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    MORAES, Eliane Robert.O jardim secreto. Notas sobre Bataille e Foucault. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,S. Paulo, 7(1-2): 21-29, outubro de 1995. F O U C A U LTUM PENSAMENTO

    DESCONCERTANTE

    Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 21-29, outubro de 1995.

    O jardim secretoNotas sobre Bataille e Foucault

    ELIANE ROBERT MORAES

    RESUMO: Em diversas ocasies, Michel Foucault declarou afinidades como pensamento de Georges Bataille, chegando a apresentar-se como seudiscpulo. Essa filiao pode ser reconhecida na intensidade com que am-bos se empenharam em desconstruir a idia moderna de razo, consolida-da em torno das noes de saber e verdade. Contudo, uma aproximaomais rigorosa entre os dois pensadores nos coloca diante de diferenassignificativas, que supem distintos fundamentos crticos. A arquitetura podeser um locus privilegiado para analisarmos tais diferenas. Foucault v osedifcios por dentro; Bataille os v de fora. Isso traz resultados diversos: separa o autor de A microfsica do poder esboa-se um espao sem sada,para o pensador de A experincia interior abre-se a possibilidade de conce-ber jardins secretos, em contraposio aos monumentos ameaadores.Insinuam-se a, tambm, diferentes leitores de Nietszche.

    -se logo nas primeiras linhas da apresentao das Obras comple-tas de Georges Bataille, assinada por Michel Foucault: Hoje nssabemos: Bataille um dos mais importantes escritores do nossosculo. A essas palavras, escritas em 1970, seguem-se outras ain-

    da mais conclusivas: a ele devemos em grande parte o momento onde esta-mos; mas tudo o que falta fazer, pensar e dizer, isso tambm lhe devemos eainda o faremos durante um longo tempo (Foucault, 1970, p. 5). A passagemno isolada: em diversas ocasies, Foucault declarou afinidades com o pen-samento de Bataille, chegando mesmo a apresentar-se como seu discpulo.

    Essa filiao - ousando empregar um termo pouco caro ao autor deAs palavras e as coisas - pode ser reconhecida na intensidade com que ambospensadores se empenharam em desconstruir a idia moderna de razo, conso-

    L

    UNITERMOS:Foucault,Bataille,espao,razo,saber,verdade.

    Professora da Faculda-de de Comunicao eFilosofia da PUC-SP

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    lidada em torno das noes de saber e verdade. sabido que Foucault entrouem contato com os motivos nietzschianos da crtica da racionalidade ocidentalatravs de Bataille. Contudo, uma aproximao mais rigorosa entre os doispensadores nos coloca diante de diferenas significativas, que supem distin-tos fundamentos crticos.

    Tomemos, como ponto de partida, a construo dos argumentos deBataille e de Foucault, ambos profundamente cativantes, mas acionando dife-rentes adeses de leitura. Foucault, de sua parte, vale-se de um mtodo, ogenealgico, para problematizar a constituio dos saberes e dos discursosno interior de uma trama histrica. Em Microfsica do poder, ele recorre aNietzsche para fundamentar sua opo: a genealogia exige a mincia do sa-ber, um grande nmero de materiais acumulados, exige pacincia. Ela deveconstruir seus monumentos ciclpicos no a golpes de grandes errosbenfazejos mas de pequenas verdades inaparentes estabelecidas por ummtodo severo. Em suma, uma certa obstinao na erudio (Foucault, 1982,p. 15-16)1. Para realizar tal empresa, Foucault vai sustentar suas teses em rigo-rosa freqentao dos textos e em consistente informao histrica, constituin-do um leitor por excelncia intelectual e, digamos tambm, acadmico.

