Fisiopatologia Renal
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Índice 1 - Filtração glomerular................................................................................................ 2 2 - Rim e Compostos vasoativos.................................................................................. 16 3 – Proteinúria...............................................................................................................45 4 - Mecanismos de concentração e diluição urinárias.................................................. 58 5 - Processamento de água e eletrólitos pelos túbulos.................................................. 80 6 - Mecanismo de ação de diuréticos............................................................................ 112 7 - Contração de volume extracelular Desidratações................................................... 128 8 - Distúrbios do metabolismo do potássio.................................................................. 148 9 - Fisiopatologia do edema......................................................................................... 187 10 - Fisiopatologia da hipertensão arterial................................................................... 216 11 - Distúrbios da tonicidade do meio interno Regulação do Balanço da água ......... 242 12 - Distúrbios do Equilíbrio Ácido-Base ................................................................... 270 13 - Disturbios do cálcio e do fósforo.......................................................................... 311 14 - Insuficiência renal aguda...................................................................................... 335 15 - Insuficiência renal cronica.................................................................................... 369
CAPÍTULO 1: DISTÚRBIOS DA FILTRAÇÃO GLOMERULAR
Roberto Zatz As estruturas que denominamos glomérulos foram descritas pela primeira vez por Marcello Malpighi em 1662, sendo conhecidas durante muito tempo pelo nome de "corpúsculos de Malpighi". Já no século XIX, Carl Ludwig formulou a teoria, que se provou correta, de que ocorre no glomérulo um processo de ultrafiltração do plasma, no qual a água, os eletrólitos e as pequenas moléculas passam ao espaço de Bowman, enquanto os elementos figurados do sangue e as proteínas dissolvidas no plasma ficam retidos. A energia para essa ultrafiltração provém do trabalho cardíaco, conforme corretamente intuído por Ludwig. À luz dos conhecimentos de que dispomos hoje, é notável que essa teoria tenha sido proposta já naquela época, muito antes de que as pressões hidráulicas e os fluxos pudessem ser determinados na microcirculação renal. No entanto, a necessária comprovação experimental dessa teoria veio surgir apenas em 1924, quando se verificou que o fluido presente no espaço de Bowman continha glicose e cloreto, mas não proteínas, o que comprovava a teoria de que aquele fluido era um ultrafiltrado do plasma. Esse achado, amplamente confirmado mais tarde, estabeleceu em definitivo o conceito de ultrafiltração glomerular como fenômeno físico e sua importância enquanto evento inicial no processo de formação de urina.
A magnitude da filtração glomerular é impressionante: em um adulto normal do sexo masculino, a taxa de filtração glomerular – mais conhecida por ritmo de filtração glomerular (RFG) – aproxima-se de 120 ml/min (equivalente à somatória das taxas de filtração dos 2 milhões de glomérulos que constituem o rim humano), o que corresponde a mais de 170 litros por dia. Isso significa que, considerando um volume plasmático de 3 litros, a totalidade do plasma é filtrada mais de 50 vezes no decorrer de um único dia. Essa imensa quantidade de fluido, depois retomada na sua quase totalidade pelos túbulos, permite aos rins depurar continuamente o plasma de catabólitos indesejáveis, bem como reagir prontamente a excesso ou carência de água e eletrólitos, tornando-se assim capazes de manter a homeostase do meio interno. Tamanha é a importância da filtração glomerular que existem no rim mecanismos precisos para mantê-la constante – autorregulação da taxa de filtração glomerular (ver adiante). Além disso, cada néfron é capaz de aumentar de modo independente a sua taxa de filtração caso ocorra uma redução da massa renal (ver adiante e também o Capítulo 15).
Enquanto o processo de filtração glomerular é indispensável à formação da urina e às múltiplas funções reguladoras dos rins, a medida do RFG é essencial ao clínico como indicador básico da função renal. A detecção de uma queda do RFG pode ser decisiva para a adoção imediata de medidas de suporte como a diálise, ou simplesmente para indicar a existência de uma anomalia renal em progressão. Já um aumento do RFG pode refletir a presença de uma alteração metabólica como a diabetes mellitus, ou servir de indicador de recuperação de uma patologia renal primária, como uma glomerulonefrite aguda.
DETERMINANTES DA ULTRAFILTRAÇÃO GLOMERULAR Para entender a fisiologia e a fisiopatologia da filtração glomerular é fundamental o estudo dos
mecanismos físicos que governam esse processo. Os trabalhos de Homer Smith, nos anos 40 e 50, e os de Brenner, já nos anos 70, ajudaram a definir os determinantes da ultrafiltração glomerular, ou seja, os parâmetros físicos que influenciam de modo independente esse processo. Para uma melhor compreensão do fenômeno da filtração glomerular, é necessário considerar o que ocorre em um único néfron. Definimos assim a taxa de filtração por néfron (FPN), que nada mais é senão o processo unitário de filtração glomerular. O RFG, calculado para o organismo como um todo, representa na verdade a soma das FPN de 2 milhões de néfrons, o que significa que a FPN em seres humanos é de aproximadamente (120 ml/min)/2x106 = 60 nl/min. É interessante observar que a FPN em outros animais é da mesma
ordem de grandeza. No rato, que é o animal onde a ultrafiltração glomerular foi melhor estudada, a FPN é de 40 nl/min. Nos exemplos e simulações que se seguem, serão usados dados obtidos em ratos.
O tufo glomerular pode ser comparado a um sistema de condutos tortuosos em paralelo, compreendido entre as arteríolas aferente e eferente. No intuito de simplificar a compreensão do processo de ultrafiltração glomerular, esse sistema pode ser representado por um único capilar de forma perfeitamente cilíndrica e de área equivalente à da superfície filtrante glomerular, conforme proposto por Brenner e colaboradores no início da década de 70. Tal simplificação, demonstrou-se, não influía criticamente nos mecanismos básicos que governam o processo, os quais são igualmente válidos independente do número ou do grau de tortuosidade dos capilares glomerulares.
Com base nesse capilar cilíndrico único ideal, fica mais fácil entender os determinantes físicos da ultrafiltração glomerular, que são quatro: 1. a diferença de pressão hidráulica através das paredes glomerulares, ∆∆∆∆P. Essa diferença pode ser
expressa como ∆P= PCG-PEB, onde PCG representa a pressão hidráulica intraglomerular e PEB a pressão hidráulica no espaço de Bowman. É um determinante bastante intuitivo, uma vez que o próprio senso comum prevê que qualquer filtro doméstico necessita de uma “pressão” (na verdade uma diferença de pressão entre o reservatório de água e a atmosfera) para que a água se movimente de um lado a outro de sua parede.
2. a concentração de proteínas no plasma sistêmico, CA. Ao contrário do que acontece com os
filtros de água domésticos, nos quais a única força física a ser considerada é a pressão hidráulica, os capilares glomerulares, como todos os capilares do organismo, sofrem a influência da pressão coloidosmótica, ou pressão oncótica, do plasma intraglomerular, representada por πCG. Essa força oncótica tende a trazer fluido para o interior do capilar glomerular, opondo-se portanto ao efeito do ∆P (Figura 1.1). Esses dois determinantes básicos da ultrafiltração glomerular, ∆P e ∆π, são conhecidos como forças de Starling e são também fundamentais à movimentação de fluido nos demais capilares do organismo (ver Capítulo 9). No espaço de Bowman, a concentração de proteínas é extremamente reduzida, mesmo nas proteinúrias severas, e portanto πEB ≅ 0, ou seja, ∆π ≅ πGC. A diferença entre ∆P e πGC, a qual governa a filtração glomerular, é denominada pressão efetiva de
ultrafiltração: (PEUF):PEUF = ∆P - πGC (1) É evidente que, para que ocorra o processo de ultrafiltração, a PEUF deve ser superior a zero. Isso é o que acontece ocorre ao longo da maior parte do capilar glomerular. No entanto, como a filtração é um processo dinâmico, que ocorre continuamente à medida que o plasma percorre o capilar glomerular, e como as proteínas são quase totalmente retidas, a concentração plasmática de proteínas, CA (e conseqüentemente π), eleva-se continuamente com a distância. Essa situação é melhor descrita na Figura 1.2. Pode-se observar que a PEUF, sempre representada pela distância entre as duas curvas, diminui continuamente à medida em que nos afastamos da origem do capilar, chegando a valores próximos de zero ao final do mesmo. Observe que nesta e em outras figuras a
πEB
πGC
PEB
PCG
PEUF= PCG - PEB-ππππEB
Figura 1. 1 – Representação esquemática das duas forças que governam a ultrafiltração glomerular (o glomérulo é aqui idealizado como um único capilar, de formato perfeitamente cilíndrico)
distância x aparece normalizada, ou seja, varia de zero (origem do capilar) a 1 (fim do capilar). Em conseqüência dessa variação contínua, a PEUF de cada glomérulo é sempre uma média, matematicamente equivalente à área delimitada pelas duas curvas representadas na Figura 1.2.
3. A variação de π com a distância, bem como a forma da curva que a descreve, ajudam a entender a
natureza do terceiro determinante da ultrafiltração glomerular, o fluxo plasmático glomerular, representado por QA. A razão por que o QA influencia tão profundamente a FPN não é
imediatamente óbvia, uma vez que o QA é ele próprio um fluxo, e não uma força capaz de determinar um fluxo, como o são ∆π. Para entender a influência do QA sobre a FPN é necessário observar seu efeito sobre a curva que representa π em função de x (Figura 1.3A). Um aumento de QA
desvia essa curva para a direita, indicando uma elevação mais lenta da pressão oncótica com x. O efeito inverso é observado com a redução de QA (Figura 1.3B). A razão para essa dependência é simples: quanto maior o fluxo intracapilar, tanto menor, proporcionalmente, será a influência, sobre o plasma, da filtração glomerular. Fica mais fácil entender essa relação se imaginarmos as situações extremas: se QA chegasse a, por exemplo, 1000 vezes o valor normal, a taxa de filtração naquele glomérulo não tenderia a infinito, mas atingiria um máximo, já que é impossível à PEUF atingir valor maior do que o correspondente ao retângulo de lados ∆P e x=1. Nesse caso, mesmo esse FPN máximo tenderia a tornar-se uma fração diminuta do QA, o que faria com que as proteínas plasmáticas praticamente não fossem concentradas. Se, ao contrário, QA tender a zero, o mesmo
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Figura 1.2 – Representação gráfica esquemática da variação da diferença de pressão hidráulica (∆P, linha reta) e da pressão oncótica (π, linha curva) em função da distância em relação à origem do capilar
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Figura 1.3 – Representação gráfica esquemática da influência de um aumento (A) e de uma redução (B) do fluxo plasmático glomerular (QA) sobre o perfil de variação da pressão oncótica intraglomerular (π).O perfil de π em condições normais é dado pela linha pontilhada, para efeito de
ocorrerá com a FPN, já que este evidentemente não pode exceder QA, levando então a concentração plasmática de proteínas a valores muito altos.
4. O quarto determinante da ultrafiltração glomerular é o coeficiente de condutância hidráulica ou de
ultrafiltração das paredes glomerulares, representado por Kf. Esse parâmetro mede a facilidade com que a parede glomerular permite a passagem de fluido, sendo análogo à porosidade do elemento filtrante de um filtro doméstico. O Kf glomerular é por sua vez determinado por dois parâmetros: a) a permeabilidade hidráulica intrínseca da parede glomerular, representada pelo símbolo k e b) a superfície total disponível para a filtração, representada pelo símbolo S e dependente do número de alças capilares funcionantes e de suas dimensões. O Kf pode ser calculado como Kf = k x S.
EFEITO DA VARIAÇÃO SELETIVA DOS DETERMINANTES DA ULTRAFILTRAÇÃO GLOMERULAR
1. ∆∆∆∆P O efeito da variação do ∆P sobre a FPN é bastante previsível: uma elevação do ∆P faz aumentar em cada ponto do capilar glomerular a diferença entre ∆P e π. Desse modo, ocorre um aumento da área compreendida entre as duas curvas, a qual, como vimos, é proporcional à PEUF, levando portanto a um aumento da FPN. A filtração glomerular é portanto um processo extremamente dependente de ∆P, ou seja presso-dependente. Note observando a Figura 1.4A que a curva correspondente a π
também se desloca para cima, refletindo o aumento da filtração em cada ponto do glomérulo É evidente ainda que ocorrerão alterações inversas se ∆P baixar. Há no entanto um limite inferior para o valor de ∆P (Figura 1.4B). Esse limite é representado pela pressão oncótica inicial do capilar glomerular, ou seja, a pressão oncótica sistêmica. Quando ∆P baixa a esse ponto, a PEUF e a FPN vão a zero. É o que acontece por exemplo em estados de hipotensão severa (ver adiante). Se ∆P pudesse cair abaixo da pressão oncótica sistêmica, deveria em princípio ocorrer filtração reversa, ou seja, do espaço de
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Figura 1.4 – Representação gráfica esquemática da influência de uma elevação (A) e de uma queda redução (B) da diferença de pressão hidráulica através da parede glomerular (∆P) sobre o perfil de variação do próprio ∆P e da pressão oncótica intraglomerular (π).Os perfis de ∆P e π em condições normais são dados pelas linhas pontilhadas, para efeito de comparação
Bowman para o capilar glomerular. Esse movimento, no entanto, provocaria de imediato o colabamento do folheto parietal da cápsula de Bowman, cuja parede flexível seria incapaz de sustentar o vácuo resultante. 2. QA Conforme discutido acima (Figuras 2.3A e 2.3B), o perfil de elevação da pressão oncótica intraglomerular varia com a perfusão renal: quanto mais alto o QA, mais deslocada para a direita estará a curva que descreve π, e tanto maior será a PEUF. Diminuindo-se QA, a curva de π se deslocará para a esquerda, aproximando-se da curva de ∆P e diminuindo a PUF. É importante lembrar que a pressão e o fluxo intraglomerulares freqüentemente variam de modo simultâneo, podendo somar seus efeitos, conforme veremos adiante. 3. Kf Previsivelmente, a FPN cai quando se diminui o Kf glomerular em relação ao normal. Essa
queda é no entanto bastante atenuada pela intensa alteração que sofre o perfil da variação de π. Com reduções progressivas do Kf (Figura 1.5A), essa curva desloca-se cada vez mais à direita, uma vez que a filtração cai ao longo de todo o capilar e, em conseqüência, as proteínas são menos concentradas nesse percurso. Devido a esse comportamento da curva de π, a PEUF aumenta. Como no entanto o Kf havia diminuído, o resultado final é a redução da FPN. Quando o Kf aumenta em relação ao normal (Figura 1.5B), há uma pequena tendência à elevação da FPN. Esse aumento é no entanto acompanhado de um deslocamento para a esquerda da curva de π, reduzindo assim, progressivamente a PEUF e praticamente anulando o efeito que teria sobre a FPN a elevação do Kf. Esse comportamento tem uma implicação fisiológica importante: embora o rim consiga reduzir a FPN diminuindo o Kf, não é possível aumentar substancialmente a FPN através de um aumento do Kf: é necessário modificar ∆P e QA por meio de variações das resistências pré e pós-glomerulares (ver adiante). 4. CA
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Figura 1.5 – Representação gráfica esquemática da influência de uma redução (A) e de um aumento (B) do coeficiente de ultrafiltração glomerular (Kf) sobre o perfil de variação do próprio ∆P e da pressão oncótica intraglomerular (π).Os perfis de ∆P e π em condições normais são dados pelas linhas pontilhadas, para efeito de comparação
Uma queda da CA e portanto de π tem sobre a FPN um efeito análogo ao de uma elevação de ∆P, o que não chega a surpreender, já que ∆P e π têm efeitos opostos sobre a filtração. No entanto, o perfil de variação de π é completamente diferente neste caso, sendo sua concavidade voltada à esquerda, e não à direita como no caso da elevação de ∆P (Figura 1.6). Isso ocorre porque π é na verdade uma função quadrática, e não linear, de CA. Há uma série de situações clínicas que podem levar a uma queda da CA, tais como a sindrome nefrótica, a insuficiência hepática e a desnutrição proteica severa. Veremos mais adiante como a FPN pode ser afetado nessas circunstâncias. Já um aumento da CA teria o efeito inverso, podendo inclusive fazer cessar a filtração glomerular se π igualar ∆P desde o início do capilar glomerular. Essa é no entanto uma ocorrência raríssima que não será considerada aqui.
EFEITO DA VARIAÇÃO DAS RESISTÊNCIAS AFERENTE E EFERENTE SOBRE A DINÂMICA GLOMERULAR
A microcirculação glomerular pode ser representada de modo simplificado por uma associação
em série de dois resistores hidráulicos, correspondentes à arteríola aferente (RA) e eferente (RE). Esse arranjo permite o controle fino da pressão hidráulica do interior do capilar glomerular, situado entre os
dois resistores. O perfil de variação da pressão hidraúlica na microcirculação glomerular está descrito na Figura 1.7. Observe que ocorre uma queda acentuada da pressão hidráulica na arteríola aferente (correspondente a RA), seguindo-se um longo trecho, correspondente ao capilar glomerular, no qual a pressão hidráulica, aqui equivalente à PCG, é aproximadamente constante. Ocorre então uma segunda queda, desta vez na arteríola eferente, atingindo pressões pouco superiores à pressão venosa, que se transmitem para os capilares pós-glomerulares (capilares peritubulares e vasa recta). O valor do platô correspondente à PCG depende de dois fatores básicos: a) o nível da pressão arterial. b) a relação entre RA e RE. Uma elevação da pressão arterial, com RA e RE constantes, faz-se acompanhar de uma elevação proporcional da PCG. Se
mantivermos constante a pressão arterial e diminuirmos RA, a queda de pressão na arteríola aferente será menor. Com isso, a PCG se eleva, aproximando-se da pressão arterial. Podemos entender melhor essa relação imaginando uma situação limite, em que RA é nula. Nesse caso, o capilar glomerular estaria em contato direto com a circulação sistêmica, e portanto a PGC seria idêntica à pressão arterial. Se, ao contrário, fizermos RA infinita, teremos uma situação equivalente a uma “ligadura” da arteríola aferente. Com isso, a PCG tenderia a valores próximos aos dos capilares peritubulares, pouco superiores ao da
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Figura 1.6 – Representação gráfica esquemática da influência de uma queda da concentração plasmática de proteínas (CA) sobre a dinâmica da ultrafiltração glomerular. O perfil de π em condições normais é dado pela linha pontilhada, para efeito de comparação
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PA PCG PE PC
Figura 1.7 – Perfil de variação da pressão hidráulica na microcirculação glomerular (PA=pressão arterial, PCG= pressão capilar glomerular, PE= pressão na arteríola eferente, PC=pressão nos capilares pós-glomerulares)
pressão venosa periférica. O efeito da RE é análogo, exceto pelo sentido da variação de PCG: aumentos/diminuições na RE sempre levam a elevações/reduções da PGC. As alterações das arteríolas pré e pós glomerulares não influenciam apenas a PCG. Tanto os aumentos de RA quanto os de RE levam a uma diminuição de QA, uma vez que o aumento de qualquer resistor sempre dificulta o fluxo em um sistema hidráulico. Ocorre o inverso quando RA e/ou RE diminuem. Esse efeito simultâneo das variações de RA e RE sobre o fluxo plasmático e a pressão glomerulares reflete-se diretamente sobre a FPN. Há no entanto diferenças fundamentais entre os efeitos dos dois resistores. Um aumento de RA leva ao mesmo tempo a uma diminuição do QA e da PGC. Em conseqüência disso, a PEUF reduz-se drasticamente, levando a uma queda igualmente intensa na FPN. O contrário ocorre quando a RA diminui, mostrando que a FPN é extremamente sensível a variações da
RA., o que se torna evidente ao exame da Figura 1.8A. Já a influência da RE sobre a FPN, representada na Figura 1.8B, é bem mais complexa, uma vez que, em virtude de sua localização, a RE exerce efeitos opostos sobre QA e ∆P. Quando RE é
muito baixa, a PGC desce a níveis próximos de zero, que corresponderiam a uma filtração negativa se tal fenômeno fosse fisiologicamente possível. Com valores crescentes de RE, a FPN sobe rapidamente. Nesse trecho, a FPN responde de modo extraordinariamente rápido a variações da RE. No entanto, aumentos ulteriores da RE pouco influenciam a FPN e podem até mesmo reduzi-lo se exagerados. A razão para isso são os efeitos conflitantes do aumento da RE sobre o QA e a PGC, os quais acabam por compensar-se mutuamente. Fica claro assim que as resistências pré e pós glomerulares têm efeitos fisiológicos distintos: enquanto a RA exerce uma influência consistente sobre a FPN (um aumento de RA sempre faz diminuir a FPN e vice-versa), o efeito da RE é bifásico. Essas características podem ter profundo significado fisiológico e fisiopatológico, como veremos adiante.
