Fluzz capítulo 7

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1 Capítulo 7 | Alterando a estrutura das sociosferas AUGUSTO DE FRANCO AUGUSTO DE FRANCO AUGUSTO DE FRANCO AUGUSTO DE FRANCO Vida humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio

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Capítulo 7 | Alterando a estrutura das sociosferas

AUGUSTO DE FRANCOAUGUSTO DE FRANCOAUGUSTO DE FRANCOAUGUSTO DE FRANCO Vida humana e convivência social nos novos

mundos altamente conectados do terceiro milênio

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Alterando a estrutura das sociosferas

Aqui estamos, engatinhando pelas frestas entre as paredes da Igreja, do Estado,

da Escola e da Empresa, todos os monolitos paranóicos.

Hakim Bey em Caos (1984)

O melhor da religião é que ela produz hereges.

Ernst Bloch em O ateísmo no cristianismo (1968)

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Os que continuam aprisionados no mundo único dos séculos passados ainda não lograram perceber o que está em gestação neste período. A revelia dos cegos “líderes mundiais” e além da compreensão dos analistas de governos e corporações, grandes movimentos subterrâneos estão em curso neste momento. De modo molecular, distribuído e conectado de sorte a formar um feixe intenso de fluxos – fluzz –, estão se articulando e se expressando glocalmente experiências inovadoras que tendem a alterar na raiz a estrutura e a dinâmica das sociosferas. Eis alguns exemplos fulcrais do que está emergindo:

� Não-Escolas: comunidades de aprendizagem (homescooling e, sobretudo, communityschooling, cada vez mais na linha de unschooling) em rede, sem currículo e sem professor e aluno.

� Não-Igrejas: formas pós-religiosas de espiritualidade, livres

das ordenações das burocracias sacerdotais.

� Não-Partidos: redes de interação política (pública) exercitando a democracia local na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos.

� Não-Estados-nações: cidades inovadoras – como redes de

comunidades – que assumem a governança do seu próprio desenvolvimento em rota de autonomia crescente em relação aos governos centrais que tinham-nas por seus domínios.

� Não-Empresas-hierárquicas: redes de stakeholders – demarcadas do meio por membranas (permeáveis ao fluxo) e não pode paredes opacas – como novas comunidades de negócios do mundo que já se anuncia.

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Fascinante! Escolas, igrejas, partidos, Estados, empresas hierárquicas: construímos tais instituições – que continuam reproduzindo o velho mundo; sim, são elas que fazem isso – como artifícios para escapar da interação, para ficar do “lado de fora” do abismo, para nos proteger do caos... As escolas (e o ensino) tentam nos proteger da experiência da livre aprendizagem. As igrejas (e as religiões) tentam nos proteger da experiência de deus. Os partidos (e as corporações) tentam nos proteger das experiências da política (pública) feitas pelas pessoas no seu cotidiano. Os Estados tentam nos proteger das experiências glocais (de localismo cosmopolita). E as empresas (hierárquicas) tentam nos proteger da experiência de empreender. Por isso que escolas são igrejas, igrejas são partidos, partidos são corporações que geram Estados, que também são corporações, que viram religiões, que reproduzem igrejas, que se comportam como partidos... Porque, no fundo, é tudo a mesma coisa: artifícios para proteger as pessoas da experiência de fluzz! Uma vez desconstituídos tais arranjos feitos para conter, contorcer e aprisionar fluxos, disciplinando a interação, uma vez corrompidos os scripts dos programas verticalizadores que rodam nessas máquinas (e que, na verdade, as constituem), o velho mundo único se esboroa. Isso está acontecendo. Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, não-Estados-nações e não-empresas-hierárquicas começam a florescer. Com tal florescimento, a estrutura e a dinâmica das sociosferas estão sendo radicalmente alteradas neste momento, mas não por formidáveis revoluções épicas e grandes reformas conduzidas por extraordinários líderes heróicos, senão por pequenas experiências, singelas, líricas, vividas por pessoas comuns! Aquelas mesmas experiências de interação das quais fomos poupados. É como se tudo tivesse sido feito para que não experimentássemos padrões de interação diferentes dos que deveriam ser replicados. Mas nós começamos a experimentar. E “aqui estamos – como escreveu Hakim Bey (1984) – engatinhando pelas frestas entre as paredes da Igreja, do Estado, da Escola e da Empresa, todos os monolitos paranóicos”.

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Aprendizagem, não ensino

As escolas foram urdidas para nos proteger da experiência da livre aprendizagem - Psiu! Cale a boca. Comporte-se! Pare de conversar. Para de perguntar. Em vez de conversação, silêncio. A quem é inferior (ignorante) cabe apenas ouvir o superior (aquele que sabe). Isto foi, é e sempre será escola: um artifício para proteger os alunos da experiência de fluzz. Sim, escolas não são comunidades de aprendizagem. São burocracias do ensinamento. Não são redes distribuídas de pessoas voltadas à busca e ao compartilhamento do conhecimento. São hierarquias sacerdotais cujo principal objetivo é ordenar indivíduos capazes de reproduzir atitudes de disciplina e obediência. Não são ambientes favoráveis à emergência de dinâmicas interativas, mas à imposição de relações intransitivas. Estruturas centralizadas, baseadas na separação de corpos: docente (hierarquia-ensinante) x discente (massa-ensinada). A arquitetura traduz o conceito. Na chamada educação formal, escolas são construções que aprisionam crianças e jovens em salas fechadas, obrigados a sentar enfileirados, como gado confinado ou frangos de granja; pior: nas “salas de aula” ficam alguns – a maioria – olhando para a nuca dos outros. São campos de concentração e adestramento, onde o aluno tem de saltar obstáculos, vencer as provas. São prisões temporárias em que se tem de cumprir a pena, pagar a dívida. Não é por acaso que a maior recompensa na escola é passar de ano. Ano após ano. Até sair. - Ufa! Livre afinal. Por que construímos tal aberração? Fomos levados a acreditar que o ensino era o antecedente da aprendizagem. Em termos lógicos formais: ensino => aprendizagem; donde, formalmente: não-aprendizagem => não-ensino. Mas ao que tudo indica o ensino surgiu – como instituição – de certo modo, contra a aprendizagem. E não-ensino, dependendo das circunstâncias, pode até aumentar as possibilidades de aprendizagem. O que é sempre um perigo para alguma estrutura de poder. Onde começou o ensino? Qual é a origem do professor? Ora, ensino é ensinamento. Mas ensinamento é, originalmente, (reprodução de)

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estamento (ou da configuração recorrente de um cluster enquistado na rede social). Alguém tem alguma coisa que precisa transmitir a outros. Precisa mesmo? Por quê? Alguém conduz (um conteúdo determinado, funcional para a reprodução de uma estrutura e suas funcionalidades). E alguém recebe tal conteúdo (tornando-se apto a reproduzir tal estrutura e tais funcionalidades). Eis a tradição! Os primeiros professores – parece evidente – foram os sacerdotes. A primeira escola já era uma burocracia sacerdotal do conhecimento (uma estrutura hierárquica voltada ao ensinamento). Isso significa que só há ensinamento se houver hierarquia (uma burocracia do conhecimento). Sim, todo corpus sacerdotal é docente. A tradição é tão forte que há até bem pouco a doutrina oficial católica romana (e ela não é a única) ainda dividia a igreja em docente (ensinante: os hierarcas) e discente (ensinada: os leigos). E as escolas, que também se estruturaram, em certo sentido, como igrejas (mesmo as laicas), consolidaram sua estrutura com base na separação de corpos entre docentes e discentes. O que se ensina é um ensinamento. Quando você ensina, há sempre um ensinamento. Mas quando você aprende há apenas um aprendizado, não há um “aprendizamento”, quer dizer, um conteúdo pré-determinado do aprendizado. O que se aprende é o quê? Ah! Não se sabe. Pode ser qualquer coisa. Não está predeterminado. Eis a diferença! Eis o ponto! A aprendizagem é sempre uma invenção. A ensinagem é uma reprodução. Mas como escreveu o poeta Manoel de Barros (1986) no Livro sobre Nada: “Tudo que não invento é falso” (1). O professor como transmissor de ensinamento e a escola como aparato separado (sagrado na linguagem sumeriana) surgiram, inegavelmente, como instrumentos de reprodução de programas centralizadores (verticalizadores) que foram instalados para verticalizar (centralizar) a rede-mãe. As escolas foram urdidas para nos proteger da experiência da livre aprendizagem. Aprender sem ser ensinado é subversivo. É um perigo para a reprodução das formas institucionalizadas de gestão das hierarquias de todo tipo. Por isso o reconhecimento do conhecimento é, até hoje, um reconhecimento não do conhecimento-aprendido, mas do conhecimento-ensinado, dos graus alcançados por alguém no processo de ordenação a que foi submetido. Mas como twittou Pierre Lévy (2010), as universidades não têm mais o monopólio da distribuição do conhecimento; restou-lhes tentar reter em suas mãos o monopólio da distribuição do diploma.

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Autodidatismo, não heterodidatismo

Eu busco o conhecimento que me interessa do meu próprio jeito Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede estamos condenados a nos tornar buscadores cada vez mais autônomos. É assim que transitaremos do heterodidatismo para o autodidatismo: quando pudermos dizer: eu busco o conhecimento que me interessa do meu próprio jeito. Aprender a aprender é a condição fundamental para a livre aprendizagem humana em uma sociedade inteligente. É ensejar oportunidades aos educandos de se tornarem educadores de si mesmos (aprendendo a andar com as próprias pernas ao se libertarem das muletas do heterodidatismo). O educando-buscador será um educador não-ensinante. Porque será um aprendente (2). Nos Highly Connected Worlds, todos seremos, em alguma medida, autodidatas. Um autodidata é alguém que aprendeu a aprender. Uma criança, ou mesmo uma pessoa adulta ou idosa, navegando, lendo e publicando na web, é, fundamentalmente, um autodidata. Todo aprendizado depende da capacidade de estabelecer conexões e reconhecer padrões. Cada vez mais será cada vez menos necessário que alguém ensine isso. Quando as possibilidades de conexão aumentam, também aumentam as possibilidades de reconhecer padrões (porque aumenta a freqüência com que, conhecendo uma diversidade cada vez maior de padrões, nos deparamos com homologias entre eles); quer dizer que, a partir de certo grau de conectividade, o heterodidatismo não será necessário. Nos dias de hoje, uma criança com acesso à Internet e noções rudimentares de um ou dois idiomas falados por grandes contingentes populacionais (como o inglês ou o espanhol, por exemplo), já é capaz de aprender muito mais – e com mais velocidade – do que um jovem com o dobro da sua idade que, há dez anos, estivesse matriculado em uma instituição de ensino altamente conceituada. Se souber ler (e interpretar o que leu), escrever, aplicar conhecimentos básicos de lógica e matemática na solução de problemas cotidianos e... banda larga, qualquer um vai sozinho. Ora, isso é terrível para os que querem adestrar as pessoas com o propósito de fazê-las executar certos papéis predeterminados. Isso é um horror para os que

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querem formar o caráter dos outros e inculcar seus valores nos filhos alheios. Colecionadores de diplomas e títulos acadêmicos não terão muitas vantagens em uma sociedade inteligente. Suas vantagens provêem da idéia de que a sociedade é burra (e eles, portanto – que compõem a burocracia sacerdotal do conhecimento – são os inteligentes). Para se destacar dos demais – quando o desejável seria que se aproximassem deles – os “sábios” precisam que a sociedade continue burra. Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio quem organiza o conhecimento é a busca. Mas os caras ainda insistem em querer organizar o conhecimento para você (isto é o hetero-didatismo). Toda organização do conhecimento para os outros corresponde a necessidades de alguma instituição hierárquica e está sintonizada com seus mecanismos de comando-e-controle. Toda organização do conhecimento de cima para baixo procura controlar e direcionar o acesso à informação por algum meio. Os organizadores do conhecimento para os outros ainda entendem conhecimento como “informação interpretada”. Interpretada, é claro, do ponto de vista de seus possíveis impactos sobre a estrutura e a dinâmica das organizações hierárquicas de que fazem parte. Pretendem, assim, induzir a reprodução de comportamentos adequados à reprodução da estrutura e da dinâmica dessas organizações hierárquicas. Por meio da urdidura de sistemas de gestão do conhecimento – desde os velhos currículos escolares aos modernos knowledge management systems, por exemplo – querem codificar, disseminar e direcionar a apropriação de conhecimentos para formar agentes de manutenção e reprodução de determinado padrão organizacional. Mas já vivemos em um momento em que não se pode mais trancar o conhecimento – esse bem intangível que, se for aprisionado (estocado, protegido, separado), decresce e perde valor e, inversamente, se for compartilhado (submetido à polinização ou à fertilização cruzada com outros conhecimentos) cresce, gera novos conhecimentos e aumenta de valor (e é isto, precisamente, o que se chama de inovação). E estamos nos aproximando velozmente de uma época em que será cada vez menos necessária uma infra-estrutura hard instalada para produzir conhecimento (e inclusive outros produtos tangíveis, como estão mostrando as experiências nascentes de peer production ou crowdsourcing). Novos ambientes interativos surgidos com a Internet já estão mostrando também a improdutividade (ou a inutilidade mesmo) de classificar o

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conhecimento a partir de esquema classificatório construído de antemão. Por exemplo, nos primeiros tempos do Gmail havia a recomendação: não classifique, busque! Hoje continua lá, literalmente: “O foco do Google é a pesquisa, e o Gmail não é exceção: você não precisa perder tempo classificando seu e-mail, apenas procure uma mensagem quando precisar e a encontraremos para você”. É claro que as buscas atuais (na Internet, por exemplo) ainda são feitas em mecanismos fechados que não permitem que o usuário redefina ou modifique os algoritmos de acordo com suas percepções e necessidades. Mas a tendência é que a busca seja cada vez mais programável e cada vez mais semântica (3). A busca semântica substituirá boa parte dos esforços feitos até agora para “organizar” o conhecimento. Mas é o perfil da busca – bottom up – que vai dizer qual o conhecimento que é relevante e não a decisão de um centro de comando-e-controle que queira dizer às pessoas – top down – o que elas devem conhecer. Todos esses esforços por manter padrões verticais de um tipo de sociedade que já está fenecendo vão ser implacavelmente punidos pelas estruturas e pelas dinâmicas horizontais emergentes das novas sociosferas que estão florescendo. Nesses mundos altamente conectados toda a gestão de organizações (inclusive a gestão do conhecimento) é regulada por meio de outros processos em rede. O autodidata é um buscador, mas quem busca é a pessoa. A pessoa é o indivíduo conectado e que, portanto, não se constitui apenas como um íon social vagando em um meio gelatinoso e exibindo orgulhosamente suas características distintivas e sim também como um entroncamento de fluxos, uma identidade que se forma a partir da interação com outros indivíduos. A pessoa como continuum de experiências intransferíveis e, ao mesmo tempo, como série de relacionamentos, aprende por estar imersa (conectada) em um ambiente educativo entendido como ambiente de aprendizagem. Headhunters inteligentes não estão mais se impressionando tanto com a coleção de diplomas apresentados por um candidato a ocupar uma vaga em uma instituição qualquer. Querem saber o que a pessoa está fazendo. Querem saber o que ela pode ser a partir do que pretende (do seu projeto de futuro) e não o que ela é como continuidade do que foi (da repetição do seu passado). Está certo: como se diz, o passado “já era”. O novo posto pretendido não será ocupado no passado e sim no futuro. Então o que é necessário avaliar é a linha de atuação ou de pensamento que está sendo

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seguida pelo candidato. Em breve, as avaliações de aprendizagem serão feitas diretamente pelos interessados em se associar ou em contratar (lato sensu) uma pessoa. Redes de especialistas de uma área ou setor continuarão avaliando os especialistas da sua área ou setor. Mas essa avaliação será cada vez horizontal. E, além disso, pessoas avaliarão outras pessoas a partir do exame das suas expressões de vida e conhecimento, pois que tudo isso estará disponível, será de domínio público e não ficará mais guardado por uma corporação que tem autorização exclusiva para acessar e licença oficial para interpretar tais dados. Cada pessoa poderá ter, por exemplo, a sua própria wikipedia. Ao invés de aceitar apenas as oblíquas interpretações doutas, passaremos a verificar diretamente a wikipedia de cada um – o arquivo-vivo que contém as definições dos termos habituais, os pontos de vista, as referências, os trabalhos e as conclusões sobre os assuntos da sua esfera de conhecimento e de atuação. Quem gostar do que viu, que contrate ou se associe ao autor daquela wikipedia. Ponto final.

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Alterdidatismo, não heterodidatismo

“Eu guardo o meu conhecimento nos meus amigos” De certo ponto de vista, nos Highly Connected Worlds qualquer um vai sozinho, desde que tenha aprendido o fundamental. O fundamental, como vimos, é aprender a aprender. O fundamental não pode estar baseado na transferência de conteúdos temáticos secundários e sim na disponibilização de ferramentas de auto-aprendizagem e de comum-aprendizagem. Os que se metem a organizar processos educativos para os outros deveriam começar perguntando o que é necessário para que uma pessoa e uma comunidade possam fazer o seu próprio itinerário de aprendizagem. Do ponto de vista do aprendizado – do sujeito aprendente e não do objeto ensinado –, três condições caracterizam a inteligência tipicamente humana (quer dizer, sintonizada com o emocionar humano): estabelecer conexões; reconhecer padrões; e linguagear e conversar (no sentido que Humberto Maturana confere a essas noções) (4). A partir daí estamos falando de humanos (e é necessário fazer essa ressalva porquanto máquinas também podem aprender) e podemos então listar as ferramentas de auto-aprendizagem ou “alfabetizações” (em um sentido ampliado): a alfabetização propriamente dita, na língua natal (ler e escrever e interpretar o que leu); e as outras “alfabetizações”, como, por exemplo, em uma segunda língua da globalização (pelo menos ler, em inglês ou espanhol); matemática (dominar as operações matemáticas elementares e aplicar esses conhecimentos básicos na vida cotidiana); lógica (aprender a argumentar e identificar erros lógicos em argumentos simples); digital (navegar e publicar na Internet e operar as ferramentas digitais de inserção, articulação e animação de redes). Estes – ao que parece – são os requisitos e as ferramentas contemporâneas da inclusão educacional. Quem dispõe deles pode caminhar sozinho; ou seja, de posse de tais instrumentos, cada um, em função de suas opções pessoais, pode traçar seus próprios itinerários de formação e compartilhá-los com suas redes de aprendizagem. Esses são os requisitos para o autodidatismo. No entanto, de outro ponto de vista – o do alterdidatismo – a rigor, ninguém pode continuar caminhando sozinho. Aprender a aprender está intimamente relacionado a aprender a interagir em rede. Mesmo que a

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escola básica se dedicasse precipuamente a isso, mesmo assim não se poderia abrir mão da educação em casa (a primeira rede social na qual o ser humano se conecta), nem da educação comunitária (a expansão dessa rede, envolvendo os vizinhos, os amigos e conhecidos mais próximos). O aprender a conviver (com o meio natural e com o meio social) talvez requeira outras “alfabetizações”: por exemplo, a alfabetização em sustentabilidade (incluindo alfabetização ecológica e alfabetização para o empreendedorismo e para o desenvolvimento humano e social sustentável local ou comunitário); e a alfabetização democrática (em um sentido deweyano do termo: para a vida comunitária e para as formas de relacionamento que ensejam a regulação social emergente; i. e., as redes sociais distribuídas). Mas essas “alfabetizações” não são temas curriculares ou disciplinas. São drives capazes de gerar agendas compartilhadas de aprendizagem. Não é por acaso que a educação para a sustentabilidade, quer dizer, para a vida (em um sentido ampliado, envolvendo os ecossistemas, inclusive o ecossistema planetário) e para convivência social, não compareçam nos currículos escolares. Elas não são propriamente objetos de ensino e sim de aprendizagem-na-ação compartilhada. Ninguém é capaz de aprender essas coisas apenas tomando aulas ou lendo textos. É necessário vivê-las, experimentá-las, ou melhor, convivê-las (e é por isso que são drives geradores de agendas compartilhadas de aprendizagem). É compartilhando essas agendas de aprendizagem que o educador se torna um educando (um aprendente da interação educadora). Nesse aprender-fazendo esvai-se a distinção entre professor e aluno: todos passam a ser agentes comunitários de educação. Portanto, quando se diz (do ponto de vista do autodidatismo) que qualquer um vai sozinho, e quando se diz (do ponto de vista do alterdidatismo) que, a rigor, ninguém pode caminhar sozinho, está-se dizendo a mesma coisa: que o heterodidatismo no qual se baseiam os sistemas de ensino é uma muleta que deve ser abandonada. Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede estamos condenados a nos tornar polinizadores cada vez mais interdependentes. É assim que transitaremos do heterodidatismo para o alterdidatismo: quando pudermos dizer: eu guardo o meu conhecimento nos meus amigos. A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A escola é a rede. Nela, todos seremos alterdidatas. Um alterdidata é alguém

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que aprendeu a conviver com o meio natural e com o meio social em que vive. Aprender a conviver com o meio natural e com o meio social é ensejar oportunidades aos educadores de se tornaram educandos da interação comunitária na nova sociedade em rede (desaprendendo ensinagem ao se libertarem das muletas do heterodidatismo). O educador-polinizador será alguém que desaprendeu a ensinar. Porque será um aprendente. Dominar a leitura e a escrita, saber calcular e resolver problemas, ter condições de compreender e atuar em seu entorno social, ter habilidade para analisar fatos e situações e ter capacidade de acessar informações e de trabalhar em grupo, são geralmente apresentados como objetivos do processo educacional básico. No entanto, para além, muito além, de tudo isso, os novos ambientes educativos em uma sociedade-rede tendem a valorizar outras competências ou habilidades, como a de identificar homologias entre configurações recorrentes de interação que caracterizam clusters (e, conseqüentemente, reconhecer potenciais sinergias e aproveitar oportunidades de simbiose), saber não apenas acessar, mas produzir e disseminar informações e conseguir não somente trabalhar em grupo, mas fazer amigos e viver e atuar em comunidade. De certo modo, tudo o que parece realmente necessário para a convivência ou a vida em rede, como a educação para a democracia, a educação para o empreendedorismo e para o desenvolvimento ou a sustentabilidade, não comparece nos currículos das escolas. Não pode ser por acaso. Isso talvez corrobore a constatação de que a escola é uma das instituições que mais resistem ao surgimento da sociedade- rede. Por quê? Ora, porque embora se declarem instituições laicas, as escolas são, no fundo, igrejas; ou seja, ordens hierárquicas (sacerdotais) que decidem o que as pessoas devem (saber) reproduzir. Graus de aprendizagem (na verdade, de ensino) são ordenações: medem a sua capacidade de replicar uma determinada ordem. Não é por acaso que a educação a distância encontrou fortíssima resistência na academia. Pelos mesmos motivos, processos e programas educacionais extra-escolares são duramente combatidos pelas corporações de professores, que argumentam – sem se darem conta de que, com isso, estão apenas revelando seu caráter sacerdotal – que não se pode deixar a educação nas mãos de leigos... No entanto, neste momento estão sendo elaboraradas e testadas metodologias compatíveis com processos de inteligência coletiva (“learn

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from your neighbours” - Steve Johnson; “I store my knowledge in my friends” - Karen Stephenson) baseadas na idéia de cidade educadora reconceitualizada como cidade-rede de comunidades que aprendem. Novas práticas estão surgindo a partir de experiências voltadas ao estímulo ao autodidatismo, adaptadas às novas formas de interação educativa extra-escolares, como o homeschooling e, sobretudo, communityschooling, porém na linha do unschooling. Novas teorias da aprendizagem, como o conectivismo, estão tentando mostrar como as redes sociais devem constituir o padrão de organização das novas comunidades de aprendizagem capazes de disseminar e empregar ferramentas de auto-aprendizagem e de comum-aprendizagem (5).

