2000, um grande projeto denominado Memória e História da Fotografia e dos Fotógrafos

no Brasil Contemporâneo, sob a coordenação da professora Ana Maria Mauad, voltado para

múltiplas abordagens da experiência fotográfica contemporânea e que teve como

desdobramento duas linhas de projetos.

Uma delas reúne os projetos O Espelho da Nação: fotografia e cultura política na

imprensa ilustrada brasileira (1930-1960) (CNPq 1998-2000); O Olho da História:

fotojornalismo, cultura e memória nacional no Brasil Contemporâneo (1945-1964) (CNPq

2000-2002) e Memórias do Contemporâneo: narrativas e imagens do fotojornalismo no

Brasil do século XX (CNPq 2005-2008). Tais projetos se voltaram para a análise da

narratividade da imagem técnica e o seu valor de representação social, centrando-se na

experiência fotográfica desenvolvida na primeira fase do processo de internacionalização da

cultura, ou seja, entre 1930-70, período em que se delimita o papel das mídias, na elaboração

do mundo contemporâneo como comunidade imaginada (Anderson, 2008). As revistas

ilustradas são o principal objeto de estudo que ainda incorpora os relatos orais e suas

1 Sobre o conceito de escrita videográfica cf. MAUAD, 2010.

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narrativas sobre a prática fotográfica, memórias de vida e da profissão, além das contribuições

de artigos de opinião, manifestos, boletins de associações, fóruns de debate que

complementam as fontes orais na compreensão da experiência fotográfica contemporânea

(MAUAD, 1990, 2005).

Outra linha agrupa os projetos Através da Imagem: história e memória do

fotojornalismo no Brasil contemporâneo (CNPq 2002-2004); Imagens Contemporâneas:

prática fotográfica e os sentidos da história na imprensa ilustrada (Brasil, 1930-1970),

(CNPq 2008-2011) e O olhar engajado: prática fotográfica e os sentidos da história, Brasil

1960-1990, (CNPq 2011-2014). Essa vertente centrou-se nas noções de prática e experiência

considerando o papel fundamental da prática dos fotógrafos na elaboração de uma narrativa

sobre a experiência histórica e, para isso, valeu-se dos relatos orais, através da realização de

entrevistas com fotógrafos atuantes na imprensa a partir de 1940. A pesquisa discutiu a

relação das palavras e imagens na elaboração da narrativa histórica e como tais formas

discursivas, elaboradas na dinâmica social, se apoiam e condicionam uma às outras através do

conceito de intertextualidade onde, num fluxo contínuo, fotografias se sustentam em imagens

anteriores e orientam o olhar fotográfico que está sendo construído. Cabe ao historiador

compreender a trama histórica que tece a produção visual na sua historicidade, bem como

construir a biografia das fotografias que perduram no tempo tanto como imagem/documento

quanto imagem/monumento, parafraseando Jacques Le Goff.

Do ponto de vista historiográfico os projetos se situam no campo de estudo da história

cultural e das representações e nos debates sobre os regimes de historicidade, suas agências e

discursos produzidos com ênfase para a importância da imagem técnica como agenciadora

dos sentidos da história contemporânea e como um importante meio de produção social da

memória (NORA, 1993. MENESES, 1992, 2003). Associam-se também ao campo de estudos

da história da imagem ou história visual, segundo a definição Ulpiano Bezerra de Meneses

(2003) que considera fundamental deslocar a atenção das fontes visuais para o campo da

visualidade como objeto detentor de elevado interesse cognitivo.

Desde 2001 foram feitas 44 entrevistas com 27 diferentes fotógrafos que, após serem

realizadas, passam por um processo de transcrição e são então revisadas pelos entrevistados e

a seguir são depositadas no LABHOI e disponibilizadas para consulta de pesquisadores. Estas

entrevistas seguem um roteiro que privilegia a trajetória de vida do fotógrafo e o trabalho é

realizado dentro dos protocolos da História Oral.

Atualmente os pesquisadores da linha Memória e História da Fotografia e dos

Fotógrafos no Brasil Contemporâneo estão envolvidos com o projeto O Olhar Engajado.

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Entretanto, para esse artigo, gostaria de apresentar um trabalho realizado no âmbito do projeto

anterior, ou seja, Memórias do Contemporâneo: narrativas e imagens do fotojornalismo no

Brasil do século XX. Trata-se da minha tese de doutorado, Prata da Casa, fotógrafos e

fotografia no Rio de Janeiro (1950-1960) defendida no Programa de Pós-Graduação em

Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCom/UFF), sob orientação da

Professora Marialva Barbosa. Parte importante da tese trata da memória dos fotógrafos

atuantes nesse período e para tal foram realizadas várias entrevistas em parceria com o

LABHOI/UFF, juntamente com a coordenadora do Laboratório, professora Ana Maria

Mauad.

A metodologia da História Oral foi fundamental para a elaboração da tese, não apenas

no que diz respeito às entrevistas, como também no recolhimento e processamento dos demais

documentos, textos e imagens. Além disso, o material foi, como todos os demais, processado

e depositado no LABHOI, contando para isso com a estrutura de seus bolsistas e estagiários.

