Florestan fernandes familia patriarcal e suas funcoes economicas

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F F A F A M Í L I A P A T R I A R C A L E S U A S F U N Ç Õ E S E C O N Ô M I C A S F L O R E S T A N F E R N A N D E S REVISTA USP, SÃO PAULO (29 ): 74-8 1, M A R Ç O / M A I O 1 9 9 6 74 F L O R E S T A N F E R N A N D E S I INTRODUÇÃO A discussão socioló- gica do tema proposto envolve natural- mente algumas dificuldades de ordem te- órica. De fato, apesar de seu emprego cor- rente na sociologia, os conceitos de “fun- ção econômica” e de “família patriarcal” não são conceitos logicamente “claros”. Com freqüência, o recurso ao conceito de “função econômica”, no contexto de pensamento implícito na formulação do ponto sorteado (“a família patriarcal e suas funções econô- micas”), se associa à idéia de que a família patriarcal representa uma espécie de estrutu- ra social básica do sistema econômico ou ainda à pretensão de comprovar que o exer- cício de atividades econômicas fundamen- tais está subordinado à atuação de pressões e controles sociais concentrados nas mãos de um senhor e nas dos seus apaniguados e su- bordinados, graças ao funcionamento de “um sistema patriarcal” de atribuição do status e papéis sociais. Doutro lado, a própria noção de “família patriarcal” não é precisa quanto às conotações propriamente sociológicas. O símile mais geral para sua definição é o que se oferece através da antiga forma social assumi- da pela organização do poder senhorial nas tri- bos hebraicas. Nesse caso, um patriarca exer- cia seu poder de mando (em vários sentidos: econômico, militar, religioso e político), em nome da tradição e de sua condição de des- cendente e sucessor de um ancestral mítico

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FF

A F A M Í L I A P A T R I A R C A L ES U A S F U N Ç Õ E S E C O N Ô M I C A S

F L O R E S T A N F E R N A N D E S

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F L O R E S T A N F E R N A N D E S

IINTRODUÇÃO – A discussão socioló-

gica do tema proposto envolve natural-

mente algumas dificuldades de ordem te-

órica. De fato, apesar de seu emprego cor-

rente na sociologia, os conceitos de “fun-

ção econômica” e de “família patriarcal”

não são conceitos logicamente “claros”. Com

freqüência, o recurso ao conceito de “função

econômica”, no contexto de pensamento

implícito na formulação do ponto sorteado

(“a família patriarcal e suas funções econô-

micas”), se associa à idéia de que a família

patriarcal representa uma espécie de estrutu-

ra social básica do sistema econômico ou

ainda à pretensão de comprovar que o exer-

cício de atividades econômicas fundamen-

tais está subordinado à atuação de pressões e

controles sociais concentrados nas mãos de

um senhor e nas dos seus apaniguados e su-

bordinados, graças ao funcionamento de “um

sistema patriarcal” de atribuição do status e

papéis sociais. Doutro lado, a própria noção

de “família patriarcal” não é precisa quanto às

conotações propriamente sociológicas. O

símile mais geral para sua definição é o que se

oferece através da antiga forma social assumi-

da pela organização do poder senhorial nas tri-

bos hebraicas. Nesse caso, um patriarca exer-

cia seu poder de mando (em vários sentidos:

econômico, militar, religioso e político), em

nome da tradição e de sua condição de des-

cendente e sucessor de um ancestral mítico

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Florestan recebe

o prêmio Fábio

Prado, 1948,

em foto com

Fernando de

Azevedo; abaixo,

Campanha em

Defesa da Escola

Pública, no Rio

Grande do Sul

Prova escrita sobre tema sor-teado no concurso de livre-docência à cadeira de Socio-logia I da Faculdade de Filoso-fia, Ciências e Letras da Uni-versidade de São Paulo, reali-zada no dia 19 de outubro de1953. Foi sorteado o ponto no