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Não-escolas: a escola é a rede

Nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente (em rede) Nos Highly Connected Worlds a educação não pode ser mais nada disso que andaram falando nos últimos quatro séculos do mundo único. Simplesmente porque não haverá ‘a’ educação. O conceito de educação – ao contrário do que parece – é um conceito totalizante e regressivo. Não é a toa que tenha surgido juntamente com o conceito de sociedade. Não pode existir ‘a’ educação, assim como não pode existir ‘a’ sociedade. Não há uma educação e sim uma diversidade de processos de aprendizagem. Não há uma sociedade e sim uma diversidade de sociosferas. O consenso que se generalizou sobre ‘a’ educação é paralisante. A crença de que a educação vai resolver todos os problemas está tão generalizada que as pessoas sequer percebem que, se isso fosse verdade, países como a Bulgária ou Cuba seriam considerados desenvolvidos. Quando os processos de aprendizagem forem libertados – ou quando a geração de sociosferas (uma espécie de “lei do ventre livre” social) for libertada: no fundo é a mesma coisa! – a educação na sociedade terminará. A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A escola é a rede. Nela, todos seremos autodidatas e alterdidatas: quando pudermos dizer: nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente (em rede). Um autodidata-alterdidata é alguém que aprendeu a aprender-convivendo. Como buscadores e polinizadores, não seremos ensinados nem ensinadores. Porque todos seremos aprendentes. Sociosferas em que as redes são as escolas serão aquelas “sociedades desescolarizadas”, como queria o visionário Ivan Illich (6). A sociedade sem escola de Illich poderia ser renomeada como a sociedade-escola, desde que ficasse claro que se trata da sociedade- rede; ou seja, estamos falando das comunidades educadoras que se formam na sociedade-rede. Nesse sentido, não são os aparatos educativos hierárquicos, enquistadas dentro da sociedade, que educam basicamente: na medida em que a sociedade de massa vai dando lugar à sociedade em rede, são as próprias sociosferas (glocais) que educam, por meio das comunidades (clusters) que necessariamente se formam em seu seio.

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Comunidades educadoras são, antes de qualquer coisa, comunidades de aprendizagem, quer dizer, comunidades-que-aprendem. Isso vale para tudo, não apenas para as escolas como aparatos da educação formal. Também virarão não-escolas os centros de pesquisa e investigação, as sociedades filosóficas e os grupos criativos que usinam novas idéias e inauguram novas maneiras de pensar (a escola na sua acepção de think tank).

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Matar a escola = matar o Buda

Quando o mestre está preparado, o discípulo desaparece É difícil entender a natureza de uma não-escola. No mundo único as pessoas buscavam um sistema produtor de respostas capazes de fazer sentido global para elas. Eram atraídas por religiões, igrejas e seitas (religiosas e laicas), sociedades filosóficas e escolas de pensamento (mesmo aquelas que, baseadas na conversação, se intitulavam comunidades). Elas forneciam a proteção contra a pergunta-disruptiva por meio de uma meta-explicação coerente, a segurança de uma grande narrativa totalizante ou de esquemas explicativos gerais que permitiam que alguém se identificasse e comungasse com outros que palmilhavam o mesmo caminho e tivesse, assim, uma justificativa ética para se fechar à interação com o outro-imprevisível. Mas tudo isso é escola! É muito difícil não construir um esquema organizador para as conversas mantidas por qualquer grupo. Mas a tarefa em uma não-escola não é criar uma espécie de wikipedia, nem mesmo uma contextopedia, com os significados que foram sendo construídos via consenso-administrado a partir do debate ou da conversação. Não há significados gerais universais. Não há significados sempre válidos para os mesmos contextos (inclusive porque, a rigor, nunca se repetem "mesmos contextos"). Há significâncias atribuídas por sujeitos em interação e válidas para os momentos de interação em que tais sujeitos estão envolvidos. São significados-fluzz, que mudam continuamente com o fluxo e o máximo que podemos fazer é mapear as relações entre esses significados mutantes. Sim, reconheçamos que não é fácil para nós aceitar o presente, não é fácil resistir à tentação de arquivar o passado em caixinhas, sobretudo se as plataformas que utilizamos são p-based (baseadas em participação) e não i-based (baseadas em interação). Mas já não se trata mais de sistematizar conteúdos ou de interpretar e sintetizar respostas cognatas ou convergentes. Trata-se agora apenas de linkar para facilitar a busca. Quem organiza o conhecimento é a busca. Quem produz (novo) conhecimento (como relação sempre inédita, não como conteúdo arquivável) não é a gestão, mas a interação. Na configuração de novos ambientes interativos de produção de conhecimento não deve haver "progresso", no sentido de constituição de um corpo coerente, que vai se tornando cada vez mais redondo e polido (até que a epistemologia consiga espelhar a ontologia). Não se trata de

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construir um códex, uma doutrina, um ensinamento, uma teoria explicativa de tudo, uma nova plataforma de visão de mundo. Isso é o que diferencia as novas escolas-não-escolas dos mundos altamente conectados, de uma escola, quer dizer, de uma igreja (7). Sim, as escolas como centros de pensamento também são igrejas. Elas surgem quando criamos programas de separação entre os de dentro e os de fora a partir de um conteúdo, de uma mensagem, de uma doutrina, de um conjunto de idéias que alguns compartilham e outros não. Se fizermos isso, erigiremos uma escola; quer dizer, uma igreja. Se você junta os que compartilham qualquer corpo de idéias (mesmo que sejam idéias tão heterodoxas e libertárias como estas que estão sendo expostas aqui e agora) e, a partir daí, constrói um coletivo, você está fazendo uma escola. Não importa o que você pense, valorize, fale ou pregue: você ensina, quer dizer, escorre por um sulco já cavado pelo ensinamento! Há uma coerência interna e há completude em boa parte das escolas de pensamento que floresceram nos milênios passados. É como um mundo que foi construído (e ninguém se engane: há sabedoria nesse mundo; a questão é que sabedoria não pode ser um critério aceitável para validar sistemas hierárquicos). E ocorre que existem múltiplos mundos. Se você exige que uma pessoa viva na coerência do mundo que você construiu como condição para se deixar alterar por essa pessoa (ou seja, interagir com ela), então você não está realmente aberto à interação (com o outro-imprevisível): você quer participação dos outros no seu espaço, o que é uma forma de exigir (sem aparentemente fazer qualquer exigência formal) que os outros vivam na mesma coerência em que você vive. Mas essa é a definição de seita, de escola. Não é um problema de comunicação, de adaptar a linguagem ou adotar uma postura tática para se fazer entender pelos "de fora". Nada disso. O problema aqui é a rede (ou melhor, a falta dela) Esse comportamento em geral não é intencionalmente constituído e reproduzido. Ele é uma decorrência do padrão de organização adotado. Faça uma rede aberta de conversações e ele se esfuma; ou seja, a escola desaparece para surgir em seu lugar uma rede de livre aprendizagem. Assim como desaparecerá o codex, o corpo doutrinário referêncial único: ou seja, o legado fundante da escola de pensamento desaparecerá para dar lugar a miríades de construções conceituais por ele inspiradas.

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O problema é que toda ereção de um sistema implica uma armadilha. Você fica rodando dentro dele. E para dialogar com as pessoas que vivem nele, você também precisa também rodar dentro dele. A palavra "rodar", aqui, é empregada no sentido contemporâneo de "rodar um programa" (software). Sim, porque o sistema sobre o qual falamos, é um programa de atribuições de significados e, mais do que isso, de construção dos processos particulares pelos quais se atribui significados. Para interagir com quem está dentro do sistema você precisa se plugar e "carregar" o programa (em você). Ao carregar o programa, você carrega também sua linguagem (script) e, além disso, seu linguageado e, às vezes, até mesmo seu gestual. Pode-se retrucar que isso ocorre, em maior ou menor medida, com qualquer construção conceitual que apresente os critérios epistemológicos de coerência interna e completude. É verdade. Mas quando o sistema valida seus argumentos internamente, estando os critérios de validação tão implicados no que se quer validar e vice-versa (ou seja, estando a epistemologia tão fundida à ontologia), a verificabilidade fica subordinada (sub-ordenada) pela explicação auto-referente. É por isso que, em ciência, não se pode abrir mão do critério da verificabilidade, que deve ter o mesmo status epistemológico dos critérios da coerência interna e da completude (as quais, sozinhas, não bastam). Assim, os resultados de uma explicação devem sempre poder ser verificados por sujeitos que adotam outros esquemas explicativos. Um bom exemplo de escola de pensamento é a escola freudiana nos seus primórdios. Uma pessoa deve poder verificar os efeitos do que a explicação freudiana atribui a determinado complexo sem ter que adotar a explicação freudiana. Se sou obrigado a me tornar freudiano para perceber os fenômenos psíquicos que poderiam ocorrer com quaisquer seres humanos independentemente da explicação freudiana (e da existência de Freud), então estou preso a um sistema incapaz de interagir com outras explicações (externas às circularidades freudianas). E corro o risco de recair no dogmatismo dos primeiros freudianos: uma pessoa deve poder contestar a existência de um complexo sem ser acusada de estar fazendo isso justamente por estar possuída por tal complexo. Em alguma medida, isso ocorre com todos os sistemas auto-referentes, sobretudo na sua "primeira-infância". Eric Raymond (2001), no Hacker Howto (8) aconselhava o estudo do Zen aos hackers, sem dúvida um formidável software de desconstituição de certezas, compartilháveis por uma ou várias comunidades. Talvez seja o caso, porém, de voltar ao Tao, para limar as aderências doutrinárias que o

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Zen adquiriu: ao se fundir ao budismo foram introduzidos conteúdos... Sim, continua sendo o Zen, mas só depois de você matar o Buda. Qualquer comunidade de pensamento precisa matar o seu fundador (que é, inclusive, a melhor forma de amá-lo). Quando esse fundador é uma pessoa, precisa se livrar das aderências de um modo-de-argumentar, de uma autêntica maneira particular de pensar, falar e escrever que fazia sentido para aquele ser humano unique que a fundou. E o passo seguinte dessa ação de amar tão profundamente o fundador ao ponto de matá-lo é não constituir um grupo proprietário em torno de suas idéias, de abrir mão de erigir um corpo docente (uma escola) a partir de um corpo teórico para propagar um ensinamento que possa ser diferencialmente ministrado por "representantes autorizados", ainda que tudo isso seja – o que será pior – chancelado pelo próprio fundador. Isso é uma condição de contorno opaca quando precisamos de membranas. Não afirmamos que se deva matar o fundador apenas no sentido de matar a sua imagem idealizada e introjetada, tal como alguns interpretam o lema killing the buddha (como disse a pessoa-zen Lin Chi: “Se o Buda cruzar seu caminho, mate-o”). Trata-se de desabilitar um programa verticalizador que roda na rede gerando instituições que congelam fluxos. Trata-se de 'matar a escola' (no caso, constituída sobre um legado de pensamento transformado em ensinamento). Não tem nada a ver com querer ver morto algum fundador por achar que ele já está caduco ou ultrapassado. É o contrário. Quando se diz "matar o Buda" isso significa uma admiração suprema pelo Buda, como prefiguração do Buda que está-em-devir em cada um de nós e que só vai despertar quando o Buda que está fora desaparecer como referência (externa porém introjetada em uma espécie de falsa conniunctio). Mas, particularmente, no contexto desta discussão, significa matar a escola como ordenação do ensinamento abrindo possibilidades de formação de múltiplas comunidades de aprendizagem para além do círculo restrito dos que se matriculam em um curso ou seguem um programa privando da convivência de um grupo determinado. Ocorre que com a acelerada emergência, agora, dos Highly Connected Worlds, vida humana e convivência social tendem a se aproximar a ponto de revelar ou deixar entrever um superorganismo humano. Isso nos obriga a mudar nossas interpretações. E é um choque para as chamadas tradições espirituais (todas estas são artifícios para administrar espiritualidades conformes ao mundo patriarcal e não por acaso são baseadas nas escolhas do indivíduo, são ministradas por escolas - burocracias sacerdotais do

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ensinamento - e mantêm a relação mestre-discípulo). Agora será preciso mostrar que quando o mestre está preparado, o discípulo desaparece e, portanto, chegar à condição de mestre é chegar à condição do aprendente: aquele que matou o mestre não apenas quando matou a imagem idealizada do mestre dentro de si (introjetada), mas quando matou a escola. E tudo isso para quê? Ora, para que o Buda morto não renasça nas mãos dos que o mataram. Em outras palavras, não há como construir a base ideológica (ou de mundivisão) para uma grande narrativa em uma época em que não cabem mais os esquemas totalizantes de apreensão do mundo e de interação com o mundo. Não é mais possível a existência de uma (única) matriz ética para a humanidade. Em uma época em as redes cobrem o planeta como uma pele e em que, por um processo fractal, uma pluralidade de mentes globais está surgindo, não se trata mais de forjar um grupo para usinar um modelo e espalhá-lo e sim de surfar nas ondas interativas que estão fertilizando os diversos modelos que emergem de uma diversidade de comunidades de prática, de aprendizagem e de projeto que estão brotando e submetendo seus programas à esse tipo de polinização complexa. Essa visão é chave para não irmos parar de volta em algum lugar do passado: o processo é fractal! Não é possível salvar o mundo de uma vez: só é possível salvá-lo um instante de cada vez... (9) Mesmo porque não existe mais um mundo: os mundos já são – e serão, cada vez mais – múltiplos. Sim, não estamos mais na época do anúncio de uma nova proposta que, se abraçada por muitos no seu refletir-agir, vai supostamente salvar o planeta (harmonizar biosfera com antroposfera), redimir a humanidade ou nos levar para um porvir radiante. Não sabemos qual é o futuro. Sobretudo porque esse futuro (um futuro), felizmente, morreu. Não podemos pretender levar ninguém para lugar algum. A época em que vivemos é a época da desistência (10). A hora que vivemos é, portanto, a hora de abrir mão dessas pretensões de conduzir povos, orientar nações, mobilizar pessoas em torno de um objetivo comum para transformar a sociedade (e ‘a’ sociedade, como vimos, é uma abstração regressiva). Fomos contaminados por um padrão transformacional de mudança e queremos então transformar a sociedade. Mas... transformar para chegar aonde? E transformar o quê? E transformar em quê? E transformar por quê? Atravessados por essa pulsão transformacionista, legiões de militantes que continuam habitando os séculos passados vivem querendo fazer mudanças (que eles não podem, honestamente, saber quais são) em nome de uma causa. Mas é inútil. As mudanças em sistemas complexos (e as sociedades

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humanas são sistemas complexos) ocorrem, em boa parte, espontaneamente (se entendermos por isso que ocorrem em virtude de fluições que não alcançamos compreender e determinar). Estamos lidando com uma ordem de fenômenos que não podemos manejar (e é bom para a liberdade – para a livre aprendizagem humana – que não possamos fazer isso). A livre aprendizagem humana só pode ocorrer em redes de aprendizagem, quando nos libertarmos das escolas. Se quisermos uma rede de aprendizagem – i. e., uma não-escola – não podemos constituir um grupo que saia pelo mundo propagando um legado baseado nas idéias de algum fundador. Para ser uma rede, o legado tem que ser open, para poder ser desenvolvido, alterado, modificado, sem necessidade de ordenação ou chancela. Para poder ser rede a membrana deve deixar entrar e sair outros conteúdos dentro do escopo estabelecido (posto que se será uma rede voluntariamente construída haverá um escopo delimitado e algumas regras ou acordos de convivência, mas isso nada tem a ver com a adesão a um conteúdo substantivo). Sempre sem exigências, é claro. Mas sabendo que sem interagir com o outro imprevisível, com aquele que não planejamos interagir, não pode haver rede (social distribuída). Em suma, uma escola deve ser uma não-escola para ser rede. Não basta fluir na sintonia interna dos que acolhem o outro que reconhecem como desejoso de conservar o que querem conservar, do lugar onde estão, desde que esse conservar seja referente a um compartilhar um determinado conteúdo. Dizendo a mesma coisa de outra forma, não é o desejo (dos sujeitos) de conservar determinado corpo teórico, nem mesmo o desejo de conservar um modo de convivência explicitável e explicável (pelos sujeitos) que constitui a comunidade humana (ou a rede). A rede acontece quando você interage. Tudo que podemos fazer para ensejar a interação é evitar a produção artificial de escassez (é mais um não-fazer). Não adianta sistematizar conteúdos e esperar que, sintonizando-se com tais conteúdos, as pessoas passarão a conviver em rede. Isso ainda está no terreno do proselitismo (uma dimensão de ensino, de propagação de ensinamento, não de aprendizagem). As regras ou acordos de convivência estabelecidos por uma rede voluntariamente construída não são o mesmo que a adesão a um conteúdo substantivo (e, portanto, ninguém pode ser expulso de uma não-escola por estar em desacordo ou dessintonia com um conteúdo e ninguém terá como condição para ser admitido estar de acordo com tal conteúdo, como fazem as religiões, as seitas iniciáticas e as escolas de pensamento, inclusive as escolas budistas que aconselham matar o Buda).

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Espiritualidade, não religião

Formas pós-religiosas de espiritualidade, livres das ordenações das burocracias sacerdotais Nos novos mundos altamente conectados que estão emergindo, formas pós-religiosas de espiritualidade vão florescer. Elas serão mais-fluzz, quer dizer, mais expressões do curso que flui nas relações entre os humanos e dos humanos com o seu habitat do que tentativas de sintonia com um todo cósmico extra-humano. Elas serão espiritualidades consumáveis na interatividade ("terrestres" no sentido de serem realizáveis sem produzir anisotropias no espaço-tempo dos fluxos). Por isso se diz: quando fluzz soprar, prá que religião, prá que igreja? Humberto Maturana (2003) reinterpretou a origem das crenças místicas que estão na base das experiências que dão significado à vida humana a partir da hipótese de que havia (ou poderia e, então, poderá novamente haver) uma "espiritualidade" inerentemente terrestre (como a que apresentavam supostamente as sociedades agricultoras-coletoras incidentes na Europa pré-patriarcal) (11). O relevante nesse esforço de modificação do passado (quer dizer, de modificação do passado que só não-passou porque continua dentro da nossa mente, ou melhor, continua se propagando através da cultura, dos programas que "rodam" na rede social e por isso se replicam) é que essa "espiritualidade" ou experiência mística não gerou propriamente religiões. A visão de Maturana sobre o que chamamos de religião é precisa: "uma religião é um sistema fechado de crenças místicas, definido pelos crentes como o único correto e plenamente verdadeiro" (12). Com efeito, para ele,

"No processo de defender o seu viver místico, os patriarcas indo-europeus criaram uma fronteira de negação de todas as conversações místicas diferentes das suas. E estabeleceram, de fato, uma distinção entre o que passou a ser legítimo e ilegítimo, crenças verdadeiras e falsas. No âmbito espiritual, realizaram a praxis de exclusão e negação que, operacionalmente, constitui as religiões como domínios culturais de apropriação das mentes e almas dos membros de uma

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comunidade pelos defensores da verdade ou das "crenças" verdadeiras... [Quando se forma uma comunidade de crentes] o corpo de crenças adotadas pelos novos crentes - qualquer que seja sua complexidade e riqueza - não constitui uma religião. Isso só ocorre se os membros dessa comunidade afirmarem que suas crenças revelam ou envolvem alguma verdade universal, da qual eles se apropriaram por meio da negação de outras crenças... A apropriação de uma verdade mística ou espiritual que se sustenta como verdade universal constitui o ponto de partida ou de nascimento de uma religião" (13).

Se Maturana pode imaginar uma matriz assim, projetando-a no passado, também podemos fazer o mesmo, projetando-a no futuro. No mundo que criou, Maturana está absolutamente certo do ponto de vista dos novos mundos que quisermos co-criar. A dimensão mística (ou espiritual) faz parte de qualquer cultura que se possa chamar propriamente de humana. Como bem define Maturana, "a experiência mística - repito: a experiência na qual uma pessoa vive a si mesma como componente integral de um domínio mais amplo de relações de existência... depende da rede de conversações em que ela está imersa, e na qual vive a pessoa que tem essa experiência" (14). Não há, portanto, qualquer problema com a espiritualidade. O problema é com a religião. Não precisamos para nada de uma pós-espiritualidade e sim de novas formas (pós-religiosas) de espiritualidade. Podemos erigir igrejas, em um sentido amplo do termo (tão amplo que abarque até mesmo as escolas), sem ter religião (e podemos, ainda, codificar religiões laicas). Mas igreja, stricto sensu, só surge realmente quando erigimos um corpo separado de intérpretes, ou seja, uma burocracia sacerdotal que, por algum motivo, seja ordenada para fazer alguma intermediação entre o leigo (o não ordenado) e a revelação ou a fonte prístina da doutrina codificada (como nas religiões baseadas em escrituras). Todas as chamadas tradições espirituais que surgiram na civilização patriarcal são míticas-sacerdotais-hierárquicas-autocráticas. E não é a toa que se possa falar de uma tradição: há um fundo comum a todas elas. Todas - não apenas as templárias - replicam anisotropias no espaço-tempo dos fluxos (privilegiando, de alguma forma, a direção vertical).

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As doutrinas da tradição verticalizaram o mundo "povoando” todo o universo simbólico - ou aquilo que foi chamado de "mundo da psique" - com formas que não concorrem para o estabelecimento de um cosmos social que mantenha as mesmas propriedades em todas as direções, mas, pelo contrário, que privilegiam a direção vertical. Não é por outro motivo que achamos que deus está em cima e que o céu está em cima; o caminho evolutivo é sempre pensado como uma subida e o regressivo como uma descida. São camadas e camadas de interpretações simbólicas, depositadas uma sobre a outra, milênio após milênio. Basta entrar em um templo de qualquer ordem espiritual tradicional para se perceber com que profundidade o universo simbólico está marcado pela direção vertical. Nessas construções – sobretudo da tradição ocidental, herdeira do simbolismo templário babilônico, i. e., sumério – o caminho que nos conduz para deus, representado em geral por um triângulo, passa entre as duas colunas que se elevam do piso plano. E então encontramos o triângulo com o vértice para cima, sobre o quadrado, o pentagrama verticalmente orientado e muitas outras "orientações" que "norteiam" o desenvolvimento dos rituais e das práticas mágicas. O conteúdo ideológico que esses símbolos encarnam está inegavelmente associado à idéia de um poder vertical, do qual a pirâmide é o mais expressivo exemplo. E há ainda as escadas, muitas escadas, introduzidas por primeiro pelos templos sumérios - os zigurates: pirâmides feitas de escadas, com degraus representando graus de subida; ou de descida. Se houver uma mística (ou espiritualidade) não-patriarcal (nem matriarcal, é óbvio) ela será terrestre (horizontal, ou melhor, multidirecional). Toma-se aqui "terrestre" como isotrópico (nada de privilegiar a direção vertical: as fluições devem manter as mesmas propriedades em todas as direções). Ora, isso casa perfeitamente com a idéia de “formas pós-religiosas de espiritualidade” (uma feliz expressão de William Irwin Thompson) (15). Essas formas também não podem ser codificadas como doutrinas e nem servir de base para a ereção de igrejas (de qualquer tipo, stricto ou lato sensu). É a espiritualidade da vida cotidiana, da pessoa comum, do conectado a uma rede de conversações, do livre-interagente (não exatamente do participante) com o outro-imprevisível (e, portanto, aberta ao compartilhamento fortuito e não fechada no cluster dos que professam a mesma fé).