    J Bataille se dirige primordialmente ao leitor sensvel, mais exata-mente, ao exasperado2. A este, deseja apresentar o movimento aberto dareflexo, ancorando-se antes em pesadas meditaes que em mtodos. Seuslivros, filosficos ou literrios, tm invariavelmente a marca da provisoriedade,do inacabamento ou, do que ele mesmo chamou de inclinao em direo noite do no-saber (Bataille, 1973b, p. 39). Na introduo Teoria da reli-gio, ele adverte o leitor que seu texto tenta exprimir um pensamento mvel,sem nele buscar o estado definitivo; a seguir, conclui categrico: uma filoso-fia no jamais uma casa, mas um canteiro de obras (Bataille, 1976, p. 287).

    A exigncia de rigor a que se prope Bataille ser, conseqente-mente, distinta do obstinado exerccio de erudio de Foucault. Como meentristeo hoje com minha falta de rigor - ao menos nas aparncias - que correo risco de enganar profundamente (Bataille, 1973b, p. 437) - afirma comestratgica ambigidade numa passagem de A experincia interior, insinuan-do que cabe ao leitor a tarefa de ultrapassar as aparncias enganosas. Issoporque no no texto, mas no exerccio da vida, que Bataille prope omaior rigor possvel (Bataille, 1973b, p. 426). Tal exigncia busca igual-mente em Nietzsche seu fundamento: mas aqui no mais o sbio severo eminucioso a ser evocado, e sim o filsofo bacante que, investindo seus sen-tidos na reflexo capaz de captar at mesmo o movimento efmero de umadana (Bataille, 1973b, p. 41).

    Para entendermos esse rigor de vida de que fala Bataille, neces-srio revisitarmos, ainda que brevemente, a noo de experincia interior,que constitui um dos eixos centrais de seu pensamento. Em oposio expe-rincia cientfica - que teria na atividade da dissecao sua imagem privilegi-ada - a experincia interior um movimento em que o homem se pe inteira-

    1 As passagens entre as-

    pas so citaes deNietzsche em Gaiacincia e Humano de-masiado humano.

    2 Eu no me dirijo aos

    filsofos; s possodirigir-me exaspera-o - sublinha Bataille(1973a, p. 194).

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    mente em questo. Justamente por descartar o distanciamento que caracteri-za a cincia, a experincia interior s pode ser abordada na vitalidade do pr-prio ato, na pulsao do presente, no momento fugaz da dana. Sua dificulda-de prtica, diz Bataille, est ligada fidelidade canina do homem ao discur-so: ela irredutvel a qualquer tipo de enunciado, incluindo o potico, quepode toc-la mas jamais express-la por completo. Nesse caso, o discursoassume sempre um lugar secundrio, ou at mesmo dispensvel: A diferenaentre a experincia interior e a filosofia reside principalmente no fato de que,na experincia, o enunciado no nada, seno um meio, e ainda, no somentemeio, mas obstculo; o que conta no mais o enunciado do vento, o vento(Bataille, 1973b, p. 25).

    Entendemos, portanto, o sentido do inacabamento do textobatailliano, decorrendo de seu desejo de expressar um pensamento mvel: naverdade ele pretende evidenciar o inacabamento prprio a todo texto, a tododiscurso, a toda forma de representao. Talvez ningum tenha reconhecidode forma mais precisa tal intento como o prprio Foucault, que assim o sinte-tizou: todos aqueles que se esforam em manter antes de tudo a unidade dafuno gramatical do filsofo - ao preo da coerncia, da existncia mesmo dalinguagem filosfica - poderamos contrapor o empreendimento exemplar deBataille que no cessou de dissipar em si, com obstinao, a soberania dosujeito filosofante. Nisso, sua linguagem e sua experincia foram seu supl-cio (Foucault, 1992, p. 557).

    Em Bataille testemunhamos o primado da experincia sobre o enun-ciado: o momento supremo excede necessariamente a interrogao filosfi-ca, dir ele em O erotismo (citado em Habermas, 1990, p. 224); o excessoexcede ao fundamento, concluir no prefcio Madame Edwarda (Bataille,1981, p. 14). Talvez seja essa uma chave para compreendermos o lugar centralda literatura na obra batailliana e, ainda, a razo pela qual as imagens literriasganham, em seus ensaios filosficos, importncia igual dos conceitos.