17. Compuseram a banca exa-minadora os professoresFernando de Azevedo, RogerBastide, Herbert Baldus, Má-rio Wagner Vieira da Cunha eOctavio da Costa Eduardo. Gil-berto Freyre, escolhido paracompor a banca, enviou à Fa-culdade a seguinte carta:“Apipucos, Recife, 21 de Se-tembro de 1953. / Exmo. Sr.Prof. Dr. E. Simões de Paula,M. D. Diretor da Faculdade deFilosofia, São Paulo / Acabode receber a carta em que V.Excia. me comunica haver sidoescolhido meu nome para in-tegrar a comissão examinado-ra do concurso para livre-docência da I Cadeira deSociologia dessa Faculdade,ao qual se inscreveu o Dr.Florestan Fernandes, ilustre ci-entista social que muito admi-ro./ Infelizmente não me é pos-sível tomar no momento com-promissos de examinador, aolado, aliás, de eminentes pro-fessores, que igualmente ad-miro e estimo. O que muito la-mento./ Creia V. Excia. na mi-nha consideração e apreçopessoais e na minha constan-te simpatia pela Universidadede São Paulo e pela Faculda-de que V. Excia. dirige./ Gil-berto Freyre” (Arquivo da Fa-culdade de Filosofia, Letras eCiências Humanas da Univer-sidade de São Paulo). (Notade José de Souza Martins.)

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comum. A tribo poderia não possuir uma po-sição ecológica definida e persistente, mas pos-suía uma organização interna estável, graçasà qual se garantia a unidade permanente dediversos grupos, através da ordem de suces-são e da comunhão religiosa, que servia defundamento à comunidade de interesses polí-ticos, econômicos e militares, e que assegura-va a continuidade das parentelas no espaço eno tempo. Contudo, esse símile, que serviupara a cunhagem sociológica do conceito, nãofoi observado posteriormente. Aonde se apre-sentaram modalidades de exercício da domi-nação senhorial começaram a ver os sociólo-gos manifestações típicas da família patriar-cal. Graças a isso o conceito de “família patri-arcal” foi aplicado ao estudo de povos primi-tivos (por Thurnwald, por exemplo); ao estu-do do sistema feudal na China antiga (porGranet, por exemplo); ao estudo do sistemafeudal nas sociedades ocidentais (por Pirennee por Brentano, por exemplo); e no estudo daorganização da família, que resultou da ex-pansão da Europa ocidental, através da colo-nização européia do continente americano.

Em nosso entender, porém, não se deveconfundir a “família patriarcal” com as ativi-dades econômicas que se desenvolviam den-tro de seus quadros humanos e sociais. Se to-

mássemos como ponto de referência a dis-cussão do problema tendo em vista a situaçãodescrita por Pirenne e por Brentano, sería-mos levados a considerar a “família patriar-cal” como uma unidade econômica. Pois, defato, fora dela não existiam outros limites emeios ao desenvolvimento da vida econômi-ca em uma economia sem mercados, dotadade meios restritos de troca. Contudo, essamaneira de encarar o problema seriainsatisfatória, pressupondo uma confusãolamentável entre as condições materiais erurais da produção econômica com os efeitospor elas produzidos. Daí pensarmos que seriamais conveniente definir de uma maneiraestrita as funções econômicas da família pa-triarcal. Para fins interpretativos, entendemospor “funções econômicas” da família patriar-cal as atividades sociais dos componentes dafamília patriarcal, independentemente da si-tuação econômica relativa delas dentro dosistema social por ela constituído, que contri-buíssem para manter direta ou indiretamentea constituição e o funcionamento do sistemacorrespondente de vida econômica.

Quanto ao conceito de “família patriar-cal”, evidencia-se atualmente a tendência pararessaltar certos traços típicos, pondo-se delado os aspectos peculiares e manifestações

Imagem antológica

— Ginásio Riachuelo,

Madureza, em 1936

(Florestan é o 5º

da esquerda

para a direita,

na fila do centro)