O trabalho de constituição de um corpus de fotógrafos se apoiou em dois eixos

básicos. Em primeiro lugar nas entrevistas com os fotógrafos que atuaram no período

estudado, realizadas por mim e por outros pesquisadores do LABHOI, assim como diversas

outras entrevistas e relatos publicados em locais variados, como boletins sindicais e de

associações de classe. A outra fonte de mapeamento dos nomes de fotógrafos foi através da

identificação da autoria das imagens, ou seja, o crédito do fotógrafo junto às fotografias

publicadas nos jornais.

Essa identificação dos fotógrafos não foi simples, uma vez que o crédito das

fotografias publicadas não era uma prática nas décadas de 1950-1960. Apesar de trabalhar

com dois jornais que eventualmente publicavam crédito das fotos (Ultima Hora e Jornal do

Brasil), a publicação da autoria não era, com atualmente, obrigatória e regulada por lei. Para

exemplificar, foram encontradas situações em Última Hora em que fotografias eram

creditadas “foto: Casal”, sem o nome próprio do fotógrafo ou, no Jornal do Brasil, o nome

Walter Firmo grafado por vezes “V” outras com W. Mesmo assim, através dos jornais foi

possível levantar alguns nomes, mas certamente apenas dos fotógrafos que mais se

distinguiam nas redações e que faziam as matérias mais importantes, merecedoras do destaque

e, portanto, do crédito.

Utilizando variadas estratégias foi possível identificar um número significativo de

profissionais que atuaram na imprensa de então, seja através da realização das entrevistas

pessoalmente, ou, como já foi dito, da utilização de outras já realizadas e relatos memoráveis

publicados em diversos locais. Através dessas fontes orais foi possível arrolar 110 fotógrafos

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que atuaram na imprensa carioca na década de 1950 e 1960, que foram organizados em

quadros onde foram arrolados todos os dados disponíveis sobre cada um deles. De alguns só

restou o nome, citado por colegas ou junto a uma fotografia, mas assim mesmo registrados e

listados nos quadros com os demais fotógrafos, à espera, quem sabe, de outros olhares sobre

suas vidas que complementem as informações obtidas.

De vinte cinco fotógrafos desse quadro maior foi possível reconstruir boa parte da

trajetória e os dados, também obtidos através de relatos e entrevistas, foram igualmente

organizados em quadros específicos e analisados por meio da teoria sociológica de Pierre

Bourdieu e em seus conceitos de campo e habitus, incluindo os decorrentes, fundamentais

para a constituição da noção de habitus, a saber: condição e posição de classe, distinção e

trajetória. Em linhas gerais, Bourdieu concebe o sujeito como um agente que se insere no

mundo social por meio da relação com múltiplos campos e é neles que os tais agentes se

comunicam e as posições sociais se estruturam. Os embates que têm lugar no mundo social

são o resultado da busca do sujeito por conquistar posições nos campos. A partir desses

enfrentamentos, dá-se a relação entre o sujeito e a sociedade.

Na teoria social o sujeito é sempre coletivo, neste caso, as disputas de posição num

mesmo campo, por exemplo, o campo jornalístico, e entre campos, jornalístico e político,

revelam as disputas dos grupos pelo controle do poder e exercício da hegemonia. Assim, o

grupo dominante busca construir uma hierarquia que lhe seja favorável no mundo social e,

para isso, vai se valer do capital econômico, cultural ou simbólico que acumula para impor

sua dominação.

O conceito habitus, por sua vez, permite que se compreenda o sujeito dentro de uma

trajetória de formação que inclui as suas formas de aprendizado, mas fundamentalmente a

forma como esse sujeito se socializa, por meio de distintos pertencimentos, como a família, o

grupo de amigos, as escolas, os espaços de sociabilidade, etc. Embora o conhecimento

adquirido na primeira infância seja fundamental, o habitus é re-atualizado ao longo da

existência do sujeito, na sua trajetória social, orientando a sua presença e ação objetiva no

mundo social. Para Bourdieu é importante perceber o habitus através de instituições de

socialização, dentre elas a de ensino, que colaboram para a formação de um entre os vários

habitus do sujeito. Como um conjunto de princípios adquiridos e permanentemente

atualizado, o habitus é uma forma de estar no mundo e ver o mundo, não se confundindo, mas

incluindo, a trajetória social, a posição ou condição de classe, ainda que a todas essas

situações sejam fundamentais para a sua definição.

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Dessa forma, a pesquisa busca compreender, estudar as trajetórias coletivas,

compondo uma espécie de prosopografia de um conjunto de fotógrafos que aturam na

imprensa dos anos 1950-60, buscando que a experiência coletiva de indivíduos revelasse os

princípios de organização da categoria e sua inserção no meio jornalístico. O quadro que

detalha a trajetória de 25 fotógrafos procura mostrar sua origem, instrução formal, o ingresso

na profissão e as distinções obtidas, buscando, portanto entender o habitus do fotógrafo de

imprensa, como nesse exemplo, que detalha a trajetória do fotógrafo Erno Schneider:

Nome Erno Schneider

Origem Familiar

- 22/10/1935 - Feliz,/RS- Família de colonos alemães- Pai lavrador, morre quando ES tem 1 ano- 8 irmãos – todos morrem cedo- Muda para Caxias do Sul ainda criança

Formação Escolar Primário

Ingresso na Profissão- Adquire câmera uma American Box, fotografa os irmãos - Trabalha com fotógrafo italiano Jeremias– estúdio e laboratório – 17 anos- Realiza fotos como free lancer para jornal “Pioneiro” de Caxias/RS.