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Quem disse que os deuses não existem? Os deuses das religiões foram problemáticos porque foram hierárquicos e autocráticos como as religiões que os construíram Os problemas com as igrejas (e religiões) erigidas no contra-fluzz não têm nada a ver com os deuses. Têm a ver, isto sim, com os deuses das igrejas (e das religiões). Deuses existem desde que existe sociedade humana, muito antes de erigirmos igrejas e constituirmos religiões. E igrejas e religiões seriam – e foram, e são, e serão – sempre problemas (para a rede-mãe), mesmo sem quaisquer deuses. “Quem mandou dizer ao povo que os deuses não existem?” A pergunta teria sido feita – em tom de reprimenda – por Robespierre aos seus correligionários. Mas se isso não for uma lenda, se ele fez realmente tal pergunta, foi movido por maus motivos: não lançar desesperança sobre as massas... Faz parte da mentalidade de comando-e-controle. Agora, porém, podemos refazer a pergunta de outra forma: quem disse que os deuses não existem? Quanto mais investigamos as redes, mais evidências surgem de que os deuses existem. Se não existissem, como explicar que tantas pessoas, ao longo da história (e inclusive na pré-história), tenham pautado seus comportamentos em sintonia ou obediência ao que acreditavam ser a natureza, a essência ou os ditames divinos? Eles existem, sim, como modelos mentais, quer dizer, sociais (16). Os deuses, se já não se pode acreditar que sejam criadores do cosmos natural, sem dúvida são criadores de cosmos sociais. Eles são matrizes de programas que rodam na rede social. Congregam modelos do que será constelado no espaço-tempo dos fluxos e do que virará fenômeno social e, até, do que se codificará como norma, do que se congelará como instituição e do que se materializará como cidade, rua, praça. Sim, Zeus Agoraios estava de fato presente naquela praça do mercado da velha Atenas chamada Ágora. Mas o que significa dizer isso? Até a democracia nascente – laica por essência – tinha lá os seus deuses: por exemplo, o Zeus Agoraios e a deusa Peitho. Mas quando os gregos do século de Péricles invocam Zeus Agoraios eles conferem às conversações entre os homens livres na praça do mercado (o espaço público nascente) o caráter de algo digno de ser abençoado e protegido por um deus, abrindo

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uma brecha na tradição centralizadora (hierarquizante) segundo a qual os deuses tratavam desigualmente os humanos, ungindo os hierarcas e seus representantes (reis e sacerdotes) para conferir-lhes a autorização (divina) de exercer o poder sobre os demais e guiá-los por algum caminho. Quando os gregos invocam Peitho, a persuação deificada, eles confrontam a idéia autocrática de que a política era uma continuação da guerra por outros meios. Como escreveu Hannah Arendt (c. 1950) (17):

“No que dizia respeito à guerra, a polis grega trilhou um outro caminho na determinação da coisa política. Ela formou a polis em torno da ágora homérica, o local de reunião e conversa dos homens livres, e com isso centrou a verdadeira coisa política’ — ou seja, aquilo que só é próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos negavam a todos os bárbaros e a todos os homens não-livres — em torno do conversar-um-com-o-outro, o conversar-com-o-outro e o conversar-sobre-alguma-coisa, e viu toda essa esfera como símbolo de um peitho divino, uma força convincente e persuasiva que, sem violência e sem coação, reinava entre iguais e tudo decidia. Em contrapartida, a guerra e a força a ela ligada foram eliminadas por completo da verdadeira coisa política, que surgia e [era] válida entre os membros de uma polis; a polis se comportava, como um todo, com violência em relação a outros Estados ou cidades-Estados, mas, com isso, segundo sua própria opinião, comportava-se de maneira ‘a política’. Por conseguinte, nesse agir guerreiro, também era abolida necessariamente a igualdade de princípio dos cidadãos, entre os quais não devia haver nenhum reinante e nenhum vassalo. Justamente porque o agir guerreiro não pode dar-se sem ordem e obediência e ser impossível deixar-se as decisões por conta da persuasão, um âmbito não-político fazia parte do pensamento grego”.

Os deuses da democracia grega eram deuses da conversação, quer dizer, deuses-fluzz, deuses da interação. É claro que havia um âmbito a-político e não democrático na Grécia e, assim, havia também outros deuses hierárquicos e autocráticos (por exemplo, todos os deuses associados à guerra e à jornada do herói, aos vaticínios e ao destino). Mas como? Se a democracia é laica, por que teria ela seus deuses? Pois é. Laico não quer dizer propriamente ateu (sem deus) e sim sem religião (institucionalizada); ou seja, ser laico significa não fazer parte da burocracia sacerdotal instituída para intermediar a relação do homem com a divindade, isto é: para separar o ser humano da divindade; ou, como disse Jung, para proteger o homem da experiência de deus, abrindo sulcos para fazer escorrer por eles as coisas que ainda virão; ou ainda – o que é a mesma

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coisa – pavimentando com a crença um caminho para o futuro (e conseqüentemente, eliminando outros caminhos, reduzindo nosso estoque de futuros possíveis, exterminando mundos). Não, não há nenhum problema com os deuses. Os deuses das religiões foram problemáticos porque foram hierárquicos e autocráticos como as religiões que os adotaram (na verdade, que os construíram para seus propósitos). A questão relevante agora não é a de saber se existem ou não existem deuses (uma controvérsia tola), mas a de saber em que medida algum deus (um programa capaz de rodar na rede-mãe e de ensejar algum tipo de experiência mística ou espiritual, permitindo que uma pessoa viva a si mesmo como componente integral de um domínio mais amplo de relações de existência) favorece a reprodução de uma sociedade hierárquica ou a emersão de uma sociedade-em-rede. Os deuses pré-patriarcais foram naturais e não geraram religiões. Os deuses patriarcais foram sobrenaturais e geraram, estes sim, instituições hierárquicas: escolas (e ensino), igrejas (e religiões) e, sobretudo, Estados. (Quem sabe os deuses pós-patriarcais serão sociais e não gerarão nenhum desses tipos de deformações na rede-mãe – o que não significa, como veremos adiante, que não possam inspirar novas formas mais interativas de espiritualidade). Não é por acaso que as primeiras formas de Estado erigidas nas cidades antigas – as cidades-Estados da velha Mesopotâmia – tinham seus deuses. Cada uma tinha lá o seu deus ou a sua deusa. Um eco empalidecido dessa tradição são os nossos santos e santas padroeiros de cidades. Na Antiguidade, porém, as cidades não eram apenas consagradas ou dedicadas ao um deus ou deusa, senão que pertenciam aos deuses. Uruk e Ur eram de Innana, Nippur e Lagash de Ninurta A cidade-Estado-Templo sumeriana era uma habitação para um deus. Os seres humanos viviam nelas de favor. E para trabalhar para os deuses, para ser seus escravos (os feitores, é claro, eram os sacerdotes). Adorar (ter uma devoção) era a mesma coisa – inclusive etimologicamente – que trabalhar (a palavra hebraica ‘avod’, que pode ser traduzida por devoção, adoração e também por trabalho, ecoa esse perverso sentido ancestral). Os deuses em questão não eram os seres espiritualizados que foram idealizados depois. Eram apenas os superiores. Sobre-humanos sim, porém belicosos, intrigantes, genocidas, carnívoros... Está claro que eram – ou se manifestavam como – programas verticalizadores do cosmos social. Não eram sobre-humanos no sentido de serem mais perfeitos do que os

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humanos e sim no sentido de que não eram humanos, sua “presença” não era humanizante. Depois, por algum motivo, eles se hospedaram no subsolo de nossa consciência social (?), naquela região misteriosa que foi chamada de inconsciente coletivo (!). Eles eram mais ou menos assim como os vírus que hoje tentam invadir nossos websites. É curioso que alguns sistemas de segurança anti-spam, lançando mão de um Teste de Turing reverso – Completely Automated Public Turing test to tell Computers and Humans Apart (CAPTCHA) – sugestivamente perguntam: “Você é humano?” e então mandam a gente copiar algumas letras com formatação desfigurada (coisa que, por enquanto, os robôs virtuais ainda não conseguem fazer, só os humanos). Nenhuma organização hierárquica passaria nesse teste! Deuses sobre-humanos (ou não humanizados) levam necessariamente a sistemas de dominação. Todo relacionamento vertical recorrente (estrutura centralizada) materializa um sistema de dominação. Osho acertou em cheio o coração do problema quando disse: “não tenho nenhum Deus; desse modo, não tenho nenhum programa para você no qual você possa ser transformado em um escravo”. Ele decifrou o enigma quando identificou os deuses das religiões com um programa, um programa verticalizador. Portanto, o problema não são os deuses e sim esses deuses criados à imagem e semelhança dos hierarcas, que talvez os tenham criado assim ao não aceitarem o fluxo transformador da vida, para tentar evitar a morte; e ao não aceitarem fluzz – o fluxo transformador da convivência social –, para tentar perenizar os mundos que construíram em detrimento de outros mundos possíveis. Sim, o problema são os deuses autocráticos, feitos à imagem e semelhança dos sistemas de dominação. Esses deuses serão hierárquicos, por certo, mas, do ponto de vista das redes distribuídas, não haveria nenhum problema com deuses humanizados que não exigissem culto, obediência ou subordinação (como Jesus de Nazareh, por exemplo, aquele judeu marginal que humanizou IHVH, desde que não se tivesse tentado instrumentalizar suas experiências de vida e convivência social para codificar doutrinas, constituir religiões e erigir igrejas). Mas, como? Atribuir a uma pessoa, com exclusividade, um caráter divino, como fizeram, por alguma razão, seus primeiros discípulos, não seria um contra-senso nos mundos altamente conectados em que cada pessoa é uma singularidade em um mesmo tecido (social), possuidora, portanto, do mesmo status (humano) de todas as outras? Ora, William Blake, um poeta – porque os poetas são pessoas-fluzz

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– já resolveu essa questão para nós quando escreveu: “Jesus é o único Deus. Assim como eu, assim como você”. Desse mesmo ponto de vista, não haveria nenhum problema com deuses pós-patriarcais que fossem sociais (como o que foi chamado de Espírito Santo e que a comunidade dos amantes celebra dizendo: “Ele está no meio de nós”) – para seguirmos a numinosa compreensão, manifestada algures por Leo Jozef (Cardeal) Suenens, quando escreveu: “É precisam que sejam muitos para ser Deus”. Deuses divididos? Osíris foi – em uma de suas “não-vidas” – um deus dividido, acorde às necessidades de descentralização da teocracia faraônica. Deuses pós-religiosos serão fractalizados, acorde às contingências de distribuição dos Highly Connected Worlds. Sim, os deuses se modificam quando modificamos o hardware. E consequentemente muda também o que chamamos de espiritualidade. Em um mundo distribuído não pode haver culto organizado centralizadamente (por igrejas). Libertada do culto (e das suas ordenações religiosas), a espiritualidade também se distribui por todas as pessoas, cada qual podendo livremente vivê-la de acordo com suas conexões. Cada pessoa (que quiser) pode experimentá-la nas contingências do seu fluir, em sintonia com as redes sociais em que está imersa; ou seja, convivendo-a. No mundo único as pessoas viveram oprimidas por idéias totalizantes e uniformizantes, fossem, por um lado, provenientes da crença religiosa em um deus único (e incognoscível), fossem – pelo lado oposto – provenientes da crença tola de que deus não existe, ditada por uma ciência promovida a pansofia. Isso gerou um sem número de problemas, sobretudo psicológicos, quando as pessoas passaram a reprimir sua espiritualidade por medo do vexame e da reprovação dos bem-pensantes. Tal “verdade” supostamente libertadora, revelada por uma ciência deslizada do seu escopo, baseada em uma espécie de religião laica iluminista, era, na verdade, opressiva. Libertadas desse bom-senso ateista as pessoas podem ter sua própria experiência de deus (ou de qualquer ente ou processo que queiram escolher para representar ou simbolizar um domínio mais amplo de relações de existência no qual se sintam inseridas e possam viver tal inserção), interagindo. Tal inserção, é claro, também pode ser vivida sem conotação mística. Como disse Ilya Prigogine (1986) em entrevista a Renée Weber, em Diálogos com cientistas e sábios: “Pessoalmente, sinto que chegamos hoje à percepção de estarmos entranhados no mundo como um todo. Estamos descobrindo um

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vínculo sem recorrer a nenhum misticismo externo, estranho” (18). O que diminuirá, nos Highly Connected Worlds, são as chances de vivermos esse vínculo permanecendo do “lado de fora” do abismo, precavidos contra o caos ou protegidos da interação. Deuses interativos, porém, não estarão no futuro, como aquele da tradição hebraica que não podia ser nomeado a não ser pela expressão Ehie Asher Ehie – traduzível por “Eu serei o que serei” (o hebraico aceita) posto que estava no futuro. Esse deus da utopia (e da profecia), do não-lugar (porque o lugar do seu tempo nunca chega) – e refletindo sobre o qual o marxista heterodoxo, materialista e ateu, Ernst Bloch (1968) em O ateísmo no cristianismo, usinou a pérola: “Deus não existe, porém existirá” (19) – não pode interagir com as pessoas e, assim, não pode ser um deus-fluzz; ou, o que é a mesma coisa, não pode ensejar uma experiência mística ou espiritual fluzz. Formas pós-religiosas de espiritualidade serão predominantemente i-based e, portanto, tenderão a ser vividas no presente (o que significa que não nos jogarão naquela corrente alucinante da utopia e da profecia que tudo arrasta para o futuro, alienando-nos do presente). Tudo indica, porém, que as religiões (e as igrejas ou as ordens sacerdotais) remanescerão por muito tempo ainda. Mas a despeito de continuarem rodando na rede social, esses programas podem agora ser hackeados pelos novos hereges que já estão no meio de nós. Sim, como disse Bloch, “o melhor da religião é que ela produz hereges” (20).

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Ecclésias, não ordens sacerdotais Seus irmãos e irmãs estão espalhados em múltiplos mundos. Para achá-los você tem que remover o firewall e expor-se à interação Mas o que colocaremos no lugar das igrejas (e das religiões)? Ora, nada. O velho mundo único já colocou muitas instituições para fazer as vezes de igrejas: as escolas (e o ensino), os partidos (e as corporações), o Estado-nação (e seus aparatos). Mutatis mutandis, todas essas funcionam mais ou menos da mesma maneira, como ordens sacerdotais. E todas elas vão continuar existindo, com uma estrutura e uma dinâmica parecidas com as que têm hoje, para quem não entrar nos Highly Connected Worlds. Mas quem assumir a condição de nômade, viajante dos interworlds, pode – se quiser – fundar sua própria igreja-não-igreja. Nos mundos altamente conectados ninguém pode impedir, nem conseguirá dissuadir, que as pessoas fundem suas próprias não-igrejas. Elas não serão ordens sacerdotais, por certo, mas poderão ser ecclesias, no sentido de aglomerados dos que querem conviver sua espiritualidade, ou seja, dos que querem compartilhar as formas semelhantes como vivem um domínio mais amplo de relações de existência celebrando suas afinidades e amorosidades mutuas. O número dessas novas igrejas-não-igrejas tende a aumentar. Simplesmente porque – nos mundos em que se constituírem – também não haverá tantas restrições de ordem moral e cultural para sua existência. Ecclesias como assembléias de amantes, como redes (abertas) de buscadores que se dispõem a polinizar mutuamente os modos pelos quais vivem sua mística ou sua espiritualidade, vão proliferar no lugar de igrejas como ordens sacerdotais (fechadas) que se proclamam o único caminho, a única porta, a única esperança de salvação e que disputam entre si o tempo todo oferecendo-nos um formidável (e deplorável) contra-exemplo de fraternidade. As velhas igrejas – essas armadilhas construídas para arrebanhar ovelhas e apascentá-las – continuarão existindo, é claro, mas perderão relevância. Na medida em que um superorganismo humano começa a se manifestar nos mundos altamente conectados e que novos fenômenos – como o clustering, o swarming, o clonning o crunching e tantos outros que estão implicados no que chamamos de inteligência coletiva (e, quem sabe, no que ainda vamos chamar de emoção coletiva) – começam a irromper, haverá um motivo adicional para compartilhar. Você pode preferir o olhar do

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investigador que analisa tais fenômenos tentando manter os protocolos científicos de isenção e objetividade. Mas você também pode simplesmente viver e celebrar seu vínculo com essas novas ‘Entidades’ sociais – a palavra, assim com maiúscula, foi usada por Jane Jacobs em 1961 (21) – que se formam em uma dimensão mística. Se você buscava um domínio mais amplo de relações de existência para dar sentido à sua vida e vivê-la em sintonia com essa realidade (avaliada por você, não importa, como transcendente ou imanente), ei-lo: o simbionte social! O fundamental aqui é que não haja fechamento. Nos múltiplos mundos interconectados estão outras pessoas que se sentem (e sentem a transcendência ou a imanência) como você e podem se sintonizar com você. Seus irmãos e irmãs estão espalhados em múltiplos mundos. Para achá-los você tem que remover o firewall e expor-se à interação. Bem, ao fazer isso é possível que mais cedo ou mais tarde você perceba que tudo foi apenas um não-caminho. E descubra que seus irmãos e irmãs são todas as pessoas que estão em todos os mundos. Se você quiser fazer isso agora, possivelmente será encarado como herege. Aos olhos do mundo único será um herege, assim como são hereges os que abandonaram a escola, rejeitaram o ensino, rasgaram seus diplomas e títulos e se transformaram em catalisadores de processos de aprendizagem em comunidades livres de buscadores e polinizadores, estruturadas em rede. Assim como são hereges os que, desistindo dos partidos, não desistiram de fazer política (pública) nas suas localidades, na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos. Assim como são hereges os que renunciaram ao Estado-nação (e às suas pompas, e às suas glórias), refugando também as noções regressivas de patriotismo e nacionalismo, e viraram cidadãos transnacionais de suas glocalidades... Mas cuidado! Os anunciadores de uma nova ordem não são hereges no sentido em que a palavra está sendo usada aqui (quase aquele sentido em que Ernst Bloch empregou-a ao dizer que “o melhor da religião é que ela produz hereges”). São replicadores ou trancadores. No último meio século tivemos ondas e ondas de supostos hereges vaticinando um mundo novo. No fundo, o porvir radiante que anunciavam não era mais do que a revivescência de uma ordem ancestral hierárquica.

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Não há uma ordem pré-existente

A ordem está sempre sendo criada no presente da interação O reflorescimento das idéias espiritualistas que ocorreu na New Age provocou uma bateria de ondas que continuam até hoje quebrando nas praias dos buscadores de todos os matizes, mais de quarenta anos depois (se bem que, agora, já com intensidade bastante reduzida). As pessoas que, nas mais diversas situações, procuravam um sentido para suas vidas, tanto em experiências meditativas de recolhimento individual, quanto em ensaios coletivos de novos padrões de convivência social, queriam, no fundo, viver sua espiritualidade em uma época ainda pré-fluzz, mas que já anunciava tempos vertiginosos, de alta interatividade. E saíam então para todo lado em busca de novos caminhos, guias e mestres. Grande parte desses exploradores, porém, não empreendia livremente ou sem pré-conceitos suas buscas. Estavam impregnados das idéias – assopradas e reforçadas pelos gurus que se apresentavam em profusão – de “um novo reino de velhos magos”. Na base das mais diversas doutrinas, seitas, sociedades e ordens espiritualistas e ocultistas que ofereciam naquele mercado seus produtos e serviços, havia, entretanto, uma mesma visão básica, a qual aderiam tanto físicos e biólogos de vanguarda interessados no diálogo entre ciência e religião quanto roqueiros, quase todos sem prestar muita atenção aos seus pressupostos: a idéia de que havia uma ordem implícita (ou implicada) pré-existente em alguma esfera da realidade, oculta ou não acessível imediatamente. Eles queriam então ter acesso a essa ordem pura, queriam estabelecer uma sintonia com esse modelo não-manifestado, queriam atingir estados superiores de consciência para contemplar essa espécie de Unimatrix One e, para tanto, lançavam mão dos mais variados exercícios reflexivos, técnicas meditativas, rituais teúrgicos, práticas mágicas e processos de iniciação. Ainda vivemos nas bordas dessas vagas, embora a New Age não tenha acontecido segundo o que foi previsto. O mundo único não se reencantou com o reflorescimento de espiritualidades ancestrais. Ainda bem. Porque o que está acontecendo nos múltiplos mundos altamente conectados é muito, muito mais profundo, mais abrangente e mais surpreendente do que tudo que anunciaram os gurus da nova era.

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Depois dos gurus, vieram alguns hereges dizendo: não há uma ordem; se há, foi inventada por alguém e não quero me subordinar a ela. Os pioneiros da Internet e os visionários do ciberespaço dos anos 90 foram impelidos por esse vento libertário, em parte sob a influência de obras disruptivas como TAZ – Zona Autônoma Temporária (22) e CAOS – Os panfletos do Anarquismo Ontológico (23), dois escritos seminais de Hakim Bey (1985) e dos romances de ficção científica Neuromancer (24) de William Gibson (1984) e Ilhas na Rede (25) de Bruce Sterling (1988) que, entre outros, deram origem aos cyberpunks. Talvez pouca gente suspeite disso, mas essa influência foi decisiva para a criação das ferramentas interativas que existem hoje (inclusive para a Internet e a World Wide Web), conquanto não se possa dizer que ela tenha durado muito. Tais pioneiros e visionários, em boa parte, logo entraram no contra-fluzz ao fecharem suas descobertas (construindo programas proprietários e escondendo seus algoritmos) para acumular suas fabulosas fortunas ou ao se deixarem contaminar pelas idéias contraliberais que impulsionaram os movimentos antiglobalização no dealbar dos anos 2000 sob a bandeira de que “um outro mundo é possível”. Se um herege inventa a sua própria ordem e quer que as pessoas passem a seguí-la – quer transformando-as em usuários cativos de seus produtos, quer arrebanhando-as em seus movimentos supostamente transformadores – aí já deixa de ser herege e passa a ser um sacerdote, um burocrata a serviço da reprodução do sistema que criou. No entanto, a despeito dessas ondas regressivas que apenas revelavam a resiliência do velho mundo único, de suas estruturas e de suas dinâmicas, o vento continuou a soprar. Começaram a aparecer os que, rejeitando os títulos de mestre ou guru, recomendavam simplesmente não-fazer nada. Já eram estes os precursores dos novos mundos-fluzz. Porque quando se espia “do outro lado”, não se vê ordem alguma – somente o nada, o abismo, fluzz. Fluzz significa que não há uma ordem pre-existente em algum mundo invisível (da emanação, da criação ou da formação). A ordem está sempre sendo criada no presente da interação. É mais ou menos assim como imaginou Ilya Prigogine (1984), destoando inclusive de outros cientistas envolvidos com tais especulações (de David Bohn a Paul Davies, passando por Fritjof Capra): o universo é criativo e “se cria à medida que avança” (26). Novamente é o caso de dizer: bem, isso muda tudo. Jack Kerouac e seus beatniks dos anos 50-60, Swami Satchidananda em Woodstock, os hippies dos anos 70 e os “hippies” tardios dos 80, talvez tenham pressentido isso, mas não podiam ter um entendimento do que

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estava vindo. O próprio Peter Lamborn Wilson (Hakim Bey) e os cyberpunks talvez tenham apenas sentido o sopro, sem chegarem a ver de onde (e para onde) ele soprava. Pierre Levy (2000), em uma corajosa jornada introspectiva, cujas notas estão no diário de bordo O fogo liberador (27) (uma obra de inspiração heraclítica), empreendeu explorações em antigas tradições espirituais (como o budismo e a cabala) para tentar captar-lhe o sentido. Mas não havia sentido: “o vento sopra onde quer; você o escuta, mas não pode dizer de onde vem, nem para onde vai” (Jo 3: 8). Pessoas como Paul Baran (On distributed communications), Vinton Cerf (TCP/IP), Tim Berners-Lee (WWW), Linus Torvalds (Linux) e Rob McColl (Apache), embora aparentemente nunca tenham feito tais explorações, contribuiram objetivamente para que hoje pudessemos reconfigurar a busca (e talvez tenham causado um impacto mais profundo do que aqueles provocados pelos empreendimentos proprietários fechados dos Gates, dos Jobs, dos Pages, dos Stones e dos Zuckerbergs e de muitos outros trancadores de códigos que vieram ou ainda virão). Sim, reconfigurar a busca. Em mundos altamente conectados a busca não existe sem a polinização. Não há um mainframe (como se fosse um diretório de registros akashikos) onde você possar buscar respostas para suas perguntas. Se houver, tais respostas não lhe servirão. Serão respostas do passado que foi arquivado. Revelarão ordens pregressas. Conhecimento morto. A busca, qualquer busca, inclusive a busca espiritual, é sempre uma interação. Nos Highly Connected Worlds toda busca é P2P: no seu mundo e nos interworlds pelos quais você está navegando. A mesma busca, quando repetida, fornece respostas necessariamente diferentes. E deixa o rastro da pergunta. De sorte que as respostas são, no limite, combinações das perguntas que estão sendo feitas. Perguntas interagindo e se polinizando mutuamente para criar ordens inéditas. O buscador é um polinizador. É um criador de mundos. O buscador-polinizador é uma pessoa-fluzz. Uma pessoa-fluzz é mais ou menos o que deveria ser uma pessoa-zen nas condições de um mundo de alta interatividade. Mas enquanto víamos a pessoa-zen como um indivíduo-no-caminho (conquanto ela não fosse isso realmente, posto que a descoberta-zen é a descoberta do ‘não-caminho’), a pessoa-fluzz não pode ser vista assim: ela é enxame. O enxame muda continuamente sua configuração, o que significa que os caminhos também mudam continuamente com a interação: o que era caminho em um momento já não é mais no momento seguinte. A pessoa, como disse Protágoras (c. 430 a. E. C.) – ou a ele se atribui – “é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são,

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das coisas que não são, enquanto não são”. Assim seja (ou não-seja). Let it be (ou not to be – o que é a mesma coisa). Os hereges nômades que já experimentam esses novos padrões de interação viajando pelos interworlds e “audaciosamente indo onde ninguém jamais esteve” começam a gritar para os que teimam em juntar e colar os cacos de céu velho que estão despregando para prorrogar a vigência do mundo único: “– Parem com isso! Não existem mestres. Não existem guias. Não existe caminho”.