AUTORREGULAÇÃO DO RFG Enfatizou-se acima a importância da filtração glomerular como evento inicial e imprescindível à formação de urina. Essa importância é tamanha que é necessária a existência de um mecanismo ou de um conjunto de mecanismos para manter relativamente constante o RFG mesmo em face de amplas variações da pressão arterial sistêmica. Em outras palavras, há necessidade de uma autorregulação do RFG. Esse comportamento do RFG está ilustrado esquematicamente na Figura 1.8. Se a microcirculação glomerular não passasse de um conjunto de dutos passivos, sem qualquer capacidade reguladora, uma variação da pressão arterial levaria a uma variação linear do RFG, conforme indica a curva A. Se no entanto tivermos uma autorregulação perfeita do RFG, a variação deste será representada pela curva B. No trecho que podemos denominar região de autorregulação, o RFG permanece imutável. Fora desses limites, o RFG varia de modo semelhante ao representado na curva A. Na prática, a autorregulação do RFG não chega a ser perfeita, sendo melhor representada pela curva C. Isso significa que ocorre alguma variação do RFG com a pressão arterial, muito menor no entanto do que a que seria observada na
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Figura 1.8 – Efeito das resistências aferente (RA, A) e eferente (RE, B) sobre a taxa de filtração glomerular por néfron (FPN)
ausência total de autorregulação (curva A). Podemos dizer que a eficiência da autoregulação é máxima (ou seja, aproxima-se de 1) no caso da curva B (autorregulação perfeita), nula no caso da curva A (ausência de autorregulação) e intermediária (pouco menor do que 1) no caso da curva C (autorregulação real). A fisiologia da autorregulação do RFG não está totalmente esclarecida. Alguns estudos em ratos indicam que a autorregulação do RFG pode depender predominantemente de variações da RA. Isso fica claro ao exame da Figura 1.9, obtida por meio de simulação em computador. Observamos nessa figura o distúrbio causado à hemodinâmica glomerular por uma elevação da pressão arterial de 100 para 130 mmHg. Se não houvesse resposta adaptativa alguma, ocorreria uma elevação simultânea do ∆P e do QA, levando a um aumento considerável da PEUF e da FPN. Todas essas
alterações são inteiramente revertidas se aumentarmos em 30% a RA, e apenas RA. Essa capacidade autorreguladora da RA é sempre observada, independente do valor assumido pela pressão arterial. Essas observações sugerem que a RA é de importância crucial para a autorregulação do RFG, o que não chega a surpreender tendo em vista sua localização estratégica e sua pronunciada influência sobre a FPN. No entanto, a RE pode vir a a adquirir importância crucial em determinadas situações patológicas (ver adiante). Os mecanismos pelos quais a RA varia em resposta a variações da pressão arterial são ainda obscuros. São três as principais teorias formuladas para explicar esse comportamento: 1) a teoria
miogênica propõe que as arteríolas aferentes, como de resto qualquer arteríola do organismo, respondem a um aumento da pressão sangüínea com uma contração de sua musculatura lisa e um consequente aumento de sua resistência, de modo a minimizar o aumento do fluxo sangüíneo renal (como vimos, a PCG e o RFG são também preservados nesse processo); 2) a teoria metabólica sustenta que qualquer variação do fluxo sangüíneo renal desencadeia a produção de metabólitos cujo efeito vascular tende a se contrapor ao distúrbio inicial (propõe-se um mecanismo semelhante para explicar a autorregulação do fluxo sangüíneo nos demais capilares do organismo). 3) segundo a teoria da realimentação túbulo-
glomerular, a mácula densa, estrutura localizada entre a porção espessa da alça de Henle e o início do túbulo distal, monitora continuamente a quantidade de NaCl que lhe chega, sendo assim capaz de detectar alterações na carga filtrada de sódio e, portanto, da taxa de filtração do respectivo glomérulo. Em resposta a tais alterações, ainda segundo essa teoria, a mácula densa gera um sinal que, graças à sua justaposição com o glomérulo, alcança rapidamente a arteríola aferente, fazendo-a dilatar-se ou contrair-se conforme o necessário para manter constante a filtração glomerular. Os compostos responsáveis pela transmissão desse hipotético sinal da mácula densa à arteríola aferente e pela dilatação/contração desta última não foram ainda determinados.
TÉCNICAS PARA A DETERMINAÇÃO DO RFG A medida da depuração plasmática de certos compostos pelos rins constitui a técnica mais freqüentemente utilizada para se avaliar o RFG. A taxa de depuração (mais conhecida por seu equivalente em inglês, clearance) plasmática de uma substância x qualquer é definida como a quantidade de plasma que é depurada dessa substância na unidade de tempo. Essa quantidade equivale
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Figura 1.9 – Autorregulação do RFG em face de variações da pressão arterial (PA). Curva A, ausência de autorregulação; curva B, autorregulação perfeita; curva C, autorregulação parcial
ao quociente entre a massa de x excretada na urina e a concentração plasmática de x, representada por Px. A massa excretada de x é por sua vez equivalente ao produto da concentração urinária de x, Ux, pelo fluxo urinário, V. O clearance de x, que representaremos por Cx, é então calculado como Cx = Ux⋅V/Px. Fica mais fácil entender o significado fisiológico desse parâmetro considerando casos extremos. Quando uma substância não é normalmente excretada na urina, ou por não ser filtrada nos glomérulos (por exemplo, imuniglobulinas) ou por ser inteiramente absorvida nos túbulos (por exemplo, bicarbonato), seu clearance renal, calculado pela fórmula acima, é zero, ou seja, nenhuma gota de plasma é depurada dessa substância. Já no caso de o rim eliminar a totalidade do que recebe de uma dada substância, a excreção urinária será igual à massa da substância que chega à artéria renal (por sua vez igual ao produto de sua concentração plasmática pelo fluxo plasmático renal). Representando tal substância novamente por x , temos: Ux⋅V = Px⋅FPR, onde FPR representa o fluxo plasmático renal. Rearranjando, chegamos a Ux⋅V/Px = Cx = FPR, ou seja, o clearance de uma substância totalmente eliminada pelos rins é idêntico ao fluxo plasmático renal. É o caso do ácido para-amino-hipúrico, utilizado exatamente para medir o FPR em pacientes e em animais de laboratório. Para a medida do RFG, utilizamos compostos que são filtrados mas não reabsorvidos ou secretados nos túbulos. Nesse caso particular, a massa excretada do composto é idêntica à sua carga filtrada, a qual por sua vez equivale ao produto de sua concentração plasmática pelo RFG. Temos assim: Ux⋅V = Px⋅RFG e, rearranjando: Ux⋅V/Px = Cx = RFG. Portanto, o clearance de uma substância filtrada nos glomérulos mas não transportada pelos túbulos é exatamente igual ao RFG. Na prática clínica, o mais utilizado desses marcadores é a creatinina, por duas razões: 1) trata-se de uma substância endógena, por ser normalmente produzida no músculo esquelético. 2) as técnicas utilizadas para a dosagem da creatinina são bastante simples. Mesmo sem a determinação de seu clearance, a creatinina pode servir de indicador da função renal simplesmente através da medida de sua concentração plasmática. Para entender como isso é possível, basta lembrar que, quando em situação estacionária (que é o que ocorre na maior parte das vezes), o organismo está sempre em balanço com relação à creatinina, como de resto em relação a qualquer composto introduzido no organismo e depois excretado. Isso significa que a excreção de creatinina deve necessariamente igualar sua produção (Prodcreat).
Algebricamente, temos: Prodcreat = Ucreat⋅V. Lembrando que no caso da creatinina a carga excretada na urina é aproximadamente igual à carga filtrada, podemos escrever: Prodcreat = Pcreat⋅RFG. Rearranjando, temos: Pcreat = Prodcreat/RFG. Isso significa que, sendo constante a Prodcreat a concentração plasmática de creatinina é uma função inversa, do tipo y=k/x (hiperbólica), do RFG, podendo assim ser utilizada na avaliação desse parâmetro. Essa relação é mais claramente apreciada quando sob forma gráfica (Figura 1.10). É importante observar que, dada a forma dessa curva, aumentos relativamente pequenos de Pcreat podem corresponder a perdas substanciais de função renal.
Na verdade, a creatinina não é um marcador ideal do RFG, já que ocorre uma pequena secreção tubular desse composto. Além disso, existem no plasma outros compostos endógenos que interferem com a dosagem da creatinina, contribuindo para superestimar sua concentração. Esses dois efeitos tendem a cancelar-se mutuamente, fazendo com que o clearance de creatinina seja uma estimativa bastante razoável do RFG (uma exceção é representada por pacientes com RFG baixo, os quais podem secretar creatinina nos túbulos a ponto de haver superestimação do RFG). Para determinações mais precisas, utilizam-se marcadores verdadeiramente inertes em relação ao túbulo, tais como por exemplo a
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RFG, ml/min
Pcr
eat,
mg/
100
ml
Figura 1.10 – Relação inversa entre a concentração plasmática de creatinina (Pcreat) e o RFG
inulina, um polímero da frutose. No entanto, tais compostos apresentam a grande desvantagem de exigir infusão exógena, já que não estão normalmente presentes no organismo. Por essa razão são utilizados apenas para investigação, clínica ou experimental.
ALTERAÇÕES DA HEMODINÂMICA GLOMERULAR EM ALGUMAS PATOLOGIAS QUE AFETAM OS RINS
1. Hipertensão arterial Estudos em ratos hipertensos indicam que a microcirculação glomerular acomoda-se ao regime de pressões elevadas exatamente do modo descrito na seção dedicada à autorregulação do RFG: ocorre um aumento da RA, calibrado precisamente para trazer a valores próximos ao normal não só o RFG como também dois de seus determinantes o ∆P e o QA. Devido a essa adaptação, a única anomalia da circulação renal encontrada em indivíduos hipertensos, além da própria pressão arterial elevada, é o aumento da RA e conseqüentemente do desnível entre a pressão arterial e a PCG. Com a persistência da hipertensão, o patamar de autorregulação tende a deslocar-se para a direita. Nesse caso, o limite inferior de autorregulação pode passar de 70 para 110 mmHg, por exemplo. O tratamento intempestivo da hipertensão nessas circunstâncias, na tentativa de normalizar rapidamente a pressão sangüínea, pode na verdade trazê-la abaixo do nível de autorregulação e provocar uma queda considerável do RFG. 2. Redução da massa renal
A diminuição progressiva do número de néfrons é observada na insuficiência renal crônica (ver Capítulo 15). Nesses casos, os néfrons remanescentes necessitam aumentar sua taxa de filtração, a fim de atenuar a queda do RFG total. desenvolvem Ocorre uma grande hipertrofia estrutural do néfron como um todo, podendo haver duplicação do volume glomerular. A taxa de filtração por néfron pode também chegar ao dobro ou até ao triplo do normal. Conforme mencionado acima, a única maneira de se obter tamanho aumento de taxa de filtração glomerular é aumentar o fluxo plasmático glomerular e/ou a pressão hidráulica glomerular, o que requer uma redução predominante de RA. É o que se observa em modelos experimentais de insuficiência renal crônica, como por exemplo a remoção cirúrgica da maior parte da massa renal. Com o aumento simultâneo do QA e da PCG, ocorre uma expansão acentuada da área compreendida entre as duas curvas, a qual, como vimos, representa a PEUF (Figura 1.11).
3. Diabetes mellitus
Durante vários anos após o início da doença, os pacientes diabéticos apresentam um
aumento do RFG em relação ao normal, o qual pode atingir 30 ou 40%. Anomalias semelhantes são demonstradas em animais de laboratário. As alterações da hemodinâmica glomerular
0
10
20
30
40
50
60
0.0 0.2 0.4 0.6 0.8 1.0
Distância
mm
Hg
Figura 1.11 – Dinâmica da ultrafiltração glomerular na redução da massa renal
responsáveis por esa hiperfiltração são bastante semelhantes àquelas observadas em indivíduos com redução da massa renal. 4. Estenose da artéria renal Quando ocorre a obstrução parcial da artéria renal por um ateroma, por exemplo, é comum a elevação da pressão arterial sistêmica. No entanto, a pressão de perfusão renal, ou seja, a pressão que o rim hipoperfundido efetivamente “enxerga”, pode estar normal ou até baixa. Muitas vezes, a estenose é bilateral, ou o paciente possui apenas um único rim. Se se baixar rapidamente a pressão arterial por meios farmacológicos nesses pacientes, a pressão de perfusão renal pode cair a níveis muito baixos. Nesse caso, os mecanismos de autorregulação do RFG entram em ação através da dilatação da arteríola aferente. Se no entanto a queda na pressão de perfusão for muito intensa, a autorregulação chega ao seu limite e o RFG cai. Se além disso a resistência eferente for diminuída pelo agente antihipertensivo empregado (como é o caso das drogas que deprimem o sistema renina-angiotensina), a autorregulação fica comprometida pela queda na PCG e a redução no RFG pode ser catastrófica. Por essas razões, o tratamento farmacológico da hipertensão arterial e a escolha dos medicamentos anti-hipertensivos deve ser feita com extremo cuidado nesses pacientes. 5. Glomerulonefrites
Evidências obtidas em modelos experimentais de glomerulonefrites indicam que o Kf está
acentuadamente diminuído nessa condição, enquanto o QA está normal ou até elevado. Em conseqüência, o perfil da variação da pressão oncótica está desviado para a direita e para baixo, elevando a PEUF. Como no entanto o Kf é baixo, o resultado final é uma diminuição na FPN, mesmo em face de um aumento na pressão hidráulica glomerular e da pressão efetiva de ultrafiltração, representada pela área compreendida entre as duas curvas. 6. Síndrome nefrótica A síndrome nefrótica, discutida em maior detalhe nos capítulos 3 e 9, inicia-se a partir de uma excreção exagerada de proteínas na urina. Em conseqüência dessa perda, cai a concentração plasmática de proteínas, o que por sua vez provoca o aparecimento de edema (por redução da pressão oncótica do plasma) e produção excessiva de lipoproteínas (relacionada ao excesso de atividade biossintética do fígado, primariamente destinada a compensar a perda de proteínas plasmáticas). Com relação à dinâmica da ultrafiltração glomerular, é evidente que, não havendo alteração de outros determinantes, a baixa pressão oncótica sistêmica deve elevar a PEUF e a FPN (Figura 1.6), já que a força oncótica opõe-se ao processo de ultrafiltração. Essa hiperfiltração ocorre realmente em uma certa porcentagem de pacientes nefróticos. Pode haver no entanto uma redução associada do Kf glomerular, como uma manifestação da própria glomerulopatia, conforme indicam vários estudos experimentais. Essa associação antagônica entre alterações de Kf e π pode explicar por que o RFG pode estar normal ou até deprimido nesses pacientes, mesmo em face de uma PEUF que sabemos extremamente elevada. Pode parecer contraditório que o Kf, que mede a condutância hidráulica da parede glomerular, esteja diminuído em uma situação em que a permeabilidade da parede glomerular a proteínas está aumentada,. Como é possível à parede glomerular ficar mais permeável a proteínas e menos permeável à água, cuja molécula é muito menor? Na verdade, a contradição é apenas aparente: normalmente, a parede glomerular oferece muito poucas vias para a travessia de macromoléculas, em contraste com a
abundância de caminhos disponíveis à passagem de água e pequenos solutos. Quando se abem vias anômalas para a passagem de moléculas maiores, a permeabilidade a proteínas aumenta centenas de vezes, mas o Kf é muito pouco influenciado (as novas vias represntam muito pouco em relação às já disponíveis à passagem de água). Mesmo que ocorra uma redução substancial do Kf (por exemplo, de 50%), a permeabilidade a proteínas permanecerá muito alta comparada ao normal.(ver o capítulo 3 para uma discussão mais aprofundada acerca dos mecanismos de proteinúria). 7. Choque hemorrágico Quando um organismo superior perde rapidamente uma parcela significativa de seu volume sangüíneo, os rins podem ser afetados de duas maneiras: 1) a pressão arterial pode cair bastante. 2) mesmo que a PA esteja relativamente preservada, a microcirculação renal pode sofrer um violento processo de vasoconstrição, particularmente nas arteríolas aferentes, como parte da tentativa do organismo de defender a sua volemia. A baixa pressão de perfusão renal, associada ao aumento predominante de RA, leva a uma queda acentuada no fluxo plasmático renal. Ao mesmo tempo, como a PGC depende, como vimos, da PA e da proporção entre RA e RE, ocorre uma hipotensão intraglomerular muito grande. O resultado final desse processo é uma queda acentuada do RFG, que pode aproximar-se de zero. Essas alterações funcionais fazem parte de um quadro genericamente denominado insuficiência renal aguda, analisado em detalhe no Capítulo 14. 8. Obstrução urinária Em certas situações, as vias urinárias podem ser bloqueadas mecanicamente por cálculos, tumores ou outros processos patológicos. Como seria de se esperar intuitivamente, ocorre nesses casos, ao menos em um primeiro momento, uma elevação muito acentuada da pressão hidráulica da via urinária obstruída. Essa elevação transmite-se retrogradamente aos túbulos renais, até que todo o sistema, incluindo o espaço de Bowman, esteja à mesma pressão. Nesse momento PGC≅PEB e portanto ∆P≅0. Desse modo, a dinâmica da ultrafiltração glomerular comporta-se aproximadamente como no caso do choque hipovolêmico, conforme analisamos acima. No entanto, devemos lembrar que naquele caso ∆P reduzia-se devido à queda da PGC, enquanto que na obstrução urinária ela se reduz em conseqüência da elevação da PEB. Se a obstrução urinária persistir, a FPN continuará baixo. Muda no entanto o mecanismo responsável pela depressão da FPN: nas obstruções prolongadas, a PGC cai, devido à produção local de uma série de compostos vasoconstritores tais como a angiotensina II e o tromboxane. Temos nesse caso um quadro semelhante àquele observado nos choques hipovolêmicos.
EXERCÍCIOS Abra o programa “Determinantes da ultrafiltração glomerular”. 1. Varie o fluxo plasmático glomerular (QA) entre 50 e 500 nl/min e observe o comportamento da taxa de
filtração glomerular por néfron (FPN). Examine também a variação da PUF. Observe o esquema dos determinantes da ultrafiltração glomerular, na poção central superior da tela. As setas representativas (no alto da tela) são também dinâmicas. Clique em “EXERCÍCIOS” e construa um gráfico descrevendo a relação entre FPN e QA baseando-se nos resultados obtidos para preencher o que falta na tabela pré-existente. Como podemos descrever a relação entre QA e FPN?
2. Volte ao programa principal e pressione o botão “PADRÕES” a fm de atribuir a cada um dos parâmetros seus respecivos valores de referência. Varie a seguir a diferença de pressão hidráulica transglomerular (∆P) entre valores extremos e observe o comportamento da taxa de filtração glomerular por néfron (FPN). Passe novamente à planilha "EXERCÍCIOS" e construa um gráfico descrevendo a relação entre FPN e ∆P. Interprete. O que acontece com a FPN quando ∆P cai até aproximar-se de 20 mmHg? Por que? Pode haver filtração reversa (do espaço de Bowman para o capilar glomerular? Por que?)
3. De volta ao programa de ultrafiltração, varie o Kf e observe o efeito sobre o FPN. Há uma relação
linear entre FPN e Kf? Por que? 4. Simule uma síndrome nefrótica, fazendo baixar à metadedo normal a concentração plasmática de
proteínas (CA). O que acontece à FPN? Diminua agora o Kf glomerular. Como varia a FPN?
Saia do programa de ultrafiltração e acione o programa “Resistências glomerulares” 1. Varie a resistência aferente (RA), mantendo constante a eferente (RE) e observando seu efeito sobre ∆P,
QA e FPN. Qual é o comportamento do perfil de pressão hidráulica? Observe que a variação de RA e RE está representada no alto da tela por uma construção gráfica que simula o efeito dos esfíncteres arteriolares (as linhas cinzentas correspondem ao padrão de referência). Passe à planilha “EXERCÍCIOS” e construa o gráfico FPN vs. RA preenchendo a tabela construída de antemão. Interprete.
2. Volte ao programa principal e pressione “PADRÃO”. Varie a resistência eferente (RE), mantendo a
aferente (RA) constante, e observe seu efeito sobre ∆P, QA e FPN. Na planilha "EXERCíCIOS", construa FPN vs.RE, da mesma maneira que nos casos anteriores. Qual dos dois resistores mais consistentemente influencia o FPN? Qual a melhor estratégia de que o rim pode lançar mão para regular a FPN?
3. Simule o processo de autorregulação renal. Varie a PA entre valores extremos do ponto de vista
fisiológico (70 a 150) e verifique o que acontece a cada um dos parâmetros representados na tela. Baixe a PA para 70 e observe o que acontece à FPN. Procure agora variar RA e RE de modo a normalizar a FPN e os demais parâmetros. Repita a operação com a PA em 150. Qual a maneira mais eficiente de normalizar o RFG nessas circunstâncias?
4. No choque hemorrágico agudo, ocorre uma hipotensão severa, devido à perda de volume circulante. O
rim responde a essa situação com uma intensa vasoconstrição, principalmente da arteríola aferente. Reproduza esquematicamente essa situação modificando adequadamente os parâmetros enumerados na tela fazendo por exemplo PA=70, Ra=4 e Re=2 (modificar primeiro Re para evitar o aviso de filtração reversa). O que acontece à FPN? E aos demais parâmetros?
5. Para encerrar, vamos simular o que acontece quando o rim perde parte de seus néfrons. Nesse caso, a
filtração por néfron aumenta para compensar a perda, apesar da inevitável queda na taxa de filtração glomerular total (estudaremos esse processo em maior detalhe no capítulo de insuficiência renal crônica). Eleve a PA para 130, coloque Ra em 1,0 e Re em 0,8 (vasodilatação predominantemente aferente). Observe o que acontece à FPN e a seus determinantes.
Saia do programa de “Resistências glomerulares” e abra o programa “Autorregulação”.
Varie a pressão arterial e observe o que acontece a ∆P, QA, FPN e ao perfil de pressão hidráulica na microcirculação renal. Observe ainda o comportamento de RA e RE. Observe que a eficiência da autorregulação é igual a 1 quando o programa é iniciado. Repita agora o procedimento para eficiências menores. O que acontece? O que acontece quando a eficiência é igual a zero? Interprete.
CAPÍTULO 2: RIM E COMPOSTOS VASOATIVOS
Mirian Aparecida Boim, Vicente de Paulo Castro Teixeira e Nestor Schor
O rim é o principal órgão envolvido na manutenção do equilíbrio hidroeletrolítico do
organismo. Porém, além da manutenção homeostática, o rim também exerce importante papel
endócrino, sendo capaz de sintetizar diversos hormônios e substâncias vasoativas com efeitos
endócrinos, parácrinos e autócrinos. Assim, o rim sintetiza determinados hormônios que irão
atuar à distância, como por exemplo a eritropoietina, bem como substâncias que atuam dentro
do próprio rim (angiotensina II, endotelinas, cininas, prostaglandinas, óxido nítrico, etc).
Além disso, ele é alvo de outros hormônios produzidos à distância, incluindo o PTH, a
vasopressina, a aldosterona, etc).
A tabela 1 resume os principais hormônios produzidos pelo rim e suas funções.
Apenas a eritropoietina, cuja ação transcende o escopo deste livro, e a 1,25-dihidroxi-vitamina
D, analisada no Capítulo 13, deixarão de ser consideradas neste capítulo.
Tabela 1: Principais hormônios produzidos no rim
HORMÔNIO ÓRGÃO(s) ALVO PRINCIPAL FUNÇÃO
eritropoietina medula óssea estimula produção de hemácias
1-α,25-dihidroxi-vitamina D intestino, osso, rim regulação da homeostase do cálcio
renina* - -
angiotensina II sistema cardiovascular, rim vasoconstrição, reabsorção de Na+,
proliferação celular
prostaglandinas rim vasodilatação, natriurese
calicreína*
cininas vasculatura lisa, rim vasodilatação
*enzimas produzidas no rim e que atuam sobre substratos sistêmicos e intrarenais
2
A tabela 2 resume os hormônios que agem sobre o rim, salientando que vários
hormônios não têm local único de produção. Assim, a tabela apresenta os principais locais de
síntese, não sendo entretanto exclusivos.