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culturais do fenômeno, por mais relevantesque estes sejam quanto à definição, descriçãoe interpretação da família patriarcal entre oshebreus, entre os romanos, entre certos povosprimitivos contemporâneos, etc. Aliás, é esteprocedimento que oferece consistência lógi-ca ao emprego indiscriminado do conceito nasociologia. Nesse caso, os traços essenciaisda família patriarcal são: a crença na existên-cia de laços consangüíneos, definidos atravésde um antepassado comum, mítico ou real; avigência de critérios de transmissão hereditá-ria da posição de “chefe” ou de “senhor” emlinha masculina, com preferência aoprimogênito da esposa legal ou de uma dasesposas legais; ao exercício do poder senho-rial através de normas estabelecidas pela tra-dição, independentemente de sua origem oufundamento religioso; o princípio de unidadeeconômica e política dos componentes daunidade familial, sob a liderança do “senhor”;a comunhão religiosa; e o princípio de solida-riedade no grupo de parentes, em todas asações ou situações em que estes ou seus apa-niguados ou subordinados se envolvessemcomo e enquanto membros ou representantesde uma unidade familial. Como se vê, trata-se de uma caracterização que alcança um“mínimo de definição”, como se diz atual-mente na sociologia. E esse mínimo lógico dedefinição é obtido por meio da deslocação daênfase científica dos aspectos estruturais va-riáveis para aqueles que são por assim dizeraspectos estruturais constantes. Embora seadmita que existe uma relação entre a “famí-lia patriarcal” e a estrutura do meio social emque ela se insere, para alcançar alguma coe-rência em sua definição foi preciso abando-nar a pretensão de defini-la em termos defatores estruturais característicos de algumasde suas manifestações histórico-culturais.

A ORIENTAÇÃO SOCIOLÓGICA

NA INVESTIGAÇÃO DAS FUNÇÕES

ECONÔMICAS DA FAMÍLIA PATRIARCAL

Visto isso, poderíamos passar a outro as-pecto sugerido pela formulação do tema. Aaplicação do ponto de vista sociológico à in-vestigação das funções econômicas da famí-lia patriarcal, ainda que se defina o que se

entende sociologicamente pelos dois concei-tos, pode estar sujeita a interesses científicosparticulares. No programa atual da cadeira deSociologia I, ele se inscreve claramente comoum tema de história econômica. E de fato nãoforam os sociólogos mas os economistas daescola histórica que puseram pela primeiravez em evidência a significação sociológicade uma análise da vida econômica sob osquadros sociais da família patriarcal. Doutrolado, foram os historiadores que se dedicamà investigação da Europa medieval que des-cobriram as ligações mais profundas de umcerto tipo de organização da vida domésticacom a organização da vida econômica. Seaceitássemos essa orientação, seríamos leva-dos a discutir o tema concretamente tomandocomo ponto de referência a situação históri-co-social que abrange um período bem deter-minado da história européia, que abrange

Fac-símile da prova

de Florestan

Fernandes para a

Livre Docência da

Cadeira de

Sociologia, realizada

a 19 de outubro de

1959, com o tema:

"A Família Patriarcal

e suas Funções

Econômicas"

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põe uma escolha rigorosa do tema a ser exa-minado. Sabe-se que a família patriarcal semanifesta em diversos níveis de civilização eem variados tipos de organização estruturalda sociedade. Além disso, o valor original deuma dissertação diminui a olhos vistos quan-to mais ela se concentra em fenômenos de-masiado conhecidos no próprio campo deinvestigações. Por isso, preferimos limitar oalcance do tema proposto, no que concerne àsua discussão empírico-indutiva, propondo-nos a considerar a seguir, nos limites deproporcionalidade facultados pela condiçãoem que nos encontramos, as

FUNÇÕES ECONÔMICAS DA FAMÍLIA

PATRIARCAL EM SÃO PAULO

É sabido que um dos fenômenos melhorestudados da vida social brasileira é exata-mente o da “família patriarcal”. Pondo de ladoinvestigações que encontraram menor resso-nância, por causa da delimitação do tema oudo caráter geral da própria orientação. Al-guns trabalhos lograram alcançar grande no-toriedade e mereceram, pela própria contri-buição que traziam, grande interesse entre osespecialistas. Entre eles, cumpre-nos pôr emevidência os que possuem maior relevânciapara a interpretação sociológica (1):

1o) Os estudos de Oliveira Viana. Esteautor deve ser considerado como o inegávelprecursor sociológico na investigação dessetema. Sua obra se confina historicamente, masincide de preferência nas manifestações dafamília patriarcal que poderiam nos interes-sar mais de perto e que dizem respeito ao suldo país.

2o) A obra de Gilberto Freyre, cujo alcan-ce sociológico repousa na contribuição quenos legou para o estudo da família patriarcalno Brasil (inclusive sobre os seus aspectoseconômicos).