    Aqui reencontramos novamente Foucault: no interesse pela litera-tura como forma de conhecimento e, tambm, numa prtica textual que tomao efeito literrio como indutor de pensamento. Num ensaio sobre a construodo texto foucaultiano, Renato Janine Ribeiro observa que o autor de A hist-ria da loucura vale-se fundamentalmente da estratgia da surpresa: A fraseque choca ou impressiona tem eficcia - a de ofuscar, a de permitir um novoconhecimento mediante o desalojar a razo, presa das rotinas. (...) Ao leitor,busca-se surpreender, fazendo que perca suas rotas usuais mediante lampejos,pontuais, de seduo (como poderamos tambm pensar que agem certos afo-rismos de Nietzsche) (Ribeiro, 1985, p. 29). Ao construir o inesperado, Fou-cault visaria a desconcertar os hbitos de nossa razo, obrigando-nos a pensardiferente.

    Do mesmo modo, Bataille prope-se a ferir as certezas de quem ol, mas sua estratgia no a boutade, a surpresa ou a seduo. pelo convite ousadia que ele busca cativar o seu leitor3. Proponho um desafio, no um

    3 Sobre a leitura de

    Bataille, Jrgen Habermasafirma: o escritorertico pode empre-gar a linguagem de talmodo que o leitor, as-sediado pela obsceni-dade, arrebatado pelochoque do inesperadoe inrepresentvel, sejalanado na ambiva-lncia da nusea e doprazer (1990, p. 224).

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    livro - dir na apresentao de A experincia interior, alertando: quereriaescrever um livro do qual no se pudesse tirar conseqncias fceis (Bataille,1973b, p. 426). Frases como estas, graves e cortantes, dirigem-se diretamenteao leitor, solicitando-lhe cumplicidade na vertigem que propem: No escre-vo para quem no poderia se demorar mas para quem, entrando neste livro,cairia como em um buraco(p. 432). E reitera, ainda mais determinado: Seessa leitura no devesse ter para si a gravidade, a tristeza mortal do sacrifcio,quereria no ter escrito nada (Bataille, 1973b, p. 442).

    A forma como cada autor estrutura seu texto deliberada, visa aproduzir um certo tipo de leitor. Por isso, a trama histrica arquitetada porFoucault guarda distncia do canteiro de obras de Bataille. essas diferen-tes estratgias de composio textual correspondem tambm distintas con-cepes quanto s composies arquitetnicas, tema abordado com freqn-cia na obra dos dois pensadores. Com efeito, a arquitetura um locus privile-giado para analisarmos tais diferenas.

    Em A histria da loucura e em Vigiar e punir, Foucault responsa-biliza em grande parte as tcnicas de planejamento espacial pela produo daloucura e da criminalidade: os hospitais, as prises e os sanatrios encerram oindivduo para vigi-lo e obrig-lo a falar. Edifcio emblemtico, nesse senti-do, o panptico de Benthan, que faz funcionar o projeto de uma visibilidadeinteiramente organizada em torno de um olhar dominador e vigilante, forne-cendo a frmula de um poder que se exerce por transparncias e no tolerazonas de obscuridade: trata-se de uma arquitetura que seria operativa na trans-formao dos indivduos (Foucault, 1975, p. 174). No interior dos edifciosmurados, Foucault descobre as tecnologias do poder que produzem o sujeitotil e dcil.

    J em Bataille a arquitetura tem como funo expressar a fisiono-mia de personagens oficiais, ou seja, ela d forma s ordens e proibiessociais. Representao autoritria, o monumento erigido para inspirar o bomcomportamento social e, freqentemente, o temor: os grandes monumentosse levantam como diques, contrapondo a lgica da majestade e da autoridadea todos os elementos turvos: sob a forma de catedrais e palcios que a Igrejae o Estado se dirigem e impem silncio s multides. A tomada da Bastilhateria sido exemplar nesse sentido, expressando a animosidade do povo con-tra os monumentos que so seus verdadeiros senhores (Bataille, 1970, p.171). Na fachada do edifcio de pedra, que esmaga simbolicamente o indiv-duo, Bataille descobre a lgica da autoridade, que ameaa e silencia.