Tabela 2: Principais hormônios que agem no rim
HORMÔNIO PRINCIPAIS LOCAIS DE
PRODUÇÃO
PRINCIPAIS FUNÇÕES
NO RIM
aldosterona supra-renal ↑ reabsorção de Na+
angiotensina II sistema cardiovascular e rim vasoconstrição, contração cél.
mesangial,
↑ reabsorção de Na+
fator natriurétrico atrial átrio ↑ filtração glomerular,
natriurese
endotelinas endotélio vascular vasoconstrição
vasopressina hipotálamo ↑ reabsorção de H2O
prostaglandinas rim vasodilatação
óxido nítrico endotélio vacular vasodilatação
1-α,25-dihidroxi-vitamina D rim ↑ reabsorção de Ca++
PTH paratireóide ↑ reabsorção de Ca++
catecolaminas (adrenalina e
noradrenalina)
vários vasoconstrição,↑ reabsorção
de Na+
cininas vários vasodilatação
3
PRINCIPAIS COMPOSTOS VASOATIVOS COM AÇÃO RENAL
1) SISTEMA RENINA-ANGIOTENSINA-ALDOSTERONA (SRAA)
O SRAA está diretamente envolvido no controle da pressão arterial e do volume
extracelular. Este controle depende de vários efeitos da angiotensina II, incluindo
vasoconstrição, estímulo à sede (dipsogênese) e aumento da reabsorção de sódio, por ação
direta (sobre o túbulo proximal) ou indireta, através de seu efeito hemodinâmico, ou da
ação da aldosterona sobre o túbulo distal (ver também o Capítulo 10).
A síntese de angiotensina é iniciada, e principalmente regulada, pela ativação da
enzima renina (produzida principalmente pelas células justaglomerulares), a qual atuando
sobre o substrato angiotensinogênio circulante libera angiotensina I, que por sua vez sofre
a ação da enzima conversora da angiotensina I (ECA), com a liberação do octapeptídeo
ativo, a angiotensina II. Além de exercer seus efeitos específicos, a angiotensina II
também estimula a síntese de aldosterona pelas células da glândula supra-renal (Figura 2-
1).
Efeitos Biológicos
Figura 2-1: Via de formação da angiotensina II e aldosterona
angiotensina I
angiotensina II
efeitos biológicos
aldosterona
renina
enzima conversora da angiotensina I (ECA) = cininase II
angiotensinogênio
4
COMPONENTES DO SISTEMA RENINA ANGIOTENSINA (SRA)
Angiotensinogênio
O angiotensinogênio é uma glicoproteína sintetizada principalmente no fígado, embora
outros tecidos também sejam capazes de sintetizá-lo, incluindo o cérebro, rim, coração,
pulmão, supra-renal, vasos e intestino. O angiotensinogênio produzido no fígado contribui
de forma substancial para a produção de angiotensina II circulante, enquanto a produção
extra-hepática contribui para a formação de angiotensina II local, atendendo às
necessidades de cada órgão ou tecido independentemente do SRA sistêmico.
Renina
A renina é uma enzima pertencente à superfamília das proteases. O rim é a principal,
embora não exclusiva, fonte de renina ativa. Produzida inicialmente como pre-pró-renina,
transforma-se rapidamente em pró-renina, sendo armazenada nos grânulos das células do
aparelho justaglomerular, onde é convertida em renina ativa. A produção intra-renal de
renina determina não apenas a geração de AII na circulação sistêmica, mas também a local.
Como veremos adiante, várias são as ações da AII no rim, porém vale ressaltar que a
localização estratégica das células produtoras de renina no aparelho justaglomerular tem
implicação direta na manutenção do equilíbrio hidroeletrolítico, através do mecanismo
denominado “feedback” túbulo-glomerular.
Aparelho Justaglomerular (AJG)
O AJG é formado por células situadas na parede da arteríola aferente próximas ao
glomérulo, onde a renina é principalmente sintetizada e armazenada, e pela mácula densa que
inclui células do túbulo contorcido distal em uma região onde o túbulo distal se aproxima
anatômica e estrategicamente ao glomérulo e às arteríolas aferente e eferente (Figura 2-2).
5
Figura 2-2: Aparelho Justaglomerular
Outras células, situadas na região compreendida entre as arteríolas (células de
Goormatigh, ou células do mesângio extracapilar), também são consideradas como parte
integrante do AJG.
É provável que este importante complexo esteja diretamente envolvido no processo de
autorregulação do ritmo de filtração glomerular (RFG) (ver Capítulo 1). Acredita-se que essa
função envolva a detecção, por parte das células da mácula densa, do fluxo de NaCl que
chega a esse segmento do néfron. De acordo com essa hipótese, um aumento do RFG leva a
um aumento correspondente do respectivo aporte distal de NaCl, o que promove uma
constricção da arteríola aferente, de modo a trazer de volta ao normal o RFG e portanto o
aporte distal de NaCl. Esse mecanismo recebe o nome de retroalimentação (“feedback”)
tubuloglomerular. Os mediadores desse efeito são ainda desconhecidos.
Além de seu efeito sobre o processo de filtração glomerular, o AJG tem papel
importante na conservação renal de sódio conforme veremos a seguir.
mácula densa
AE
células justaglomerulares
AA
túbulo distal
mesângio extraglomerular
6
Estímulos à secreção de renina
A renina é o componente do SRA com maior capacidade de regular os níveis de
angiotensina II circulante. Portanto, os estímulos primários à secreção de renina são aqueles
causados por situações em que se requer um aumento da síntese de AII, como por exemplo
uma queda do volume sangüíneo efetivo, da pressão arterial ou do volume de fluido corporal
total. Os dois mecanismos principais que regulam a liberação de renina são a carga de sódio
que chega à mácula densa no túbulo distal e os barorreceptores situados na arteríola aferente.
Além desses, outros fatores ou condições podem modificar os níveis de renina no
plasma, conforme resumido na tabela 3.
Tabela 3: Fatores que regulam a liberação de renina
FATORES ESTIMULATÓRIOS FATORES INIBITÓRIOS
↓ da pressão de perfusão renal ↑ da pressão de perfusão renal
Depleção de volume extracelular (restrição à ingestão de Na+, perdas digestivas, abuso de diuréticos, etc.)
Expansão do volume extracelular (dieta rica em Na+
, retenção renal)
estímulo β-adrenérgico estímulo α- adrenérgico
↓ cálcio ↑ cálcio nas células justaglomerulares
Prostaglandinas (PGE2 e PGI2) AII (realimentação negativa)
fatores de crescimento: TNF, IL-1, IGF, TGFβ Peptídeos: ADH, ANF, endotelina
fatores crescimento: EGF
Enzima conversora da angiotensina I (ECA)
A ECA é uma exopeptidase não-específica que, além de converter angiotensina I em
angiotensina II, também inativa a bradicina (hormônio vasodilatador), sendo por isso também
denominada cininase II. A enzima conversora distribui-se por todo o organismo, sendo mais
7
abundante no pulmão, rim, duodeno, íleo e útero. Sua molécula apresenta-se ligada às
membranas celulares, com seu sítio ativo exteriorizado. No rim a ECA localiza-se
principalmente nas células endoteliais, glomerulares e na borda em escova do túbulo
proximal. Conforme mencionado, a renina é o principal regulador dos níveis circulantes de
AII. No entanto, como não estão ainda disponíveis inibidores específicos da renina, o
bloqueio do SRA é obtido através da inibição da enzima conversora ou dos receptores de
angiotensina II (ver adiante).
Angiotensina II
A angiotensina II é um octapeptídeo, formado a partir da angiotensina I (um
decapeptídeo) através da ação da ECA. A angiotensina II é um dos mais potentes
vasoconstritores conhecidos; uma injeção intravenosa de uns poucos miligramas em animais
de laboratório eleva de imediato em 30-50 mmHg a pressão arterial sistêmica. Além desse
efeito vasoconstrictor, a angiotensina II também promove conservação de sódio e estímulo à
sede, conforme discutido acima. Evidências mais recentes indicam ainda que a angiotensina II
exerce importantes efeitos sobre a fisiologia celular, estimulando a proliferação de células
musculares lisas e mesangiais, além de aumentar a síntese de matriz extracelular, o que
provavelmente a torna um importante mediador de processos inflamatórios (ver também o
Capítulo 10).
Receptores de Angiotensina II
Para exercer os efeitos descritos acima, a angiotensina II interage com receptores na
superfície celular e produz uma variedade de efeitos fisiológicos. São atualmente conhecidos
dois subtipos genéricos destes receptores, denominados AT1 e AT2. De acordo com as
8
evidências atualmente disponíveis, o receptor AT1 é biológicamente mais importante,
mediando os efeitos vasocontritores da AII e, provavelmente, também seus efeitos sobre a
fisiologia celular. Já a função do receptor AT2 é ainda obscura. Praticamente todos os tipos
celulares renais possuem receptores de AII, sendo a maior densidade desses receptores
observada nas células mesangiais. A densidade desses receptores varia inversamente com a
concentração local de AII: altas concentrações de AII levam a uma redução da densidade de
receptores (“downregulation”), enquanto baixas concentrações de AII produzem o efeito
inverso (“upregulation”). Esse fenômeno, que permite a modulação dos efeitos da AII (ou
seja, torna menos bruscos esses efeitos) é descrito com relação a vários outros tipos de
receptores celulares, constituindo provavelmente um componente universal da fisiologia
celular.
Angiotensina II – vias de sinalização intracelular
Seguindo-se à ligação da AII com seu receptor, desencadeia-se uma cascata de eventos
comum à maioria dos tecidos-alvo. Há, primariamente, uma alteração na proteína G (proteína
reguladora associada ao receptor) que ativa a enzima de membrana fosfolipase C (PLC). Esta
enzima promove a hidrólise de lipídios altamente fosforilados na face interna da membrana
plasmática, resultando na formação de 1,4,5-trifosfato-inositol (IP3) e 1,2-diacil-glicerol
(DAG), que agem dentro da célula na regulação de várias funções. O IP3 promove o aumento
rápido, inicial da concentração de cálcio no citosol [Ca2+]i, em decorrência da liberação de
Ca2+ dos estoques intracelulares, enquanto o DAG, juntamente com as altas concentrações de
Ca2+, ativa a proteína quinase C (PKC) ligada à membrana. Um dos principais efeitos
resultantes do aumento de [Ca2+]i é o incremento da ligação desse íon com a proteína
calmodulina, formando o complexo cálcio-calmodulina, essencial à ativação da quinase de
9
cadeia leve da miosina, passo necessário para contração do músculo liso. Uma vez cessado o
estímulo promovido pela AII, a [Ca2+]i retorna ao nível basal através de tamponamento
intracelular, recaptação de Ca2+ pelos calciossomos (mediada por Ca2+-ATPases) e extrusão
de cálcio através da membrana plasmática por intermédio de Ca2+-ATPases.
Angiotensina II – Efeito Sistêmico
A angiotensina II é um potente vasoconstritor e desempenha um importante papel na
manutenção da pressão arterial, particularmente nos estados de hipovolemia. Assim, nas
situações de contração do volume extracelular, a angiotensina II tem duas funções
primordiais: 1) manter a curto prazo a pressão sangüínea através da vasoconstrição e 2)
corrigir o volume extracelular, valendo-se de sua ação antinatriurétrica, seja diretamente, no
túbulo proximal, ou indiretamente, através da aldosterona. Nas células da zona glomerulosa
da adrenal, a ativação dos receptores de AII promove elevações do [Ca2+]i e da atividade da
proteíno-quinase C (PKC), responsáveis pela produção e secreção de aldosterona. Após sua
secreção, a aldosterona atinge o rim, via circulação, atuando principalmente sobre as células
do ducto coletor cortical, estimulando a reabsorção de Na+ e a secreção de K+ (ver Capítulo
5). O resultado desses efeitos é a retenção de Na+ e de água, o que tende a trazer o volume
extracelular e a pressão arterial de volta aos níveis normais.
Angiotensina II – Ação Intra-renal
O rim tem a capacidade de sintetizar angiotensina II de modo independente dos
componentes sistêmicos. Assim, a AII que atua no rim pode ser derivada tanto da circulação
sistêmica como da produção local. Além da vasoconstrição das artérias intra-renais, a AII
possui importantes efeitos sobre a contração da célula mesangial, sobre a absorção tubular de
sódio, sobre a proliferação e o reparo celulares e a expansão de matriz extracelular, além de
10
influenciar a síntese de outros hormônios e substâncias vasoativas, como por exemplo as
prostaglandinas e o NO.
Efeito da AII sobre a hemodinâmica renal e glomerular
A angiotensina II exerce profunda influência sobre a hemodinâmica glomerular e as
funções tubulares, constituindo-se um fator de primordial importância na auto-regulação do
fluxo plasmático renal, e consequentemente do RFG, ante variações na pressão de perfusão
renal. Na verdade, em situações de baixa perfusão, a preservação da auto-regulação normal do
RFG depende fundamentalmente de AII e a administração de inibidores da ECA nesses casos,
resulta com freqüência em uma marcante redução do RFG (ver Capítulo 1).
A AII eleva a resistência vascular renal, levando à diminuição do FPR, com redução
proporcionalmente menor do RFG. Isso ocorre porque a AII apresenta uma relativa
seletividade pela arteríola eferente em relação à aferente, promovendo um aumento
desproporcional da resistência da arteríola eferente, o que provoca uma elevação na pressão
hidráulica do capilar glomerular e, consequentemente, um aumento da pressão efetiva média
de ultrafiltração (PUF) (ver Capítulo 1). Esse aumento da PUF contrabalança o efeito do
decréscimo do FPR induzido pela AII, permitindo que o RFG se mantenha quase inalterada,
levando assim a um aumento da fração de filtração. Essa efeito seletivo da AII sobre a
arteríola eferente pode ser devido a uma diferença entre esses dois vasos com relação à
produção de prostaglandinas vasodilatadoras, uma vez que já foi demonstrada a produção de
prostaciclina pela arteríola aferente e não pela eferente após estímulo com AII. Além disso, a
AII aumenta a resistência de ambos os vasos na presença de inibidores da síntese de
prostaglandinas.
Outra importante ação de AII com repercussão sobre o RFG ocorre na célula
mesangial. Estas células apresentam filamentos contráteis, possuem grande quantidade de
11
receptores para AII e contraem-se quando estimuladas pela AII. A contração das células
mesangiais sabidamente interfere com o RFG, devido à redução resultante da superfície
filtrante do glomérulo e portanto do coeficiente de ultrafiltração glomerular (Kf) (ver Capítulo
1). Assim, o efeito final da AII sobre o RFG é resultado de múltiplos fatores, incluindo a
redução do FPR, o aumento da PUF e a redução do Kf. Portanto, o resultado final dependerá de
como e quanto esses fatores estão respondendo à AII. De modo geral, a administração aguda
de doses farmacológicas de AII em animais de laboratório tem pouco efeito sobre o RFG,
levando portanto a uma elevação da fração de filtração.
Efeito da AII sobre a função tubular
Alterações no RFG levam a um reajuste proporcional na taxa de reabsorção de fluido
tubular proximal, um fenômeno chamado de balanço túbulo-glomerular (ver Capítulo 5). No
túbulo proximal, acredita-se que esse equilíbrio resulte de alterações nas forças de Starling
(ver Capítulo 9) peritubulares, por sua vez influenciadas pelos hormônios que agem sobre os
determinantes da filtração glomerular. A pressão oncótica dos capilares peritubulares
influencia de forma marcante a reabsorção do fluido proximal tubular. Assim, o aumento da
fração de filtração com a conseqüente elevação da pressão oncótica pós-glomerular
promovido pela AII leva ao aumento da reabsorção de fluido isotônico pelo túbulo proximal e
é responsável, pelo menos em parte, pela redução substancial na excreção renal de NaCl que
se observa durante a ativação do SRA. Em oposição a esse efeito antinatriurético, a elevação
da pressão arterial sistêmica induzida pela AII pode aumentar a excreção de sódio. Essa
"natriurese pressórica" (ver Capítulo 10) pode estar relacionada, em parte, a alterações
mudanças nas forças de Starling peritubulares e no interstício renal, podendo funcionar como
modulador da retenção de sódio estimulada pela AII.
12
Além de aumentar a absorção de sódio via fatores hemodinâmicos, a AII também
aumenta diretamente o transporte tubular de sódio no túbulo proximal, cujas células possuem
receptores para AII. Este efeito é mediado principalmente por um aumento da atividade do
trocador Na-H, essencial à secreção tubular de íons H+ (ver Capítulo 12) e responsável por
parcela substancial da absorção proximal de sódio (ver Capítulo 5).
Em resumo, os efeitos antinatriurétricos da AII são decorrentes da sua modulação do
balanço túbulo-glomerular, aumento do transporte tubular de sódio, bicarbonato e cloreto e
estímulo da secreção de íon hidrogênio no túbulo proximal.
Papel da AII na proliferação celular
Além de sua ação vasoconstritora, a angiotensina II também possui efeito
proliferativo, induzindo hipertrofia e hiperplasia. Este efeito, inicialmente verificado em
células musculares lisas e miócitos, favorece também o desenvolvimento de hipertrofia
cardíaca na hipertensão arterial. Atualmente sabe-se que o efeito proliferativo da AII também
ocorre em outros tipos celulares incluindo as células mesangiais. Paralelamente, a AII
estimula a síntese de diversos fatores de crescimento, como por exemplo o “platelet-derived
growth factor” (PDGF), “transforming growth factor β” (TGF-β) e o “fibroblast growth
factor” (FGF) induzindo, além do crescimento celular, aumento da produção de matriz
extracelular.
Aldosterona
A aldosterona é sintetizada pelas células da zona glomerulosa da córtex adrenal a
partir do colesterol. A AII é o principal regulador fisiológico da biossíntese e secreção de
aldosterona, podendo haver ainda um efeito direto, estimulador, dos íons K+. Sua ação
envolve o aumento da absorção de sódio e da secreção de potássio e hidrogênio. A
13
aldosterona exerce a maioria de seus efeitos celulares mediante a ocupação de um receptor
intracelular, o receptor mineralocorticóide ou tipo I. O complexo receptor-aldosterona é então
transportado ao interior do núcleo, ligando-se a locais específicos da cromatina e estimulando
a transcrição de mRNAs de proteínas específicas, particularmente o da bomba Na/K/ATPase.
No rim, as células responsivas à aldosterona estão localizadas no túbulo distal final e
ductos coletores cortical e medular. A célula envolvida na absorção de sódio mediada pela
aldosterona é a célula principal (ver Capítulo 5). Por agir nos segmentos finais do néfron, a
aldosterona modula a absorção de apenas 2 a 3% da carga filtrada de sódio. Esse pequeno
montante é no entanto essencial ao ajuste fino do balanço do sódio do organismo (ver
Capítulo 5).
Na célula principal, o sódio difunde passivamente através da membrana luminal por
um canal de sódio que é especificamente inibido por baixas doses do diurético amiloride (ver
Capítulo 6). O efeito da aldosterona consiste em aumentar o número e a atividade (tempo de
abertura e capacidade de transporte) desses canais, aumentando a absorção de Na+, além de
aumentar a síntese de bombas Na/K/ATPase, responsáveis por transferir Na+ do citoplasma
para o lado peritubular.
Além de aumentar a absorção de sódio, a aldosterona também aumenta a secreção de
potássio. A captação de Na+ luminal despolariza a membrana, aumentando ainda mais o
gradiente elétrico favorável ao transporte de K+ da célula para a luz tubular. Por outro lado, a
estimulação da atividade da Na/K-ATPase pelo mineralocorticóide aumenta a captação de K+
através da membrana baso-lateral para o interior da célula. Por último, a aldosterona também
aumenta a condutância luminal de potássio, possivelmente via ativação da canais de potássio
responsáveis pela via de secreção de K+. O resultado final desses efeitos é um aumento na
secreção de K+(ver Capítulo 5).
14
A aldosterona pode influenciar a secreção de H+ de modo direto ou indireto.
Diretamente, por sua ação na célula principal, promovendo a absorção de sódio e criando um
gradiente elétrico favorável para as células intercaladas α secretarem hidrogênio. Além disso,
há a possibilidade de um efeito sobre a atividade da bomba H+-ATPase localizada na
membrana luminal dessas células. Indiretamente, a hipocalemia induzida pela aldosterona
estimula a síntese de amônia pelo túbulo proximal.
Em resumo, a aldosterona, por sua ação nas células principais do túbulo coletor,
promove a absorção de sódio e a secreção de potássio e hidrogênio, constituindo-se em
importante mecanismo de regulação fina do balanço eletrolítico.
Finalmente, vale salientar que o sistema renina-angiotensina-aldosterona, por atuar
simultaneamente em vários mecanismos homeostáticos, apresenta uma interrelação complexa
não só entre os seus próprios componentes, mas também com outros hormônios e sistemas. A
Figura 2-3 resume as principais funções e interações do SRAA.
Papel Fisiopatológico do SRAA
Hipertensão
Por suas ações vasoconstritora e antinatriurétrica, a angiotensina II participa de
hemodinâmica glomerulartransporte epitelialcélula mesangial
aldosterona
excreção renal de potássio
proliferação celular
retenção de Na+
volume extracelular
pressão de perfusão renal
atividadesimpática
aparelho justaglomerular
liberação de renina
catecolaminas
feedback túbulo-glomerular(mácula densa)
ANGIOTENSINA II
Figura 2-3: Sistema renina-angiotensina-aldosterona e suas interelações
15
maneira fundamental na gênese de algumas formas de hipertensão, particularmente a
hipertensão renovascular e a hipertensão arterial malígna. O envolvimento do SRAA em
outras formas de hipertensão como na hipertensão arterial essencial também ocorre em uma
parcela dos pacientes (~20%), nos quais a atividade da renina plasmática encontra-se elevada.
• Nefropatia diabética
A nefropatia diabética é basicamente caracterizada por hipertrofia renal e glomerular,
proteinúria persistente, progressivo declínio do RFG e hipertensão. A angiotensina II
contribui substancialmente à genêse dessa patologia, por promover vasoconstrição
predominante da arteríola eferente, e consequentemente hipertensão glomerular. Além dos
efeitos hemodinâmicos, é crescente a evidência de sua participação na hipertrofia glomerular,
proliferação mesangial e expansão da matriz extracelular, fatores que contribuem para a
destruição progressiva dos glomérulos (ver Capítulo 15).
Além da nefropatia diabética, o sistema renina-angiotensina pode estar envolvido em
outras nefropatias crônicas, também caracterizadas caracterizadas por hipertensão glomerular
e proteinúria.
• Insuficiência renal aguda
Há muito que se especula sobre um possível papel da AII na insuficiência renal aguda
(IRA) (ver Capítulo 14). Em muitos casos, a IRA evolui com hipertrofia do aparelho
justaglomerular, que se correlaciona com níveis aumentados de renina e angiotensina. Além
disso, a vasoconstrição intrarenal, o edema e a necrose tubular, alterações freqüentes na IRA,
também podem ser observadas após a administração de doses farmacológicas de AII em
animais de laboratório. A participação da AII na fisiopatologia da IRA tem sido sugerida em
vários modelos experimentais, incluindo a IRA nefrotóxica pelo glicerol, cloreto de mercúrio,
16
aminoglicosídeos e ciclosporina, bem como na obstrução ureteral, isquemia renal e nefrite por
soro nefrotóxico.