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Não-igrejas: porque não existe mais caminho

O objetivo é ser pessoa, nada além disso Fluzz também é: tudo está conectado. E se tudo está conectado por que os seres humanos não estariam? É como se todo o mundo percebido e sentido fosse internalizado por essa interface (individual) com a mente (social) que chamamos de cérebro. Assim também a rede social. A máxima de Novalis (1798) “cada ser humano é uma pequena sociedade” (28) pode significar, por um lado, que os humanos importam a estrutura da rede social a que estão conectados. Algo se passa como se a rede fosse espelhada dentro da pessoa em interação. As personalidades das pessoas conectadas são como que simuladas internamente por um sujeito que, não raro, conversa com elas. Essa imagem espelhada é atualizada toda vez que há interação. E há espelhamento, é claro, porque há separação. Eis, talvez, o motivo pelo qual nunca estamos realmente sozinhos. Há um burburinho de fundo, permanentemente presente. Como borgs ouvimos, o tempo todo, as “vozes da Coletividade”. Mas, diferentemente dos Borgs, como “ghola social”, cada pessoa internaliza de um modo diferente, unique. Sem essa imagem peculiar dos outros dentro de nós não podemos ser pessoas, quer dizer, não podemos ser humanos. As imagens da “mesma” rede são tantas quanto os seus nodos. Imagens de imagens, redes dentro de redes. E o que se chama de ‘eu’ ou ‘você’ também são vários. Chegar a um só (aquela individuação junguiana) é final de percurso, não condição de partida. Todavia nos novos mundos altamente conectados, o caminho da individuação (não só aquele sobre o qual escreveu Jung, mas o caminho da iluminação de todas as tradições espirituais hierárquicas) não pode mais ser percorrido como uma jornada interior (no sentido psicológico-espiritual individual). ‘Pessoa já é rede’ significa que eu e você compartilhamos o mesmo indivíduo-social. Eu e você são variações de um mesmo substrato: singularidades em um tecido. Mas significa também, paradoxalmente, que ‘eu sou um outro’, qualquer-outro, não apenas como complexo psicológico (como representação interiorizada), mas na rede, como realidade social.

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Nos mundos pouco conectados dos milênios pretéritos, trabalhava-se com os materiais alquímicos das representações introjetadas, percorrendo-se interiormente nebulosas estações arquetípicas em direção à totalidade. A vida humana (do buscador) era, de certo modo, apartada da sua vida social (do polinizador). O caminho era “pessoal” no sentido de individual e exigia consciência, confirmação intermitente de que eu vi o que vi, senti o que senti, pensei o que pensei, sei o que sei, passei o que passei, vivi o que vivi... até me iluminar (ou não)! Mas isso só ocorre enquanto prevalece a separação entre eu e o outro. Entretanto, quando vida humana e convivência social se aproximam, novos caminhos se abrem, continuamente. Aquele pelo qual procurávamos no meio de nós (no sentido de no nosso interior) passa a estar entre nós. Uma nova topologia distribuída dos caminhos espirituais elimina os caminhos únicos (mesmo quando únicos para cada pessoa). Os caminhos são múltiplos, inclusive para a mesma pessoa. O que significa dizer que não existe mais caminho. Como captou o poeta: "Todos os caminhos, nenhum caminho. Muitos caminhos, nenhum caminho. Nenhum caminho, a maldição dos poetas" (29). E não só os poetas percebem, mas também outras inquiring minds, de exploradores heterodoxos, como a do físico David Bohm (1970-1992), dedicado, nos últimos anos de sua vida, a compreender e promover a interação que chamava de diálogo: ele chegou à conclusão de que “não existe um ‘caminho’... no dialogo compartilhamos todas as trilhas e, por fim, percebemos que nenhuma delas é fundamental. Percebemos o significado de todos os caminhos e, portanto, chegamos ao ‘não-caminho’. No fundo, todos os caminhos são os mesmos...” (30) Se o objetivo é ser pessoa, nada além disso, qualquer relação humana é caminho. A espiritualidade-fluzz não é percorrer uma trilha, completar um percurso, mas deixar-se-ir de encontro dos demais, abrindo as próprias fronteiras ao outro-imprevisível. Ora, isso significa que você não precisa mais de uma igreja – como cluster fechado dos que professam a mesma fé (a fé de que estão no mesmo caminho) – quer dizer, de um partido.

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Máquinas para privatizar a política

Os partidos são artifícios para nos proteger da experiência de política pública No velho mundo fracamente conectado as pessoas erigiam corporações – grupos privados hierarquizados – para fazer valer seus interesses. Simplesmente parecia ser a coisa “lógica” a ser feita em um mundo regido pela “lógica” da escassez. Assim também surgiram os partidos como um tipo especial de corporação: eles foram constituídos para fazer prevalecer os interesses de um grupo sobre os interesses de outros grupos e pessoas com base em (ou tomando como pretexto) um programa, um conjunto de idéias a partir das quais fosse possível conquistar e reter o poder para tornar legítimo o exercício (ilegítimo do ponto de vista social, quer dizer, do ponto de vista das redes sociais distribuídas) de comandar e controlar os outros. Partidos são organizações pro-estatais. Não é a toa que decalcam o padrão de organização piramidal do Estado. Mas, ao contrário do que se pensa, os partidos vieram antes do Estado e nesse sentido são também organizações proto-estatais. Os primeiros partidos foram religiosos: as castas sacerdotais que erigiram o Estado. Sim, o Estado é, geneticamente, um ente privado. Estado como esfera pública só surgiu (isso deveria ser uma obviedade, conquanto não soe como tal) quando se constituiu uma esfera pública, com a invenção da democracia. Antes disso – por três milênios ou mais – os Estados foram o resultado da privatização dos assuntos comuns das cidades pelos autocratas. E depois disso, por quase dois milênios, os Estados continuaram sendo organizações privadas (só nos últimos dois ou três séculos eles se constituiram, aqui e ali e, mesmo assim, em parte, como instâncias públicas, mais ou menos democratizadas; embora continuassem infestados por enclaves autocráticos privatizantes). Os partidos são artifícios para nos proteger da experiência de política pública. São um modo político de nos proteger da experiência de fluzz. Para tanto – em um regime de monopólio (nas ditaduras) ou de oligopólio (nas democracias formais) – eles privatizam a política pública. Sua existência legal indica que as pessoas, como tais, não precisam fazer política pública no seu cotidiano e na base da sociedade (nas suas comunidades): alguém fará tal política por elas! Mesmo nas democracias dos modernos entende-se

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que as pessoas não devem fazer política pública, a menos que entrem em um partido: uma espécie de agência de empregos estatais, uma organização privada autorizada a disputar com outras organizações privadas congêneres o acesso às instituições estatais reconhecidas legalmente como públicas e, portanto, encarregada com exclusividade de fazer política pública. Enxugando de toda literatura legitimatória as teorias liberais sobre o papel dos partidos na democracia, o que sobra é mais ou menos isso aí. Ora, por mais esforço que se faça para justificar esse acesso diferencial ao exercício da política pública, parece óbvio que o sistema de partidos privatiza a política. Ao se conferir aos partidos o condão de transformar politics em policy, as pessoas viram automaticamente clientela do sistema. As teorias liberais da democracia, é claro, não concordam com isso. Mas as teorias liberais da democracia são próprias de um mundo de baixa conectividade social, em que somente eram concebíveis as formas políticas representativas de regulação de conflitos. Para os defensores dessas teorias, só existem, basicamente, os indivíduos. E a democracia é, via de regra, baseada em uma teoria das elites (mais Platão, menos Protágoras). Sua análise é coerente com que eles pensam. E eles pensam mais ou menos assim: é melhor o Estado-nação com todos seus enclaves autocráticos – e, inclusive, é melhor o império – garantindo a ordem, do que a barbárie da anarquia. No fundo essa é mais uma variação, em linha direta, da visão hobbesiana. Abandonados à nossa própria sorte, sem sermos domesticados por um poder acima de nós, nos engalfinharíamos em uma guerra de todos contra todos. Então o Estado tem, para eles, um papel civilizador (assim como, para alguns, também tem esse papel a religião: pois se não houver um deus – dizem – tudo é permitido, tudo seria possível em termos morais). O que se requer, apenas, é que esse Estado seja legitimado pelos cidadãos em eleições limpas e períodicas e que os governos eleitos respeitem as regras do direito (interpretadas também, é claro, pelas tais “elites civilizadoras”). Essa é a visão da democracia dos modernos na sua versão liberal, baseada no indivíduo. Mas tal visão não está mais adequada aos mundos altamente conectados que estão emergindo. Por muitas razões (dentre as quais a principal é que o indivíduo é uma abstração) a democracia não pode ser o resultado de um pacto feito e refeito continuamente pelos indivíduos que se ilustraram e que se comprometeram a manter uma ordem capaz de garantir aos (e exigir dos) demais indivíduos que eles continuem a conformar sua liberdade aos limites impostos pelos sistemas de poder que formalmente permanecerem legitimados por eleições e respeitarem as leis. Isso, é claro, deve ser garantido, mas não para ser reproduzido indefinidamente como é e

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sim para possibilitar que os cidadãos continuem - com liberdade - inventando novas formas de regular seus conflitos. Em mundos altamente conectados essa forma representativo-político-formal da democracia (a democracia no sentido "fraco" do conceito: como sistema de governo ou modo político de administração do Estado) deverá dar lugar a novas formas mais substantivas e interativas (a democracia no sentido "forte" do conceito, das pessoas que se associam para conviver em suas comunidades de vizinhança, de prática, de aprendizagem ou de projeto). A democracia no sentido “forte” do conceito é uma democracia +democratizada, que recupera a linha da "tradição" democrática – uma imaginária linhagem-fluzz – que começa com o “think tank” de Péricles – do qual “participava”, entre vários outros, Protágoras –, passa por Althusius (1603), por Spinoza (1670-1677) e pelos reinventores da democracia dos modernos, por Rosseau (1754-1762), por Jefferson (1776) e por aquele “network da Filadélfia” que conectava os redatores americanos da Declaração de Independência dos Estados Unidos e pelos Federalistas (1787-1788), pelos autores europeus (desconhecidos) da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), por Paine (1791), por Tocqueville (1835-1856), por Thoreau (1849) e por Stuart Mill (1859-1861), até chegar às formas radicais antecipadas pela primeira vez por Dewey (1927-1939): a democracia na base da sociedade e no cotidiano do cidadão, a democracia como expressão da vida comunitária (31). Esta última será uma espécie de metabolismo das redes mais distribuídas do que centralizadas, algo assim como uma pluriarquia. É claro que os chamados cientistas políticos, em boa parte, não acreditam nisso. O que não significa nada, de vez que não existe uma ciência política. Se existisse uma ciência política, em qualquer medida para além de uma ciência do estudo da política, não poderia haver democracia (pois neste caso os governantes deveriam ser os cientistas e decairíamos na república platônica dos sábios: uma autocracia). A despeito do que pensam os que foram ordenados nas academias da modernidade para legitimar a política realmente existente, há um argumento fatal contra suas (des)crenças: se a democracia não pudesse ser reinventada novamente (pois ela já o foi uma vez, pelos modernos) ela também não poderia ter sido inventada (pela primeira vez, pelos atenienses).

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Autocratizando a democracia É um absurdo pactuar que o acesso ao público só se dê a partir da guerra entre organizações privadas A democracia foi a mais formidável antecipação de uma época-fluzz que já ocorreu nos seis milênios considerados de “civilização”. Foi uma invenção fortuita e gratuita de pessoas que logrou abrir uma fenda no firewall erigido para nos proteger do caos, para que não caíssemos no abismo. Na verdade as pessoas que inventaram a democracia não tinham a menor consciência das implicações e consequências do que estavam fazendo. Talvez tivessem motivos estéticos. Ou talvez quisessem, simplesmente, abrir uma janela para poder respirar melhor. Em consequência, abriram uma janela para o simbionte social poder respirar, sufocado que estava, há milênios, em sociedades de predadores (e de senhores). Como já foi mencionado aqui, não é por acaso que no primeiro escrito onde aparece a democracia (dos atenienses) – em Os Persas, de Ésquilo (427 a. E. C.) – ela tenha sido apresentada como uma realidade oposta à daqueles povos que têm um senhor. Era tão improvável que isso acontecesse, na época que aconteceu, como foi o surgimento e a continuidade da vida neste planeta, perigosamente instável em virtude da composição atmosférica tão improvável que alcançou. Com efeito, um gás instável (comburente), corrosivo e extremamente venenoso como o oxigênio, que chegou a alcançar a impressionante concentração de 20%, é uma loucura em qualquer planeta: mas foi assim que o simbionte natural – essa surpreendente capa biosférica que envolve a Terra – conseguiu respirar. Do ponto de vista social, a democracia é um erro no script da Matrix. Não se explica de outra maneira. Não era necessária. Nem foi o resultado de qualquer “evolução” social. Não surgiu dos interesses privatizantes de qualquer corporação. Surgiu em uma cidade no mesmo momento em que nela se conformou um espaço público. Isso significa que, geneticamente, a democracia é um projeto local e não nacional. O grupo de Péricles (às vezes chamado indevidamente de “partido democrático”) não foi constituído para tentar converter os espartanos ou qualquer outro povo da liga ateniense à democracia (e nem para empalmar e reter indefinidamente o poder em suas mãos, como grupo privado) e sim

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para realizar a democracia na cidade, na base da sociedade e no cotidiano do cidadão enquanto integrante da comunidade (koinonia) política. Foram os modernos que tentaram transformar a democracia em um projeto inter-nacional (ou seja, válido para um conjunto de nações-Estado). Mas ela só pode se materializar plenamente – como percebeu com toda a clareza John Dewey (1927) – no local: é um projeto vicinal, comunitário, que tem a ver com um modo-de-vida compartilhado (32). E é mais o “metabolismo” de uma comunidade de projeto do que o projeto de alguns interessados em conduzir uma comunidade para algum lugar segundo seus pontos de vista particulares ou para satisfazer seus interesses (outra definição de partido). A democracia surgiu como uma experiência de redes de conversações em um espaço público, quer dizer, não privatizado pelo Estado (no caso, representado pelos autocratas que governaram Atenas). Não teria surgido sem a formação de uma rede local distribuída em Atenas e em outras cidades que experimentaram a democracia. Quando surge, a democracia já surge como movimento de desconstituição de autocracia e não como modelo de sociedade ideal. As instituições democráticas foram criadas – casuísticamente mesmo – para afastar qualquer risco de retorno ao poder do tirano Psístrato e seus filhos a partir da experimentação de redes de conversações em um espaço (que se tornou) público (33). Sim, público não é um dado, não é uma condição inicial que possa ser estabelecida ou decretada por alguma instância a partir ‘de cima’ (como uma norma exarada ex ante pelo Estado-nação). Público é o resultado de um processo. Só é público o que foi publicizado. Depois, é claro, pode-se pactuar politicamente o resultado que se estabeleceu a partir do processo social, gerando uma norma, sempre transitória, válida para o âmbito da instância de governança vigente. Mas não se pode pactuar que o acesso ao público só se dê a partir da guerra (ou da política como continuação da guerra por outros meios – o que é mesma coisa) entre organizações privadas. Um pacto absurdo como esse – baseado na perversa fórmule inversa de Clausewitz-Lenin (34) – é contraditório nos seus termos e investe contra o próprio sentido de público. Por isso, diga-se o que se quiser dizer, do ponto de vista da democracia (uma realidade coeva à da esfera pública), partidos são instituições contra-fluzz, regressivas na medida em que concorrem para autocratizar a democracia (35).

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A formação do público

O público só se pode conformar por emergência De um ponto de vista político, não há problema com a competição entre grupos privados quando seus objetivos são privados. O problema surge quando se quer gerar um sentido público por meio da competição entre grupos privados (como os partidos). Foi assim que, decalcando a racionalidade do mercado, os modernos cometeram uma confusão brutal entre tipos diferentes de agenciamento que levou à irresponsável identificação entre democracia e capitalismo (e tão perdidos ficaram em sua confusão que agora não sabem nem explicar direito a onda de capitalismo autoritário que nos atinge nos últimos anos, sobretudo a partir da China). Predominou amplamente uma desinteligência sobre a questão do público nos últimos séculos do mundo único. As pessoas achavam que público era o resultado de uma declaração legal, legitimada por um pacto dito social, mas promovido e garantido pelo Estado. Bastava que a lei decretasse que uma coisa era pública e pronto! Estava feita a mágica. Não viam que o público se forma, sim, a partir de inputs privados porém somente quando esses inputs interagem coletivamente formando configurações complexas que brotam por emergência. E não podiam mesmo ver isso porquanto as categorias sociológicas e políticas que utilizavam eram impotentes para analisar a intimidade do que chamavam de sociedade, ou seja, para captar a fenomenologia da rede social. Sem buscar novos constructs para entender uma realidade diferente daquela em que as velhas concepções, que reificavam essa abstração chamada indivíduo, foram forjadas, não há saída. Dificilmente se poderá entender a emergência e outros processos acompanhantes da complexidade social. Agora percebemos a necessidade a lançar mão de outros conceitos para tentar descrever a formação do público. Hoje podemos dizer que a diversidade das iniciativas da sociedade civil é capaz de gerar uma ordem bottom up. E que a partir de certo grau de complexidade, a pulverização de iniciativas privadas acaba gerando um tipo de regulação emergente. Quando milhares de micromotivos diferentes entram em interação, é possível se constituir um sentido coletivo comum que não está mais

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vinculado aos motivos originais dos agentes privados que contribuíram para a sua constituição. Aqui começamos a roçar o problema! No entanto, isso não é possível quando o número de agentes privados é muito pequeno. O que indica que o público propriamente dito só pode, portanto, se constituir por emergência. Pode até haver, provisória e intencionalmente, um pacto que reconheça alguns processos de constituição do público, assim como há, por exemplo, um pacto que reconhece como receita pública o resultado do montante de impostos pagos por agentes privados (com dinheiro privado). Não há uma mágica que transforma nossos recursos privados em recursos públicos quando pagamos impostos: há um assentimento social, que reconhece como válida a operação política pela qual esses recursos privados, pagos pelos chamados contribuintes, quando arrecadados compulsoriamente pelo Estado, passam a ser considerados como recursos públicos. No entanto, há limites impostos pela racionalidade do tipo de agenciamento que estamos considerando. Querer transformar o interesse privado de um grupo em interesse público é semelhante a querer fazer uma mágica mesmo. Seria, mal comparando, como querer chamar de receita pública os impostos pagos apenas por uma dúzia de contribuintes. Entenda-se que não é um problema de quantidade. É uma questão de complexidade, em que, evidentemente, a quantidade é uma variável relevante, mas não a única. Se somente uma dúzia de pessoas pagasse impostos, dificilmente haveria base para um pacto na sociedade reconhecendo como válido o direito de taxar esses contribuintes. Se houvesse tal pacto, ele seria um pacto privatizante e os tais contribuintes seriam considerados (e se comportariam como) donos do Estado (que, então, não poderia mais ser considerado um ente público). Por outro lado, há uma razão eloqüente para afirmar que a quantidade não é a única variável nesse processo. Pois também não fica assegurada a formação do público pela simples soma – ou a totalização ex post e inorgânica – de imputs privados, mesmo que as parcelas dessa soma expressem quantitativamente a opinião da maioria de uma população. Mas é forçoso reconhecer que tudo ou quase tudo que se diz sobre o público que não leva em conta esse processo emergente pelo qual o público se constitui a partir da complexidade social não é capaz de explicar a natureza do público, nem de compreender a fenomenologia a ele associada.

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Não-partidos

Redes de interação política (pública) exercitando a democracia local na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos Nada deve impedir que pessoas se associem livremente para fazer política pública. Se houver algo impedindo isso, então estamos em uma autocracia ou em uma democracia formal de baixa intensidade, fortemente perturbada pela presença de instituições hierárquicas que deformam o campo social. Partidos são, obviamente, uma dessas instituições, conquanto não consigam – na vigência de regimes democráticos formais – impedir totalmente que as pessoas exerçam a política; não, pelo menos, nos âmbitos de suas redes de relacionamento, nos círculos com graus de separação mais baixos. Dentro de certos limites – impostos pelo grau de autocratização das democracias realmente existentes na atualidade – é possível democratizar a política na base da sociedade, inventando e experimentando novas formas de interação política realmente inovadoras. Nas autocracias isso não é possível, razão pela qual as democracias formais – com suas conhecidas mazelas e limitações – são infinitamente preferíveis a todas as formas de regimes autoritários, por mais que se lhes tentem louvar as supostas virtudes sociais. Essa nova política possível, entretanto, será necessariamente uma política pública, não de grupos privados de interesses – ou não será de fato nova. Se tentarmos reeditar a disputa adversarial de interesses de grupos privados, decairemos fatalmente na velha política (36). O simples fato de algumas pessoas já terem desistido dos partidos e arregaçado as mangas para fazer o que acham que deve ser feito em suas localidades – articulando redes de interação política (pública) e exercitando a democracia local na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos – já é um sinal de que a dinâmica da sociosfera (em que convivem) está sendo alterada. Nos Highly Connected Worlds as pessoas (que quiserem) poderão constituir não-partidos, comunidades políticas para tratar dos seus assuntos comuns, regulando seus conflitos de modo cada vez mais democrático ou pluriarquico. Isso significa que evitarão modos de regulação de conflitos que produzam artificialmente escassez (como a votação, a construção administrada de consenso, o rodízio e, até mesmo, o sorteio), guiando-se – cada vez mais – pela “lógica da abundância”. É claro que isso só se aplica

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em redes mais distribuídas do que centralizadas e na medida do grau de distribuição e conectividade (quer dizer, de interatividade) dessas redes. Dizendo a mesma coisa de outra maneira: se você não produz artificialmente escassez quando se põe a regular qualquer conflito, produz rede (distribuída); do contrário, produz hierarquia (centralização). Os problemas que se estabelecem a partir de divergências de opinião são – em grande parte – introduzidos artificialmente pelo modo-de-regulação. E somente em estruturas hierárquicas tais problemas costumam se agigantar a ponto de gerar conflitos realmente graves, capazes de ameaçar a convivência. Porque nessas estruturas o que está em jogo não é a funcionalidade do organismo coletivo e sim o poder de mandar nos outros, quer dizer, a capacidade de exigir obediência ou de comandar e controlar os semelhantes. Quanto mais distribuída for uma rede, mais a regulação que nela se estabelece pode ser pluriarquica. Uma pessoa propõe uma coisa. Ótimo. Aderirão a essa proposta os que concordarem com ela. E os que não concordarem? Ora, os que não concordarem não devem aderir. E sempre podem propor outra coisa. Os que concordarem com essa outra coisa aderirão a ela. E assim por diante. Em redes distribuídas nunca se admite a votação como método de regular majoritariamente qualquer dilema da ação coletiva. E quando houver discordâncias de opiniões, como faremos? Ora, não faremos nada! Por que deveríamos fazer alguma coisa? Viva a diversidade! Se você estabelece a prevalência de qualquer coisa a partir da votação (ou de outros mecanismos semelhantes de regulação de conflitos), cai em uma armadilha centralizadora ou hierarquizante. Produz “de graça” escassez onde não havia. Vamos imaginar que exista alguém que não esteja muito contente com a maneira como as coisas estão acontecendo em uma comunidade. O que essa pessoa pode fazer, além de externar sua opinião e colocá-la em debate? Ora, no limite, essa pessoa descontente pode configurar uma nova rede, se inserir em outra comunidade, ir conviver em outro mundo. Como os mundos são múltiplos, ela não está mais aprisionada e não precisa ficar constrangida a permanecer no mesmo emaranhado onde não se sente confortável. Evidentemente a pluriarquia não pode ser adotada em organizações centralizadas, erigidas no contra-fluzz, como as escolas, as igrejas, os

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partidos e as corporações. Com mais razão ainda não pode vigir nos Estados e seus aparatos, que – mais do que organizações hierárquicas – são troncos geradores de programas centralizadores. A despeito disso, porém, não-partidos tendem a florescer nos mundos altamente conectados que estão emergindo. Ignorando solenemente as restritivas disposições estatais e as crenças religiosas (sim, religiosas, mesmo quando travestidas de científicas) em uma suposta competitividade inerente ao ser humano difundidas pelas escolas e academias, pessoas vão se conectando voluntariamente com pessoas para tratar cooperativamente de seus assuntos comuns em todos os lugares, sobretudo nas vizinhanças – conjuntos habitacionais, ruas, bairros – e nas comunidades de prática, de aprendizagem e de projeto que se formam nas cidades inovadoras que não querem mais permanecer eternamente na condição de instâncias subordinadas ao Estado-nação.