3o) As obras em que são por assim dizeranalisadas as funções econômicas propria-mente ditas da família patriarcal no Brasil:são as obras de Caio Prado Júnior (Formaçãodo Brasil Contemporâneo) e de Fernando deAzevedo (Canaviais e Engenhos na VidaPolítica do Brasil), que trataram igualmentedas relações existentes entre a constituição

aproximadamente o lapso de tempo entre osséculos XI-XV (ou, como fazem outros: aorganização da família patriarcal romana).Além desse, porém, a sociologia modernaelaborou dois pontos de vista diferentes: umconsiste em tomar cada uma das manifesta-ções histórico-culturais da família patriarcal,analisá-las detidamente com o propósito depôr em evidência seus aspectos peculiares ede elaborar uma análise comparativa; outroconsiste em escolher uma das manifestaçõeshistórico-sociais do fenômeno, e analisá-lasegundo as implicações e os critérios da pró-pria investigação sociológica. O fundamentológico deste procedimento monográfico de-riva da necessidade de lidar, para finsinterpretativos que almejam à comparação,com investigações particulares realizadaspelos próprios sociólogos (e não por histori-adores, por economistas, por especialistas emciência política e em direito comparado). Comisso, a comparação não é negada, propria-mente falando; mas transferida para uma épo-ca mais propícia, em que a sociologia tenhaacumulado por meios próprios e segundo asexigências do espírito de investigação positi-va os seus materiais de trabalho.

Ora, acontece que o primeiro tipo de con-sideração do fenômeno tem merecido umaatenção cuidadosa por parte dos especialistas.E uma obra como a de Max Weber (Economiae Sociedade) chega a conter os resultados maisfrutíferos e fecundos que se pretendesse alcan-çar por meio da investigação comparativa, talcomo ela pode ser desenvolvida no presentepelos sociólogos. Como não pretendemos fa-zer aqui um resumo dos resultados a que che-gou aquele sociólogo, inclinamo-nos a consi-derar o tema proposto em termos da segundaorientação assinalada. Ela apresenta o risco deconfundir-se com os antigos ensaios de histó-ria econômica; mas, por seu próprio espírito,distingue-se destes pelo fato de pretender apre-sentar uma explicação dos fatos que atenta emconexões funcionais e causais, em vez de in-sistir somente na caracterização de seqüênciase fases da vida econômica que assumem umpadrão definido quando encaradas de uma pers-pectiva temporal.

Coloca-se, porém, uma dificuldade. Essaorientação, por sua própria natureza, pressu-

1 Deixamos de mencionar aobra recente de Luís Martins(O Patriarca e o Bacharel),porque ainda não tivemosoportunidade de lê-la na suaedição recente.

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interna da família patriarcal em suas cone-xões com as condições da vida econômica noBrasil e da influência exercida, com base nasituação econômica, pelos senhores ruraisbrasileiros e por suas famílias.

4o) A análise comparativa desenvolvidapor Emílio Willems (Assimilação e Popula-ções Marginais no Brasil Meridional e AAculturação dos Alemães no Brasil), atravésdo confronto da organização da família patri-arcal com a dos migrantes alemães, que colo-nizaram ou se fixaram em Santa Catarina eRio Grande do Sul.

5°) A única tentativa de síntese que conhe-cemos e que procura compreender a organiza-ção da família patriarcal tendo em vista ascondições de sua organização, de sua desinte-gração e da formação da família conjugalmoderna, que coincide com a integração denovos tipos de organização da família em nos-so meio – o ensaio de Antonio Candido, “TheBrazilian Family” (publicado parcialmentecomo capítulo da obra editada por T. LynnSmith, Brazil: Portrait of a Half Continente).

No estado atual da investigação socioló-

Na foto do alto, Fernando Henrique Cardoso,

e Samuel Noah Eisenstadt (à esquerda de Florestan),

na Universidade de Münster, Alemanha;

acima, durante o 2º Congresso Sindical dos

Trabalhadores do Estado de São Paulo, 1960,

Caio Prado Júnior e Florestan estão em pé,

à esquerda, na fila dos oradores

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gica no Brasil poderíamos analisar o temaproposto aproveitando os resultados das in-vestigações dos autores citados. Mas tería-mos que repetir, inevitavelmente – e semnenhum mérito pessoal – o que escreveramesses autores, em particular Gilberto Freyre.Por isso, preferimos explorar o pouco queconhecemos sobre esse assunto, e que obti-vemos através de nossa própria iniciativa,em investigações cujos resultados já são par-cialmente conhecidos do público. Lamenta-mos não nos ser possível aprofundar a aná-lise dos problemas sugeridos. Não nos dare-mos por satisfeitos se ela sugerir de formaadequada como enfrentaríamos a tarefa depôr em evidência, sociologicamente, as fun-ções econômicas da família patriarcal emSão Paulo.