Em resumo, o SRAA desempenha importante papel na manutenção da homeostase
hidroeletrolítica e no controle na pressão arterial. No entanto, à semelhança do que ocorre
com outros sistemas multifuncionais, a hiperatividade do SRAA pode resultar em processos
fisiopatológicos importantes, particularmente na progressão das doenças renais crônicas.
2) METABÓLITOS DO ÁCIDO ARACDÔNICO
Prostaglandinas, tromboxanos, leucotrienos, lipoxinas e epoxigenases, hormônios
produzidos localmente (autacóides) e coletivamente chamados de eicosanóides, são derivados
de ácidos graxos poliinsaturados, sendo o ácido aracdônico (AA) o principal substrato para a
síntese dessas substâncias. O AA é formado no fígado pela metabolização do ácido linoleico,
um ácido graxo essencial, ou seja, tem na dieta sua única fonte. Após sua formação, ele é
transportado no plasma ligado a lipoproteínas de baixa densidade (forma esterificada do AA)
e albumina (forma não-esterificada do AA). A fração esterificada é posteriormente captada
pelas células e armazenada nos fosfolipídes da membrana plasmática, principalmente na
fração fosfatidil-inositol, de onde o AA é liberado por ação hormonal. Estímulos específicos
ou perturbações físicas ou químicas inespecíficas da membrana resultam na ativação de
fosfolipases (PL) celulares, principalmente PLA2 e PLC, o que leva à clivagem de
fosfolípides ligados à membrana celular, resultando na liberação de AA. A transformação
bioquímica do AA resulta em uma série de produtos biologicamente ativos. Três vias
principais são responsáveis pela metabolização do AA, com formação de produtos ativos: a
via da ciclooxigenase, que leva à formação das prostaglandinas (PGs), a via da lipooxigenase,
que resulta na síntese dos ácidos mono, di- e tri-hidroxi-eicosatetraenóico (HETEs) e dos
17
leucotrienos (LTs) e a oxigenação mediada pelo citocromo P-450 pelas epoxigenases, que
leva à formação dos ácidos epóxi-eicosatrienóicos (ácidos graxos ω-hidroxilados). A Figura
2-4 mostra de modo esquemático essas 3 vias.
Figura 2-4: Vias de metabolização do ácido aracdônico
O sistema enzimático da ciclooxigenase é a mais importante via de metabolização do
AA no rim. Esse complexo enzimático transforma o AA em endoperóxidos intermediários
instáveis (PGG2 e PGH2), que são convertidos posteriormente em metabólitos ativos: a PGI2
(prostaciclina), a PGE2, a PGD2, a PGF2α e o tromboxano A2 (TxA2).
Os locais de maior produção de PGs no córtex renal são os vasos, o glomérulo e o
túbulo coletor cortical. Com exceção da PGI2, a síntese de PGs é bem maior na medula renal,
sendo responsável em sua maior parte os túbulos coletores medulares, as células intersticiais e
talvez a porção espessa ascendente da alça de Henle. Nos humanos, o glomérulo e as células
FOSFOLIPASESA2 (PL2) e C (PLC)
LEUCOTRIENOSB4, C4, D4, E4
CICLOOXIGENASE LIPOOXIGENASECITOCROMO P-450
DHETsac. graxos ωωωω-hidroxilados
PROSTAGLANDINASTROMBOXANES
FOSFOLÍPIDES DE MEMBRANA
18
mesangiais produzem primariamente PGI2, além de quantidades menores de PGE2, PGF2 e
tromboxano. A síntese das PGs pode ser estimulada pela suplementação dietética do ácido
linoléico, por agentes que reforçam a atividade das fosfolipases, como a bradicinina, a
vasopressina, a AII, o fator ativador de plaquetas (PAF) e as catecolaminas, por condições
patológicas que aumentam a atividade da ciclooxigenase, como a obstrução venosa ou
ureteral, e por agentes farmacológicos como os inibidores da ECA, a furosemida e o manitol.
O cAMP inibe a produção de PGE2, provavelmente através de um efeito sobre a PLA2. A
aspirina em altas doses inibe, irreversivelmente, a atividade da ciclooxigenase, enquanto os
antiinflamatórios não hormonais a inibem de forma reversível. As PGs e o tromboxano têm
baixa meia-vida, de 3 a 5 minutos e de 30 segundos, respectivamente. Em sua maioria, a
degradação desses compostos ocorre na córtex renal, resultando na formação de ceto-
análogos, seguida de ω- e β-oxidações.
Os produtos da ciclooxigenase possuem várias ações no rim, sendo a principal a
mediação ou modulação da ação fisiológica de outros hormônios ou autacóides,
particularmente sobre o tônus vascular, sobre o funcionamento do glomérulo e da célula
mesangial e sobre a absorção de água e sódio. De forma geral, as prostaglandinas podem ser
divididas em vasodilatadoras (PGE2, PGF2 e PGI2) e vasoconstritoras (TxA2 e PGF2α). Em
condições normais, a ação vascular desses compostos quase não interfere com a regulação do
tônus vascular renal, como se pode inferir pelo fato de que o uso sistêmico de
antiinflamatórios altera minimamente e de forma transitória o fluxo sangüíneo renal.
Entretanto, em situações em que há comprometimento do fluxo, com aumento do tônus
vascular, o uso de antiinflamatórios acarreta um marcante decréscimo do FPR e FG,
presumivelmente pela inibição da síntese de PGs vasodilatadoras. Existem muitas evidências
de que vasoconstritores como a AII, vasopressina, norepinefrina, bem como as condições que
estimulam a sua liberação, como a hipovolemia, a insuficiência cardíaca congestiva e a cirrose
19
hepática, induzem o aumento da produção de PGs vasodilatadoras que, por sua vez,
contrabalançam as ações vasoconstritoras daquelas substâncias, ajudando a preservar o FG e o
FPR.
Além de sua influência sobre a resistência vascular, as PGs podem afetar o RFG
mediante sua ação sobre as células mesangiais. Essas células contraem-se em resposta a
vários agentes, incluindo as catecolaminas, a AII, a vasopressina e o fator ativador de
plaquetas, levando a uma diminuição do Kf. Essa contração é antagonizada pela síntese e
liberação de PGE2 e PGI2, que ocorrem nas células mesangiais em resposta a esses agentes
constritores. As PGs também interferem na filtração glomerular através da modulação da
liberação de renina. Essa ação é direta e não requer a participação de receptores de
estiramento, mácula densa ou estímulo β-adrenérgico, constituindo-se assim em uma alça de
retroalimentação entre dois sistemas hormonais (SRA e PGs).
A inibição das PGs reduz preferencialmente o fluxo sangüíneo medular, sugerindo um
efeito fisiológico predominante sobre essa região. A administração de PGE2 aumenta a
excreção de sódio por uma série de efeitos, o principal dos quais parece ser uma inibição
direta de seu transporte tubular na porção espessa ascendente da alça de Henle, no túbulo
coletor e, possivelmente, no túbulo proximal. Além da natriurese, as PGs também afetam a
capacidade de concentração urinária através de três mecanismos: 1) redução do gradiente
osmótico medular, devido à inibição do transporte de sódio na porção espessa da alça de
Henle (ver Capítulo 4). 2) aumento do fluxo sangüíneo medular, resultando em uma
“lavagem” da medula. 3) inibição do HAD, reduzindo a geração do cAMP e estimulando a
atividade da PKC. Como a vasopressina promove a formação de PGs, ela acaba inibindo, num
processo de retroalimentação negativa, sua própria ação tubular. 4) inibição da absorção de
uréia na porção final dos túbulos coletores, reduzindo portanto o gradiente osmótico medular.
20
Em resumo, as PGSs, derivadas do metabolismo do ácido aracdônico pela via da
ciclooxigenase, têm pouco efeito sobre a função renal normal, sendo porém de fundamental
importância como moduladores do tônus vascular em situações em que há estímulo para a
produção de substâncias vasoconstritoras (IRA, desidratação, hemorragia, etc.). Esses efeitos
tornam-se evidentes quando sua síntese é inibida na vigência desses distúrbios. As PGs
influenciam também as funções da célula mesangial e o transporte de água e sódio ao longo
do néfron.
3) ENDOTELINA
Em 1988, foi isolada e purificada uma substância derivada do endotélio, cujo poder
vasoconstritor chegava a ser 10 vezes maior do que o da angiotensina II, o que a tornava o
mais potente vasoconstritor endógeno até então descoberto. Essa substância, demonstrou-se,
era um peptídeo formado por 21 aminoácidos, tendo sido denominada endotelina (ET). Sabe-
se atualmente que existe uma família de endotelinas, designadas ET-1, ET-2, ET-3 e
endotelina-β, sendo esta última também chamada de constritor intestinal vasoativo.
Além de sua ação constritora na musculatura lisa vascular, a ET influencia o transporte
renal de íons, regula a síntese de eicosanóides e modula a liberação de renina e do fator atrial
natriurético, entre outros efeitos.
A endotelina pode ser sintetizada em outros locais além das células endoteliais,
incluindo o rim, pulmão, baço, músculo esquelético e cérebro. No rim, a produção e liberação
de endotelina foram detectadas em culturas das várias linhagens de células renais de
diferentes animais. Dentre elas, merece destaque a síntese e liberação de ET pelas células
mesangiais. Fatores associados a processos inflamatórios são capazes de estimular a síntese e
liberação de ET por essas células, destacando-se o (TGF-β1), o fator de necrose tumoral
21
(TNF) e a trombina. Além disso, a bradicinina, a epinefrina, a interleucina-1 e a vasopressina
são também potenciais estimuladores da produção de ET.
A endotelina age pela interação com receptores específicos (ETA e ETB), ligados à
proteína G e que, tal como outros vasoconstritores, utilizam como vias de transdução de sinais
o aumento do cálcio intracelular e a geração de inositol-trifostato. Embora os receptores ETA
estejam localizados tipicamente nas células do músculo liso vascular e os receptores ETB nas
células endoteliais, eles são distribuídos de forma abundante em todo o organismo. No rim,
verificou-se que o mRNA do receptor ETB é encontrado principalmente nos ductos coletores e
glomérulos, enquanto o mRNA do receptor ETA aparece no sistema vascular e também nos
glomérulos. O receptor ETA medeia a maior parte da vasoconstrição induzida pela ET-1,
enquanto o receptor ETB está envolvido na vasodilatação dependente do endotélio, embora o
estímulo com agonistas seletivos possa induzir vasoconstrição.
Têm sido descritas inúmeras atividades biológicas da ET-1, incluindo vasoconstrição,
efeito cronotrópico e inotrópico, broncoconstrição, mitogênese, liberação de renina e função
neurotransmissora. A circulação renal é particularmente suscetível aos efeitos
vasoconstritores da administração exógena de ET-1. Além disso, a ET-1 contrai a célula
mesangial, reduzindo o Kf e aumentando a resistência das arteríolas aferente e eferente, o que
reduz o fluxo plasmático renal sem alterar a pressão hidráulica intraglomerular.
Assim, a endotelina, além de seu efeito vasoconstritor sistêmico e renal, inflencia o
transporte de fluido e eletrólitos, estimula a liberação de catecolaminas, aldosterona e renina,
além de exercer um efeito mitogênico e proinflamatório.
4) SISTEMA CALICREÍNA-CININAS
O sistema calicreína-cininas é um complexo de várias enzimas que regulam os níveis
de peptídeos biologicamnte ativos denominados cininas. Seus principais componentes são a
22
enzima calicreína, o substrato cininogênio, os hormônios efetores lisil-bradicinina e
bradicinina e as enzimas metabolizadoras cininases, dentre as quais as mais importantes são a
cininase I e a cininase II (que também vem a ser a enzima conversora de angiotensina I, ECA)
e a endopeptidase neutra. São descritos dois sistemas calicreína-cininas distintos,
caracterizados com base na enzima calicreína, que existe nas formas plasmática e tissular (ou
glandular).
A calicreína plasmática parece desempenhar uma relevante função no processo de
ativação da via intrínseca da coagulação, utilizando como substrato um cininogênio de alto
peso molecular, do qual libera um nonapeptídeo, a bradicinina. A calicreína tissular, por sua
vez, age sobre cininogênios de alto ou baixo peso molecular, liberando o decapeptídeo lisil-
bradicinina ou calidina.
No rim, a forma tissular da calicreína é encontrada principalmente em células dos
túbulos conectores e do ducto coletor cortical, cuja proximidade anatômica com o aparelho
justaglomerular tem sido observada de forma consistente, sugerindo que o sistema calicreína-
cinina possa estar envolvido na regulação do FPR, do RFG e da liberação de renina.
A ativação da calicreína tissular no ducto coletor cortical inicia uma cascata que gera
as cininas bioativas. Seus principais efeitos celulares são mediados pela ativação da PKC e
pela produção de PGE2. No rim, vários efeitos têm sido atribuídos às cininas, entre os quais o
aumento do fluxo sangüíneo renal total, particularmente na medula interna, a mediação da
hiperfiltração induzida por uma dieta hiperproteica, o estímulo à liberação de renina e a
inibição, no túbulo coletor, da absorção de sódio e do efeito do HAD. Este último é mediado
pela supressão da sintese de cAMP, seja diretamente, através da ativação da PKC, seja
indiretamente, através do estímulo à produção de PGE2. As cininas também estimulam a
produção de PGE2 por parte das células do interstício renal, aumentando a concentração desse
composto na medula renal. Esse aumento da produção de PGE2 pelas células intersticiais
23
reforça ainda mais a ação diurética e natriurética das cininas, podendo ainda influir na
vasodilatação renal promovida por esses compostos. Por outro lado, a ação vasodilatadora das
cininas é em grande parte dependente da presença do endotélio e é mediada pelo óxido
nítrico.
As cininas são rapidamente inativadas por um grupo de peptidases coletivamente
denominadas cininases. As principais são a cininase I, a cininase II (ECA) e a endopeptidase
neutra ou encefalinase. A cininase I está presente no plasma e é responsável pela inativação
da calidina e bradicinina. A cininase II, encontrada no glomérulo e ao longo de todo o túbulo
proximal, remove dipeptídeos carboxi-terminais das cininas. A encefalinase parece ser tão
importante quanto a cininase II para a degradação das cininas no rim.
Há sugestões de que durante alterações na ingestão de sódio ou na pressão de perfusão,
o sistema calicreína-cinina renal pode contrabalançar o efeito vasoconstritor da angiotensina
II e manter constante a resistência vascular renal. Entretanto, apesar do grande progresso que
se fez nos últimos anos na localização e esclarecimento do sistema calicreína-cinina renal, as
informações ainda são escassas com relação aos eventos fisiológicos e fisiopatológicos
induzidos no rim por esse sistema.
O sistema calicreína-cinina pode desempenhar um papel fisiopatológico na cirrose
hepática, na qual ocorre redução dos níveis de cininas circulantes, o que poderia interferir na
regulação do fluxo plasmático renal e na excreção renal de sódio. Outra situação em que esse
sistema parece influir é a hipertensão arterial, uma vez que a redução dos níveis de cininas
pode contribuir para a retenção de sódio e portanto para a elevação da pressão arterial. Além
disso, na vigência de tratamento com inibidores da enzima de conversão (ou cininase II),
ocorre uma diminuição simultânea da síntese de angiotensina II e da degradação de cininas,
podendo ambos os efeitos contribuir para a eficiência do tratamento anti-hipertensivo.
24
Em resumo, o sistema das cininas influencia a hemodinâmica renal, por sua ação
vasodilatadora, bem como o transporte renal de sódio e água, com conseqüente ação diurética
e natriurétrica. Esses efeitos são, pelo menos em parte, mediados pela PGE2 (diurese e
natriurese) e pelo óxido nítrico (vasodilatação). Sua principal interação com o sistema renina-
angiotensina é determinada pela enzima conversora ou cininase II, que além de liberar
angiotensina II, também degrada cininas.
5) ÓXIDO NÍTRICO
O óxido nítrico (NO), anteriormente descrito como fator relaxante derivado do
endotélio (EDRF), é um radical livre com potente efeito vasodilatador. Sua síntese é iniciada
a partir a partir do substrato L-arginina, pela ação da enzima óxido nítrico sintase (NOS),
resultando na formação de NO e um co-produto, a L-citrulina.
Sendo um radical livre, o NO reage rapidamente com o oxigênio tanto na fase gasosa
como em solução aquosa, formando o gás dióxido de nitrogênio na forma gasosa (NO2) ou
NO2- e NO3
- em solução. Mais estáveis, o NO2- e o NO3
-podem ser dosados e servem como
índice de produção de NO.
Classicamente, a enzima NO sintase é dividida em duas classes funcionais, uma
constitutiva (cNOS) e a outra induzível (iNOS). A cNOS é uma forma da enzima que, embora
esteja sempre presente em determinadas células, permanece quiescente até que algum
estímulo (acetilcolina, bradicinina, “sheer stress”, etc) a ative através da elevação do cálcio
intracelular, o qual leva a formação do complexo cálcio-calmodulina. Há duas formas
conhecidas de cNOS: a endotelial (eNOS), presente nas células endoteliais e a neuronal
(nNOS ou bNOS, sendo que a letra b refere-se a cérebro, brain em inglês). A forma induzível
(iNOS) por outro lado, é sintetizada “de novo” quando da ocorrência de um estímulo
específico, em geral um processo inflamatório. Sua síntese envolve um processo de
25
transcrição, ou seja síntese do mRNA específico, a partir de determinados estímulos,
incluindo endoxinas bacterianas, citocinas, etc. O estímulo para a síntese do mRNA da iNOS
também depende de uma elevação da [Ca2+]i. porém em concentrações muito inferiores
menores àquelas necessárias à ativaçao das cNOS. A tabela 4 apresenta a distribuição da NOS
em células e tecidos.
Tabela 4: Presença de cNOS e iNOS em células e tecidos
Forma Constitutiva (eNOS e nNOS) Forma Induzível (iNOS)
endotélio vascular endotélio vascular
mastócitos músculo liso vascular
adrenal endocárdio
endocárdio miocárdio
miocárdio hepatócitos
nervos periféricos macrófagos
plaquetas linfócitos
células mesangiais neutrófilos
cérebro fibroblastos
células mesangiais
As NOS são os alvos preferidos de inibidores farmacológicos da síntese de NO.
Análogos do seu substrato (L-arginina), como por exemplo a nitro-L-arginina-metilester (L-
NAME), e a N�-monometil-L-arginina (L-NMMA), inibem competitivamente a síntese do
NO, atuando tanto sobre a forma constitutiva como sobre a forma induzível da enzima.
26
Após sua síntese, o NO exerce seus efeitos através de diversas vias, sendo a mais
comum a ativação da enzima guanilato ciclase, responsável pela formação de GMP cíclico
(cGMP). O cGMP, por sua vez, induz modificações na concentração de cálcio intracelular
bem como na atividade de várias proteíno-quinases, resultando na maioria dos efeitos do NO,
destacando-se a vasodilatação, atividade antiproliferativa, inibição plaquetária e aneuro-
transmissão.
No rim, ocorre síntese de NO verificada nas células mesangiais e endoteliais do
glomérulo, na mácula densa, no aparelho juxtaglomerular, no túbulos proximal e no túbulo
coletor (cortical, medular externo e medular interno.
O NO participa na manutenção do FPR e do RFG em condições basais. Esse efeito é
facilmente comprovado pelo bloqueio, agudo ou crônico, da síntese de NO, que repercute
sobre a microcirculação renal ,com aumento das resistências arteriolares aferente e eferente e
redução do coeficiente de ultrafiltração glomerular Kf, o qual pode estar relacionado à
diminuição da produção de NO pelas células mesangiais.
São também verificados efeitos do NO sobre o transporte tubular de solutos, uma vez
que estímulos para a produção endógena de NO são acompanhados por aumentos do FPR e da
diurese, sem no entanto afetar a pressão arterial média ou o RFG.
O NO parece ter participação na fisiopatologia de diversas doenças renais, embora a
natureza dessa participação seja controversa. Além de sua ação vasodilatadora, o NO exerce
outras funções, incluindo a inibição da agregação plaquetária, a participação em reações
imunológicas, e um efeito citotóxico, que pode ter importância na defesa contra infecções e
células tumorais. Por apresentar múltiplas funções, o NO pode tanto exercer um papel protetor
como participar da patogênese de doenças renais, como por exemplo a nefropatia diabética.
Por outro lado, sendo o NO um potente vasodilatador, é de se esperar que a sua
inibição tenha papel importante em vários eventos caracterizados por vasoconstrição. Entre
27
esses eventos, destaca-se a pré-eclampsia, uma patologia causada primariamente por dano da
célula endotelial e caracterizada por hipertensão, proteinúria e trombose glomerular,
fenômenos que podem estar relacionados à deficiência de produção de NO. O NO pode
também estar relacionado a outras formas de hipertensão arterial. Estudos experimentais
mostram que a inibição crônica do NO em ratos causa hipertensão sistêmica severa, enquanto
o estímulo à sua produção (via administração de L-arginina) em um modelo de hipertensão
arterial (ratos Dahl sal-sensíveis), causou redução significante da pressão arterial. Por outro
lado, há sugestões de que o NO seria um mediador em potencial da hipotensão associada ao
choque séptico, uma vez que a infusão de endotoxina bacteriana promove um aumento
acentuado nos níveis séricos e urinários de NO2- e NO3
-, um efeito provavelmente mediado
pela indução da iNOS.
Em resumo, diversas células renais são capazes de sintetizar o óxido nítrico, tanto na
sua forma constitutiva como na induzível. Com potente ação vasodilatadora, o NO participa
da controle do tonus vascular e portando da manutenção da hemodinâmica intrarenal. É
provável que o NO participe da gênese de diversas patologias, destacando-se a hipertensão
arterial, a pré-eclampsia e a nefropatia diabética.
6) FATOR NATRIURÉTICO ATRIAL
O fator natriurético atrial (ANF) ou peptídeo natriurético atrial (ANP), é um peptídeo
vasoativo sintetizado no coração e cérebro. O ANF cardíaco é secretado pelas células
atriais, na vigência de vários estímulos, sendo o principal deles o estiramento cardíaco,
decorrente de um aumento do volume extracelular, como por exemplo na sobrecarga de
sal e água e na insuficiência cardíaca congestiva.
Com ação endócrina, o ANF apresenta vários efeitos biológicos os quais dependem de
sua interação com receptores específicos, presentes no rim, glândula supra-renal, cérebro e
28
vasculatura. Três tipos de receptores para ANF são descritos, sendo que dois deles são
expressos no rim, ANP-R1 e ANP-R3. Os receptores ANP-R1 são os responsáveis pelas
ações biológicas do ANF, mediadas pelo aumento do cGMP, após a interação hormônio-
receptor. Os receptores ANP-R3, também conhecidos como receptores C, não induzem
efeitos biológicos, mas são receptores de “clearance”, ou seja, são responsáveis pela
depuração do ANF da circulação, controlando portanto os níveis séricos do hormônio.