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Estado

Um delírio de raiz belicista As preferências que levam alguém a querer morar ou trabalhar em Barcelona, São Francisco, Curitiba, Milão ou Genebra, não são, em geral, relacionadas às características das nações que abrigam essas cidades e sim à dinâmica singular que cada uma delas apresenta. Quem optou por Barcelona, certamente não optaria genericamente pela Espanha. Quem gosta de viver em São Francisco, freqüentemente tem motivos muito claros para não querer morar em outros lugares dos Estados Unidos. Não é assim? Tanto faz morar em Curitiba ou Pernambuco, só porque ambas estão no Brasil? Tanto faz morar em Milão ou Consenza, só porque ambas estão na Itália? Tanto faz morar em Genebra ou Berna, só porque ambas estão na Suíça? É claro que não! Há uma diferença de capital social (ou seja, uma diferença de topologia e de conectividade, na estrutura e na dinâmica, de suas redes sociais) entre essas cidades, que faz toda a diferença em termos de condições e estilo de vida e convivência social. O fato é que vivemos em cidades, moramos, estudamos, trabalhamos e nos divertimos em localidades. Ninguém convive no país. A nação não é uma comunidade concreta. É uma comunidade imaginária, de certo modo inventada e patrocinada pelo Estado e seus aparatos, inclusive pela publicidade massiva das empresas estatais (que se enrolam nas bandeiras nacionais para tentar estabelecer uma vantagem competitiva bypassando o mercado ou para fazer propaganda dos governantes que nomearam seus dirigentes). E a pátria (e o patriotismo), ou é a remanescência de um delírio de raiz belicista (aquele mesmo que acompanhou a instalação desse fruto da guerra chamado Estado-nação moderno) ou – para lembrar a já batida sentença de Samuel Johnson (1709-1784) – é um refúgio de canalhas (37) que se escondem por trás do nacionalismo para proteger seus interesses ou levar vantagem sobre os concorrentes, em geral no campo econômico, por certo, mas também no político. Mas as profundas mudanças sociais que estão ocorrendo nas últimas décadas estão criando condições favoráveis à independência das cidades do ponto de vista do desenvolvimento local. Fala-se aqui – entenda-se bem – das cidades como redes de múltiplas comunidades, e não propriamente das instâncias locais do Estado (central ou regional), das prefeituras e das

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outras instituições privatizadoras da política que querem “representá-las” ou comandá-las. O mundo humano-social, ao contrário do que pensam os governantes, não é um conjunto de Estados, nações ou países. É uma configuração móvel e complexa de infinidades de fluxos entre pessoas e grupos de pessoas, agregadas, por sua vez, em múltiplos arranjos locais e setoriais: famílias, vizinhanças, comunidades, cidades, regiões, organizações (dentre as quais, algumas poucas – que não chegam a duas centenas – são Estados). Depois que se generalizou a forma Estado-nação, as cidades passaram a ser localidades de um país (devendo-se entender por isso que elas passaram a ser instâncias subnacionais). Para todos os efeitos, são encaradas, pelos aparatos estatais que comandam os países, como instâncias subordinadas (ordenadas a partir de cima). E conquanto tenham alguma autonomia formal, figurando como sujeitos de pactos federativos em muitas Constituições modernas, as cidades são realmente subordinadas do ponto de vista político, jurídico, fiscal, energético, econômico etc. Seu funcionamento depende, em grande parte, de decisões tomadas sem a sua participação. Normas, repasses de recursos e investimentos, são determinados por outras instâncias, de cima e de fora. E na medida em que tudo isso gera dependência, não interdependência, são construções contra-fluzz.

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A nação como comunidade imaginária A nação não é uma comunidade concreta. É uma comunidade imaginária, de certo modo inventada e patrocinada pelo Estado e seus aparatos As nações são apresentadas como grandes comunidades, no sentido alemão seiscentista do termo, ou naquele sentido, que lhe atribuía Althusius (1603), da grande comunidade territorial de herança (38) e não no sentido que lhe atribuímos hoje, da pequena comunidade como cluster, de escolha de uma (“porção” da) rede social para conformar um campo de convivência, em uma atividade compartilhada, de prática, de aprendizagem ou de projeto. Dewey (1927) em “O público e seus problemas”, faz uma correta distinção entre a grande comunidade e a pequena comunidade do ponto de vista da democracia (substantiva) como modo de vida comunitário. Não é na grande comunidade (nação) que essa democracia pode se materializar plenamente e sim na pequena comunidade local; para usar suas próprias palavras: “a democracia há de começar em casa, e sua casa é a comunidade vicinal” (39). Essas grandes comunidades-nacionais são, é claro, instituições imaginárias. Como tal são abstratas. Ninguém convive ou interage concretamente com a população de um país. Ser brasileiro, italiano ou argentino não é, stricto sensu, pertencer a uma comunidade concreta, porquanto, para os nossos ‘compatriotas’ (e essa palavra já é horrível), não estamos incluídos, como pessoas, no seu modo-de-vida, quer dizer, não fomos voluntariamente aceitos e acolhidos por eles no seu campo de convivência. Who cares? Somente comunidades humanas podem incluir seres humanos, mas quem é incluído é sempre a pessoa com suas peculiaridades e não o indivíduo como um número em uma estatística ou uma variável censitária. No entanto, para fazer parte da grande “comunidade” nacional basta nascer naquele território delimitado como seu (a partir da conquista ou da guerra) e, em geral, manter “laços de sangue” ou hereditários com os nacionais (ou seja, trata-se do reconhecimento de uma herança genética, condição a partir da qual – acredita-se, e não sem razão – a transmissão não-genética de comportamentos que chamamos de cultura pode ser viabilizada, inoculando-se tal cultura (como quem “carrega” um programa) nos novos membros (descendentes dos nacionais), a partir da família e, em seguida, da vizinhança, da escola, da igreja, das organizações sociais, das empresas e das instituições nacionais estatais e não-estatais). Note-se que essa identidade abstrata nacional é construída a partir de uma visão de passado:

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origem comum (em geral forjada), raça (uma identificação inconsistente do ponto de vista científico), língua, costumes, credos, cultura enfim e história (escrita sempre da frente para trás) (40). Percebe-se que não há aqui qualquer escolha humana. Não há acolhimento (quer dizer, inclusão). Funciona mais ou menos assim como na propriedade de um rebanho animal: as crias do gado pertencem automaticamente ao dono da boiada, aumentam o número de cabeças do seu patrimônio. Pois bem. No caso do pertencimento à grande “comunidade” nacional quem faz às vezes do dono é o Estado-nação. É o Estado que interpreta o que é a nação. É o Estado que delimita quem pode ou não pode ser incluído na nação e estabelece condições de pertencimento ou inclusão. Mas o Estado não é uma comunidade e sim um sistema de organizações que gera programas verticalizadores (ou, talvez melhor, do ponto de vista da rede social, o inverso: uma matriz de programas verticalizadores que gera um sistema de instituições), cuja função precípua é obstruir, separar e excluir. A partir do monopólio legalizado da violência, é o Estado que diz: isso você não pode fazer; por tal ou qual caminho você não pode trafegar sem autorização; aqui você não pode entrar ou daqui você deve sair. Ponha-se na rua, quer dizer, fora do meu território! Não importa se, por exemplo, uma comunidade concreta de espanhóis queira acolher um africano, incluindo-o no seu campo de convivência para a realização de um projeto comum. Se o africano em questão não atender a certas condições e não preencher certos requisitos ditados pelo Estado, nada feito. E mesmo que cumpra todas as exigências, ele sempre será, aos olhos do Estado-nação espanhol, um estrangeiro, ou seja, um estranho, alguém que deve ser impedido de circular livremente, separado dos “verdadeiros” espanhóis e excluído de certos direitos – o principal dos quais o de pertencer plenamente à comunidade política que define os destinos coletivos dos espanhóis. Sim, será um excluído político porque será – aos olhos da autocrática realpolitik estatal – sempre alguém cujo modo-de-ser ameaça, independentemente do que faz ou venha a fazer, simplesmente por ser diferente, por ser um outro, o modo-de-ser estabelecido como desejável pelo imaginário nacional historicamente construído pelo mega-programa Estado e que é reinterpretado de tempos em tempos pelos condomínios privados de agentes políticos – estes sim, bem concretos – que assumem as funções de governo. De certo ponto de vista, o que chamamos de Estado como fonte ou geratriz de programas verticalizadores que “rodam” na rede social, faz parte da

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ideologia dos governos. No que tange a função de legitimação dessa ideologia, foi necessário promover uma fusão entre o Estado e a nação. Sem isso o aparato hierárquico estatal não conseguiria infundir na grande “comunidade” nacional as noções abstratas de identidade que alimentam o aparato, para as quais o drive principal foi, invariavelmente, a guerra (que permite a formação de identidade a partir do inimigo). Sim, os Estados – qualquer Estado, inclusive a forma atual Estado-nação – são frutos da guerra e se alimentam (internamente) do “estado de guerra” ou (na fórmule inversa de Clausewitz-Lenin) da prática da política como uma continuação da guerra por outros meios. São produtos, portanto, não da cooperação (ou da amizade política) que supostamente aglutinaria a nação – e de todo aquele blá-blá-blá da “vontade de viver juntos” – e sim da competição (ou da inimizade política). Por isso que todo Estado é hobbesiano. Todo Estado é fruto do realismo político. Todo Estado é autocrático (inclusive naqueles que denominamos de “Estados democráticos e de direito” os enclaves autocráticos são tão onipresentes que a estrutura e a dinâmica da entidade como um todo não podem acompanhar o comportamento democrático das sociedades que dominam). Ao criarmos a identidade imaginária “Atenas” para colocá-la no lugar da identidade concreta “os atenienses”, já não estamos mais no campo da democracia e sim no da autocracia. E os próprios gregos do século de Péricles fizeram isso, quando se comportaram de modo a-político no enfrentamento violento com outras cidades-Estado da região. Não é a toa que os governantes vivem apelando para um sentimento nacional. Falam da França, da América ou do Brasil como se essas “entidades” existissem e tivessem vontade própria, a fim de extrair o combustível do “fervor patriótico” para se manter no poder, para reproduzir o sistema de instituições estatais que quer impor sua legitimidade à sociedade com o fito de torná-la seu dominium (ao modo feudal mesmo) e para continuar produzindo inimizade no mundo. Ora, você pode dizer: eu não quero “viver junto” com quem eu não quero, apenas pelo fato de ser brasileiro, na medida em que isso signifique “não-querer viver junto” com um inglês pelo fato de ele ser inglês (e não brasileiro). Por que deveria? Quem disse que somos inimigos? A quem interessa manter esse tipo de rivalidade subjetiva? Do ponto de vista genético – a ciência biológica já mostrou – somos mesmo, todos nós, uma única grande família. Do ponto de vista cultural parece claro, a não ser que nos deixemos intoxicar pela estiolante ideologia multiculturalista, que culturas que não se polinizam mutuamente – por meio de saudável miscigenação – tendem a apodrecer.

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Não existe um Brasil, mas milhares, talvez milhões. Stricto sensu a “nação brasileira” não é, nem nunca será, uma comunidade e sim uma interação de miríades de comunidades que falam a mesma língua (com vários sotaques e regionalismos), têm alguns costumes parecidos (e muitos costumes locais bem diferentes), várias histórias reais (e não apenas uma única narrativa, como aquela que é ensinada nas escolas). A nação só é una do ponto de vista das instituições estatais (por meio das quais se materializam os poderes da República, as forças armadas, a moeda) e daquilo que antigamente se chamava, de um jeito meio sem-jeito, de “aparelhos ideológicos de Estado”. Além, é claro, do governo central, que precisa espichar essa unidade para além da herança cultural. Mas há uma idéia e, mais do que isso, uma prática de bando na raiz dessa unidade. Como no surgimento da noção de cidadania (que nada tinha de universal, pelo contrário), trata-se de proteger “os de dentro” contra “os de fora”, impedir que eles – os outros – venham vender na nossa feira, que concorram conosco em igualdade de condições, que adquiram nossas terras, que roubem nossas riquezas naturais (que certamente o próprio Deus nos concedeu, lavrando a escritura no cartório do céu: em nome do Estado, é claro), que tomem nossos empregos, que exerçam plenamente a cidadania política (disputando conosco o poder associado à representação). Sim, é um sentimento de bando que se manifesta aqui, justificado pelo pressuposto antropológico de que o ser humano, por inerentemente competitivo, é hostil por natureza e que, portanto, os seres humanos, deixados a si mesmos, como escreveu Hobbes (1651), engalfinhariam-se em uma guerra de todos contra todos. Ah... A menos que haja um Estado para impedir, entenda-se bem, não o conflito em si e a guerra, mas o conflito no interior do próprio bando e a guerra entre “os de dentro”. Tudo isso, é claro, para poder promover o conflito e a guerra com “os de fora”. Foi assim que nasceu o Estado, e inclusive, como já foi assinalado, a forma atual Estado-nação e a ordem internacional do equilíbrio competitivo. Então, quando alguém fala do Brasil, ou em nome do Brasil, podemos procurar que certamente vamos achar os interesses particularistas, bem concretos, que se escondem sob essa “nacionalização” abstrata do discurso. É alguém tentando se proteger do mercado. É alguém tentando proteger a sua indústria ou o seu negócio. É alguém tentando se proteger da concorrência comercial ou política. É alguém tentando proteger o seu emprego. É alguém tentando proteger suas condições de vida. É alguém tentando desqualificar os oponentes para ficar no poder. É alguém tentando manter nas mãos do seu bando as instituições estatais que aparelhou. É sempre alguém no contra-fluzz, tentando se proteger do outro.

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“O Brasil” é um construct. Se somos brasileiros, na maior parte do tempo, nos nossos trabalhos, nos nossos estudos e pesquisas, nos nossos relacionamentos, “o Brasil” não gera preferências significativas (41). Na aceitação da legitimidade do outro e na sua incorporação em nosso espaço de vida, não deveríamos dar a mínima se uma pessoa é brasileira, italiana, argentina, francesa ou norte-americana. Qualquer preferência, baseada nesses critérios, para acolher ou rejeitar uma pessoa em uma comunidade, é uma canalhice. Sim, nunca é demais repetir o dito de Johnson: “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”. Uma pessoa decente não deveria se deixar drogar com esse tipo de ideologia que obstrui, separa a exclui para atender a exigências hierárquicas que, ao fim e ao cabo, são desumanizantes. Nos últimos séculos o fervor patriótico que alimentava as “comunidades” nacionais foi sendo obrigado a dividir espaço com o consumismo, apátrida por natureza, internacionalizante sim, mas não glocalizante. E não necessariamente mais humanizante. Ocorre que o processo de globalização (ou de planetarização) começou a quebrar as fronteiras nacionais (aquelas que são vigiadas pelo Estado nacional) em todos os campos, ensejando que culturas não-nacionais pudessem emergir das múltiplas interações cruzadas de pessoas de diferentes nacionalidades. Praticamente nenhum Estado-nação, nem mesmo o mais autocrático deles, consegue mais fechar suas fronteiras, em termos culturais, isolando seu “rebanho” do resto do mundo. A telefonia móvel e a Internet (a despeito daquele vergonhoso acordo do Google com os ditadores chineses, que não deve ser esquecido, conquanto o próprio Google tenha sido levado a revê-lo, muitos anos depois) aceleraram esse processo. De sorte que existe hoje um contingente crescente de pessoas que não estão nem aí para identidades nacionais e que estão se inserindo em múltiplas comunidades transnacionais, compostas por pessoas de várias nacionalidades, a partir de suas próprias escolhas. No segundo capítulo do seu excelente Transforming History intitulado “Cultural History and Complex Dynamical Systems”, William Irwin Thompson (2001), escreveu que “toda nossa matriz de identidade baseada em uma cultura de desejo de compra econômica e fervor patriótico está mudando para uma nova cultura planetária...”. Mas em seguida adverte que “explosões reacionárias [atuando “como a Inquisição e a Contra-Reforma, que procuraram travar e reverter as forças modernizadoras da Renascença e da Reforma”] podem prejudicar muito e atrasar a transformação cultural por séculos a fio” (42).

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Pois é precisamente neste ponto de bifurcação que nos encontramos hoje. Todavia, para além, talvez, do que avalia Thompson, não são apenas “o fundamentalismo religioso e as reações terroristas nacionalistas da direita à planetização” (43) que estão tentando enfrear a emergência de uma nova identidade transcultural. Hoje o próprio conceito de nação, interpretado e materializado por uma forma já decadente de Estado – o Estado-nação e as ideologias nacionalistas nele inspiradas ou por ele infundidas na sociedade – constitui um obstáculo à transição histórica atualmente em curso (cujo sentido é a glocalização).

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A falência da forma Estado-nação

A maior parte dos Estados-nações não deu certo Do ponto de vista do ‘desenvolvimento como liberdade’ – para usar a feliz expressão de Amartya Sen (2000) –, é forçoso reconhecer que a imensa maioria dos Estados-nações do mundo não deu muito certo (44). O chamado mundo desenvolvido restringe-se a uma lista que não chega a três dezenas de países: quer se considere o desenvolvimento humano medido pelo IDH – Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD, quer se considere o desenvolvimento econômico, medido pelo CGI – Índice de Competitividade Global do Fórum Econômico Mundial, quer se considere o desenvolvimento tecnológico e a sintonia com as inovações contemporâneas, medido pelo IG – Índice de Globalização, da AT Kearney/Foreign Policy. Desenvolvidos (nesses três sentidos) são os países que apresentam IDH igual ou superior a 0,9, CGI maior ou igual a 4,6 e que figuram nos primeiros vinte ou trinta lugares da lista do IG, daqueles que têm ambientes mais favoráveis à inovação. Um cruzamento desses três índices revela a lista – aborrecidamente previsível – dos países que deram certo. Pasmem, mas são menos de 30! Em ordem alfabética (em dados do final da década passada): Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Coréia do Sul, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, França, Holanda, Hong Kong, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Japão, Luxemburgo, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido, Cingapura, Suécia e Suíça. (A essa lista poder-se-ia, com boa vontade, acrescentar mais alguns, como, por exemplo – e entre outros –, a República Checa, a Estônia, a Eslovênia e, na América Latina, o único candidato de sempre: o Chile). Significativamente, a imensa maioria dos países dessa lista dos mais desenvolvidos tem regimes democráticos. Significativamente, também, não figuram nessa lista dos mais desenvolvidos: i) países com regimes ditatoriais, ainda que apresentem altos índices de crescimento econômico (como China ou Angola); ii) protoditaduras (como Rússia ou Venezuela); e, nem mesmo, iii) democracias formais parasitadas por regimes neopopulistas manipuladores (como Argentina e outros países da América Latina).

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Em outras palavras, do ponto de vista do ‘desenvolvimento como liberdade’, os Estados-nações existentes no mundo atual, em sua maioria, não são instâncias benéficas. Os números são assustadores. Mais da metade (50,5%) dos 193 países do mundo ainda vive sob regimes ditatoriais ou protoditatoriais. Apenas 80 países (reunindo 49,5% da população mundial) apresentem democracias formais (um cálculo com boa vontade, incluindo aquelas que são parasitadas por regimes populistas ou neopopulistas manipuladores). Isso significa que cerca de 3 bilhões e meio de pessoas não têm experiência de democracia representativa – sim, a referência aqui é à democracia formal mesmo – ou têm dessa democracia uma experiência muito limitada. Quase quatro milhões de seres humanos (a maioria da humanidade) não têm plena liberdade para criar, para inventar, para inovar, para se desenvolver e para promover, com alguma autonomia, o desenvolvimento das localidades onde vivem e trabalham. E não há qualquer processo “natural”, de “evolução”, sempre ‘para frente e para o alto’, como imaginam alguns crédulos. Em 1975, 30 nações tinham governos eleitos pela população. Em 2005, esse número tinha subido para 119 (45). Mas nos últimos anos o crescimento da democracia e da liberdade política está sofrendo forte desaceleração e isso não tem a ver somente com o requisito democrático da eletividade, mas, sobretudo, com o da rotatividade (ou alternância), para não falar dos outros princípios (como a liberdade, a publicidade, a legalidade e a institucionalidade e, como conseqüência de todos esses, a legitimidade). O mais recente levantamento sobre o estado da democracia no mundo – The Economist Intelligence Unit’s Index of Democracy 2010 – abarcando 167 países (Estados-nações), revelou que existem atualmente apenas 26 países com democracia plena (em termos formais), agregando 12,3% da população mundial. E revelou também que esse número não está aumentando; pelo contrário, a situação foi descrita como “democracy in retreat” e “democracy in decline” (46). Bem mais da metade dessas pessoas vivem em cidades que poderiam “dar certo”, não fosse pelo fato de estarem subordinadas a Estados-nações que sufocam seu desenvolvimento. Sim, 87% dos Estados-nações do globo não podem ser considerados desenvolvidos dos pontos de vista humano, social e científico-tecnológico. No entanto, nesses 168 países “atrasados” (por assim dizer) e com poucas chances de se inserir adequadamente na contemporaneidade, existem milhares de cidades promissoras, que caminhariam celeremente para alcançar ótimas posições nos rankings da inovação e da sustentabilidade, bastando para tanto, apenas, que

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lograssem se libertar do jugo dos países – das estruturas centralizadoras dos governos centrais e dos outros aparatos de controle e dominação dos Estados-nações – que as estrangulam. O fato é que o Estado-nação não é boa instância – e não é uma boa fórmula política – do ponto de vista do desenvolvimento. As cidades, pelo contrário, sempre o foram, pelo menos até agora. E não há nenhuma razão pela qual as cidades devam continuar mantendo uma atitude genuflexória em relação ao Estado-nação, a não ser a concentração de poder nas instâncias nacionais, inclusive o poder de retaliação dos governos e legislativos centrais. Os prefeitos, como se diz, andam de “pires na mão” e ajoelham-se perante os executivos nacionais, em parte porque dependem de recursos que foram centralizados pelas instâncias nacionais e, em parte, porque têm medo de serem discriminados e perseguidos – o que, convenha-se, é um motivo odioso e antidemocrático. Mas isso acontece porquanto suas cidades não estão preparadas para enfrentar os desafios de caminhar com as próprias pernas.