Na análise que empreendemos sobre asrelações entre economia e sociedade na evo-lução de São Paulo (sinteticamente exposta,ainda que de forma superficial, no primeirocapítulo do trabalho escrito em colaboraçãocom Roger Bastide, o qual capítulo seintitula: “Do Escravo ao Cidadão”*) ficaevidente que há fases estruturalmente dis-tintas na história econômica do nosso esta-do. Contudo, todo um longo período que vaido século XVI aos fins do século XIX apre-senta uma relativa homogeneidade social quenão é afetada pelas alterações que se produ-zem na organização da vida econômica. Osnúcleos de atividades econômicas fundamen-tais se alteram (passa-se sucessivamente doapresamento para a mineração e desta para alavoura de subsistência e depois para a ex-ploração propriamente colonial do café), comeles se transformam substancialmente ospadrões de instituição e de organização dosistema de trabalho (passa-se da exploraçãodominante do trabalho escravo indígena paraa do trabalho escravo africano e depois àexploração combinada do trabalho escravonegro e do trabalho livre), sem que a estruturasocial sofresse nenhum abalo realmente pro-fundo. É que essas transformações se opera-ram sem pôr em jogo os próprios princípiosda organização social: a posse de escravos ea exploração de grandes extensões territoriais.A sociedade transformara-se nos aspectosexteriores de sua economia, mas permanece-

ra relativamente invariável em sua substân-cia – a propriedade territorial e a exploraçãodo trabalho servil.

Esse background sugere, naturalmente,que na análise das funções econômicas (es-pecíficas) da família patriarcal é preciso se-parar os aspectos que revelam certa estabi-lidade dentro da instabilidade geral da evo-lução do sistema de relações sociais de SãoPaulo, dos que se transformam continuamen-te, através dos diferentes períodos ou ciclosda história econômica de São Paulo. E indi-ca, em segundo lugar, a conveniência de as-sinalar concretamente as imputações feitasfuncionalmente, quanto às relações da eco-nomia paulista com a organização da famí-lia patriarcal. A isso limitaremos a nossadissertação, por julgarmos que aí está o es-sencial em uma análise como a presente.

Quanto às funções econômicas, que po-deríamos considerar “constantes”, é precisoconsiderar três aspectos distintos – o que afamília patriarcal significou em nosso meiodo ponto de vista adaptativo e do ajustamen-to recíproco dos homens como condição davida econômica; o que ela significava comomeio de classificação social e de ajustamen-to dos indivíduos a um sistema senhorial eescravocrata de relações de produção; e asua função propriamente ativa nadinamização da vida econômica. Quanto aoprimeiro ponto, é óbvio que a família patri-arcal não se explica em São Paulo (encaradasociologicamente) senão pelas condiçõeseconômicas que favoreceram e tornarampossível a transferência e revitalização deum padrão de organização da vida domésti-ca que se encontrava em desagregação naEuropa. A produção baseada na mão-de- obraescrava, o gênero de atividade econômica(apresamento, lavoura extensiva de produ-tos de subsistência ou depois dos produtoscoloniais e a grande propriedade territorial)e a facilidade (relativa) de obter mão-de-obraescrava parecem ter agido como fatores deperpetuação e de integração da família pa-triarcal ao novo meio geográfico, econômi-co e humano. Sob este aspecto, somos leva-dos a definir como funções econômicas es-pecíficas da família patriarcal um conjuntode atividades que repousavam em sua estru-

* Florestan Fernandes se refe-re ao que viria a ser o primeirocapítulo do livro de RogerBastide e Florestan Fernandes:Brancos e Negros em SãoPaulo (Ensaio Sociológico so-bre Aspectos da Formação,Manifestações Atuais e Efeitosdo Preconceito de Cor na So-ciedade Paulistana), 2ª. edi-ção, São Paulo, 1959, pp. 1-76. Esse capítulo foi escrito porFlorestan Fernandes e publi-cado originalmente na revistaAnhembi (bol. X, número 30,São Paulo, 1953). O conjuntodo livro teve uma primeira edi-ção como parte de obra maior:Roger Bastide e FlorestanFernandes (organizadores),Relações Raciais entre Negrose Brancos em São Paulo, Edi-tora Anhembi, São Paulo, 1955(N. de J. S. M.).