No rim, após a interação com os receptores ANP-R1, o ANF induz um aumento rápido
e sustentado do RFG, um evento que freqüentemente ocorre na vigência de redução da
pressão arterial, sugerindo uma vasodilatação predominante da arteríola aferente em
relação à da arteríola eferente. Em conseqüência do aumento do RFG e também do FPR,
ocorre aumento do volume urinário e da natriurese. Paralelamente, o ANF suprime a
secreção de renina, o que irá resultar em redução dos níveis de AII e consequentemente de
aldosterona, contribuindo para o efeito natriurético do ANF. Pode ainda haver um efeito
direto do ANF sobre o transporte de sódio nas células do túbulo coletor.
O envolvimento do ANF na fisiopatologia de doenças renais ainda não está totalmente
elucidado. Na síndrome nefrótica os níveis do ANF podem estar baixos, devido a uma
redução no volume sanguíneo efetivo, ou altos, se houver retenção primária de sódio e
expansão da volemia (ver Capítulo 9). Em qualquer caso, a resposta renal ao ANF está
reduzida em relação ao normal. Na insuficiência cardíaca congestiva, os níveis circulantes
do ANF estão elevados, refletindo o aumento da pressão atrial, característico dessa
síndrome. Já na insuficiência renal crônica, os níveis de ANF acompanham o grau de
expansão da volemia, estando geralmente elevados no período pré-diálise e diminuindo
após o procedimento dialítico.
29
Em resumo, as ações biológicas do ANF no rim incluem a inibição da secreção de
renina e da síntese de aldosterona, a vasodilatação e o aumento do RFG e da taxa de
excreção urinária de água e sódio.
1
CAPÍTULO 3: PROTEINÚRIA
Roberto Zatz
Conforme discutido no Capítulo 1, os glomérulos desempenham uma função essencial ao organismo, que é a de gerar um ultrafiltrado de plasma, etapa inicial e indispensável do processo de formação de urina. Intimamente associada a essa atividade há outra importante função a ser considerada, implícita no próprio termo ultrafiltração. Trata-se da função de barreira do glomérulo, essencial a que o fluido que passa ao espaço de Bowman seja quase inteiramente desprovido de proteínas. Um cálculo aritmético simples é suficiente para ilustrar a importância dessa função: a um ritmo de filtração glomerular de 120 ml/min, típica de um adulto normal, mais de 170 litros de filtrado glomerular são formados a cada dia. A uma concentração de 7g/dl, isso corresponderia, se a parede glomerular fosse livremente permeável a qualquer soluto, à filtração de 11,9 kg de proteínas por dia, uma quantidade astronômica considerando-se que o total de proteínas presentes em todo o plasma não passa de 300 g. Ainda que os túbulos reabsorvessem a totalidade do que fosse filtrado (com enorme custo energético), não haveria como repor essas proteínas, as quais, uma vez reabsorvidas, não retornam à circulação, sendo ao invés disso hidrolisadas nos lisossomas das células tubulares (ver adiante). O fígado precisaria assim sintetizar novas proteínas a partir desses produtos de hidrólise, de modo a repor exatamente o que foi perdido com a filtração. Essa é uma tarefa claramente impossível, tendo em vista sua capacidade de síntese de proteínas, que não excede 30 ou 40 g por dia. É portanto essencial que os glomérulos funcionem como filtros quase perfeitos em termos de retenção de proteínas. Felizmente, é exatamente isso o que ocorre em condições normais: as proteínas são filtradas em quantidade ínfima, sendo sua concentração no filtrado glomerular milhares de vezes inferior à do plasma. Quando o glomérulo perde essa característica de barreira, as conseqüências podem ser muito sérias, conforme veremos a seguir. BASES ANATÔMICAS E FUNCIONAIS DA PERMEABILIDADE GLOMERULAR
A MACROMOLÉCULAS: A TEORIA DOS POROS O mecanismo pelo qual ocorre esse processo tão seletivo de ultrafiltração nos glomérulos (e também na maioria dos demais capilares do organismo) não é imediatamente óbvio e constituiu-se durante muito tempo em um mistério a desafiar os estudiosos da microcirculação. Por que a parede capilar é capaz de discriminar entre moléculas de solvente e pequenos solutos, de um lado, e macromoléculas, de outro? Uma das primeiras hipóteses formuladas para tentar explicar essa discriminação foi a de que as macromoléculas não conseguem, devido precisamente às suas dimensões, atravessar a parede glomerular. Essa hipótese foi reforçada pelo achado experimental, já nos anos 30, de que proteínas de peso molecular relativamente baixo, como a ovalbumina e fragmentos de imuniglobulinas
2
(proteínas de Bence-Jones) eram excretadas na urina, enquanto proteínas maiores, como a albumina plasmática, eram retidas nos glomérulos. Nos primeiros anos da década de 50, surgiu a primeira teoria consistente para explicar o mecanismo íntimo dessa discriminação. Em 1951, Pappenheimer e colaboradores desenvolveram a teoria dos poros, aplicável a todas as paredes capilares. De acordo com essa teoria, as paredes dos capilares em geral seriam atravessadas por poros cilíndricos, os quais deixariam passar livremente as moléculas de solvente, mas reteriam as de soluto de acordo com seus respectivos tamanhos. De acordo com essa concepção, os poros seriam todos de tamanho idêntico, teriam raios de cerca de 50 Å, e ocupariam uma ínfima parcela da área total da parede capilar (menos do que 1%). O fluxo de solvente ocorreria através desses poros obedecendo a princípios hidrodinâmicos básicos, como se se tratasse de um duto macroscópico tal como uma artéria (essa idéia faz sentido, já que as moléculas de água são dezenas de vezes menores do que os poros). Os solutos teriam sua passagem restringida de acordo com seu tamanho: a restrição cresce à medida em que as dimensões da molécula se aproximam das do poro, previa a teoria, enquanto moléculas de tamanho igual ou superior ao dos poros não passam de modo algum. Essa teoria logo encontrou respaldo em uma série de observações experimentais. Nesses experimentos, utilizavam-se “famílias” de macromoléculas sintéticas e não reabsorvidas pelos túbulos, tais como o dextran (um polímero da glicose), a polivinil pirrolidona e outros, cujo peso molecular podia ser variado dentro de uma ampla faixa. Um exemplo de um desses experimentos é demonstrado na Figura 3.1 onde o eixo das abscissas representa os raios moleculares de uma família de dextrans e o das ordenadas, os respectivos clearances
fracionais, que constituem uma medida da permeabilidade glomerular a essas moléculas1. Esse tipo de curva é denominada em inglês “sieving curve”, que poderia ser traduzida livremente por curva de restrição ou curva de discriminação de macromoléculas, representada esquematicamente na Figura 3.1. Pode-se verificar que o clearance fracional sempre diminui com o raio molecular, chegando a valores muito baixos quando estes se aproximam do raio previsto para os poros, de pouco mais de 40 Å. Havia no entanto uma pequena filtração de moléculas de raio superior a 50 Å, o que contrariava a teoria, que previa restrição total à passagem de moléculas de grandes dimensões, tais como as de imuniglobulinas. Note-se que, em razão de seu número reduzido, não se espera que esses poros "gigantes" exerçam grande influência sobre a filtração de água ou solutos pequenos, uma vez que oferecem a estas uma área minúscula comparada à dos poros menores. No entanto, a existência desses poros grandes influenciaria bastante a
1 O clearance fracional CFx de uma substância x é definido como CFx=Cx/RFG., onde Cx representa o clearance de x. Sendo este definido como Ux⋅V/Px, podemos escrever CFx=(Ux⋅V)/(Px⋅RFG). No caso de uma substância não reabsorvida ou secretada pelos túbulos, Ux⋅V (carga excretada) é idêntico a Fx⋅RFG (carga filtrada), onde Fx representa a concentração de x no filtrado glomerular. Substituindo, temos CFx=(Fx⋅RFG)/(Px⋅RFG) e portanto CFx=Fx/Px. Assim, o clearance fracional de uma substância x, não reabsorvida ou secretrada nos túbulos, é idêntico à relação entre as concentrações de x no filtrado glomerular e no plasma, o que é uma medida da permeabilidade glomerular a x.
3
Fig. 3.1 – Representação esquemática de uma curva de discriminação de moléculas de dextran neutro em um capilar. No eixo das abscissas está representado o raio molecular em Å, e nas ordenadas o clearance fracional correspondente (Cd/RFG)
filtração de moléculas de albumina, cujo diâmetro é pouco inferior ao dos poros menores. Influenciaria mais ainda a filtração de moléculas maiores, como as de imuniglobulinas, que não têm como atravessar os poros pequenos. É importante notar que, embora a teoria dos poros descreva de modo bastante razoável a filtração de moléculas neutras através das paredes glomerulares, não se conseguiu descrever até hoje, mesmo utilizando métodos sofisticados como a microscopia eletrônica, quaisquer estruturas que pudessem ser identificadas a esses poros. É provável que os “poros” não existam como as estruturas cilíndricas idealizadas nos anos 50, mas como passagens entre as longas moléculas fibrosas de colágeno e proteoglicans que constituem a membrana basal glomerular (ver adiante). Pode-se demonstrar que nesse caso o comportamento de curvas teóricas como a representada na Fig 3.1 não seria essencialmente modificado. O conceito de que existe nas paredes capilares uma população heterogênea de poros firmou-se e persiste até hoje, com pequenas modificações que não chegam a alterar sua essência. No entanto, a teoria dos poros, tal como formulada nos anos 50, ainda não conseguia explicar um achado experimental importante: a filtração de proteínas como a
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albumina plasmática ocorria em magnitude muito inferior àquela observada para moléculas sintéticas neutras, tais como o dextran, de peso molecular semelhante. Mais recentemente, estudos realizados com moléculas modificadas de dextran vieram ajudar a compreender melhor o significado daquelas observações. Quando à molécula de dextran se acrescentavam radicais sulfato (dextran sulfato), conferindo-lhe uma densa carga negativa, a magnitude de sua filtração através do glomérulo era sempre menor do que a de dextran neutro, o qual é desprovido de cargas elétricas. Essas moléculas eletronegativas de dextran assemelham-se às
Figura 3.2 – Representação esquemática das curvas de discriminação de dextran neutro e dextran sulfato, mostrando maior restrição à filtração deste último
das proteínas circulantes, que se comportam como poliânions no pH do meio interno. Em contraste com essas observações, a filtração de um terceiro tipo de dextran, a cuja molécula se agregavam radicais dietilaminoetil (DEAE), conferindo-lhe carga elétrica positiva, era sempre maior do que a do dextran neutro (Fig. 3.2). Como o tamanho e o formato das moléculas de dextran são pouco alterados pela adição de grupamentos sulfato ou DEAE, esses experimentos vieram indicar a existência de uma verdadeira barreira eletrostática na parede glomerular, capaz de repelir por interação eletrostática os poliânions circulantes, que constituem a maioria das moléculas de proteína do plasma. Essa barreira pode ser demonstrada por intermédio de marcadores de cargas negativas, como a ferritina cationizada, distribuindo-se pela parede glomerular desde o endotélio até os podócitos das células epiteliais. Essa verdadeira “nuvem” de cargas negativas é constituída de moléculas complexas de proteoglicanos, glicosaminoglicanos, colágeno e outras moléculas contendo grupamentos hidroxila e sulfato. ABSORÇÃO TUBULAR DE PROTEÍNAS FILTRADAS Em indivíduos normais, a pequena quantidade de proteínas que chega ao filtrado glomerular é quase totalmente reabsorvida nos túbulos por um processo de endocitose. As
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moléculas de proteínas ligam-se a receptores especiais existentes na superfície luminal da célula tubular. Esses receptores situam-se em regiões especializadas da membrana, denominadas "depressões revestidas" ("coated pits" em inglês), por terem sua porção citoplasmática revestida de clatrina, uma proteína cuja função exata é desconhecida, mas que está sempre presente nos processos de endocitose ligada a receptores. Essa região da membrana internaliza-se, formando vesículas que englobam as moléculas de proteína, ligadas aos respectivos receptores. As proteínas absorvidas (e também os receptores) são levadas a lisossomos, onde são hidrolisadas. Os aminoácidos resultantes dessa reação retornam à circulação através da membrana contraluminal, encerrando assim o processo de reabsorção. A imensa maioria das proteínas filtradas passa por essa sequência, sendo praticamente nula a quantidade de proteínas reabsorvidas como tal. Isso tem uma implicação importante: uma vez filtradas, as proteínas são necessariamente retiradas de circulação, sendo catabolizadas nos túbulos ou perdendo-se, normalmente em quantidades ínfimas, juntamente com a urina (proteinúria). Por essa razão, é sempre necessário repor as proteínas filtradas, o que é realizado pelo fígado. Normalmente, a filtração de proteínas impõe uma carga mínima ao fígado, graças à eficiência do glomérulo como barreira. Pela mesma razão, o processamento tubular de proteínas é normalmente responsável por uma pequena parte, cerca de 10%, do catabolismo total de albumina, a mais importante proteína plasmática. Embora esse processo seja saturável (Figura 3.3 B), a absorção proximal de proteínas pode crescer muito se a permeabilidade glomerular, e portanto a carga filtrada de proteínas, estiver muito aumentada. Nesse caso, a participação dos túbulos no catabolismo proteico do organismo tende a aumentar bastante. Como nesses casos ocorre também a perda de proteínas para a urina (proteinúria), o fígado é sobrecarregado, e sua capacidade de sintetizar novas proteínas pode ser ultrapassada. COMPOSIÇÃO NORMAL DAS PROTEÍNAS URINÁRIAS A eficácia da função de barreira do glomérulo, discriminando as moléculas de acordo com seu tamanho (Fig. 3.3A), garante uma filtração muito baixa de proteínas. Uma vez que a absorção proximal de proteínas dá conta da maior parte do pouco que é filtrado (Fig. 3.3B), a quantidade de proteínas de origem glomerular que chega à urina é normalmente muito pequena (Figura 3.3C). A albumina plasmática representa menos da metade dessas proteínas, sendo o restante constituído de moléculas de peso molecular mais baixo, que sofrem pouca restrição na parede glomerular. A essas proteínas de origem plasmática juntam-se outras de origem tubular, como a proteína de Tamm-Horsfall (não representada na Figura 3.3).
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A B C Figura 3.3- A, Curva de discriminação (clearance fracional de dextrans, Cd/RFG, em função do raio molecular). B, Absorção tubular de proteínas em função da carga filtrada. C, Cargas filtrada e excretada de proteínas em condições normais
IMPORTÂNCIA CLÍNICA DAS PROTEINÚRIAS Proteinúrias de baixa intensidade Como resultado das propriedades físicas da barreira glomerular e da absorção tubular, a quantidade de proteínas que chega à urina final em condições normais é extremamente pequena, da ordem de poucas dezenas de miligramas por dia. Qualquer aumento persistente da excreção urinária é em princípio de natureza patológica. Quando esse aumento é pequeno, não chega a acarretar qualquer repercussão sistêmica. A avaliação da proteinúria nesses casos pode no entanto constituir-se em um valioso sinal de alteração renal, que freqüentemente antecede as manifestações sistêmicas do processo, como acontece nas glomerulopatias. Por exemplo, uma parcela substancial de pacientes diabéticos desenvolve uma glomerulopatia após vários anos de evolução da doença. O primeiro sinal desse distúrbio é o aparecimento de uma proteinúria muito discreta porém persistente e, a longo prazo, progressiva. Se detectada a tempo, é possível tomar alguma providência no sentido de prevenir a progressão do processo. Se a glomerulopatia atingir estágios avançados, torna-se irreversível, havendo necessidade de diálise crônica ou transplante renal.Por essa razão, é cada vez mais comum a determinação da quantidade de albumina, além da do total de proteínas, na urina de pacientes em que se suspeita da presença de
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glomerulopatias. Além de ser mais sensível, esse exame, conhecido como microalbuminúria, é mais específico para a detecção precoce de anomalias da função de barreira glomerular, uma vez que a albumina está sempre presente na urina quando a proteinúria é de origem glomerular (ver adiante). Proteinúrias de média intensidade
Quando a excreção urinária de proteínas supera os 150 mg/dia, a proteinúria é convencionalmente considerada como sendo francamente patológica, tornando obrigatória uma avaliação renal mais detalhada tanto do ponto de vista morfológico quanto funcional. A intensidade da proteinúria nesses casos não traz muita informação quanto à natureza do processo patológico, sendo necessário utilizar outros métodos de avaliação, como a dosagem da creatinina no plasma, o exame ultrassonográfico dos rins e a biópsia renal. No entanto, a proteinúria pode ser bastante útil para acompanhar a recuperação de processos tais como as glomerulonefrites agudas, entre outras. Nesse caso, sabemos que houve regressão do processo quando a proteinúria desaparece por completo, enquanto a sua persistência tem um caráter ominoso, indicando a continuidade da doença. A proteinúria pode também ser usada como um indicador da progressão de processos crônicos, como as glomerulonefrites crônicas e a própria nefropatia diabética. Nesses casos, a proteinúria pode passar pelos estádios de baixa e média intensidade e chegar a níveis superiores a 3.000 mg/dia.
Proteinúrias maciças: a síndrome nefrótica Quando a taxa de excreção urinária de proteínas excede 3.500 mg/dia, temos o que se denomina proteinúria maciça. Nesse caso, as conseqüências dessa perda são mais do que evidentes: em primeiro lugar, a capacidade hepática de repor essas proteínas é superada. Como resultado, ocorre hipoalbuminemia, ou seja, queda da concentração plasmática de albumina, o que faz cair também a pressão oncótica sistêmica. Em conseqüência, ocorre um desequilíbrio das forças de Starling nos capilares sistêmicos, fazendo com que haja extravasamento de fluido para o interstício. Com a tendência à retenção renal que acontece nesses casos, esse extravasamento se torna contínuo, originando a formação de edema
generalizado. De outro lado, o excesso de atividade imposto ao fígado pela necessidade de repor as proteínas absorvidas (e degradadas) pelos túbulos proximais e, principalmente, as que se perdem com a urina, termina por aumentar a taxa de síntese de lipoproteínas, elevando sua concentração plasmática e levando a uma hipercolesterolemia. A associação dessas quatro anomalias, proteinúria maciça, hipoalbuminemia, edema generalizado e hipercolesterolemia é denominada síndrome nefrótica. Na verdade, o elemento básico da síndrome nefrótica é a proteinúria maciça, uma vez que esta origina todos os demais componentes do quadro. A síndrome nefrótica não pode ser considerada uma doença propriamente dita, mas representa na verdade um distúrbio que pode estar associado a uma série enorme de processos mórbidos, desde glomerulonefrites até intoxicações medicamentosas. A síndrome nefrótica pode existir até mesmo na ausência de lesões renais
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óbvias ao exame histológico, sendo observadas apenas poucas alterações à microscopia eletrônica: nesse caso o quadro é denominado doença de lesões mínimas ou síndrome
nefrótica de lesões mínimas. Apesar da severidade da proteinúria e dos sintomas associados, a síndrome nefrótica pode responder ao tratamento com uma remissão completa e sem sequelas, especialmente no caso da doença de lesões mínimas. No entanto, em uma parcela apreciável dos pacientes nefróticos o quadro pode persistir apesar do tratamento. Quando isso acontece, é freqüente o achado de uma glomerulopatia à biópsia, em muitos casos de caráter progressivo. MECANISMOS DE PROTEINÚRIA São três os mecanismos básicos que levam à proteinúria: 1) aumento da permeabilidade glomerular. 2) diminuição da reabsorção tubular e 3) presença de proteínas anômalas na circulação. Vamos considerar em detalhe cada um desses mecanismos.
AUMENTO DA PERMEABILIDADE GLOMERULAR O aumento da permeabilidade glomerular é a causa mais comum de proteinúria,
podendo decorrer de disfunção do sistema de poros, perda de cargas fixas eletronegativas, ou de uma combinação entre esses dois mecanismos.
1 – Aumento do número de poros grandes O mecanismo mais óbvio de aumento da permeabilidade glomerular é evidentemente um aumento na quantidade de poros que atravessam a parede do glomérulo.
A B C Figura 3.4- A, Curva de discriminação (clearance fracional de dextrans, Cd/RFG, em função do raio molecular). B, Absorção tubular de proteínas em função da carga filtrada. C, Cargas filtrada e excretada de proteínas, após aumento na densidade dos poros “gigantes” da parede glomerular. Os valores normais são representados em cinza para comparação.
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Podemos encontrar esse defeito em certos casos de síndrome nefrótica persistente em humanos ou na nefropatia diabética avançada. Observamos na Fig. 3.4A um aumento predominante da filtração de macromoléculas de peso molecular superior a 50 Å, que é o que ocorre em uma parcela dos pacientes proteinúricos, especialmente aqueles portadores de glomerulopatias resistentes ao tratamento, e em modelos experimentais de proteinúria. Um achado interessante, obtido tanto em pacientes quanto em animais de laboratório com proteinúria maciça, é o de que, ao contrário do observado com os poros “gigantes”, a freqüência de poros “normais” pode estar diminuída nesses casos, refletindo provavelmente a própria patologia primária. Esse achado demonstra que as permeabilidades da parede glomerular à água e às macromoléculas podem variar em sentido inverso, explicando por que o Kf glomerular (ver Capítulo 1) pode estar diminuído mesmo em face de um aumento da filtração de proteínas.
Tomados em conjunto, esses dados indicam que um dos possíveis mecanismos de aumento da permeabilidade glomerular nas proteinúrias é o aumento da freqüência desses poros “gigantes”. A natureza desse verdadeiro caminho paralelo de filtração de macromoléculas é ainda obscura, não sendo conhecido um equivalente anatômico até o momento. No entanto, a composição da proteinúria que resulta desses processos segue um padrão bastante definido, ilustrado na Fig. 3.4C, onde se destaca a presença de proteínas de alto peso molecular, como as imuniglobulinas, uma anomalia evidente considerando que essas proteínas mal são detectadas na urina normal.