    Foucault v a arquitetura por dentro; Bataille a v de fora. Se aforma genrica da arquitetura , para ambos, a priso, sua eficcia deve-se amotivos opostos: uma funciona porque chama a ateno para si, a outra por-que disfara sua verdadeira funo. Uma repressora (impe silncio); a ou-tra expressiva (faz falar).

    A arquitetura de Bataille - convexa, frontal, extrovertida -, impon-do-se externamente aos indivduos, no compartilha praticamente nenhum ele-

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    mento com o edifcio oval de Foucault, cuja concavidade insinuante contorna,emoldura e confina para fins teraputicos ou disciplinares. Enquanto o pri-meiro pensa em termos de representaes autoritrias, o segundo refere-se aoplanejamento espacial e s tecnologias de poder. Talvez se possa dizer, arris-cando uma interpretao, que para Foucault esboa-se um espao sem sada,enquanto que para Bataille abre-se a possibilidade de conceber espaos se-cretos. Vejamos rapidamente porqu.

    Para propor o panptico como modelo arquitetnico de uma socie-dade caracterizada pela relao de indivduos privados com o Estado, Fou-cault recorreu arquitetura da Grcia antiga, que expressava uma sociedademarcada pela relao intensa da comunidade com a vida pblica. Os templos, osteatros ou os circos gregos eram construdos para oferecer espetculos ao maiornmero de pessoas; fossem religiosos, polticos ou teatrais, sua funo princi-pal era recriar a unidade do coletivo. Na sociedade moderna, porm, a arquitetu-ra de espetculo foi substituda por uma forma de planejamento espacial que seadequou com eficcia ao poder disciplinar: a arquitetura de vigilncia.

    Recordemos o modelo: na periferia, uma construo em anel; nocentro, uma torre; esta possui grandes janelas que se abrem para a parte inte-rior do anel. A construo perifrica dividida em celas, cada uma ocupandotoda a largura da construo. Estas celas tm duas janelas: uma abrindo-separa o interior, correspondendo s janelas da torre; outra, dando para o exteri-or, permite que a luz atravesse a cela de um lado a outro. Basta ento colocarum vigia na torre central e em cada cela trancafiar um louco, um doente, umcondenado, um operrio ou um estudante. Devido ao efeito da contraluz, po-dem-se perceber da torre, recortando-se na luminosidade, as pequenas silhue-tas prisioneiras nas celas da periferia. Em suma, inverte-se o princpio damasmorra; a luz e o olhar de um vigia captam melhor que o escuro que, nofundo, protegia (Foucault, 1982, p. 210). No h escape possvel: o panpti-co, como emblema arquitetnico da sociedade moderna, um espao semsada.

    Essa passagem relaciona-se a outras concepes que marcam o pen-samento de Foucault. Uma delas est expressa em A vontade de saber: trata-se da sua recusa em acatar a hiptese repressiva, que seria o ponto de parti-da das teorias de Freud e de Reich, em funo de um novo conceito, o dispo-sitivo da sexualidade. Segundo Foucault, a histria da sexualidade caracteri-za-se, a partir do sculo XVIII, no pela represso sexual, mas ao contrrio,pela multiplicao dos discursos sobre o sexo no prprio campo do exercciodo poder. Em vez da preocupao uniforme em esconder o sexo, em lugar dorecato geral da linguagem, a caracterstica de nossos trs ltimos sculos avariedade, a larga disperso dos aparelhos inventados para dele falar, parafaz-lo falar, para obter que fale de si mesmo, para escutar, registrar, transcre-ver e redistribuir o que dele se diz (Foucault, 1980, p. 35). Trata-se da pro-duo do sexo.