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O reflorescimento das cidades Cidades transnacionais, cidades-pólo tecnológicas, redes de cidades e cidades-redes Não é por acaso que as cidades sempre estiveram na ponta da inovação, seja no aspecto social e político, como a Atenas no século de Péricles (ou, mais amplamente, no período considerado democrático: 509-322 antes da Era Comum), seja no aspecto econômico e científico-tecnológico, como Bruges (no final do século 12), pólo da nascente ordem comercial moderna, logo seguida por Veneza, que foi, talvez, o primeiro centro globalizado da Europa (do final do século 14 até o ano de 1500), ou Antuérpia (na primeira metade do século 16) e depois Gênova (na segunda metade), que se tornaram centros financeiros, seguidas por Amsterdã (na passagem do século 17 para o 18), ou por Londres, que se transformou na primeira democracia de mercado e onde o valor agregado industrial, impulsionado pelo vapor, ultrapassou, pela primeira vez na história, o da agricultura, ou por Boston (no início do século 20), com a fabricação de máquinas, passando a Nova Iorque que predominou durante quase todo o século passado, com o uso generalizado da eletricidade e chegando, afinal, à Califórnia atual, com Los Angeles e às cidades do Vale do Silício. Hoje o dinamismo das cidades inovadoras já se vê por toda parte. Freqüentemente não são mais os países (Estados-nações) que constituem referências para o desenvolvimento e sim as cidades, sejam cidades transnacionais (Barcelona, Milão, Lion, Roterdã), sejam cidades-pólo tecnológicas (Omaha, Tulsa, Dublin e, talvez, Bangalore e Hyderabad, no chamado terceiro mundo), sejam, por último, as coligações de numerosas cidades em extensas regiões do planeta, que começam a adotar uma lógica própria e diferente daquela do Estado-nação. Na verdade, cidades que se afirmaram como unidades econômicas – não necessariamente políticas – relativamente autônomas, já vêm surgindo ao longo dos últimos séculos (como Veneza e outros centros mais ao norte da Europa: e. g., Riga, Tallin e Danzig). São prefigurações do que Kenichi Ohmae (2005) chamou de ‘Estado-região’, que constitui hoje o palco privilegiado da economia global e que está levando a “um inevitável enfraquecimento do Estado-nação em favor das regiões” (47). Algumas dessas regiões, que tendem a substituir o Estado-nação, são coligações de cidades (como a área metropolitana de Shutoken, formada

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por Tóquio, Kanagawa, Chiba e Saitama, com um PNB de 1,5 trilhão de dólares; ou a área de Osaka, com 770 bilhões, em dados de 2005). Parece óbvio que essas regiões, que representam unidades econômicas mais pujantes do que a imensa maioria das nações do mundo, figurando então (2005) em terceiro e o sétimo lugares, respectivamente, no ranking mundial, mais cedo ou mais tarde, entrarão em choque com o centralizado sistema político do velho Estado-nação japonês, que não lhes permite uma dose de autonomia correspondente ao seu peso econômico. Ainda que algumas dessas regiões emergentes coincidam com pequenos países (como Irlanda, Finlândia, Dinamarca, Suécia, Noruega e Cingapura), em geral elas se formarão a partir do protagonismo de cidades e desenharão uma nova configuração geopolítica do mundo. Ou seja, ao que tudo indica, a estrutura e a dinâmica do Estado-nação não serão preservadas, a não ser em alguns casos. Mas quer falemos de Bangalore e Hyderabad, quer falemos de Dalian ou da ilha de Hainan na China, ou, quem sabe, de Vancouver e da British Columbia, da Grande São Paulo ou de Kyushu no Japão – mesmo em um sentido predominantemente econômico quantitativo, como o empregado por Ohmae – ainda estamos falando de cidades (ou de arranjos de cidades). Sim, continuamos falando de cidades. E é por isso que, nos exemplos colhidos na história e nas nossas tentativas de projeção para as próximas décadas, não aparecem, em maioria, as capitais dos países, as localidades-sedes dos seus governos centrais. Falamos de Milão e não da Itália (ou Roma). Falamos de Bangalore e não da Índia (ou Nova Delhi). Os que falam da Índia (e do Brasil e da Rússia e da China – repetindo a ilusória hipótese dos BRICs, inventada por Jim O’Neill) são aqueles autores, professores, consultores e policymarkers intoxicados de ideologia econômica e siderados pelo crescimento (ou expansão, mudança quantitativa) e não pelo desenvolvimento (mudança qualitativa). Com freqüência são também pessoas que não se dão muito bem com a idéia de democracia.

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As cidades na glocalização Estados são artifícios para proteger as pessoas da experiência do localismo cosmopolita O reflorescimento das cidades – na verdade, das localidades em geral – é uma das conseqüências do processo de glocalização atualmente em curso. O mundo não está apenas se globalizando, mas também se localizando cada vez mais. Isso quer dizer, em outras palavras, que o mundo único está desparecendo para dar surgimento a muitos mundos. E está havendo uma mudança social que favorece o florescimento das localidades em geral – e das cidades em particular – como protagonistas do desenvolvimento. Essa mudança, que está ocorrendo simultaneamente na dimensão global e na dimensão local, está tornando inadequada, insuficiente e impotente, a forma Estado-nação. O tão citado juízo do sociólogo americano Daniel Bell parece ser definitivo: o velho Estado-nação tornou-se não só pequeno demais para resolver os grandes problemas, como também grande demais para resolver os pequenos. Em outras palavras, as inovações (sociais, políticas, culturais e tecnológicas) introduzidas com o atual processo de glocalização, têm surgido simultaneamente na dimensão global (como resultado de mudanças sociais macroculturais) e na dimensão local (como resultado de mudanças sociais na estrutura e na dinâmica de comunidades). Entretanto, o Estado-nação tornou-se uma instância intermediária resistente a tais mudanças. Ou seja, a mudança que tem ocorrido nas duas pontas – no global e no local – ainda não atingiu plenamente o meio, a forma Estado-nação, que, sentindo-se ameaçada, está resistindo ferozmente para não ser desabilitada como fulcro do sistema de governança. A primeira década do terceiro milênio pode ser caracterizada como uma década de crise do Estado-nação e de conseqüente recrudescimento do estatismo. Os Estados-nações criarão, por certo, muitos obstáculos à emergência das cidades como sujeitos autônomos do seu próprio desenvolvimento. Mas não conseguirão resistir por muito tempo à convergência de múltiplos fatores que estão preparando o seu declínio. Como previu Castells (1999), “as estratégias do Estado-nação para aumentar a sua operacionalidade (através da cooperação internacional) e para recuperar sua legitimidade (através da descentralização local e regional) aprofundam sua crise, ao fazê-lo perder

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poder, atribuições e autonomia em benefício dos níveis supranacional e subnacional” (48). Nenhum Estado hoje consegue mais se livrar dos conflitos com seus níveis subnacionais, diante das exigências crescentes de mais autonomia local. Mas a despeito de todos os conflitos políticos e fiscais entre diferentes níveis de governo dentro de um mesmo Estado, que só tendem a se aprofundar e generalizar nos próximos anos, nunca é demais repetir que se fala aqui das cidades como redes de múltiplas comunidades interdependentes e não da réplica Estatal montada nas cidades, da instância municipal do Estado ou do governo local. Os que preconizam o declínio do Estado-nação diante dos novos arranjos locais ou regionais que emergem no mundo globalizado, fazem-no quase sempre de um ponto de vista estrita ou predominantemente econômico. É o caso, por exemplo, de Ohmae (entre outros). Mas é preciso ver que o fenômeno da glocalização é mais abrangente e não pode ser plenamente captado pelo olhar econômico. Estamos diante de mudança sociais mais profundas, que dizem respeito aos padrões de vida e de convivência social e não apenas diante de alterações na estrutura e na dinâmica do capital e do capitalismo. O que está mudando não é somente o modo de produzir e consumir e sim o modo de ser coletivamente. ‘Uma sociedade-rede está emergindo’ – muitos repetem o dito, mas parecem não extrair dele todas as conseqüências e essa surpreendente afirmação vai se tornando banal. O problema com a visão econômica é que ela é reducionista. Imagina que a configuração do mundo depende do modo de produção e, assim, se esforça para antecipar a nova forma do capitalismo que virá (ou sobrevirá), mas se esquece de perguntar sobre a nova forma de sociedade que emergirá. Isso talvez seja uma evidência da resiliência da crença economicista de que existe alguma coisa como uma “estrutura” econômica que determina, em alguma medida ou instância, uma suposta “superestrutura” da sociedade. Mas mercados não vêm de Marte. Constituem um tipo de agenciamento operado por seres humanos, terráqueos mesmo, cujo comportamento depende das interações que efetivam com outros seres humanos; ou seja, tudo isso depende do “corpo” e do “metabolismo” da sociedade (i. e., de sociosferas), vale dizer, da rede social. Não é nas novas formas econômicas que vamos encontrar o “mapa” das novas cidades. Esse “mapa” não poderá ser outra coisa senão as novas configurações das redes que configuram a cidade-rede. Tivemos até agora vários tipos de “mapas”, dos quais podemos citar alguns exemplos: as

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cidades-assentamento “horizontais” que se formaram após o final do período neolítico na Europa Antiga e no Oriente Médio (como Jericó, a partir, talvez, do 6º milênio a. E. C.); as cidades-Estado da antiguidade (as cidades monárquicas, muradas e fortificadas, que surgiram na Mesopotâmia a partir do 4º milênio, como Uruk, Ur, Lagash etc., e que se replicaram no período considerado civilizado); as cidades – burgos – organizadas em torno do comércio nos períodos feudais; uma grande variedade de cidades correspondentes aos Estados principescos e reais; até chegar às cidades como instâncias subnacionais (ou domínios do Estado-nação). E tivemos também algumas exceções, como Atenas – a polis do período democrático – e outras poleis na Ática. São exceções porque a polis grega democrática não era propriamente uma cidade-Estado semelhante às suas contemporâneas e sim uma comunidade (koinonia) política. Por último, ao que parece, teremos agora, no ocaso do Estado-nação, novos tipos de cidades: as cidades-redes (e as redes de cidades configurando novas regiões). Ao que parece, não é muito útil tentar pegar no passado um modelo como prefiguração para explicar o fenômeno atual da emergência da cidade-rede. Assim como a globalização da época das navegações não diz muita coisa sobre a globalização atual, também não teremos um novo venezianismo (por exemplo, não tivemos um novo brugesismo – de Bruges – a não ser o próprio venezianismo, o original, dos séculos 14 e 15). Não teremos novas “ligas hanseáticas”, nem um neo-antuerpismo ou um neogenovismo; assim como nenhum país ou região poderá cumprir no mundo atual o papel que foi desempenhado, em suas épocas, por Amsterdã, Londres, Boston, Nova Iorque ou Los Angeles e adjacências. Por quê? As explicações são várias: porque a ordem comercial contemporânea não tem mais mono-pólos (como foram Bruges e Veneza), de vez que a globalização hoje é policêntrica; porque o capital financeiro transnacional não exige mais centros fixos (como a Antuérpia ou a Gênova do século 16); porque as chamadas democracias de mercado não precisam estar mais ancoradas em impérios militares (como a Inglaterra dos séculos 18 e 19); porque as “máquinas que fabricam máquinas” da nova indústria do conhecimento não requerem mais uma infra-estrutura tão pesada que só possa ser reunida em uma localidade com alta capacidade hard instalada (como Boston, nos Estados Unidos no início do século 20); porque o acesso à eletricidade é praticamente universal (e a conexão banda larga segue o mesmo caminho) e a energia e a inteligência não precisam estar mais espacialmente tão concentradas (como estiveram em Nova Iorque ou em Los Angeles e nas cidades do Vale do Silício durante o século 20).

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Não é o mercado que determina. Não é o Estado que decide. São os fenômenos que ocorrem na intimidade da sociedade e que têm a ver com o grau de conectividade e de distribuição da rede social que acarretam a estrutura e a dinâmica dos novos agrupamentos humanos que se estabelecem sobre o território e, inclusive, daqueles que não estão estabelecidos sobre um território (como os agrupamentos virtuais). É claro que o mercado pode induzir e o Estado pode restringir (em geral colocando obstruções) as fluições que configuram a forma e o funcionamento das sociedades. Mas nenhum desses tipos de agenciamento pode determinar o que acontece. O problema do Estado – dos pontos de vista da democracia e do desenvolvimento (ou da sustentabilidade) – não é que ele se assenta territorialmente e sim que ele se constitui como um mainframe de programas verticalizadores. A Matrix como mainframe, do filme dos irmãos Wachowski, não precisava se assentar em um território determinado para executar o seu papel verticalizador. Aliás, no filme, o centro de vida alternativa e de resistência ao poder vertical – Zion – era territorialmente (e mais do que isso, subterraneamente) situada, enquanto que a Matrix era virtual, ou melhor, virtualizante... O territorial não leva necessariamente à verticalização (ou centralização), nem o virtual nos salva da dominação do poder vertical. Porque as disposições que configuram o que se manifestará no mundo físico ou no mundo virtual estão no espaço-tempo dos fluxos e não no espaço-tempo físico ou no chamado mundo digital (49). Mas o agarramento ao território, esse agrilhoamento tamásico contra-fluzz – posto que estabelecido para tentar impedir a vida nômade das coisas – tem sido fonte, em grande parte, do poder de separar os seres humanos: uma tentativa de matar no embrião o simbionte social. Os Estados foram erigidos para nos proteger da experiência do localismo cosmopolita, uma experiência glocal. Sob seu domínio, uma pessoa não pode ser cidadã do seu próprio mundo e não pode interagir livremente com outros mundos. Não, ela deve ser aprisionada no mundo único que foi territorialmente repartido por organizações erigidas em função da guerra e separadas por fronteiras, fechadas e burras. Em geral não pode atravessar essas fronteiras sem a permissão do poder estatal. Em uma parte dos casos, o poder estatal não concede tal licença a seus súditos, trancafiando-os no próprio território-penitenciária, como se tivessem sido condenados por algum crime gravíssimo. Em outra parte dos casos, não deixa entrar (ou cria toda sorte de empecilhos para a entrada) em seus territórios de certas categorias de estrangeiros.

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Comunitarização

As novas Atenas serão milhões de comunidades Ecoando o Operating Manual for Spaceship Earth de Buckminster Fuller (1968), McLuhan (1974) afirmou que “a espaçonave Terra não tem passageiros, só tripulação” (50). Como poderíamos considerar alguém “estrangeiro” se pertencemos todos à mesma família (em termos genéticos, praticamente toda a população da Terra é prima em um grau inferior ao 50º), habitando um planeta tão minúsculo, no qual somos todos tripulantes (quer dizer, todos nós somos o pessoal necessário para o bom funcionamento da nave)? Na modernidade, em um padrão descentralizado, 193 Estados-nações impõem modelos autocráticos de governança baseados no equilíbrio competitivo. A ilusão (e a impostura) de que sete bilhões de pessoas possam ser administradas por menos de duzentas unidades centralizadas – e, em grande parte (a maior parte) autocratizadas – é aceita como se fosse normal. Como se fosse possível disciplinar toda a diversidade da interação ensejada por bilhões de interworlds em duas centenas de organizações, em sua ampla maioria, capengas, autoritárias e corruptas, controladas por grupos privados que satisfazem seus interesses à custa do público, quando não por sociopatas, ladrões e fascínoras de todo tipo. Tudo indica que não poderemos mais ser arrebanhados e aprisionados ou dominados por 193 organizações hierárquicas, eivadas de enclaves autocráticos resilientes – constituídos como barreiras, para tentar obstruir fluzz –, como são os Estados nações da atualidade. Nem por algumas dezenas ou centenas de milhares de Estados-locais (ou instâncias locais de um Estado central) chamados de cidades (indevidamente, posto que a cidade são sempre redes de comunidades). As novas Atenas serão milhões de comunidades. Comunitarização é a nova palavra de des(ordem), quer dizer, de uma nova ordem emergente, bottom up. O reflorescimento das cidades é um sintoma do fortalecimento das comunidades que as constituem. São essas comunidades que comporão outras unidades celulares da nova arquitetura de governança do mundo glocalizado. É por isso que as cidades (e as coligações de cidades em novas regiões econômicas e geopolíticas) – e não mais, em geral, os Estados-nações – são hoje instâncias intermediárias

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nessa transição para outra etapa do sistema global, no rumo da efetivação de uma verdadeira ecumene planetária. Mas – repetindo o mantra – o modelo é fractal e não unitário. Isso significa duas coisas. No plano global, uma ecumene planetária não poderá ser uma réplica global do Estado-nação; nada assim tão monstruoso como um governo mundial ou um parlamento mundial, que apenas transferiria, para o seu interior, o modelo perverso de equilíbrio competitivo ainda reinante no cenário internacional. Tal ecumene, não será uma administração, um sistema executivo de comando-e-controle, nem mesmo uma grande instância de representação baseada na alienação da autonomia das localidades ou comunidades que a constituem. Ela se formará por emergência, tal como ocorre na regulação da capa biosférica que envolve o planeta (o simbionte natural). E, no plano local, a identidade da cidade-rede também se forma por emergência, na sinergia de múltiplas identidades que, ao se identificarem entre si, também se identificam com ela (ou parte dela) por herança ou projeto compartilhado a posteriori, e não por uma decisão consciente (e a priori) de algum centro diretor ou coordenador. Cada cidade tem muitas comunidades (ou seja, em princípio, cada cidade pode ter múltiplas identidades). Cada comunidade se desdobra, por sua vez, em muitas outras comunidades (aumentando ainda mais a diversidade das identidades). Isso poderia ser um problema, porque, a rigor, uma comunidade nuclear de convivência cotidiana com grau máximo de distribuição e conectividade, capaz de ensejar pleno relacionamento entre todos os seus membros (e, conseqüentemente, usinar uma identidade inequívoca) é uma rede muito pequena, não chegando, talvez, a duas centenas de pessoas. Só não estamos diante de um problema insolúvel porquanto há também muita superposição. Uma pessoa participa ao mesmo tempo de várias comunidades desse tipo (familiar, funcional, de prática, de aprendizagem, de projeto etc.) e não está condenada a conviver em um único círculo restrito de relacionamentos. Assim, o padrão de interação é complexo, dando margem à formação de circularidades inerentes que – se compartilhadas por múltiplas redes urbanas – podem configurar a cidade-rede. Ademais, as cidades já existem, para além de eventos sócio-territoriais, geograficamente localizados, como “regiões” do espaço-tempo dos fluxos. Não se trata de fabricar novas cidades, seguindo um projeto, uma planta, uma maquete. Toda vez que se tenta fazer isso, aliás, os resultados são péssimos: criam-se arquiteturas verticalizadoras e dinâmicas autocratizantes (como é o caso das chamadas “cidades-planejadas”, seja a nova capital do Egito criada por Amenófis IV para o deus Aton ou Brasília),

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para não falar do dispêndio desnecessário de recursos. Verdadeiras cidades só passarão a existir (em termos sociológicos, por assim dizer), várias décadas depois da instalação dessas experiências arquitetônicas e de planejamento urbano de eternos “aprendizes de feiticeiros”, que retornam de tempos em tempos. Padrões de comportamento social peculiares já se reproduzem nas cidades por efeito de herança cultural, às vezes milenar e isso não pode ser substituído por iniciativas conscientes de um número limitado de planejadores urbanos, mesmo quando estão imbuídos das melhores intenções. Assim como não se trata de planejar novas cidades (como complexos urbanos instalados ex ante à dinâmica social), também não se trata – na recusa à verticalização do mundo imposta pelo Estado e à chamada “sociedade de controle” – de urdir novas comunidades a partir de um plano de um grupo privado. Grupos marginais, muitas vezes com forte potencial transformador – pois que a inovação, na razão direta do grau de conectividade e distribuição das redes sociais, costuma partir da periferia do sistema e não do centro – surgem mesmo nos momentos de crise dos velhos padrões de ordem. Mas o que não se pode pretender é constituir comunidades desse tipo como proposta política para estabelecer um caminho de mudança, forjando estudadamente uma identidade e buscando ganhar almas por meio do proselitismo ou da aplicação de outros programas proprietários. Comunidades se formam a partir de identidades, é certo. Mas identidades também são programas que “rodam” em redes sociais. Ora, programas que podem favorecer a emergência das cidades como protagonistas do desenvolvimento são programas de capital social. E capital social é um bem público. Em uma sociedade em rede não é privatizando capital social que vamos conseguir contribuir para a emersão de uma nova esfera pública (social) nas cidades ou localidades, capaz de substituir a limitada esfera pública atual, contraída pela invasão dos programas proprietários do Estado-nação (que, ao contrário do que se afirma, são privatizantes e quase sempre desestimulam ao invés de induzir o desenvolvimento).

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Cidades inovadoras, não-Estados-nações Cidades inovadoras – como redes de comunidades – em rota de autonomia crescente em relação aos governos centrais que tinham-nas por seus domínios Nas grandes transformações moleculares – aquelas que têm conseqüências duradouras – o velho é substituído pelo novo não porque foi destruído, mas porque se tornou obsoleto. Os velhos padrões nunca são eliminados de uma vez ou para sempre, mas continuam existindo, como remanescências, vestigialmente. Ao que tudo indica, os Estados-nações continuarão existindo por muito tempo, assim como ainda existem hoje algumas comunidades de herança (do tempo medieval) e velhas tribos indígenas primitivas (da era paleolítica). Ao contrário do que previram os críticos da globalização, apavorados ante a perspectiva de uma uniformização ou homogeneização que seria imposta ao mundo inteiro, o cenário da glocalização é o de um conjunto de mundos variados, que estarão não apenas em locais diversos, mas também em tempos diferentes. Mas nessa nova configuração os Estados-nações não terão mais o protagonismo, hoje quase único e exclusivo, da governança do desenvolvimento, baseado nos monopólios da regulação e da violência que ainda se esforçam por deter em suas mãos. Sim, os Estados-nações continuarão existindo, mas já terão perdido o monopólio da governança do desenvolvimento, pelo simples fato de que não conseguirão mais impedir a emergência da inovação. Na verdade, em uma sociedade em rede é muito difícil construir monopólios de um novo fator cada vez mais decisivo nos processos de produção e de regulação: o conhecimento. O conhecimento é um bem intangível que, se for aprisionado (estocado, protegido, separado), decresce e perde valor e, inversamente, se for compartilhado (submetido à polinização ou à fertilização cruzada com outros conhecimentos) cresce, gera novos conhecimentos e aumenta de valor (aliás, é isso, precisamente, o que se chama de inovação). Os Estados e as empresas tradicionais (sempre associados nessa coligação que formou o capitalismo que conhecemos) continuarão tentando aprisionar o conhecimento ou regulá-lo top dow a partir das leis de patentes, do domínio privado sobre produtos do conhecimento (como o direito autoral), do segredo e da falta de transparência (ou accountability) e dos sistemas de ensino (as burocracias escolares e as hierarquias sacerdotais que constituem as academias). Mas não poderão mais evitar que novos conhecimentos se formem à margem das instituições que regulam e à sua revelia. E, o que é mais importante,

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não poderão mais competir com a produção em larga escala de conhecimentos e, inclusive (uma conseqüência), de produtos comerciais – como os chamados peer production e crowdsourcing – e com as outras formas não-mercantis de inovação, como as que serão acionadas na emergência das novas cidades. Ainda que se constitua como instância autorizada de fabricação, interpretação e aplicação das leis e ainda que continue detendo os monopólios da regulação macro-econômica, da emissão de moeda e do uso da violência, o velho Estado-nação ficará falando sozinho enquanto as cidades inventam novas instituições e novos procedimentos adequados à governança do seu próprio desenvolvimento. E isso ocorrerá não porque o Estado-nação não queira mais barrar tais avanços e sim porque não terá os meios para fazê-lo. O próprio sistema político baseado na verticalização do Estado-nação já está sentindo a mudança. Já é mais importante, hoje, ser prefeito de São Paulo do que governador da grande maioria dos estados brasileiros. Seria mais importante ser administrador de Shutoken do que chefe de governo do Japão. E amanhã, em tudo o que disser respeito ao desenvolvimento, os governantes mais importantes não serão mais os chefes do governo ou do Estado (nacional) e sim os administradores de cidades inovadoras e de regiões formadas por coligações de cidades. Quem sabe na futura China (ou no que ela vier a se transformar), os participantes do sistema de governança de Dalian terão mais importância do que têm hoje os seus ditadores (em um cenário, é claro, em que não houver mais ditadores). De qualquer modo, as cidades serão independentes na razão direta da sua capacidade de inovação. O processo de independência das cidades é um processo de inovação. As cidades que quiserem ser independentes estão condenadas a inovar permanentemente. Não há uma definição de cidade inovadora a não ser aquela, quase tautológica, de que é uma cidade que inova ao criar ambientes favoráveis à inovação (e não uma cidade em que o governo local quer pegar a bandeira da inovação com objetivos de marketing político). São esses ambientes que caracterizam a cidade inovadora como uma cidade aberta, conectada para dentro e para fora, ágil na regulamentação (sobretudo, mas não apenas, no que tange aos empreendimentos empresariais e sociais) e educadora. Para tanto, é necessário que as cidades que queiram ser inovadoras construam sistemas locais de governança que favoreçam ao invés de dificultar a regulação emergente, a partir da comunitarização.