Apesar da presença francamente anômala dessas macromoléculas, a proteína urinária predominante nesses casos é a albumina. Em boa parte isso ocorre porque a albumina é a mais abundante das proteínas plasmáticas, estando presente em concentrações 20 vezes superiores às de imuniglobulinas. Além disso, as proteínas de raio molecular menor, da ordem de 15 a 30 Å (o da albumina é de 36 Å) já sofrem normalmente pouca restrição na parede glomerular, de tal modo que são pouco afetadas por um aumento de sua permeabilidade. Por outro lado, mesmo aumentando em número, os poros “gigantes” continuam a ocupar uma área muito pequena comparada à dos poros “normais”. Por essa razão, a parede glomerular continua muito mais permeável à albumina do que às proteínas de alto peso molecular. Proteinúrias como as descritas acima são também denominadas não seletivas, uma vez que nesses casos a parede glomerular não discrimina com eficiência entre proteínas de alto e baixo peso molecular. Essas proteinúrias tendem a associar-se a glomerulopatias de caráter progressivo, ou seja, a composição da proteinúria pode ter um certo valor prognóstico, embora a realização de exame histológico renal (em tecido de biópsia) seja imprescindível nesses casos. 2 – Por perda de cargas eletronegativas Nem sempre é possível observar uma alteração na freqüência de poros, de tamanho “normal” ou não. É na verdade provável que um outro mecanismo de aumento da
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permeabilidade glomerular desempenhe uma papel bastante importante nas glomerulopatias: a perda de cargas eletrostáticas negativas na parede do capilar glomerular. As evidências em apoio a esse conceito provêm em grande parte do estudo de modelos experimentais de proteinúria maciça. Quando se mede nesses animais o clearance fracional (que como vimos estima a permeabilidade glomerular) de um dextran neutro, a diferença entre ratos doentes e normais é pequena e contrária ao esperado: na verdade, a filtração de macromoléculas neutras é até menor do que o normal nos ratos nefríticos, refletindo, como discutido acima, uma diminuição da superfície filtrante pela própria doença. Quando no entanto se examina o comportamento de um dextran sulfato, a situação se inverte: a filtração dessa macromolécula eletronegativa é bem maior nos ratos nefríticos do que nos normais, exatamente como ocorre com a albumina, indicando ser a perda de cargas fixas um dos determinantes do aumento de permeabilidade glomerular verificada nesse modelo.
A B C Figura 3.5- A, Curva de discriminação (clearance fracional de dextrans, Cd/RFG, em função do raio molecular). B, Absorção tubular de proteínas em função da carga filtrada. C, Cargas filtrada e excretada de proteínas, após perda de cargas eletronegativas da parede glomerular. Os valores normais são representados em cinza para comparação
A composição da proteinúria resultante de uma perda de cargas fixas negativas na parede glomerular é também bastante característica (Fig. 3.5C). Neste caso, a carga filtrada e a proteinúria são constituídas quase exclusivamente de albumina, sendo quase indetectável a presença de proteínas de alto peso molecular. Isso não chega a surpreender, considerando que, mesmo depletada de cargas negativas, a parede glomerular continua neste caso praticamente impermeável a proteínas de peso molecular mais alto. Quando o predomínio da albumina é assim absoluto, a proteinúria é considerada seletiva, em contraste com a proteinúria não seletiva observada quando aumenta o número de poros “gigantes”. Também neste caso o estudo da composição da proteinúria pode ajudar a predizer a evolução da
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moléstia: as glomerulopatias associadas a proteinúrias seletivas apresentam menor tendência à progressão e de modo geral respondem melhor ao tratamento, comparadas às glomerulopatias associadas a proteinúrias não seletivas.
Nada impede, é evidente, que as duas modalidades de lesão, perda de cargas fixas e aumento do número de poros, ocorram simultaneamente, agravando ainda mais a proteinúria resultante. Nesses casos o prognóstico é ainda mais complexo. Como nas demais modalidades de proteinúria, é necessária a realização de biópsia renal para se chegar a um diagnóstico preciso da moléstia. 2) Proteinúrias de origem tubular
A B C Figura 3.6.- A, Curva de discriminação (clearance fracional de dextrans, Cd/RFG, em função do raio molecular). B, Absorção tubular de proteínas em função da carga filtrada. C, Cargas filtrada e excretada de proteínas. O exemplo ilustra a proteinúria decorrente de uma diminuisões da capacidade do túbulo proximal de absorver as proteínas filtradas. Os valores normais são representados em cinza para comparação.
Conforme discutido anteriormente, os túbulos são capazes de reabsorver a maior parte das proteínas normalmente filtradas no glomérulo, de tal modo que apenas uma pequena fração da carga filtrada diminuta alcança a urina final. Quando ocorre um defeito no sistema de reabsorção de proteínas pelos túbulos (Figura 3.6B), temos uma proteinúria de origem tubular. Nesse caso, a filtração de macromoléculas (Figura 3.6A) ocorre de acordo com um padrão normal, ou seja, há no filtrado uma concentração semelhante de albumina (abundante no plasma mas pouco filtrada através do glomérulo) e de proteínas de baixo peso molecular (facilmente filtradas mas menos abundantes). Como o sistema de reabsorção é
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0 200 400
Carga filtrada, mg/min
Abs
orçã
o tu
bula
r, m
g/m
in
0
500
1000
1500
2000
2500
3000
3500
4000
4500
5000
5500
6000
FILTR EXCRET
mg/
dia
FILTR EXCRET
BAIXO PM ALB IgG
12
pouco seletivo em relação às proteínas que foram filtradas, sua deficiência faz com que as proteínas presentes no filtrado sejam rejeitadas de modo mais ou menos homogêneo. Teremos então uma proteinúria constituída de albumina e de proteínas de baixo peso molecular em proporções mais ou menos equivalentes (Fig. 3.6C), o que ajuda a discernir essas proteinúrias daquelas provocadas por lesão glomerular. As proteinúrias tubulares são de intensidade leve ou moderada, o que é fácil de entender considerando que a permeabilidade glomerular está normal. Nesse caso, mesmo com uma rejeição total das proteínas filtradas por parte dos túbulos, a proteinúria resultante será no máximo igual à carga filtrada, que é baixa graças ao bom funcionamento da barreira glomerular. 3) Proteinúria devida à presença de proteínas anômalas no plasma Alguns processos tumorais como o mieloma múltiplo associam-se à produção exagerada de certos tipos de imuniglobulina. Às vezes, as células tumorais não produzem o anticorpo completo, mas apenas uma determinada região de sua molécula. Esses fragmentos de anticorpo, conhecidos como proteínas de Bence-Jones, são lançados à circulação e, em razão de seu tamanho reduzido, são facilmente filtrados nos glomérulos. A carga filtrada dessas moléculas anômalas pode exceder a capacidade reabsortiva dos túbulos, levando ao aparecimento de uma proteinúria constituída quase que totalmente pela proteína circulante anômala, uma vez que tanto a permeabilidade glomerular como a função tubular estão intactas. Quando presentes, essas proteinúrias facilitam o diagnóstico clínico de mieloma múltiplo.
EXERCÍCIOS
Abra o programa "Proteinúria".
1. Varie a densidade de carga da parede glomerular desde o valor normal (100) até 0. O que
acontece à proteinúria? Que tipos de proteínas aparecem na urina? Abra a planilha
"EXERCÍCIOS" Faça um gráfico relacionando, ao mesmo tempo, a excreção urinária de
IgG, albumina e proteínas de baixo P.M. à densidade de carga, preenchendo a tabela já
existente. Qual a proteína mais fortemente influenciada pela redução da densidade de
carga? Por que?
13
2. Varie a área de poros grandes (nesse modelo assumimos um diâmetro de 250 Å), desde o
valor normal (2) até 500. O que acontece à proteinúria? Que tipos de proteínas aparecem
na urina? Como no ítem anterior, faça um gráfico relacionando, ao mesmo tempo, a
excreção urinária de IgG, albumina e proteínas de baixo P.M. à área de poros grandes,
preenchendo antes a tabela pré-existente na planilha "EXERCÍCIOS”. Quais as proteínas
mais fortemente influenciadas pelo aumento da área de poros grandes? Por que? Observe
ainda o terceiro gráfico, que aparece automaticamente e cujo eixo de ordenadas representa
a variação percentual da proteinúria em relação ao normal. E agora, qual a proteína mais
fortemente influenciada pelo aumento da área de poros grandes? Por que?
3. Introduza no plasma uma proteína de Bence-Jones, assinalando o círculo correspondente.
O que acontece à proteinúria? Que tipos de proteínas aparecem na urina? Por que?
4. Diminua a velocidade máxima de absorção tubular de proteínas. O que acontece à
proteinúria? Que tipos de proteínas aparecem na urina?
CAPÍTULO 4: MECANISMOS DE CONCENTRAÇÃO E DILUIÇÃO URINÁRIAS
Antonio José Barros Magaldi
A - INTRODUÇÃO
.
Um dos maiores desafios que a evolução experimentou foi a passagem do animal
marinho para a terra. Saindo de um meio aquático, onde não havia a preocupação de
conservar a água, o animal precisou desenvolver um mecanismo para conservá-la no
organismo. Desta forma, o antigo sistema excretor se especializou e formou o néfron
como ele é hoje nos mamíferos, isto é, com uma disposição anatômica em alça e com
uma heterogeneidade funcional entre os diversos segmentos. Só com esta configuração é
que o rim foi capaz de desenvolver um mecanismo para conservar a água - o mecanismo
de concentração e diluição urinária.
O estudo deste mecanismo constitui um dos capítulos mais fascinantes da
Fisiologia Renal. Os avanços na metodologia de pesquisa e as descobertas acerca da
secreção e mecanismo de ação do hormônio anti-diurético (HAD) mostram como o rim,
com um gasto mínimo de energia, consegue variar a osmolaridade da urina e a excreção
de água de acordo com as necessidades do organismo.
A eliminação de urina concentrada resulta da reabsorção de água no ducto coletor.
Para que esta reabsorção aconteça dois eventos devem ocorrer: 1º) formação de uma
medula hipertônica em relação ao fluido do ducto coletor; e 2º) aumento da
permeabilidade do ducto coletor à água pelo hormônio antidiurético (HAD). Portanto, a
análise do mecanismo de concentração e diluição urinária resume-se ao estudo do
processo pelo qual o rim acumula solutos no interstício medular e o modo de ação do
HAD.
B – MECANISMOS DE FORMAÇÃO DA HIPERTONICIDADE MEDULAR
Um adulto normal ingere em média cerca de 2,5 litros de água por dia,
embora esse total varie muito em função de hábitos alimentares e sociais (ver Capítulo 5).
Como as perdas hídricas extrarrenais (fezes, suor e perdas insensíveis) totalizam cerca de
1 litro/dia, é necessário excretar aproximadamente 1,5 litros/dia de urina para que se
alcance um balanço zero de água. Por outro lado, esse indivíduo deve excretar cerca de
750 mOsm/dia de solutos, a maior parte dos quais é representada pela uréia, sintetizada
endogenamente, e pelos eletrólitos sódio, potássio e cloreto, ingeridos com a alimentação.
Em condições habituais, portanto, a osmolalidade urinária é de cerca de 750 mOSm/1,5 L
= 500 mOsm/L. Como a osmolalidade do plasma é de 288 mOsm/L, os rins normalmente
concentram a urina em 500/288 = 1,7 vezes. Se a ingestão de água for baixa, ou se as
perdas extrarrenais de água forem altas (devido à exposição ao calor, por exemplo), o
volume urinário diminuirá. Se por exemplo o volume urinário reduzir-se a 1 litro/dia, a
osmolalidade urinária será de 750 mOsm/L. A mais alta osmolalidade urinária que pode
ser alcançada restringindo-se a ingestão de água em um indivíduo normal é de cerca de
1.300 mOsm/L, correspondente a um gradiente de 4,3 vezes em relação ao plasma. Para
uma excreção urinária de solutos de 750 mOsm/dia, o volume urinário será pouco inferior
a 0,6 L (volume urinário mínimo). Se, ao contrário, a ingestão de líquidos for alta (por
exemplo, por consumo de refrigerantes, cerveja ou frutas) o volume urinário aumentará.
Para um volume urinário de 4 L/dia, a osmolalidade urinária cairá a 200 mOm/L. Com
taxas mairores de ingestão hídrica, a osmolalidade pode cair a 50 mOsm/L ou menos, o
que corresponde a um fluxo urinário de 16 L/dia ou superior. O rim é portanto
extremamente eficiente na regulação do balanço de água.
O processo que permite ao rim concentrar e diluir a urina é bastante complexo,
envolvendo uma série de intricados arranjos anatômicos e mecanismos de transporte de
solutos e água, ainda não totalmente esclarecidos. Há uma forte razão para que a Natureza
tenha lançado mão de tamanha complexidade: não é possível às células transportadoras
(como as do túbulo coletor) gerar e manter gradientes osmóticos de 4 vezes ou mais,
conforme os descritos acima. O custo termodinâmico de uma operação desse tipo seria
enorme e provavelmente drenaria mais energia metabólica do que a totalidade da que
chega ao rim. Por essa razão, o rim utiliza-se de um engenhoso sistema de multiplicação
em contracorrente, para o qual é essencial o formato em “U” das alças de Henle,
conforme se descreve a seguir.
É possível demonstrar, em animais submetidos a restrição aquosa, que a medula
renal torna-se extremamente hipertônica em razão do acúmulo de uréia e Na+Cl. O
mecanismo pelo qual esses solutos se acumulam no interstício medular foi genialmente
idealizado em 1942 por Werner e Kuhn, que formularam a hipótese da existência de um
sistema de contracorrente multiplicador nos ramos em "U" da alça de Henle. Este
sistema produziria um aumento progressivo da osmolalidade da medula renal da córtex
em direção à papila, com pouco gasto de energia.
O modelo proposto em 1942 não era exatamente uma novidade. A indústria já
fazia uso de um sistema multiplicador de temperatura, no qual uma fonte constante de
calor aquece o fluido na alça de um tubo em forma de "U", promovendo um aumento
progressivo da temperatura desse fluido, sem grande consumo de energia. Esse arranjo
faz com que o fluido corra em sentidos opostos em condutos vizinhos, proporcionando
uma troca de calor contínua a partir do ponto que recebe o calor, formando um gradiente
de temperatura ao longo dos dois tubos justapostos: o fluxo que se aproxima da fonte
recebe calor do fluxo que se distancia da fonte.
Sistemas em contracorrente análogos ao descrito acima eram conhecidos também
na Natureza. Nos membros inferiores das aves pernaltas que ficam com os pés
mergulhados em águas de baixa temperatura, as artérias descendentes ficam justapostas às
veias ascendentes, ajudando a aumentar gradualmente a temperatura do sangue que se
dirige dos pés ao coração. Em certos teleósteos, o sistema de absorção de oxigênio tem
sua eficiência multiplicada através de um arranjo em contracorrente dos vasos branquiais.
Em peixes de águas profundas, é necessário manter pressões hidrostáticas elevadíssimas
no interior da bexiga natatória, o que é obtido através de um sistema de multiplicação em
contracorrente.
No rim, o tubo em “U” é representado pelas porções ascendente e descendente da
alça de Henle, enquanto a grandeza física a ser multiplicada (análoga à temperatura no
modelo de aquecimento industrial) é representada pela osmolalidade (Fig. 4-1). Por
intermédio desse arranjo, o transporte ativo de sódio ao longo de um dos ramos da alça
gera e mantém um gradiente osmótico pequeno, elevando a osmolalidade do interstício e
com isso promovendo o transporte osmótico de água do ramo descendente, cujo fluido
torna-se em decorrência disso mais concentrado, conforme representado na Fig. 4-1 pelo
gradiente de cor. Esse efeito unitário é multiplicado em proporção ao comprimento da
alça, permitindo que a osmolalidade da porção mais interna da medula renal chegue a
1.300 mOsm.
O funcionamento do sistema de contracorrente multiplicador na medula renal
depende de um complexo arranjo anatômico e de um jogo de permeabilidades à água,
cloreto de sódio e uréia (Figura 4-2). De acordo com os conceitos atuais, a energia inicial
necessária à operação do sistema é fornecida pelo transporte ativo de Na+Cl- da luz
tubular para o interstício medular na porção ascendente da alça de Henle. Conforme
descrito em detalhes no Capítulo 5, a absorção de cloreto de sódio neste segmento
envolve a atuação combinada da Na+/K+-ATPase basolateral e de um cotransportador
situado na membrana luminal, cuja molécula transporta 1 íon Na+, 1 íon K+ e dois íons
Fig. 4-1 – Efeito multiplicador de contracorrente. O arranjo em “U” da alça de Henle permite a multiplicação de um efeito osmótico pequeno, de modo a que o fluido que percorre o ramo descendente seja progressivamente concentrado à medida que se aproxima da curvatura da alça.
OSMOLALIDADE
Efeito unitárioNa
Na
Na
Na
Na
Na
Cl- do lume tubular para o interior da célula. Esse transporte de Na+Cl-, aumentando a
osmolalidade do interstício, promove a absorção de água no ramo descendente da alça,
com consequente aumento progressivo da osmolalidade do seu fluido tubular em direção
à papila. Em presença de HAD, o gradiente osmótico assim criado determina a absorção
progressiva de água no túbulo coletor, possibilitando a excreção de uma urina
concentrada. Os vasa recta, também dispostos em “U”, recolhem os excessos de água,
sódio e uréia gerados pelo sistema, impedindo que o gradiente córtico-medular se dissipe
com o tempo (ver adiante).
Para uma melhor compreensão dos mecanismos envolvidos nos processos de
concentração e diluição urinárias, é importante acompanhar em linhas gerais o transporte
Fig. 4-2 –Representação esquemática do mecanismo de concentração e diluição urinárias através do sistema de contracorrente medular
Uréia
HADHAD
HADHAD
HADHAD
OSMOLALIDADE
CÓRTEX
MEDULAR EXTERNA
MEDULAR INTERNA
VASA RECTA
H2O
H2O
H2O
de água, cloreto de sódio e uréia desde a filtração glomerular até a urina final (Fig. 4-2)
(ver também os Capítulos 5 e 11). No túbulo proximal, ocorre absorção ativa de sódio,
acompanhada de absorção passiva isotônica de água. Essa absorção equivale a 2/3 do que
foi filtrado nos glomérulos. A absorção de uréia, também passiva, é proporcional à de
sódio e água. Na porção fina descendente da alça de Henle, o fluido intratubular é
concentrado devido principalmente à saída de água, movida pela hipertonicidade
medular. Esse processo é mais acentuado nas alças longas, que penetram mais
profundamente na medula hipertônica. Já na porção fina ascendente, impermeável à água,
ocorre saída passiva de sódio, altamente permeante. A entrada simultânea de uréia, de
menor magnitude, não é suficiente para impedir que o fluido intratubular seja diluído
nesse segmento. Na porção espessa da alça de Henle, o sódio é absorvido intensamente
por transporte ativo. Como também esse segmento é impermeável à água, o fluido
intratubular é fortemente diluído – a porção espessa da alça de Henle é também
denominada segmento diluidor do néfron. Portanto, uma característica funcional
importante da alça de Henle, tanto no ramo descendente como no ascendente, é a
dissociação entre a absorção de água e a de cloreto de sódio. No ramo descendente,
ocorre absorção de água sem transporte importante de sódio. Já o ramo ascendente é
impermeável à água, mas absorve sódio passivamente (porção fina) ou ativamente
(porção espessa).
Nos túbulos distal e coletor continua a haver absorção de sódio, embora
em ritmo inferior ao observado no túbulo proximal e na porção espessa da alça de Henle.
A porção inicial do túbulo distal é também impermeável à água, promovndo assim
diluição do fluido tubular, de modo semelhante ao observado no ramo ascendente da alça
de Henle. Na porção final do túbulo distal e no túbulo coletor, a absorção de água
depende da presença de hormônio antidiurético (HAD). Na ausência deste, esses
segmentos finais do néfron tornam-se impermeáveis à água e passam a funcionar como
um segmento diluidor adicional, uma vez que continuam a absorver sódio. Na presença
de HAD, e dependendo da concentração deste, ocorre absorção de água, movida pela
hipertonicidade medular. Também nesses segmentos, portanto, ocorre dissociação dos
transportes de água e de sódio, agora modulada pela ação do HAD. Na porção final do
túbulo coletor, além da absorção de água e sódio, ocorre ainda absorção de uréia,
igualmente dependente de HAD. A uréia absorvida retorna ao néfron através da porção
fina ascendente da alça de Henle e portanto recircula. Essa recirculação de uréia é
importante para manter alta a concentração osmótica da medula.
O sistema de contracorrente medular, associado ao HAD, permite o controle fino
da osmolalidade urinária e, portanto, do balanço de água. Em situações de carência de
água, a concentração de HAD é alta e a osmolalidade do fluido intratubular praticamente
se equilibra com a do interstício medular – a urina final é concentrada ao máximo.
Quando ocorre ingestão excessiva de água, a secreção de HAD é inibida, o fluido
intratubular deixa de se equilibrar com o interstício e predomina o efeito diluidor devido à
absorção de sódio na alça espessa, no túbulo distal e no túbulo coletor - a urina final
torna-se diluída.
C - EVIDÊNCIAS EXPERIMENTAIS EM FAVOR DO MODELO DE
CONTRACORRENTE MEDULAR
Descreveram-se, ao longo dos quase 60 anos que se seguiram à formulação
original de Werner e Kuhn, várias evidências experimentais consistentes com a hipótese
do sistema de contracorrente multiplicador. Assim, observou-se que o fluido no início do
túbulo distal é hipotônico (100 mOsm./KgH2O) em relação ao filtrado glomerular (288
mOsm/Kg.H2O), o que está de acordo com a existência de uma reabsorção ativa de
Na+Cl- no ramo ascendente da alça de Henle, na ausência de um transporte de água
correspondente (ver Capítulo 5). Observou-se também que o aumento da osmolaridade da
medula externa em direção a papila é diretamente proporcional ao comprimento da alça
de Henle do animal em estudo. Esse comprimento é máximo no rato do deserto, animal
adaptado à extrema escassez de água e cuja osmolalidade urinária chega a 5.000
mOsm/kg, Outros achados esxperimentais compatíveis com a hipótese da contracorrente
multiplicadora são a semelhança entre as osmolaridades dos fluidos colhidos da "vasa
recta" e da porção fina descendente da alça de Henle e o valor das permeabilidades a
água, sódio e uréia medidas em diversos segmentos do néfron (ver adiante).
Os estudos funcionais da porção espessa da alça de Henle, tanto da região medular
como da região cortical (segmento diluidor), utilizando a técnica de microperfusão em
porções isoladas do néfron de coelhos, mostraram serem essas estruturas praticamente
impermeáveis à água, mesmo na presença de HAD. Neste segmento, ocorre uma
reabsorção de Na+ na membrana luminal, acoplado a Cl- e K- através de um cotransporte
Na+:K-:2Cl-, o qual utiliza indiretamente a energia gerada pela Na+-K--ATPase na
membrana basolateral. A atividade desta, que se constitui em um transporte ativo, reduz
acentuadamente a concentração de Na+ no citosol, gerando assim um gradiente
eletroquímico favorável à entrada da Na+ na célula através do cotransportador Na+:K+-
:2Cl-. Este último constitui-se portanto em um transporte ativo secundário (ver Capítulo
5). A passagem de Na+ da luz tubular para o interstício constitui, como vimos, o chamado
efeito unitário do mecanismo de contracorrente multiplicador. A porção espessa
ascendente da alça de Henle, fundamental ao processo de concentração e diluição
urinárias, é o local de ação dos chamados diuréticos de alça, como o furosemide e a
bumetanida, os quais, ligando-se ao sítio do íon Cl-, promovem a inibição do
cotransportador Na+:K-:2Cl- (ver Capítulo 6).