Trajetória Profissional

- Auxiliar em estúdio- Jornal Pioneiro, Caxias/RS- 1952 Porto Alegre – trabalha em estúdio- 1955 a 1958 - Jornal O Clarim de Leonel Brizola- 1956 - Campanha Brizola prefeito- Fotógrafo oficial Palácio- 1958 - Campanha de Brizola para governador- Fotógrafo oficial Palácio- Ultima Hora RS- Correspondente da revista Manchete/RS- 1960 – Muda-se para o Rio de Janeiro – Trabalha no Diário da Noite e O Jornal (Diários Assossiados) por 6 meses- 1960 –Jornal do Brasil- 1962 – Editora Abril (convidado para ganhar o dobro salário Jornal do Brasil)- Free lancer para Associated Press;- 1964 – Jornal “O Panfleto” de Brizola- Correio da Manhã - 1963 a 1969- O Globo - 1969 a 1996- Free lancer

Chefias - Correio da Manhã - 1963 a 1969- O Globo 1969 a 1996

Premiações- Prêmio ONU – matéria fuga presídio Frei Caneca- Prêmio Esso 1962 “Qual o Rumo?” Foto Jânio Quadros - JB

Reportagens de destaque - Várias Copas e Olimpíadas- Sequestro do embaixador brasileiro no Uruguai

A partir dos quadros foi possível chegar a alguns denominadores comuns que apontam

para pertencimentos que permitiram conhecer mais profundamente os fotógrafos, como por

exemplo, dois denominadores comuns: gênero e geração. Entre os fotógrafos atuantes na

imprensa carioca nas décadas de 1950 e 1960 não há mulheres e quase todos são nascidos nos

anos 1920 e 1930. No levantamento dos 25 fotógrafos destacados, apenas um é mais jovem

(1945), mas ingressou na profissão muito cedo e publicou sua primeira foto com apenas 12

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anos. A maior parte (72%) tem origem familiar modesta, o que os deixava sem capital

simbólico para conseguir uma profissão com distinção tradicional, como a medicina e

advocacia. Não tendo capital familiar que os possibilitasse ascender profissionalmente,

buscam na fotografia de imprensa uma alternativa para mudar a sua posição de classe, já que

essa é uma opção para entrar na redação de um jornal e ampliar seu campo de atuação

simbólica. Assim, a enorme maioria dos fotógrafos destacados nesse período entrou nos

jornais como contínuo ou outra profissão semelhante, aprendeu a revelar em laboratório e em

algum momento se transformou em fotógrafo, conseguindo assim a desejada ascensão social.

Esse trabalho, a ser publicado em 2013 pela Editora da UFF (EDUFF), busca

recuperar, através dos relatos memoráveis, a visão que os personagens têm de si mesmos a

partir de suas lembranças, como veem sua inserção na profissão, as instâncias de distinção, o

seu pertencimento maior na sociedade. Ainda através dos das fontes de memórias obtidas ou

consultadas e graças ao instrumental fornecido pela História Oral, foi possível trazer à tona a

fala dos fotojornalistas, partilhar suas conquistas, escutar suas queixas, percorrer os caminhos

que fizeram desses fotógrafos, na memória do grupo espraiada para além deles mesmos, a

“geração de ouro” do fotojornalismo brasileiro.

Bibliografia

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: companhia das Letras, 2008

MAUAD, Ana Maria. Sob o Signo da Imagem: A Produção da Fotografia e o Controle dos Códigos de Representação Social da Classe Dominante, no Rio de Janeiro, na Primeira Metade do Século XX. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História/UFF. Niterói (1990)_____ . Na mira do olhar: um exercício de análise da fotografia nas revistas ilustradas cariocas, na primeira metade do século. XX Anais do Museu Paulista, 2005, 13 (jan-jun). Disponível em http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/src/inicio/ArtPdfRed.jsp?iCve=27313105_____ . Fontes de memória e o conceito de escrita videográfica: a propósito da fatura do texto videográfico Milton Guran em três tempos (LABHOI, 2010). Revista de História Oral. v. 1, n. 13 (2010) disponível em http://revista.historiaoral.org.br/index.php?journal=rho&page=article&op=view&path%5B%5D=134&path%5B%5D=130

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. História, cativa da memória: para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais, IN: Rev. Inst. Bras., SP, 34:9-24, 1992_____ . Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório, propostas cautelares, Revista Brasileira de História, vol. 23, n° 45, julho de 2003.

NORA, Pierre. Entre memória e História: a problemática dos lugares. IN: Projeto-História, PUC, SP, (10), dez. 1993, pp. 7-28;