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O mercado nos forneceu um modelo relativamente eficaz de regulação emergente, tão sedutor que muitas pessoas deixaram-se intoxicar por uma visão mercadocêntrica do mundo, que poderia ser resumida na pergunta: ora, se deu certo para as unidades econômicas, por que não daria também para as unidades políticas e sociais? Foi assim que os modernos avacalharam o conceito de público. E a rigor também desaproveitaram o que havia de tão revelador na autoregulação mercantil: o próprio mecanismo da autoregulação ou o processo da emergência. Por medo do risco, da incerteza no tocante aos seus investimentos, em vez de constituirem empresas-fluzz e de articularem seus negócios em rede, erigiram empresas monárquicas, às quais logo associaram ao Estado hobbesiano gerando o capitalismo que conhecemos.

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Negócios em rede

Administrar pessoas como forma de conduzí-las a gerar valor para se apropriar de um sobrevalor, é uma função social própria de uma época de baixa conectividade social O que chamamos de ‘negócios’ são uma interpretação possível de um tipo de interação social. O tipo de interação que denominamos assim permanece ainda relativamente desconhecido do ponto de vista do que se passa no espaço-tempo dos fluxos. Uma coisa que a nós parece ser um negócio, em uma sociedade não-mercantil talvez pareça ser uma simples troca e em uma sociedade fortemente verticalizada de predadores ecossociais (como, por exemplo, entre cavaleiros medievais), pareceria ser uma justa, uma disputa de vida ou morte. As interações entre pessoas que estão na raiz do fenômeno têm uma precedência ontológica (se for possível falar assim) às interpretações de suas manifestações em sociedades determinadas: para o persa vendedor de seda no mercado, comércio era uma coisa diferente do que era para o mercador veneziano e do que é para o vendedor da Avon. O status do conceito (a epistemologia) varia com a ontologia; ou seja, negócios em uma rede não são anteriores ao tipo particular de interação que, em uma dada circunstância, interpretamos como negócio. Isso coloca algumas perguntas fundamentais: os negócios, como acreditam alguns, fazem parte (“naturalmente”) da vida em sociedade? Quais tipos de intercâmbios de energia (incluindo matéria) e informação característicos do “metabolismo” de um corpo comunitário podem se chamar de negócios? Ou, imaginando uma comunidade como um ecossistema, o que seria um negócio? Vamos tomar como exemplo de um tipo de interação que, segundo a opinião geral, ocorre em uma rede: a aprendizagem. Mas aprendizagem também é um tipo de interação, que, dependendo das circunstâncias, pode ser interpretado como negócio (e vice-versa). E aprendizagem também pode ser interpretada como desenvolvimento (a organização que aprende é aquela que se desenvolve). E desenvolvimento pode ser interpretado, em um sentido ampliado, como vida (do ponto de vista da sustentabilidade). E vida pode ser interpretada como conhecimento (como nos mostraram Maturana e Varela na chamada de teoria do conhecimento de Santiago).

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Estamos aqui como aqueles caras que olham a mesma montanha de diferentes perspectivas e juram, um, que a montanha é assim, com uma ponta para o lado esquerdo, outro, que a montanha é assado, com uma inclinação para a direta, outro, ainda, que ela tem a forma de cone... Mas como ela é realmente? Enquanto não desvendarmos o que se passa no espaço-tempo dos fluxos, enquanto não decifrarmos os padrões que transitam como mensagens, ou melhor, que se configuram como emaranhamentos na rede social, não poderemos saber o que é (e de que forma é) – ou o que não é – próprio da “fisiologia” da rede. Sabemos mais ou menos como devem funcionar os negócios em uma estrutura hierárquica (ou mais centralizada do que distribuída). Não sabemos, entretanto, como devem funcionar em uma rede (mais distribuída do que centralizada). E não sabemos porque as estruturas de negócios até hoje (ou, pelo menos, desde que se chamaram ‘negócios’) foram estruturas mais centralizadas do que distribuídas. Se tomarmos ‘redes’ por estruturas mais distribuídas do que centralizadas, negócios em uma rede podem ser julgados como positivos ou negativos do ponto de vista do que contribui para manter a rede como tal (quer dizer, com graus de distribuição maiores do que de centralização). Ou, dizendo de outro modo, isso depende do que incrementa ou dilapida capital social. Ou, ainda, depende do que aumenta ou diminui a cooperação. Por exemplo, qualquer repartição de excedente, em uma rede distribuída, que reserve uma parcela maior ao administrador, não pelo fato de ele ter se esforçado mais ou inovado mais e sim pelo fato de ele ter um acesso diferencial a fatores que poderiam ser compartilhados, mas não foram (conhecimento mantido em sigilo, às vezes sob pretextos de "segurança da informação", apoio político privilegiado e outros) gera centralização, diminui o capital social, diminui a cooperação. Os negócios que são feitos no mundo ainda são, em grande parte, negócios de intermediação. Mas nos mundos hiperconectados que estão emergindo, a figura do intermediário tente a desaparecer. Há uma espécie de esgotamento histórico de um papel social que foi adequado a uma época que está se desfazendo. Unidades econômicas hierárquicas precisam, por certo, de intermediários; e quanto mais centralizadas forem, mais precisam. Ou, dizendo de outro modo, pelo inverso, a intermediação é uma centralização: o fluxo não

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escorre livremente sem passar por aquela "estação"... Porém unidades mais distribuídas do que centralizadas podem dispensar tais intermediários na medida do seu grau de distribuição (que, como se sabe, acompanha o seu grau de conectividade). Em rede, ao que tudo indica, os negócios não poderão ser baseados na manipulação alheia (arregimentação, constrangimento e condução de pessoas) para embolsar trabalho não-pago. Administradores do excedente que submetem pessoas à esquemas de comando-e-controle (e acabam administrando pessoas ao invés de coisas), tendem a fenecer. Se alguém se propõe a administrar pessoas como forma de conduzí-las a gerar valor para se apropriar de um sobrevalor, então está cumprindo uma função social própria de uma época de baixa conectividade social.

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Apaches, não aztecas

A empresa hierárquica foi criada para proteger as pessoas da experiência de empreender Mas então, como serão as relações de negócios entre as pessoas em uma sociedade em rede? Será que, como prevêem alguns, tudo vai ser resolvido pela livre negociação? Parece que sim. Mas o problema é a partir de que lugar se negocia (ou do poder de negociação, que é diretamente proporcional às relações que alguém construiu ao longo da vida e, muitas vezes, como conseqüência, ao conhecimento e a outros capitais econômicos e extra-econômicos que reuniu ou acumulou e aprisionou). Assim como não existe o tal mercado perfeito da máquina econômica inventada pelos economistas (um delírio aceito por todos, conquanto isso seja espantoso), também não existe a negociação simétrica. Isso ainda é assim nos empreendimentos empresariais, não há dúvida. Se não fosse, alguém não precisaria abandonar seu sonho para trabalhar em prol do sonho alheio (para usar uma linguagem cara aos arautos do empreendedorismo). A empresa hierárquica foi criada para proteger as pessoas da experiência de empreender. Você não precisa empreender. É só deixar que eu empreendo por você. Desde, é claro, que você abandone seu sonho e adote o meu (como na conhecida anedota, desde que você esteja disposto a trocar uma idéia comigo: você chega com a sua e sai com a minha, hehe). Desde, é claro, que você trabalhe para mim. Mas isso talvez só seja assim em um mundo de baixa conectividade e distribuição. Nos Highly Connecteds Worlds que estão emergindo em uma sociedade do conhecimento, isso tende a deixar de ser assim. Ou seja, a negociação tende a ser cada vez mais equilibrada (e a eqüidade tende a aumentar). Porque o conhecimento – desaprisionado, inclusive, das escolas e academias – tende a estar igualmente disponível para todos os players. Porque o capital (stricto sensu, econômico mesmo: a renda e a riqueza) tende a não ter tanta importância diferencial para alguém iniciar um empreendimento. E porque as relações que garantiam a um empreendedor condições especiais para fazer um negócio, alugando força de trabalho alheia e capturando cérebros de terceiros – em geral, relações de natureza política, é inegável – também não conferirão apenas a alguns (poucos) tal diferencial.

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Em outras palavras e para exemplificar: o empreendedor capitalista nascente não teria conseguido prosperar sem o Estado. Ele tinha relações políticas privilegiadas. Isso valeu para os donos das primeiras grandes manufaturas inglesas, para Ig Farben, na Alemanha hitlerista, passando por Gerdau, no Brasil do regime militar e chegando aos atuais capitalistas chineses. Ocorre que nos mundos que se avizinham (os mundos altamente conectados da sociedade do conhecimento), o novo empresário não precisará mais de uma infra-estrutura hard instalada para produzir e nem, muito menos, de apoio político privilegiado para manter em suas mãos uma estrutura de negócios funcionando. Serão mundos - ao que tudo indica - muito mais abertos aos empreendedores (inovadores). No velho mundo único proliferam grandes empresas, tão agigantadas que foram obrigadas a embutir em sua estrutura várias funções que caberiam a Estados, escolas e, inclusive, a igrejas: algumas delas mantêm polícias e agências próprias de segurança e até de espionagem, universidades corporativas e, a pretexto de levantar uma causa para captar a adesão voluntária de seus stakeholders, elaboram e difundem, interna e externamente, visões de mundo que extravasam o campo dos seus negócios. Essas megacorporações dividem com os Estados-nações o controle sobre os grandes fluxos financeiros internacionais. Algumas empresas transnacionais já começam a dividir com os países várias outras funções antes privativas dos Estados: agências de inteligência, forças armadas para intervir em conflitos (e talvez provocá-los) em qualquer parte do mundo e para recuperar países devastados pelas guerras (que, em alguns casos, elas mesmas ajudaram a promover) etc. Amanhã, quem sabe, elas ainda vão cuidar de fronteiras, administrar prisões internacionais e campos de refugiados, emitir identidades inequívocas e não-falsificáveis (códigos digitais baseados no genoma), fornecer históricos aceitos por planos de saúde multinacionais, patrulhar e vigiar caminhos e rotas comerciais e turísticas e até cunhar moedas virtuais amplamente aceitas. A rigor, as grandes empresas não têm mais um (único) negócio. Tanto faz o negócio, pois vivem praticamente de propaganda. São, no fundo, empresas de propaganda. Quem pode comprar dez ou vinte minutos por dia em todos os canais de TV aberta e a cabo, pode também vender qualquer produto: de dentifrícios a telefones celulares. Quem pode se localizar adequadamente vende em qualquer lugar do mundo. E quem pode fazer essas coisas acumulou tamanho poder (inclusive comprando altos funcionários governamentais, parlamentares, juízes, promotores, policiais, fiscais e meios de comunicação em tantos países) que pode fazer quase qualquer

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coisa. A mega-estrutura montada e a difusão massiva da marca garantem, depois de algum tempo, que os produtos de uma grande empresa sejam quase sempre aceitos pelos consumidores, de um modo que não corresponde diretamente à qualidade desses produtos (ou à sua reputação, como se acredita). Apesar dessa conversa contemporânea de branding como pacto feito entre a empresa e os sujeitos que estão no seu “ecossistema”, em empresas hierárquicas competindo com outras empresas hierárquicas em um mundo hierárquico, todo branding acaba, mais cedo ou mais tarde, sucumbindo à realpolitik do marketing. Mas a medida que o mundo se torna menor em termos sociais (ou seja, mais conectado) a tendência, ao contrário do que supõem os adeptos dos movimentos antiglobalização, é a pulverização e a diversificação das empresas, não a sua concentração em algumas poucas unidades dominando o mundo inteiro. Saltaremos, talvez, das dezenas para centenas de milhões de unidades empreendedoras quando a população mundial chegar perto de 10 bilhões de pessoas (por volta de 2050). E isso não tem a ver apenas com crescimento absoluto, pois a razão empresa-habitante tende a aumentar bastante. Ao que tudo indica nos Highly Connected Worlds não vingarão mais empresas tão grandes, pouco ágeis para os tempos-fluzz. O capitalismo-que-vem (com esse ou outro nome) tende a ser um capitalismo de muitos capitalistas e não apenas de poucos. Se considerarmos que o capitalismo foi o resultado de uma associação entre empresa monárquica e Estado hobbesiano, talvez não seja nem muito correto chamá-lo de capitalismo. Será alguma coisa assim como um "capitalismo" do capital social. Pois bem. Aconteça o que acontecer, em uma rede negócios entre seus nodos não podem ser feitos segundo padrões do mundo hierárquico. Individualmente cada um pode continuar fazendo o que quiser em suas empresas. Pode continuar alugando gente, aprisionando corpos, capturando e colonizando cérebros, subremunerando “colaboradores” e administrando pessoas com base em suas vantagens competitivas-comparativas. Em rede, porém, as pessoas serão compelidas, cada vez mais, a simular, elas próprias, com seu comportamento, a mudança-para-rede que está acontecendo “lá fora”. Não propriamente para dar um exemplo ético e sim por coerência adaptativa: os Highly Connecteds Worlds constituem um florescimento da sociedade em rede que sempre fomos no princípio (e somos, nisi quatenus não “rodamos” programas verticalizadores). Eles são – para usar a bela expressão de William Irwin Thompson (2001), em Transforming History – aquela “unnamed origin that is now upon us...” (51)

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A questão aqui, portanto, não parece ser ética, nem estritamente econômica, mas social mesmo (a economia, como dissemos, não vem de Marte, mas é um dos pontos de vista explicativos para fenômenos que ocorrem na sociedade, quer dizer, na rede social). O homo economicus é uma abstração reducionista. O que existe mesmo é a pessoa, que só pode se constituir como tal na relação e, inclusive, na troca e na dádiva. Sim, as interações econômicas não são apenas de troca. Há uma economia, ou melhor, uma ecologia da dádiva. Quanto você troca uma coisa por outra não ganha nada: substitui uma coisa por outra. A máxima cínica “tudo que não é dado está perdido” significa “é dando que se recebe”, sim, mas não porque você dá instrumentalmente esperando receber algo em troca (como no chamado altruísmo recíproco interpretado por economistas) e sim porque, na ecologia do seu ecossistema comunitário, dar é a maneira de, para usar uma linguagem poética, deixar passar o fluxo da vida. O fluxo voltará para você na forma de maior capacidade de se transformar em congruência com as mudanças do meio. Ou seja, a dádiva é fluzz, faz parte da capacidade biológico-cultural – extremamente relevante em nossa história evolutiva – de conservar a adaptação. Não há nenhum problema, ético ou econômico, em ganhar dinheiro em troca de atividade desenvolvida ou esforço realizado. Não há problema, nem mesmo, ao contrário do que supõem os igualitaristas, em ganhar muito dinheiro assim. Também não há problema em gerar excedente, sobrevalor ou o que valha. Ter resultado positivo em qualquer atividade econômica é uma condição de sobrevivência e uma obrigação social (haja vista que o prejuízo terá que ser arcado por alguém e afeta a todos os stakeholders). O problema só aparece quando queremos administrar o excedente de uma maneira que impeça a possibilidade de outros também administrá-lo. O problema só aparece quando você quer ser azteca em vez de apache. Aquilo que derrotou os Apaches não foram as vacas que eles ganharam e sim a atribuição aos Nant'ans – os netweavers da rede social apache – de administrar centralizadamente o excedente, redistribuindo as vacas pelos membros das comunidades a partir de sua posição diferenciada (52). Se você administra o excedente dessa maneira, então introduz perturbações nos fluxos gerando anisotropias na rede toda (e mudando a topologia da sociedade). Ora, em uma rede que quer continuar sendo rede (mais distribuída do que centralizada), isso, por certo, é um problema!

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Não-empresas-hierárquicas

Redes de stakeholders – demarcadas do meio por membranas (permeáveis ao fluxo) e não por paredes opacas – são as novas comunidades de negócios dos mundos que já se anunciam A empresa tradicional se baseava na capacidade de aprisionar o conhecimento, deter o segredo, guardar a fórmula a sete chaves. Só que nós – os hackers e os netweavers - estamos encontrando "O Chaveiro" (aquele programa do filme dos irmãos Wachowski (2003), The Matrix Reloaded, interpretado por Randall Duk Kim). E nenhuma empresa conseguirá, sozinha, se manter na ponta da inovação (sem o que verá suas chances de futuro se reduzirem ou não será sustentável) sem lançar suas "hifas" para importar capital humano (conhecimento) e social (relações) do ambiente onde existe. Duzentos cérebros aprisionados trabalhando para um dono não podem competir com vinte mil cooperando livremente para encontrar uma solução (de gestão, processo ou produto). Observe-se que estamos falando disso que chamam de 'Economics', mas sem manter uma posição genuflexória em relação aos princípios ideológicos proclamados por esses novos sacerdotes da modernidade conhecidos como ‘economistas’. Um desses princípios, muito conveniente para os privatizadores de conhecimento (como Bill Gates) é aquele que reza que o principal incentivo para a inovação é o interesse material egotista (toda economia ortodoxa, como se sabe, se baseia na idéia de que o comportamento da sociedade pode ser explicado a partir do comportamento dos indivíduos, que os indivíduos se comportam fazendo escolhas racionais a fim de maximizar a obtenção dos seus interesses e que esses interesses são sempre, ao fim e ao cabo, egotistas. Isso é alguma coisa parecida com religião, et pour cause). Bem, mas então o Sr. Gates diz isso. E a realidade mostra que o mundo não funciona (mais) assim (se é que alguma vez funcionou). Os grandes inovadores da humanidade – em sua maioria – nunca agiram assim. Descobriram coisas porque deram curso àquela surpreendente capacidade humana de se maravilhar com o desconhecido e de caminhar na escuridão em direção à luz (ainda que isso possa soar, para alguns, anacronicamente iluminista, a figura de linguagem parece perfeita). E polinizaram com suas descobertas outras descobertas. Toda inovação surge, dessarte, por polinização mútua, por fertilização cruzada. Ora, isso não acontece nos marcos do jogo comercial de interesses e nem poderá acontecer, no volume

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exigido pelo ritmo alucinante das inovações contemporâneas, apenas dentro de uma unidade fechada de aprisionamento de corpos e de cérebros (como a empresa como unidade administrativo-produtiva isolada). Isso ocorrerá, cada vez mais, dentro de redes de stakeholders que serão as novas comunidades de negócios do mundo que já se anuncia, demarcadas do meio por membranas (permeáveis ao fluxo) e não por paredes opacas. A aplicação e o esforço devem ser remunerados, mas não o conhecimento. Ninguém, a rigor, é dono do conhecimento, que é sempre resultante de um processo coletivo. Alguma coisa “rodou” naquela nuvem que chamamos de mente (e que não está restrita ao nosso cérebro, é uma cloud computing social). Sua avó lhe cobrou pela receita daquela magnífica geléia? Não? Então por que você não pode fazer o mesmo? Ah! Ela então deu a receita para o próprio neto, mas não a daria para o neto de outra avó? Por quê? Porque a estrutura familiar, no caso, privatizou o capital social. Não é preciso grande esforço para perceber que, do ponto de vista social, isso gerou improdutividade, diminuiu a intensidade do fluxo econômico. E que, como conseqüência, muitos perderam enquanto todos poderiam ganhar. Sim, isso é pura sócio-economia. Economia do capital social. Nossa produtividade aumentaria muito se o capital social – que é uma espécie de recurso sistêmico que enseja a geração dos outros capitais (para continuar com a metáfora, além dos capitais propriamente ditos, como o físico e o financeiro, aquel’outros que são considerados externalidades pelos economistas: como o capital natural, o capital humano e o social) – não fosse privatizado. Isso quer dizer que aumentaria a geração de valor... para todos! Não parece ser verdade, como pensam alguns, que a peer production seja coisa para um futuro longínquo. Temos hoje milhares de produtos (bens intangíveis e inclusive tangíveis) sendo produzidos assim. Nem é necessário insistir nos exemplos sempre citados do Linux ou do Apache (et pour cause, novamente). Basta ver como surgiu quase toda a produção científica: retrocederíamos à idade da pedra sem a peer production. Por certo, muitos mundos ainda não são assim. Mas as tendências apontam nessa direção. Na medida em que a privatização do conhecimento vai se tornando, cada vez mais, impraticável, vão perdendo sentido os esquemas que visam o seu aprisionamento. E assim como está ficando cada vez mais difícil aprisionar o conhecimento, ainda há outra evidência que corrobora essa hipótese: o conhecimento aprisionado estraga. É um bem que cresce

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quando compartilhado e decresce e perde valor quando não se modifica continuamente pela polinização.

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O fim do trabalho Boa parte do que chamamos de trabalho se exercerá como divertimento, jogos, creative games A pessoa é o empreendedor, não a empresa. A empresa é um meio para que você possa empreender, não uma feitoria (você é um escravo?), um feudo (você é um servo?), uma penitenciária onde você tenha que pagar uma pena oito horas por dia (você foi condenado por algum crime?), quase todos os dias da semana (sempre aborrecido e ansioso, como os escolares, não vendo a hora em que vai tocar a sineta); muito menos um ídolo a que você deva adorar. A empresa-hierárquica substituiu a liberdade da invenção pela prisão do trabalho (rotineiro). Conquanto tenha sido tão cantado e glorificado, trabalho é um conceito regressivo, que evoca um ethos desumano ancestral. Sim, da perspectiva de uma sociedade em rede, trabalho será um conceito cada vez mais problemático. Não é a toa que tenha surgido, na antiga Mesopotâmia, com a conotação de sofrimento. Aliás, na mitogonia suméria, segundo a “Epopéia da Criação” (53) – que contém alguns dos relatos mais antigos que conhecemos de uma cultura sacerdotal, hierárquica e autocrática – o homem teria sido criado pelos deuses para “trabalhar para sempre e liberar os deuses...” ou suportar o jugo, sofrer a fadiga. Já foi criado como trabalhador – um ser inferior, escravo dos deuses – para propiciar a liberdade dos deuses, que passaram então a exigir dos homens adoração. Adoração significava, originalmente, segundo os relatos bíblicos, trabalhar para os seres superiores: trabalhar para uma deidade e essa deidade era simultaneamente “senhor”, “soberano”, “rei”, “governante” e “dono” – enfim, superior. O homem antigo dos sistemas hierárquico-autocráticos não propriamente adorava seus deuses, mas temia-os e trabalhava para eles. E, é claro, para seus intermediários humanos: os sacerdotes. Assim como temor não é amor, trabalho não é algo que possa humanizar os seres humanos enquanto sujeitos interagentes em relações horizontais com outros seres humanos. Quando se trabalha para um superior que aprisionou seu corpo e escravizou ou alugou sua força e sua inteligência, é-se subordinado, sub-ordenado segundo um padrão de ordem vertical, alocado em um degrau inferior da escada do poder.