Os ramos finos da alça de Henle, tanto o ascendente como o descendente, são
formados por um epitélio simples escamoso, que repousa sobre uma membrana basal, e é
pobre em mitocôndrias. Este padrão morfológico, inconsitente com grandes gastos de
energia, é o de um epitélio através do qual predomina o transporte passivo de água e
solutos, compatível portanto com o modelo de contracorrente medular.
O estudo funcional da porção fina descendente da alça de Henle mostra que este
ramo é altamente permeável à água e pouco permeável a sódio e a outros solutos,
sugerindo que o equilíbrio osmótico com o interstício medular ocorre à custa da absorção
de água e não de entrada de solutos. Esse equilíbrio, como vimos, reflete-se no aumento
da concentração intratubular de NaCl, uréia e outros solutos à medida que o fluido avança
rumo à papila renal.
A porção fina ascendente da alça de Henle apresenta características opostas às
descritas acima para o ramo descendente. Observa-se que a porção ascendente é
impermeável à água e altamente permeável a Na+ e Cl-, sendo que o movimento
transtubular de cloretos deve ocorrer por um mecanismo passivo facilitado. Essas
características permitem que o aumento da concentração de Na+Cl-, que ocorre na porção
descendente da alça de Henle por reabsorção de água, se desfaça, pelo menos em parte, na
porção fina ascendente. Neste, o equilíbrio osmótico com o interstício medular dá-se às
custas do efluxo passivo de Na+Cl-, que ocorre rapidamente e é parcialmente compensado
por um influxo de uréia, também passivo e mais lento (Fig. 4-2), o que resulta na
formação de um fluido tubular com menor concentração de Na+Cl- que o interstício. Ao
percorrer a porção espessa ascendente da alça de Henle, onde como vimos ocorre uma
grande absorção ativa de Na+Cl-, o fluido intratubular ficará cada vez mais hipotônico,
uma vez que este segmento é impermeável à água; sua osmolalidade pode cair abaixo de
100 mOsm/Kg H2O no início do túbulo distal. Por essa razão, a porção espessa da alça de
Henle é também denominada segmento diluidor. Vê-se, portanto, que apenas as
caracterísitcas opostas de permeabilidade dos ramos finos, descendentes e ascendentes,
proporcionam um meio engenhoso de adicionar soluto (Na+Cl-) à região medular interna e
de obter um fluido hipotônico à custa, unicamente, da absorção ativa de Na+Cl- na porção
espessa da alça de Henle (efeito unitário), conforme esquematizado nas Figuras 4-1 e 4-2.
As características do transporte de Na+, Cl-, H2O e uréia nas várias porções
da alça de Henle permitem explicar, ao menos em parte, o acúmulo de Na+Cl- no
interstício das porções medulares mais profundas (interstício papilar). Entretanto, como
descrevemos no início, a hipertonicidade medular forma-se não apenas às custas de
Na+Cl- como também de uréia. Por consegüinte, é necessário explicar como se forma o
gradiente túbulo-intersticial de uréia. Como veremos a seguir, ele é também o resultado
de diferenças nas características de permeabilidade dos vários segmentos medulares,
principalmente as das alças finas e das várias porções do túbulo coletor.
O importante papel da uréia no mecanismo de concentração urinária já era
conhecido desde longa data pelas observações de que animais submetidos a dieta pobre
em proteinas tinham menor capacidade de formar urina hipertônica. Contudo, só
recentemente foi possível compreender em maior profundidade o papel da uréia no
processo de concentração e diluição da urina.
O mecanismo de conservação de uréia no rim depende de um processo de
recirculação. No ramo fino ascendente da alça de Henle, relativamente permeável à uréia,
impermeável à água e altamente permeável a Na+ e Cl-, o equilíbrio osmótico com o
interstício se faz às custas de uma saida rápida de NaCl e de uma entrada lenta de uréia.
Portanto, na porção fina ascendente da alça de Henle ocorre adição de uréia ao fluido
tubular. Por outro lado, no ramo espesso ascendente, túbulo distal e túbulo coletor
cortical, não há qualquer movimento transtubular de uréia. Ao longo do túbulo coletor, a
absorção de água (na presença de HAD) determina portanto uma elevação na
concentração luminal de uréia, até que o fluido alcance a porção terminal do néfron, que é
o duto papilar. Neste segmento, a permeabilidade tubular à uréia é considerável (em
presença de HAD), o que permite que este soluto, mais concentrado na luz tubular, eflua
para o interstício papilar. A uréia adicionada ao interstício medular vai colaborar para
aumentar a osmolalidade da papila, propiciando maior reabsorção de água no ramo fino
descendente da alça de Henle, aumentando assim a eficiência do mecanismo de
contracorrente. Além disso, parte dessa uréia atravessa, como vimos, a parede da porção
fina ascendente da alça de Henle, retornando à luz tubular e completando o processo de
recirculação. Recentemente, demonstrou-se que o transporte de uréia através desses
epitélios ocorre por difusão facilitada e depende de transportadores específicos,
denominados UT (urea transporters, em inglês) e designados por números. No caso da
porção fina ascendente da alça de Henle e do duto papilar, o transportador envolvido é o
UT1, que é regulado pelo HAD. Pode-se demonstar a ocorrência de difusão facilitada de
uréia também nas hemácias. Nesse caso, o transportador envolvido é o UT3. A passagem
de uréia ao interior das hemácias permite um tipo interessante de recirculação. Nas
porções mais internas da medula, a uréia, altamente concentrada, penetra nos vasa recta e
é transportada pelas hemácias de volta à circulação, sendo posteriormente filtrada de novo
nos glomérulos e completando esse processo mais longo de recirculação. Esse mecanismo
é intensificado quando o fluxo medular está reduzido, como ocorre nas hipovolemias,
ajudando a explicar a retenção desproporcional de uréia observada nessas condições (ver
Capítulo 7). É possível ainda que uma parte da uréia que chega ao cálice renal retorne à
ponta da papila por difusão, constituindo-se em um mecanismo adicional de conservação
desse soluto no interior da medula renal.
No processo de formação da medula hipertônica, os vasa recta exercem um papel
de fundamental importância, pois deve existir uma troca intensa entre o interstício
medular e a luz dos vasos que nele penetram para que o gradiente estacionário de
concentração medular se mantenha. Cerca de 5% do fluxo plasmático renal são dirigidos
para os vasos da região medular. Como o fluxo plasmático renal é alto, o fluxo
plasmático nos vasa recta (descendente e ascendente) é cerca de 10 vezes maior do que o
fluxo do fluido tubular no começo do ducto coletor medular externo. A alta
permeabilidade à água e a solutos das paredes desses vasos, associada à sua disposição
em forma de grampo de cabelo (hairpin, em inglês), semelhante à da alça de Henle,
permite a remoção de água e solutos do interstício medular, também através de um
mecanismo de troca em contracorrente, sem alterar a formação do gradiente de
concentração medular e auxiliando diretamente o mecanismo de contracorrente
multiplicador (Fig. 4-2). Demonstrou-se recentemente a existência nesses vasos de
receptores para o HAD, tanto do tipo V1 como V2, sugerindo que esse hormônio pode
regular também o fluxo medular: a estimulação do receptor V2 aumenta esse fluxo,
enquanto a do receptor V1 o reduz.
D – MECANISMOS DE AÇÃO DO HORMÔNIO ANTIDIURÉTICO
Como vimos, o HAD desempenha um papel essencial no funcionamento do
sistema de concentração e diluição urinárias. O conhecimento dos eventos celulares
envolvidos na ação do HAD expandiu-se consideravelmente nos últimos anos. O HAD é
um hormônio capaz de modificar a membrana luminal das células principais dos túbulos
distal final e coletor, determinando um aumento da permeabilidade à água e, no duto
papilar, também à uréia (ver Capítulo 11). Sendo um peptídeo, o HAD não é capaz de
atravessar a membrana celular, sendo-lhe necessário interagir com um receptor
superficial. O HAD funciona assim como um “primeiro mensageiro”, sendo seu efeito
intracelular mediado por um “segundo mensageiro”, produzido como resultado da
interação do hormônio com o seu receptor específico. Os dois mais significantes sistemas
de “segundos mensageiros” conhecidos são os da adenosina monofosfato cíclico, ou
AMP cíclico (AMPc) e o do Ca++. O HAD exerce seu efeito hormonal estimulando dois
tipos de receptores, denominados V1 e V2, que utilizam como “segundos mensageiros” o
Ca++ e o AMPc, respectivamente Esses receptores estão localizados na membrana
basolateral da célula principal e, quando estimulados, determinam alterações bioquímicas
intracelulares que por sua vez acarretam modificações na membrana luminal, alterando a
permeabilidade à água. O receptor V1 aparece também nas células musculares lisas dos
vasos, sendo responsável pelo efeito vasoconstritor do HAD (é por essa razão que o HAD
é também conhecido como vasopressina)
A ligação do HAD ao receptor V2 ativa uma enzima denominada adenilciclase.
Esta enzima faz parte de um sistema regulador complexo, que consiste de três
subunidades diferentes: o receptor (R), uma proteina reguladora, ou proteína G (contendo
o nucleotídeo guanina, de onde o seu nome) e uma unidade catalítica, que é a
adenilciclase propriamente dita (AC). Neste modelo, a atividade AC pode ser afetada por
dois receptores de naturezas opostas: um deles a estimula (Rs) enquanto o outro a inibe
(Ri). Esses efeitos são mediados por dois tipos distintos de porteína G, respectivamente
Gs e Gi. O receptor estimulador (Rs) é acionado pelo próprio HAD, enquanto o receptor
inibidor (Ri) pode ser ocupado pelos agentes α-2 adrenérgicos, que antagonizam a ação
do HAD, inibindo portanto o transporte de água.
Uma vez ativada, a AC promove a conversão da adenosina trifosfato (ATP) no
mediador intracelular 3’,5’ adenosina monofosfato cíclico (AMPc). A formação do
AMPc representa o ínicio de uma reação em cascata, que termina com a incorporação de
canais de água à membrana apical: o AMPc ativa a proteino-quinase A (PKA) que por
sua vez fosforila uma proteina localizada em vesículas no citosol, vesículas essas que
contêm os canais de água. Estas vesículas são por sua vez transportadas por elementos do
citoesqueleto celular, tais como microfilamentos e microtúbulos, que promovem a ligação
dessas vesículas a receptores específicos localizados na membrana celular e, por um
processo de exocitose, a inserção de canais de água na membrana luminal. Na ausência de
HAD, esses canais são removidos da membrana apical por um processo de endocitose. A
AMPc-fosfodiesterase, que transforma o AMPc em uma forma inativa, as
prostaglandinas, o íon Ca++ e a Proteino-quinase C (PKC) desempenham um importante
papel na modulação do efeito do HAD. O HAD também estimula uma fosfolipase A da
membrana (ver Capítulo 2), que age sobre o ácido aracdônico (AA) e promove a
biossíntese de uma prostaglandina, a PGE2, que por sua vez inibe a AC, constituindo
desta forma um sistema de retroalimentação negativa que modula a ação do próprio
HAD.
O recente desenvolvimento das técnicas de biologia molecular permitiu
demonstrar a existência de vários tipos de canais de água no reino animal. Muitos são
proteínas de baixo peso molecular (25.000 a 30.000 Daltons) que pertencem a famílias de
canais de água chamadas MIP26 (Membrane Integral Protein com PM 26.000 Daltons).
São encontrados em grande variedade em tecidos transportadores de fluidos, como o
plexo coroide, o cristalino, os alvéolos pulmonares e os túbulos renais, bem como em
leveduras e vegetais. Nos glóbulos vermelhos são chamados de CHIP 28 (Chanel-forming
integral Protein - PM 28.000 Daltons) e transportam grande quantidade de água. Estes
canais de água foram posteriormente rebatizados com o name de Aquaporinas.
O canal de água sensível ao HAD, localizado nas células principais dos
túbulos distais e dos ductos coletores, foi já clonado e sequenciado, tendo recebido o
nome de Aquaporina 2. Na presença de HAD, essa proteína insere-se na membrana
luminal das células principais sob a forma de um homotetrâmero (4 unidades iguais),
formando um conjunto contendo quatro canais de água. Nas membranas basolaterais
dessas células estão inseridas as Aquaporinas 3 e 4, que também participam do transporte
de água por essas células, permitindo a passagem para o interstício da água absorvida.
Esses canais não são regulados pelo HAD.
Recentemente foi evidenciada a presença de outros canais de água ao longo do
néfron, as Aquaporinas 1 e 7, que também participam do processo de absorção de água
em vários segmentos que transportam água. Esses canais também são independentes do
HAD.
Conforme mencionado acima, o HAD exerce um papel de extrema importância na
recirculação da uréia entre o duto papilar e a porção fina ascendente da alça de Henle,
essencial à manutenção da hipertonicidade medular. A permeabilidade do duto coletor à
uréia é regulada pelo HAD através do receptor V2 e da estimulação da PKA, num
processo que culmina com a inserção, na membrana apical da célula, de transportadores
do tipo UT1 (ver acima). A estimulação do HAD também promove a inserção de UT1 na
porção fina ascendente da alça de Henle. É importante lembrar que a uréia, produto final
do catabolismo das proteinas, é uma escória que necessita ser excretada pelos rins na
mesma medida em que é produzida (ou seja, os rins mantém constantemente um balanço
zero de uréia). A excreção de uréia ocorre em parte pela eliminação de uma parcela da
carga filtrada de uréia, embora ocorra também secreção de uréia no terço final do duto
coletor. Esse processo, que não depende da ação do HAD, envolve um mecanismo de
transporte ativo secundário acoplado ao sódio através de um contra-transporte na
membrana apical.
E – REGULAÇÃO DA SECREÇÃO DO HORMÔNIO ANTIDIURÉTICO
Na maioria dos mamíferos, a estrutura química do HAD é representada pela
arginina vasopressina. Nos suínos, o HAD é constituido pela lisina vasopressina. Ambos
são octapeptídios de aproximadamente 1.100 daltons. Nos vertebrados inferiores, o HAD
é a arginina vasotocina. Até o momento foram identificados 7 octapeptídeos na
neurohipófise de vertebrados, enquanto mais de 200 análogos já foram sintetizados. A
grande variedade de análogos sintéticos disponíveis, com várias opções quanto a
potência, tempo de ação, absorção, etc., permitiu grandes avanços no tratamento do
diabetes insípido central (ver Capítulo 11).
O HAD é armazenado sob a forma de grânulos pelos corpos celulares dos
neurônios existentes nos núcleos supraóptico e paraventricular do hipotálamo. Há uma
estreita correlação entre o número desses grânulos nas células nervosas secretoras e o
estado de hidratação do animal. O HAD está como que “empacotado” nesses grânulos,
que percorrem o axoplasma dos nervos em direção à glândula pituitária posterior (neuro-
hipófise). Dentro desses grânulos, o HAD está ligado a uma proteina específica
denominada neurofisina A (também conhecida como neurofisina II), formando um
complexo. É possível que ambos, o hormônio e a neurofisina, compartilhem um mesmo
precursor biológico. As células secretoras de oxitocina na neurohipófise também têm
grânulos nos quais esse hormônio está ligado a uma outra proteina carreadora, a
neurofisina B (neurofisina I). As neurofisinas são cadeias de polipéptideos de
aproximadamente 10.000 daltons, contendo de 90 a 100 aminoácidos. Estudos com a
técnica de “freeze-fracture” e estudos eletromicroscópicos mostraram que a secreção de
0
2
4
6
8
10
12
14
16
18
200 250 300 350 400 450
Posm, mOsm/L
[HA
D] p
, p
g/m
l
Fig. 4-3 – Relação entre a concentração plasmática de HAD e a osmolalidade plasmática. O círculo vermelho representa a condição normal
HAD e de neurofisinas na neurohipófise ocorre por um processo de exocitose altamente
dependente da presença de cálcio.
A secreção de HAD pelo hipotálamo é
determinada por 2 fatores: a tonicidade plasmática e a
volemia (ver Capítulo 11). Em condições fisiológicas, a
variação da pressão osmótica do plasma é o único fator
modulador da secreção hipotalâmica de HAD. Para
qualquer osmolalidade plasmática superior a 280
mOsm./Kg.H2O (limiar osmótico), os níveis
plasmáticos de HAD variam linearmente e de forma
quase vertical, indicando uma extraordinária
sensibilidade dos osmoceptores hipotalâmicos (Figura
4-3). É essa propriedade o que permite aos rins regular
com grande precisão o volume exato de urina a ser excretado para manter o balanço
hídrico (ver Capítulo 11). O segundo fator a influenciar a secreção de HAD é a redução
da volemia. Quando ocorre uma perda de fluidos de modo a reduzir sensivelmente o
volume circulante (em 10% ou mais), há um poderoso estímulo à secreção de HAD, cujas
concentrações plasmáticas chegam a aumentar em 10 vezes ou mais em relação ao
normal. Em termos do gráfico da Fig. 4-3, os pontos correspondentes a esses pacientes
estariam sistematicamente à esquerda da linha vermelha. Esse comportamento reflete a
enorme importância que tem para o organismo a conservação do volume circulante,
mesmo que seja às expensas da regulação da tonicidade. É por essa razão que os
indivíduos desidratados apresentam-se freqüentemente em hiponatremia, mesmo que suas
perdas de fluido tenham sido isotônicas (ver Capítulo 7).
As estruturas responsáveis por detectar as variações da osmolalidade plasmática e
traduzi-las em termos de secreção de HAD (osmoreceptores) estão localizadas no próprio
hipotálamo, em íntimo contato com as células dos núcleos supra-óptico e paraventricular.
Essas células são capazes de “sentir” minúsculas variações da osmolalidade plasmática. É
interessante observar que os osmoceptores são estimulados apenas por variações “reais”
da tonicidade plasmática, ou seja, por solutos não permeantes através das membranas
celulares. Solutos que atravessam a membrana celular, como a uréia e, no caso de células
do sistema nervoso central, a glicose, não aumentam a secreção de HAD. Portanto, a
infusão de uréia não altera os níveis circulantes de HAD. O mesmo ocorre com relação à
hiperglicemia da diabetes mellitus descompensada, a menos que o paciente esteja
desidratado em razão da diurese osmótica (ver Capítulo 7), caso em que o estímulo à
secreção do HAD é a hipovolemia, e não a hiperglicemia.
As hipovolemias aumentam a secreção de HAD através da estimulação de
receptores de baixa pressão (atriais e venosos) e alta pressão (aorta e carótidas),
semelhantes àqueles envolvidos na regulação do volume circulante (ver Capítulos 6 e 7).
As vias aferentes desses receptores são os nervos vago e glossofaríngeo. O sistema de
baixa pressão é mais sensível do que o de alta pressão, bastando ocorrer uma depleção de
volume de 10%, mesmo sem alterações da pressão arterial, para que se observe um
aumento de 6 vezes na secreção de HAD.
O HAD, tanto na forma de arginina vasopressina como na de lisina vasopressina,
existe no plasma sob a forma livre, não ligada a proteinas. Devido a seu baixo peso
molecular, o HAD é filtrado livremente através dos capilares glomerulares. A extração
plasmática do HAD é feita principalmente pelo fígado e pelo rim, embora outros tecidos,
como o cérebro, possam também quebrar sua molécula. A excreção urinária é o segundo
método de eliminação de HAD, cuja concentração urinária correlaciona-se perfeitamente
com a respectiva concentração plasmática. Em indivíduos com diabete insípido
nefrogênico familiar (nos quais o túbulo coletor é incapaz de responder ao HAD) ocorre
alta concentração de HAD na urina, indicando a importância da metabolização renal do
hormônio. A taxa total (hepática e renal) de depuração (“clearance”) plasmática de HAD
varia entre 2 a 4 ml/min., o que determina uma meia vida curta para esse hormônio (10 a
40 minutos). Esta observação indica que em indivíduos normais a supressão da secreção
de HAD resulta em alterações detectáveis na diurese em aproximadamente 20 a 30
minutos.
Além desses fatores volêmicos e osmóticos, outros como a ação de drogas
vasoativas levam a alterações na secreção do HAD. É comum a observação de antidiurese
durante a infusão experimental de isoproterenol, um β-estimulante, mesmo que o animal
esteja com excesso de água, indicando estímulo da secreção do HAD. A infusão de
noradrenalina, em pequenas doses, pode determinar aumento da diurese por diminuir a
absorção de água no túbulo coletor, enquanto a administração de anestésicos pode levar a
uma hiponatremia devido à produção excessiva de HAD (ver Capítulo 11).
Inúmeros estudos têm enfatizado a participação do sistema renina-angiotensina-
aldosterona (SRAA) na regulação dos mecanismos de concentração e diluição urinárias.
Vários estudos mostraram que a administração sistêmica ou intracerebral (liquórica) de
angiotensina II determina um aumento na taxa de secreção de HAD. Verificou-se também
que o SRAA pode influenciar significativamente o centro da sede. Recentemente,
demonstrou-se que um heptapeptídeo formado diretamente a partir da Angiotensina I,
sem a participação da enzima conversora, denominado Angiotensina 1-7, exerce efeitos
semelhantes aos do HAD sobre a permeabilidade à água no ducto coletor medular
interno. A complexa relação do SRAA com outros sistemas hormonais é discutida em
maior detalhe no Capítulo 2.
CAPÍTULO 5 - PROCESSAMENTO DE ÁGUA E
ELETRÓLITOS PELOS TÚBULOS RENAIS Antonio Carlos Seguro, Antônio José de Barros Magaldi, Claudia Maria de Barros
Helou, Gerhard Malnic e Roberto Zatz
O rim dos mamíferos é composto por aproximadamente um milhão de
unidades funcionais denominadas néfrons, constituídas pelo glomérulo e por
catorze segmentos tubulares, cuja ação conjunta resulta na formação da urina. O
processo de formação da urina
inicia-se com a ultrafiltração
glomerular (Capítulo 2). O volume
de plasma filtrado nos glomérulos
em um único dia, cerca de 170
litros, corresponde a quase 60 vezes
o volume plasmático, o que reflete a
intensa perfusão sangüínea do
tecido renal (25% do débito
cardíaco, ou cerca de 1,25 L/min).