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tura e em seu funcionamento. Tais ativida-des são as que contribuíam para a adaptaçãodos brancos à vida nos trópicos, à mentali-dade de exploração mercantil do trabalhohumano sob a forma de escravização de enteshumanos e à idéia de que o ajustamento inter-humano podia se ajustar a outros padrões,que não existiam mais em plena vigêncianas sociedades européias. A família patriar-cal forneceu assim o próprio arcabouço donovo regime social, em que a divisãoestamental foi completada por uma divisãoem castas: em sua estrutura ela continha opróprio modelo da sociedade inclusiva, queela representava como um pequeno mundoautônomo e completo. Os seus três núcleosfundamentais (o núcleo legal, o núcleo dedependentes e o núcleo de escravos) conti-nham todas as situações sociais possíveis nasociedade escravocrata brasileira e ofere-ciam todos os estímulos que alimentavamos ideais de vida da camada senhorial, suaspretensões de direito absoluto, suas aspira-ções de nobreza e sua ética social, que abran-gia uma vasta gama de diferenciação doshomens e do seu destino social. Nesse planode relações adaptativas e de ajustamentosdos homens uns aos outros, a família patri-arcal desempenhou sempre a mesma fun-ção, que é estritamente econômica no queconcerne às condições de existência mate-rial que repousavam em semelhante estru-tura social.

Quanto ao segundo ponto, ele é evidentee se inclui parcialmente nos processos jámencionados. De fato, desde o século XVI aclassificação social dos indivíduos e sua dis-tribuição no sistema de ocupações sociaisdepende diretamente da própria posição dossujeitos na estrutura da família patriarcal.Esta provê o sistema econômico mediante acombinação de preceitos tradicionais comargumentos pecuniários – o que o membrodo núcleo legal da família patriarcal não podefazer, faz por ele o seu dependente e, princi-palmente, o seu escravo. Essa combinação(que se repete em outros casos análogos) ofe-rece barreiras mais ou menos conhecidas àexpansão econômica, tanto no que concerneà divisão do trabalho e à especialização, queao desenvolvimento da produção e da troca.

Era porém uma decorrência dessa função dafamília patriarcal (que, aliás, variou nos pe-ríodos de história econômica de São Paulo)restringir a operação dos mecanismos da vidaeconômica, que só podia expandir-se, assim,dentro dos limites próprios a uma economiasem mercado e posteriormente a uma eco-nomia baseada na exploração de produtostropicais sob regime escravocrata.

Quanto ao terceiro ponto, é claro que afamília patriarcal só operava dentro de cer-tos limites como fator restritivo da vidaeconômica. Vista à luz da época histórico-social que nos interessa, é óbvio que elaoperava como um agente de dinamização davida econômica. A experiência históricademonstra como os imperativos surgidos ouimpostos pela concepção patriarcal do mun-do puderam ser atendidos sob atividadeseconômicas distintas (apresamento, lavourade subsistência e exploração de produtos tro-picais). Desse modo, a defesa de uma situa-ção econômica e socialmente privilegiadaatuou contra as normas legadas pela tradi-ção e contra os preconceitos dos paulistaspor várias atividades econômicas senhoriais(é o que atestam, principalmente, os depoi-mentos legados ou coordenados peloDesemb. Machado de Oliveira).

Falta-nos tempo para examinar os ele-mentos variáveis. Mas podemos apontá-lossucintamente:

1o) a função de equipar a camada senho-rial com os meios legais e propriamente eco-nômicos das atividades econômicas básicas;

2o) restringir o acesso de indivíduos damesma “raça” ou indivíduos mestiços masde outros estamentos à situação econômicada camada senhorial;

3o) restringir a competição e os confli-tos no próprio nível senhorial, restringir oexercício de atividades não-nobilitantes amembros da mesma “raça” de outrosestamentos e a representantes de outra“raça” e abrir critérios plásticos de classi-ficação a todos os indivíduos pertencentesao núcleo legal da família. Isso permitiauma renovação periódica de seus quadroshumanos sem pôr em risco o exercício dadominação senhorial, confinada assim auma só camada social.