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Também não é por acaso que no organograma das empresas figuram no topo aqueles que têm muitas conexões e abaixo os que têm poucas. O CEO tem acesso a todas as informações, a todos os conhecimentos, a todos os funcionários e a todos os demais stakeholders, enquanto que o auxiliar do almoxarifado e a moça do café vivem na pobreza de caminhos (ver Fig. 2). É assim que a estrutura hierárquica organiza internamente a pobreza (e toda pobreza é pobreza de conexões) para administrá-la e mantê-la. Diz-se então que tais pessoas não são empreendedoras. Ora, é claro que não são: a empresa cassou seu empreendedorismo ao aprisioná-las nesse tipo de estrutura centralizada. A empresa-hierárquica só se constitui porque aquele mesmo programa ancestral, resumido no mito sumério da criação do ser humano como um trabalhador amestrado (o “lulu-amelu”), continua rodando na rede social. Não importa para nada se os nomes das coisas, dos processos e das “peças da máquina”, mudaram: você continua adorando ídolos, quer dizer, trabalhando para um deus. A reação desses súditos – os trabalhadores – na modernidade, nos dois séculos passados, não poderia ter sido mais conforme ao modelo. Em vez de se transformarem em empreendedores e montarem suas próprias empresas em outro padrão, eles se organizaram em movimentos, corporações e partidos de trabalhadores repetindo e legitimando o velho padrão, apenas querendo arrancar dos patrões mais “benefícios” e condições melhores para continuarem sendo... trabalhadores! E adotaram, em seus movimentos – de início insurgentes e, depois, acomodatórios: simples bandos para negociar interesses (pois o sindicalismo é uma forma de banditismo social e, às vezes, também criminal) – a mesma estrutura hierárquica que os aprisionava. Na vertente insurgente desses movimentos, ditos socialistas, alguns imaginaram que deveriam se organizar, sempre de modo hierárquico, para o combate aos patrões e ao seu Estado a fim de dar nascimento a uma nova sociedade sem exploração. Para legitimar tudo isso forjaram estranhas teorias sobre classes sociais e sobre supostos interesses de classe, reservando para si – a “classe operária” – o condão de ser portadora do único conjunto de interesses particulares que, quando se realizassem, tornando-se dominantes, se universalizariam (atendendo aos interesses históricos de todas as outras classes, a despeito destas últimas não poderem ter, por si mesmas, consciência disso). Para alcançar essa suposta sociedade sem classes, a classe trabalhadora deveria erigir seu próprio Estado, fortalecendo-o a ponto de... extinguí-lo (por incrível que pareça eles pensavam assim mesmo: seria cômico se não tivesse sido trágico). É claro que tudo isso virou lixo, inclusive porque, com a bancarrota dos modelos econômicos e políticos estadocêntricos – nas quais os trabalhadores continuaram sendo súditos (do seu novo Estado-patrão) –, também faliram as utopias igualitaristas que os inspiraram.

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O problema não foi e nem será resolvido enquanto se mantiver a empresa-mainframe que repete o padrão hierárquico das demais instituições adequadas a um mundo de baixa conectividade social (e que, aliás, mantinham o mundo único como um mundo de baixa conectividade social). Empresas serão redes de empreendedores. Não hierarquias, onde um empreendedor arrebanha e subjuga “colaboradores” para transferir para eles o serviço pesado, repetitivo, pouco gratificante, mas considerado necessário ao sucesso do seu empreendimento. Ou para se livrar do “serviço sujo”. Ora, o nome desse “serviço sujo” é... trabalho! Bob Black (1985), no seu provocante manifesto intitulado A abolição do trabalho, escreveu que “existe tanta liberdade em uma moderada ditadura desestalinizada como em um ordinário local de trabalho americano. A hierarquia e a disciplina no escritório ou na fábrica é idêntica àquela que encontramos na prisão ou em um convento”. E o mesmo ocorre, segundo Black, com as escolas, esses “campos de concentração” onde as crianças são levadas “para adquirirem o hábito da obediência e da pontualidade que tanto jeito fazem a um trabalhador”. Para ele, porém “precisamos das crianças como professores e não como estudantes. As crianças têm muito a contribuir para a revolução lúdica [que abolirá o trabalho] porque sabem brincar melhor que os adultos” (54). Nos Highly Connected Worlds assistiremos ao fim do trabalho (do trabalho indiferenciado ou não-qualificado em grande escala que surgiu com a industrialização). Talvez boa parte do que chamamos de trabalho se exercerá como divertimento, jogos, creative games, por que não? O fim do trabalho, entretanto, não significará o fim das empresas e nem dos empreendedores; pelo contrário. Isso implica a reprogramação das empresas, que se tornarão meios onde empreendedores vão se coligar para realizar o que desejam ou sonham, sem se subordinarem uns aos sonhos de outros para executar as tarefas que chamamos de trabalho – posto que isso não é realmente necessário em mundos em que há, cada vez mais, abundância de meios para realizar um empreendimento. No entanto, reprogramar a empresa é, de certo modo, reprogramar a sociedade.

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Reprogramando sociosferas Basta que você se dedique a “fazer” redes para inocular um virus nos programas verticalizadores Escolas (e ensino), igrejas (e religiões), partidos (e corporações), Estados-nações (e seus aparatos), empresas-hierárquicas: basta mexer no código de uma dessas instituições para alterar a programação da sociedade. Há várias entradas. Você pode escolher por onde quer começar a hackear o mundo único, reprogramando sociosferas. Entretanto, para reprogramar sociosferas glocais – ao sabor de fluzz – não basta hackear, é necessário também fazer netweaving. Netweaving – articulação e animação de redes sociais – será cada vez mais necessário para a experimentação inovadora em todas aquelas áreas que questionam o velho mundo único, ensejando a emergência de novos mundos altamente conectados: comunidades de aprendizagem em rede, ecclesias para compartilhar formas pós-religiosas de espiritualidade, redes de interação política pública em vizinhanças e setores de atividade, comunidades glocais em cidades inovadoras, empresas-redes – tudo isso é semente! Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, não-Estados-nações e não-empresas-hierárquicas são sementes: o que daí nascerá (depois) não se pode saber (antes). Mas basta que você se dedique a uma dessas atividades para inocular um virus nos programas verticalizadores. Não, não é necessário uma grande revolução transformadora da sociedade como um todo (mesmo porque não existe tal ‘sociedade como um todo’ e, portanto, também não existe essa grande revolução redentora ou salvadora: como dizia Paulo Brabo (2007), “o mundo não pode ser salvo de uma só vez... [só pode ser salvo] redimindo-se um momento de cada vez”) (55). É claro que tudo isso se resume em uma palavra: rede. Redes devem ser encaradas, nesse sentido, como movimentos de desconstituição de hierarquias. “Fazer” redes é desconstituir hierarquias. Ao fazer isso, você se tornará um netweaver. Não importa onde atue, desde que você desista das instituições hierárquicas: seja desistindo das escolas, para atuar como catalisador de processos de aprendizagem em comunidades livres de buscadores e polinizadores, estruturadas em rede; seja desistindo das igrejas, mas (só se você quiser) não de compartilhar sua mística ou sua espiritualidade com outras pessoas; seja desistindo dos

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partidos, mas não desistindo de fazer política (pública), exercitando a democracia cooperativa na base da sociedade e no cotidiano das pessoas que convivem com você, na sua localidade ou setor de atividade; seja desistindo das noções regressivas de patriotismo e nacionalismo e virando cidadão transnacional de sua glocalidade; seja desistindo das empresas-hierárquicas, mas não de empreender e de se associar a outros empreendedores para estruturar novas empresas em rede. No mundo único, entretanto, a desistência passa pela desobediência. Você não conseguirá realizar nada disso se não tiver a firme disposição de desobedecer aos mantenedores do velho mundo, que continuam mais ativos do que nunca, talvez pressentindo fluzz – esse vento nuclear que vem varrendo tudo por aí.

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Alterando a estrutura das sociosferas | 7 (1) BARROS, Manoel (1986). Livro sobre Nada in Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010. (2) O termo ‘aprendente’, conquanto seja uma tentativa de escapar de categorias mais problemáticas como docente/discente, educando/educador, mestre/aprendiz, que introduzem relações dicotômicas e não expressam adequadamente relações sociais envolvidas em aprendizagem, também não é muito adequado. São sempre pessoas aprendendo na interação. Essas observações forem feitas por Nilton Lessa, à quarta versão do texto “Buscadores e Polinizadores”. Cf. FRANCO, Augusto (2010). Buscadores & Polinizadores. Slideshare [2.865 views em 23/01/2011] <http://www.slideshare.net/augustodefranco/buscadores-polinizadores-4a-verso> (3) Cf. Observações de Nilton Lessa à FRANCO, Augusto (2010). Buscadores & Polinizadores: ed. cit. (4) Cf. FRANCO, Augusto (2001). Uma teoria da cooperação baseada em Maturana. Aminoácidos 4. Brasília: AED, 2002. (5) Cf. e. g., a Biblioteca do Conectivismo da Escola-de-Redes: <http://escoladeredes.ning.com/group/bibliotecadoconectivismo> (6) ILLICH, Ivan (1970). Sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1985. (Na verdade o título dessa tradução, para ser fiel ao original, deveria ser “Desescolarizando a sociedade”) (7) Este parágrafo e varios dos seguintes da mesma seção (“Mata a escola = matar o Buda”) foram elaborados originalmente durante uma polêmica conversação, ocorrida entre 27 de abril e 24 de maio de 2010, na Escola-de-Redes, com Ignácio Munõz Cristi e outros interlocutores sobre “redes sociais entendidas como redes fechadas de conversações no espaço social”. Para conhecer a íntegra da discussão acesse: <http://escoladeredes.ning.com/group/biologiacultural/forum/topics/redes-sociais-entendidas-como> (8) RAYMOND, Eric (2001). How To Become A Hacker. Disponível em: <http://www.catb.org/~esr/faqs/hacker-howto.html> (9) BRABO, Paulo (2007). “Microsalvamentos: como salvar o mundo um instante de cada vez” in <http://www.baciadasalmas.com>

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(10) Cf. as conversações do grupo da Escola-de-Redes intitulado “A desistência como ativismo”: <http://escoladeredes.ning.com/group/desista> (11) MATURANA, Humberto (1993). Amar e brincar: fundamentos esquecido do humano. São Paulo: Palas Athena, 2004. (12) Idem. (13) Idem-idem. (14) Idem-ibidem. (15) THOMPSON, William (2001). Transforming History: a curriculum for cultural evolution. Ma: Lindisfarne books, 2001. (16) Cf. FRANCO, Augusto (2009). Modelos mentais são sociais. Slideshare [1.022 views em 23/01/2011] <http://www.slideshare.net/augustodefranco/modelos-mentais-so-sociais> (17) ARENDT, Hannah (1959). “A questão da guerra” in O que é política? (Fragmentos das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. (18) Cf. WEBER, Renée (1986). Diálogos com cientistas e sábios. São Paulo: Cultrix, 1991 [cf. a entrevista com Ilya Prigogine no capítulo intitulado “O reencantamento da natureza”]. (19) BLOCH, Ernst (1968). El ateísmo en el cristianismo: la religión del éxodo y del Reino. Madrid: Taurus, 1983. (20) Idem. (21) JACOBS, Jane (1961). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2009. (22) BEY, Hakim (1985-1991). BEY, Hakim (Peter Lamborn Wilson) (1984-1990). TAZ – Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Coletivo Sabotagem: Contra-Cultura, s/d. (23) BEY, Hakim (1985). CAOS: Terrorismo poético e outros crimes exemplares. São Paulo: Conrad, 2003. (24) GIBSON, William (1984). Neuromancer. São Paulo: Aleph, 2008.

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(25) STERLING, Bruce (1988). Piratas de dados [Péssima tradução do título Islands in the Net]. São Paulo: Aleph, 1990. (26) Cf. a entrevista concedida em 1984 por Ilya Prigogine à Renée Weber em WEBER: Op.cit. (27) LÉVY, Pierre (2000). O Fogo Liberador. São Paulo: Iluminuras, 2001. (28) NOVALIS (George Friedrich Philipp, Freyherr (Barão) von Hardenberg) (1798). Pólen. Fragmentos, diálogos, monólogos. São Paulo: Iluminuras, 2011. (29) BARROS, Manoel (2010). Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010. (30) BOHM, David (1996). Diálogo: comunicação e redes de convivência. São Paulo: Palas Athena, 2005. (31) Para uma explicação abrangente dessa imaginária linhagem-fluzz da “tradição” democrática confira FRANCO, Augusto (2007-2010). Democracia: um programa autodidático de aprendizagem. Slideshare [1022 views em 29/01/2011] <http://www.slideshare.net/augustodefranco/democracia-um-programa-autodidatico-de-aprendizagem> (32) Cf. DEWEY, John (1927). O público e seus problemas in (excertos) FRANCO, Augusto & POGREBINSCHI, Thamy (orgs.) (2008). Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. Porto Alegre: CMDC / EdiPUCRS, 2008. (33) Cf. FRANCO, Augusto (2007-2010). Democracia: um programa autodidático de aprendizagem. Op. cit. Cf. também MATURANA, Humberto (1993). La democracia es una obra de arte: Ed. cit. (34) Chama-se de formule inversa de Clausewitz-Lenin (com base nas anotações marginais de leitura do segundo ao tratado Da Guerra, do primeiro) à inversão do postulado clausewitziano “a guerra é uma continuação da política por outros meios”. Como, para Lenin, a luta de classes era uma espécie de guerra permanentemente presente, então ele avaliou que se poderia afirmar que, inclusive em tempos de paz, “a política é uma continuação da guerra por outros meios”. (35) Não é necessário argumentar muito para mostrar como tudo isso está no contra-fluzz. Esse tipo de organização partidária e de regime partidocrático a ela associado não tem muito a ver com a construção de uma governança democrática e sim com a manutenção de uma governabilidade autocrática, quer dizer, com a capacidade de manter as regras de uma luta, de um combate permanente entre grupos privados, assegurando que o vencedor tenha o direito de privatizar a esfera pública de modo a prorrogar o seu poder sobre a sociedade (no fundo há sempre uma disputa pelo butim, na base do spoil system). Tal como o Estado-nação, partidos são instituições guerreiras: ainda quando não se dediquem ao conflito violento, operam a política como arte da guerra, como uma continuação da guerra

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por outros meios. Nesta exata medida, são organizações antidemocráticas. Só pessoas tontas – e pelo visto destas há muitas – pode acreditar que o resultado desse embate constante, dessa interação adversarial permanente, conseguirá constituir um sentido público. (36) É por isso que têm se revelado vãs todas as tentativas de fundar um novo partido para reformar a política, a partir de novas idéias e, supostamente, da inauguração de novas práticas. Em pouquíssimo tempo esse novo partido será capturado pelo oligopólio dos velhos partidos e se comportará como eles. Quando não há má intenção (e tudo então não passa de pretexto para construir uma nova caciquia ou para legalizar uma nova quadrilha para assaltar o público), parece evidente que há falta de inteligência mesmo nos que vivem insistindo em percorrer essa via. (37) "Patriotism is the last refuge of a scoundrel" ("o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”). Cf. BOSWELL, James & CROKER, John (1791). The life of Samuel Johnson, LL. D. New York: George Dearborn Publisher, 1833. Disponível em Google Books: <http://books.google.com/books?id=TmShu9cK3IUC&pg=PP1#v=onepage&q&f=false> (38) Cf. ALTHUSIUS, Johannes (1603). Política. Liberty Fund (2003). Rio de Janeiro: Topbooks, s/d. (39) DEWEY, John (1927). O público e seus problemas: Ed. cit. (40) Dentre todos, talvez a língua continue sendo a obstrução mais efetiva à interação entre diferentes povos, mas tudo indica que esse “muro” também está com seus dias contados. Os avanços, verificados nos últimos anos, no desenvolvimento de programas de tradução e a construção de sistemas simultâneos de tradução de idiomas, compostos por softwares aplicativos, suportados por hardwares e conectados a dispositivos de reconhecimento de voz em computadores e aparelhos telefônicos, logo anulará essa desculpa da Babel para o viver separado do diferente. Como observou Humberto Maturana, lembrado por Carlos Boyle em um recente post no site da Escola-de-Redes, Babel não fracassou em virtude das diferentes línguas que falavam seus construtores e sim porque eles não se entendiam entre si (ou seja, o que faltou foi cooperação, de vez que o linguagear pode se exercer mesmo entre duas pessoas que falam línguas diferentes, que acabarão, de um modo ou de outro, se entendendo). (41) A não ser quando a seleção brasileira de futebol joga com a da Argentina. Aí, em uma caricatura degenerada de primitivos seres tribais, nos pintamos de verde-amarelo, nos enrolamos na bandeira e gritamos irracionalmente a plenos pulmões que o legítimo gol feito pelo genro de Maradona não valeu, pois que ele estava impedido e acusamos de ladrão o juiz. E os argentinos fazem a mesma coisa. Sim, é do jogo, pode-se dizer. Mas em geral esquece-se de perguntar: de que jogo (o esporte competitivo como “uma guerra sem mortes” como bem o definiu George

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Orwell)? De que vale esse tipo de polarização que passa por cima de qualquer senso de urbanidade e justiça? E o que de bom poderá advir dessa patriotice? (42) THOMPSON, William (2001). Transforming History: a curriculum for cultural evolution. Ma: Lindisfarne books, 2001. (43) Idem. (44) SEN, Amartya (1999). Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. (45) Cf. FREEDOM HOUSE (2011). Freedom in the World 2011: The authoritarian challenge to democracy. Disponível em <http://www.freedomhouse.org/images/File/fiw/FIW_2011_Booklet.pdf> (46) Democracias plenas (full democracies) são apenas 26 países, correspondendo a 12,3% da população mundial: Norway, Iceland, Denmark, Sweden, New Zealand, Australia, Finland, Switzerland, Canada, Netherlands, Luxembourg, Ireland, Austria, Germany, Malta, Czech Republic, US, Spain, UK, South Korea, Uruguay, Japan, Belgium, Mauritius, Costa Rica, Portugal. Cf. The Economist Intelligence Unit (2010). Democracy in retreat. New York: The Economist Group, 2010. Disponível em <http://www.eiu.com> (47) OHMAE, Kenichi (2005). O novo palco da economia global: desafios e oportunidades em um mundo sem fronteiras. Porto Alegre: Bookman, 2006. (48) CASTELLS, Manuel (1999). Para o Estado-rede: globalização econômica e instituições políticas na era da informação” in BRESSER PEREIRA, L. C., WILHEIM, J. e SOLA, L. Sociedade e Estado em transformação. Brasília: ENAP, 1999. (49) FRANCO, Augusto (2008). Escola de Redes: Novas visões sobre a sociedade, o desenvolvimento, a internet, a política e o mundo glocalizado. Curitiba: Escola-de-Redes, 2008. (50) Cf. FULLER, Buckminster (1968). Manual de Operação da Espaçonave Terra. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1983 e MCLUHAN, Marshall (1974) in McLUHAN, Stephanie & STAINES, David (2003): Op. cit. (51) THOMPSON: Op. cit. (52) Um bom relato das causas da derrota dos Apaches pode ser encontrado no livro de Ori Brafman e Rod Beckstrom (2006): The starfish and the spider (Quem está no comando? A estratégia da estrela-do-mar e da aranha: o poder das organizações sem líderes. Rio de Janeiro: Elsevier Campus, 2007), na passagem intitulada A estratégia da centralização:

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“A última vez que vimos os Apaches, eles estavam dominando o Sudoeste. Os espanhóis tentaram em vão controlá-los, e os mexicanos, que vieram em seguida, também não tiveram sorte. Quando os americanos conseguiram o controle da região, também fracassaram. Na verdade, os Apaches permaneceram como uma grande ameaça até o século XX. Mas depois a maré mudou. Aí os americanos venceram. Quando Tom Nevins explicou isso, ficamos de queixo caído ao descobrir como algo tão simples poderia ter um efeito tão poderoso. Nevins nos contou a história. "A verdade é que os Apaches representaram uma ameaça até 1914. O exército ainda marcou presença na reserva White Mountain até o início do século XX". Por que era tão difícil derrotar os Apaches? Os Nant'ans [espécie de catalisadores da rede social apache] apareceram, disse Nevins, e "as pessoas desejavam apoiar quem elas acreditavam ser o líder mais eficaz, com base em suas próprias ações ou em seu comportamento. E não tardaria a acontecer". Como surgiam cada vez mais Nant'ans, os americanos finalmente "perceberam que precisavam atacar os Apaches no nível mais básico para poder controlá-los. Essa foi a política adotada pela primeira vez com o grupo Navajo - que também era Apache, e aperfeiçoada com o grupo Western Apache". Eis o que acabou com a sociedade Apache: os americanos deram gado aos Nant'ans. Foi simples assim. Como os Nant'ans tinham recursos escassos - as vacas -, seu poder passou de simbólico a material. Antes, os Nant'ans lideraram pelo exemplo, mas agora eles poderiam recompensar e punir membros da tribo oferecendo ou retirando esse recurso. As vacas foram as responsáveis pela grande mudança. Como os Nant'ans ganharam poder autoritário, eles começaram a brigar entre si por assentos nos recém-criados conselhos tribais e começaram a ter um comportamento cada vez mais parecido... [com os de presidentes de empresas] Membros da tribo começaram a fazer lobby junto aos Nant'ans para obter mais recursos e ficavam aborrecidos quando as alocações não funcionavam a seu favor. A estrutura de poder, que antes era horizontal, se tornou hierárquica, com o poder concentrado no topo. Isso arruinou a sociedade Apache. Nevins reflete: "O grupo Apache agora tinha um governo central, mas, a meu ver, isso foi desastroso para eles, pois gerou uma baralha sem lucros em troca de recursos entre linhagens". Com uma estrutura de poder mais rídiga, os Apaches ficaram semelhantes aos Astecas e, assim, ficou mais fácil para os americanos os controlarem... Na essência, o que movia os Apaches [quando passaram a disputar entre si por recursos centralizados pelos Nant’ans] era a concentração de poder. Após adquirirem o direito à propriedade, seja ela em forma de vacas ou royaltes..., as pessoas rapidamente buscam um sistema centralizado para proteger seus interesses. É por isso que queremos bancos centralizados. Desejamos ter controle, estrutura e prestação de contas, pois o que está em jogo é nosso dinheiro.

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No momento em que direitos de propriedade entram na equação, tudo muda: a organização estrela-do-mar se transforma em aranha. Se você realmente quiser centralizar uma organização, passe o direito de propriedade ao catalisador [os catalisadores funcionam como netweavers em uma rede social] e peça-o para distribuir recursos conforme adequado. Ao deter o poder sobre os direitos de propriedade, o catalisador se transforma em CEO e os círculos passam a ser competitivos”.

(53) Epopéia da Criação – Enuma Elish (ou Enûma Eliš) é o mito de criação babilônico. Ele foi descoberto por Austen Henry Layard em 1849 (em forma fragmentada) nas ruínas da Biblioteca de Assurbanipal em Nínive (Mossul, Iraque), e publicado por George Smith em 1876. Cf. SMITH, George (1876). The Chaldean Account of Genesis. London: s/ed., 1876. Eis a passagem citada do Enuma Elish: “Ele criou o homem (e a mulher), seres vivos, para trabalhar para sempre, e liberar os deuses de outras cargas...”. Uma versão duvidosa em português está disponível no link: <http://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/enelish.html> Tablets 1 e 2 estão disponíveis: <http://wikisource.org/wiki/Enuma_Elish> (54) BLACK, Bob (1985). The Abolition of Work and Other Essays. Port Townsend: Loompanics Unlimited, 1986. Uma tradução em português do manifesto “A abolição do trabalho” está disponível para download em <http://www.4shared.com/file/219719893/b8942012/A_ABOLIO_DO_TRABALHO_Black.html> (55) BRABO, Paulo (2007). “Microsalvamentos: como salvar o mundo um instante de cada vez” in <http://www.baciadasalmas.com>