    Ora, continua Michel Foucault, o dispositivo da sexualidade en-

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    globa discursos, instituies, organizaes arquitetnicas, decises regula-mentares, leis, medidas administrativas, enunciados cientficos, proposiesfilosficas, morais, filantrpicas. Em suma, o dito e o no dito so elementosdo dispositivo (Foucault, 1982, p. 244). No difcil, portanto, estabelecer-mos um nexo entre essa descrio e a do panptico de Bentham: ambas reve-lam redes de transparncias que englobam tudo o que est ao seu redor. Nova-mente podemos afirmar: nada escapa ao dispositivo da sexualidade. Foucaultdisse e repetiu muitas vezes: at mesmo os discursos libertrios partem dointerior dessa trama.

    Na tpica da ertica, a que ambos pensadores se dedicaram comgrande interesse, amplia-se ainda mais a distncia entre Foucault e Bataille:que coincidncias haveria entre uma tal produo do sexo e o arrebatamentodo transe ertico de que fala o autor de Histria do olho? Bataille v noerotismo a substncia da vida interior do homem, identificando-o em profun-didade com a experincia religiosa: o prazer seria desprezvel no fosse esseaterrador ultrapassar-se que no caracteriza apenas o xtase sexual: msticosde diversas religies, especialmente os msticos cristos, vivenciaram-no damesma forma. O ser nos dado num transbordamento do ser, no menos into-lervel do que a morte (Bataille, 1981, p. 12). Por isso, diz ele, o erotismo ,na conscincia do homem, o que o leva a colocar o seu ser em questo (Bataille,1987, p. 33).

    Para Bataille o erotismo , por excelncia, uma experincia interi-or, na medida em que seu sentido ltimo est em conduzir o sujeito a umestado de interioridade plena, onde o silncio substitui o discurso: O homemno redutvel ao rgo de gozo. Porm esse rgo inconfessvel ensina-lhe oseu segredo (Bataille, 1981, p. 13). Lugar do segredo, sim, mas no do se-gredo fabricado pela sociedade disciplinar: trata-se, aqui, de um outro pata-mar de pensamento, que ousa supor uma profundidade para alm da tramasocial. Todos ns, eu e vs, existimos por dentro - adverte o autor logo nasprimeiras pginas de O erotismo (Bataille, 1987, p. 20).

    No o caso, aqui, de contrapor ad infinitum as concepes deFoucault e de Bataille, mas apenas de indicar que cada qual se move numaregio irredutvel outra. Enquanto o primeiro investiga a histria da sexua-lidade, o segundo se prope a interrogar a essncia do erotismo - entre a pro-duo do sexo e a experincia interior do prazer abre-se um intervalo semcomunicao. Importa, pois, notar que no h passagem possvel de uma con-cepo a outra: onde Bataille aponta para uma interioridade que porta osegredo do sujeito, Foucault parece deparar to somente com um vazio, aser ocupado pelas formas histricas e sociais do existir humano.

    Se Foucault vislumbra a arquitetura por dentro, porque esse den-tro est completamente submisso s regras de fora, resultando num espaosaturado, sem resto, sem sobra, onde nada se mantm na condio de segredo.Como observou Blanchot, a estrutura do internamento descrita em Histriada loucura remete a uma exterioridade, e o que est fechado efetivamente

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    esse lado de fora (Blanchot, 1969, p. 292). Trata-se de uma interiorizaodo lado de fora, como tambm afirmou Deleuze: Dentro como operao dofora: em toda a sua obra, um tema parece perseguir Foucault - o tema de umdentro que seria apenas a prega do fora, como se o navio fosse uma dobra domar (Deleuze, 1988, p. 104).

    Bataille, ao invs, parte de uma exterioridade aparente para chegara um ncleo que seria essencial: em contraposio aos monumentos ameaa-dores, ele concebe centros espaciais misteriosos onde se alojam confrarias,sociedades secretas, e todo tipo de ordens msticas que em sua obra encontra-mos sob o nome de organizaes de inverno4. So mundos subterrneosque ocultam um centro secreto; labirintos, pirmides, jardins interiores, ima-gens que proliferam em seus textos, insinuando que a sada, para Bataille,est sempre localizada dentro.

    Situando-se no plano visvel de um mundo feito de superfciessuperpostas, arquivos ou estratos, como quer Deleuze, o pensamento de Fou-cault no poderia levar descoberta de uma sada oculta: um pensamentomvel, porque emerge das relaes de fora, em freqente alterao; e inst-vel, porque se produz num ponto limite, onde as vidas se chocam com opoder, se debatem contra ele, tentam utilizar suas foras ou escapar s suasarmadilhas(Foucault citado em Deleuze, 1988, p.101). No seu horizonte es-taria, portanto, um exerccio de resistncia, mas de uma resistnciacoextensiva e contempornea ao poder. Por mais que Deleuze tente, nas belaspginas finais de seu livro, indicar um lugar de chegada para Foucault - evo-cando, a partir de Melville, uma cmara central, que no tememos mais queesteja vazia, pois o si nela est situado (Deleuze, 1988, p. 130)5 - fica difcilvislumbrar, na obra foucaultiana, qualquer espao que no esteja referido stramas do poder.

    uma questo de mtodo, sem dvida. Ou de maneira, comoprefere Michel Surya, bigrafo de Bataille 6. Resistncia, diante de um espaosaturado, para Foucault; redeno, num centro secreto, para Bataille. No possvel perceber aqui muitas afinidades; talvez seja mesmo impertinente fa-lar de filiao. A menos que evoquemos, para finalizar, uma passagem deNietzsche, que parece reunir o mtodo de Foucault maneira de Bataille,fechando o arco que aloja, nas suas diferentes pontas, cada um dos pensadores.

    Recordemos, pois, o prlogo Genealogia da moral, quandoNietzsche afirma ter aberto mo de procurar a origem do mal: encontrei earrisquei respostas diversas, diferenciei pocas, povos, hierarquias dos indi-vduos, especializei meu problema, das respostas nasceram novas perguntas,indagaes, suposies, probabilidades: at que finalmente eu possua umpas meu, um cho prprio, um mundo silente, prspero, florescente, comoum jardim secreto do qual ningum suspeitava... (Nietzsche, 1987, p. 10).Para que possamos reencontrar Foucault e Bataille juntos, talvez seja preciso,uma vez mais, revisitar esse jardim secreto.

    4 Ver, nesse sentido, o

    comentrio de GeorgesBataille confernciaConfradas, rdenes,sociedades secretas,iglesias de RogerCaillois (1982, p. 174-187).

    5 Deleuze termina o li-

    vro numa aluso glndula pineal, umtema batailliano porexcelncia, que apa-rece em diversas o-bras suas, especial-mente em Lanus so-laire. Poderamos to-mar a passagem comouma tentativa deaproximao?

    6 Michel Surya prope,

    a respeito de Bataille,a expresso maneirapara substituir mto-do (cf. 1994, p. 15).

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    MORAES, Eliane Robert.O jardim secreto. Notas sobre Bataille e Foucault. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,S. Paulo, 7(1-2): 21-29, outubro de 1995.

    Recebido para publicao em maio/1995

    MORAES, Eliane Robert.The secret garden. Notes about Bataille and Foucault. Tempo Social;Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 23-29, october 1995.

    ABSTRACT: On several occasions, Michel Foucault expressed his affinitywith the thinking of Georges Bataille, even going so far as to present himselfas the latters disciple. Such filiation can indeed be perceived in the intensitywith which both scholars engaged themselves in deconstructing the modernnotion of reason, as anchored to the notions of knowledge and truth. A stricterapproximation of the two thinkers, however, places us before significantdifferences, which indicate differing critical fundaments. Architecture suggestsitself as a privileged locus for engaging on an analysis of such differences.Foucault observes buildings from within; Bataille sees them from the outside.This brings about distinct results: if, for the creator of The microphysics ofpower, a cul de sac is etched, for the author of The inner experience thepossibility of conceiving secret gardens offers itself, in contraposition to thethreatening monuments. This, in turn, hints at different readers of Nietszche.

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