No entanto, menos de 1% desse
volume chega às vias urinárias,
graças ao incessante processo de
reabsorção (da luz tubular para o
espaço intersticial) que sofre o
ultrafiltrado ao longo de todos os segmentos do néfron (Figura 5-1). Da mesma
forma, menos de 1% do sódio que acompanha o filtrado glomerular chega a ser
excretado na urina, em condições normais. Já o potássio, cuja concentração no
fluido extracelular e, em particular, no plasma e no filtrado glomerular, é muito
Figura 5-1 – Representação esquemática do processo de absorção de água ao longo dos vários segmentos do néfron. A largura da região em amarelo representa o fluxo de água remanescente no lume tubular, o qual vai caindo progressivamente, de 170 L/dia no início do túbulo proximal (correspondentes ao RFG) a 1,5 L/dia (urina final)
DISTAL
ALÇA FINADESCENDENTE
ALÇAESPESSA
COLETOR
ALÇA FINAASCENDENTE
RFG = 170 L/dia
PROXIMAL
2
mais baixa que a de sódio, tem de ser secretado (do espaço intersticial para a luz
tubular) nas porções finais do néfron, para que sua taxa de excreção se iguale à de
ingestão. Esses exemplos vêm ilustrar os princípios básicos que governam a
formação da urina: 1) a composição da urina, tanto em termos de água como de
solutos, resulta da interação ininterrupta de três processos fundamentais: a filtração
glomerular, a reabsorção tubular e a secreção tubular. 2) para a água, assim como
para cada soluto excretado pelos rins, vale sempre o princípio do balanço: a
quantidade excretada de qualquer substância deve necessariamente igualar a que é
ingerida, ou teríamos um processo de acúmulo ou depleção da substância em
questão. Por exemplo, a carga excretada do sódio, cuja eliminação em condições
usuais ocorre quase exclusivamente pela urina, é praticamente idêntica à ingestão.
Já no caso do potássio a taxa de ingestão equivale à soma das excreções urinária
(95% da carga ingerida) e fecal (5% da carga ingerida) do íon. 3) a excreção renal
de qualquer substância é regulada de modo independente dos demais. Por exemplo,
se aumenta a ingestão de potássio, a excreção renal desse íon também aumenta até
que se restabeleça o balanço, sem que seja afetada a excreção de cálcio ou de sódio
.
No presente capítulo, estudaremos em detalhe os mecanismos de transporte
de água e eletrólitos através das paredes tubulares, especialmente com relação ao
sódio e ao potássio, e como esses processos resultam no controle fino da excreção
renal dessas substâncias.
Mecanismos básicos de transporte através de membranas epiteliais
A passagem de uma substância através de uma membrana epitelial pode se
dar através de dois tipos básicos de transporte, o passivo e o ativo:
3
Nos processos de transporte passivo (Figura 5-2), o movimento
transepitelial (reabsorção ou secreção) ocorre sem gasto de energia metabólica, ou
seja, trata-se de um processo espontâneo, que obedece diretamente a forças físicas
simples, como por exemplo a diferença de pressão hidráulica entre a luz capilar e o
espaço de Bowman, indispensável à ultrafiltração glomerular (Capítulo 2). A
absorção de água através das paredes tubulares tende a seguir as diferenças de
pressão osmótica, como ocorre de modo mais evidente no túbulo proximal e nos
túbulo coletor (este último em presença de hormônio antidiurético) (ver Capítulos
4 e 11). Já o transporte passivo de solutos pode obedecer a três forças básicas: 1)
simples arraste em conjunto com o fluxo de água (“solvent drag”), como ocorre na
absorção de potássio no túbulo proximal. 2) diferenças de potencial químico (ou
seja, diferenças de concentração), como as que governam a reabsorção e a secreção
tubulares de uréia. 3) diferenças de potencial elétrico, como a que explica a
absorção paracelular de íons cloreto e outros íons no túbulo proximal. Como as
diferenças de potencial químico e elétrico freqüentemente variam de modo
Figura 5-2 – A, transporte passivo de um soluto a favor de seu gradiente de potencial químico (da região de maior para a de menor concentração). B, transporte passivo de um cátion a favor de um gradiente elétrico (da região de mais alto para a de mais baixo potencial elétrico).
+
+
+
+
+
++
+ -
+
+
A B
4
simultâneo, é mais conveniente utilizarmos o conceito de diferença de potencial
eletroquímico, por meio do qual ambas as forças são tomadas em consideração.
Quando se considera o transporte passivo de água e solutos através de
estruturas epiteliais, é necessário considerar não apenas a natureza do transporte
(ativo ou passivo), mas também as estruturas moleculares através das quais esse
transporte está ocorrendo. É fácil a compreensão desse conceito quando se
considera por exemplo a absorção de água no duto coletor cortical. Conforme
discutido acima, há necessidade de uma diferença de pressão osmótica entre a luz
tubular e o interstício medular para que a água seja absorvida. Essa diferença é
normalmente representada pela hiperosmolaridade medular que resulta da ação do
sistema de contracorrente medular (Capítulo 4). Para que ocorra efetivamente o
transporte de água, no entanto, é necessária a presença do hormônio antidiurético,
o qual age na membrana luminal das células dos túbulos coletores, promovendo a
inserção de estruturas especializadas denominadas aquaporinas, verdadeiros canais
através dos quais a água pode fluir em obediência à diferença de pressão osmótica.
O transporte passivo de solutos através das paredes tubulares também
requer, na maioria das vezes, a presença de estruturas especializadas para ocorrer.
Essas estruturas podem assumir a forma de canais, como os existentes para sódio,
potássio, cloreto e vários outros eletrólitos. Podem também ser representadas por
carregadores, moléculas que se ligam ao soluto, facilitando sua difusão através da
membrana, como é o caso do transporte de glicose e da uréia. Mesmo na ausência
de estruturas assim especializadas, é possível ocorrer transporte passivo de solutos
por difusão simples, ou seja, atravessando diretamente o epitélio. É o que acontece
nos espaços intercelulares do túbulo proximal a da porção espessa da alça de
Henle, por onde pode ocorrer difusão simples em grande escala de íons cloreto e
sódio.
Define-se o transporte de uma determinada substância como ativo quando
ocorre contra um gradiente de potencial eletroquímico, ou seja, quando seu sentido
5
é contrário ao que se estabeleceria espontaneamente (por exemplo, a
movimentação de um soluto de uma região de menor para outra de maior
concentração ou a de um cátion de uma região de menor para outra de maior
potencial elétrico). É evidente que, não sendo espontâneos, esses processos
necessariamente consomem energia. Quando a energia que alimenta um processo
ativo está diretamente acoplada à atividade metabólica, ou seja, à hidrólise do
ATP, o processo é denominado transporte ativo primário, sendo os
transportadores envolvidos nesses processos denominados bombas. Na verdade,
essas bombas são enzimas que possuem um sítio de ligação para o ATP, sendo por
isso denominadas ATPases (Figura 5-3). O exemplo mais conhecido e ubíquo é o
da Na+/K+-ATPase, presente em todas as células e responsável pela contínua
movimentação de íons Na+ do interior para o exterior da célula, permutados por
íons K+ que se movem em sentido contrário, na proporção de 3 íons Na+ para 2
K+ (Figura 5-4). A atividade dessa bomba é a responsável pela extrema assimetria
+
+
+
+
++
+-
+
+
ATP
ADP+P
ATP
ADP+P
++
Figura 5-3 - A, transporte ativo de um soluto contra um gradiente de potencial químico (da região de menor
para a de maior concentração). B, transporte ativo de um cátion contra um gradiente elétrico (da região de mais baixo para a de mais alto potencial elétrico).
A B
6
de perfis iônicos entre o meio
intracelular, onde a
concentração de íons K+ é
muito mais alta que a de sódio,
e o extracelular, onde esse
perfil é inverso.
A atividade de uma
ATPase, modificando os perfis
de concentração iônica no
interior da célula, pode gerar
indiretamente um movimento
contra gradiente eletroquímico de outras moléculas ou íons. Um exemplo desse
efeito está representado na Fig. 5-5. Graças à contínua extrusão do soluto A pela
ATPase localizada entre os compartimentos 2 e 3, a concentração de A no
compartimento 2 é mantida constantemente baixa, enquanto a concentração desse
soluto em 1 permanece
constante. Por essa razão,
ocorre um fluxo contínuo de A
para B, movido pelo gradiente
químico favorável. O soluto B
“pega carona” com o soluto A
ligando-se a uma molécula
especial situada na membrana
que separa 1 e 2, à qual também
se une o soluto A. Como este
flui continuamente para o
interior da célula, graças ao gradiente químico gerado pela bomba, o soluto B
acaba sendo transportado também, mesmo contra um gradiente químico
Figura 5-4 – Efeito da atividade da Na+/K+-ATPase da membrana celular, mantendo baixa a concentração intracelular de Na+ e alta a de K+. No meio extracelular, esse perfil se inverte.
Na+
K+
Na+
K+
K+
K+
K+K+
K+K+
K+
K+K+
K+
K+K+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
Na+
K+
K+
K+ K+ K+
K+
K+
ATP
ATP
ATP
A
A
A
A
A
A
A
A
A
AA
A
A
A
A
A
A
A
A
A
AA
A
A
A
A
A
A
A
A
A
A
A
AA
A
A
A
A
A
A
A
A
A
B
B
B
B
B
BB
B
B
B
B
BB
B
B
Figura 5-5 – Eexemplo de transporte ativo secundário. A atividade da ATPase promove a extrusão do soluto A de 2 para 3, mantendo baixa sua concentração no compartimento 2 e facilitando sua entrada a partir de 1. O soluto B “pega carona”no gradiente de A gerado entre os compartimentos 1 e 2, sendo transportado contra seu próprio gradiente de concentração. Posteriormente, o soluto B pode passar do
1 2 3
7
desfavorável. A esse tipo de transporte ativo, que não utiliza energia metabólica a
não ser indiretamente, denomina-se transporte ativo secundário. Quando duas
substâncias são transportadas no mesmo sentido por uma molécula carregadora
comum, como no exemplo recém descrito, estamos diante de um cotransporte.
Quando os sentidos de transporte são opostos, como ocorre com o Na+ e o H+ em
vários segmentos do néfron, falamos de um contratransporte.
Um terceiro tipo de transporte ativo é aquele representado pela endocitose,
responsável pela absorção tubular de proteínas. Aqui, ocorre uma modificação da
própria membrana luminal, que sofre uma invaginação, formando vacúolos, por
meio dos quais as macromoléculas são hidrolisadas e seus componentes
transportados até a membrana basolateral, de onde ganham a circulação. É através
desse processo que os túbulos proximais são capazes de absorver as proteínas
filtradas através das paredes glomerulares (ver Capítulo 3).
Apesar de extremamente complexa, a maquinaria de transporte utilizada
pelas células tubulares é flexível o suficiente para ser modificada quando
necessário. Para atender a determinadas necessidades de transporte, a célula tem a
capacidade de inserir moléculas transportadoras na membrana apical ou
basolateral, e de retirá-las quando não mais necessárias. Por exemplo, ao detectar
uma acidificação de seu interior, as células do túbulo coletor inserem, em sua
borda luminal, moléculas de H+-ATPase, que vão promover a extrusão de íons H+
para a luz tubular e que serão retiradas quando a anomalia tiver sido corrigida. A
inserção de aquaporinas na membrana luminal das células do túbulo coletor, sob a
ação do hormônio antidiurético, é outro exemplo dessa enorme capacidade
reguladora dos epitélios de transporte.
ATIVIDADE ELÉTRICA CELULAR - BIOELETROGÊNESE
8
Como vimos, a atividade da Na+/K+-ATPase celular gera uma substancial
assimetria de concentrações iônicas, com baixas concentrações de Na+ e altas
concentrações de K+ no espaço
intracelular. Como a membrana
celular da maioria das células é
muito mais permeável a K+ do
que a qualquer outro íon,
estabelece-se de início através
dela um vazamento passivo de
K+ (Fig 5-6). Devido a esse
fluxo, ocorre uma separação de
cargas elétricas, tornando-se o
interior da célula negativo em
relação ao meio extracelular. Gera-se portanto uma diferença de potencial elétrico
entre o interior e o exterior da célula, com o interior da célula negativo, o que
favorece a entrada passiva de sódio no compartimento intracelular. Como a
membrana é muito mais permeável ao K+ do que ao sódio, a diferença de potencial
estabiliza-se em um valor não muito distante do que se estabeleceria caso o K+
fosse o único íon existente no sistema. Por essa razão, dizemos que essa diferença
de potencial consiste basicamente em um potencial de difusão de potássio. A essa
diferença de potencial, presente em todas as células, denominamos potencial de
membrana. Em condições de repouso, o potencial de membrana é de
aproximadamente 70 mV.
Epitélios transportadores vs. epitélios não-transportadores
Nos epitélios não especializados em transporte, como o da pele e o da
mucosa bucal, a membrana celular comporta-se da mesma maneira em toda a sua
extensão, ou seja, tanto a densidade de moléculas de Na+/K+-ATPase como as
Figura 5-6 – Geração do potencial de membrana. Devido à atividade da Na/K ATPase da membrana, a concentração de K+ intracelular é muito maior do que no meio extracelular. Como a membrana é muito mais permeável ao K+, estabelece-se através dela um potencial de difusão de K+
K+
ATPATP
K+Na+
K+
Na+Na+
+ - - +
9
permeabilidades a íons são mais ou menos
uniformes. Como conseqüência lógica, o
potencial de membrana é sempre o mesmo
seja qual for o ponto da membrana em que é
medido. As células são portanto simétricas
do ponto de vista elétrico, conforme
ilustrado na Figura 5-6. Se pudéssemos
atravessar um epitélio munidos de um
voltímetro, medindo o potencial elétrico
inicialmente na porção interna do epitélio, a
seguir no próprio espaço intracelular e,
finalmente, na porção externa do epitélio,
veríamos um perfil em “poço” (Fig 5-7): o
potencial elétrico seria zero na porção
interna, cairia abruptamente a –70 mV ao
adentramos a célula e retornaria a zero ao
chegarmos à porção externa. Se medirmos a
diferença de potencial entre o espaço
intracelular e o extracelular (seja na porção
interna ou externa do epitélio), teremos 70
mV, com o interior da célula negativo. Se no entanto medirmos a diferença de
potencial entre o lado interno e o externo do epitélio (ou seja, a diferença de
potencial transepitelial), teremos, evidentemente, zero. A quantidade de solutos
transportada de um lado a outro da célula é também zero.
Consideremos agora uma célula transportadora, como as dos túbulos renais
e as do epitélio intestinal (Figura 5-8). Essas células apresentam uma
particularidade importante: suas membranas são assimétricas. Em primeiro lugar, a
Na+/K+-ATPase está confinada à membrana basolateral, ou seja, aquela voltada
Figura 5-7 – Perfil de potencial elétrico em poço em uma célula de um epitélio não transportador. A célula é eletricamente simétrica e a diferença de potencial transepitelial é zero. A quantidade de soluto transportada através do epitélio é zero. I, porção interna do epitélio; IC, meio intracelular; E, porção externa do epitélio.
POTENCIAL ELÉTRICO, mV
-100
-90
-80
-70
-60
-50
-40
-30
-20
-10
0
10
I IC E
mV
0
50-50
10
ao interstício. Em segundo lugar, a membrana oposta, ou seja, a membrana luminal
(também denominada apical), voltada ao lume do órgão, apresenta uma alta
permeabilidade ao Na+, muito superior à de outras células (ou à da membrana
basolateral) e que representa uma fração substancial da permeabilidade ao próprio
K+. Devido a essa assimetria, dizemos que essas células apresentam uma
polaridade. Essa assimetria confere a essas células a importante capacidade de
promover um fluxo resultante de sódio desde o lume tubular até o espaço
intersticial, o que evidentemente constitui a propriedade fundamental das células
transportadoras. Também em conseqüência de sua polarização, as células
transportadoras são eletricamente assimétricas: a existência de uma
permeabilidade a sódio na membrana apical, permitindo um maior fluxo de Na+ do
lume ao interior da célula, faz com que o potencial de membrana seja menos
negativo, ou seja, despolariza a membrana apical. Em conseqüência disso, o perfil
de potencial em poço, descrito acima para células não transportadoras, não mais é
observado, já que o potencial de membrana é agora mais baixo no lado luminal. Se
medirmos nessas
condições a
diferença de
potencial entre o
lume tubular e o
interstício,
observaremos uma
diferença de
potencial
transepitelial
diferente de zero e
orientada no sentido
do transporte de
Figure 5-8 – Configuração básica de uma célula transportadora. A Na+/K+/ATPase está confinada à membrana basolateral, enquanto a membrana luminal apresenta uma alta permeabilidade ao Na+. Ocorre em consequência um transporte resultante do lume ao interstício. A membrana luminal é despolarizada pela entrada de Na+, provocando um aassimetria elétrica, estabelecendo-se uma diferença de potencial transepitelial, com o lume negativo em relação ao interstício. L, lume; IC, meio intracelular; I, interstício
POTENCIAL ELÉTRICO, mV
-100
-90
-80
-70
-60
-50
-40
-30
-20
-10
0
10
L IC I
mV
0
50-50
K+
ATPNa+
K+
Na+Na+
+ - - +L IC I
11
Na+, ou seja, no caso das células tubulares, com o lume negativo em relação ao
interstício (Fig. 5-8). Essa diferença de potencial pode atingir algumas dezenas de
mV se a passagem de eletrólitos através das junções intercelulares for restrita (ver
adiante). Todas as células transportadoras apresentam essa configuração
básica. No entanto, as células tubulares renais diferem bastante entre si, conforme
o segmento do néfron, no que diz respeito: 1) à natureza e magnitude dos sistemas
apicais de transporte de Na+; 2) à densidade da Na+/K+-ATPase basolateral; 3) às
propriedades das junções intercelulares e 4) à permeabilidade à água. É a variação
dessas propriedades o que confere a cada um desses segmentos suas principais
características fisiológicas, como a capacidade absortiva, a capacidade de gerar
gradientes, etc, conforme veremos mais adiante.
TRANSPORTE DE ÁGUA E ELETRÓLITOS NOS DIVERSOS SEGMENTOS
DO NÉFRON
Túbulo proximal
Como todas os demais segmentos do néfron, o túbulo proximal é
constituído de um epitélio simples, ou seja, de uma única camada de células
separada do interstício e dos vasos peritubulares por uma membrana basal. O
túbulo proximal é uma estrutura adaptada à absorção maciça de água e eletrólitos.
Na verdade, cerca de 2/3 de todo o fluido filtrado nos glomérulos são absorvidos
no túbulo proximal o que, a uma taxa de filtração glomerular de aproximadamente
170 L/dia, equivale a quase 120 L/dia. Para dar conta desse enorme fluxo
absortivo, as células do túbulo proximal dispõem de uma série de estruturas
especializadas, destinadas a promover o transporte de sódio (Fig. 5-9). Em
primeiro lugar, sua membrana basolateral é extremamente rica em Na+/K+-
ATPase, o que lhe permite manter sempre baixa a concentraçao intracelular de
sódio. Além disso, existe em sua membrana luminal uma série de estruturas
destinadas a facilitar o ingresso de sódio do lume ao interior da célula. O sódio
12
pode atravessar a membrana luminal em troca por íons H+ secretados para o lume
tubular, por meio de um contratransportador Na+/H
+. Essa secreção H+ é também
importante no processo de acidificação urinária (Capítulo 12). Os íons Na+ podem
também ingressar à célula em associação com a glicose, por intermédio de um
cotransportador sódio-glicose,
com o que a célula também
atende à necessidade de
absorver a glicose filtrada no
glomérulo. Através de
mecanismos de cotransporte
semelhantes, o sódio pode ser
reabsorvido em conjunto com
aminoácidos, fosfato
inorgânico, sulfatos ou ácidos
orgânicos. O sódio pode ainda
cruzar a membrana luminal
associado a íons Cl-, em um
complexo processo que também
envolve o transporte de bases orgânicas. Todos esses mecanismos de transporte de
sódio acoplado a outros solutos dependem, conforme discutido anteriormente, do
gradiente eletroquímico de Na+ entre o lume e o interior da célula, gerado pela
intensa atividade da Na+/K+-ATPase basolateral; constituem portanto exemplos de
transporte ativo secundário.
É importante lembrar que, ao descrever os processos de absorção de íons,
no túbulo proximal ou em qualquer epitélio transportador, devemos sempre
observar um princípio básico: o da eletroneutralidade, segundo o qual não se
podem acumular, em sistemas biológicos, cargas elétricas em quantidade
significativa, caso contrário estaríamos gerando altíssimas diferenças de potencial
Figura 5-9 – Transportadores envolvidos na absorção de sódio no túbulo proximal. L, lume; I, interstício; G, glicose; AA, aminoácidos
Na+
Na+
G
AA
Cl-
H+
ATP
L I
13
elétrico ao longo dos tecidos (com exceção de animais como o peixe elétrico, que
desenvolve separação de cargas e altas diferenças de potencial elétrico exatamente
para eletrocutar seus inimigos). Isso significa que, para ocorrer a absorção de um
íon Na+, é necessária em última análise a absorção concomitante de um ânion ou a
secreção concomitante de um cátion. Essas considerações são importantes para
entendermos por que a absorção
proximal de Na+ se dá
principalmente em associação
com o HCO3- e o Cl
-, conforme
verificaremos a seguir.
A contínua secreção de
H+ para a luz tubular, em troca
pela absorção de Na+, tem como
conseqüência a destruição de 1
íon HCO3- para cada íon H+
secretado, dando origem ao
ácido carbônico (H2CO3). (Fig.
5-10). Essa reação se processa
rapidamente por duas razões: 1)
há uma enorme quantidade de íons HCO3- no fluido proximal, provenientes do
filtrado glomerular. 2) a borda em escova das células proximais possui grandes
quantidades da enzima anidrase carbônica, que cataliza a desidratação do H2CO3.
Como os íons H+ a serem secretados originam-se em última instância da
dissociação intracelular do H2CO3 em H+ e HCO3-, e como estes últimos acabam
deixando a célula através da membrana basolateral por cotransporte com o próprio
sódio (Fig. 5-10), o resultado final desse processo é a absorção de NaHCO3. Esta
absorção de HCO3- tende a reduzir, ao longo do túbulo proximal, a concentração
Figura 5-10 – Absorção proximal de HCO3-. L, lume;
I, interstício; AC, anidrase carbônica
H+
+HCO3
-
A.C.
+CO2
H+ +
A.C.
H2O +
Na+
L I
Na+
ATP
HCO3-
HCO3-
H2CO3
CO2
H2O
14
luminal desse íon e a elevar a de Cl-, o que tem grande importância na absorção
paracelular de NaCl, conforme veremos a seguir.
Para entendermos agora por que uma parte da absorção proximal de Na+
ocorre em associação com os íons Cl-, é necessário compreender o importante
papel que desempenham nesse segmento as junções intercelulares. No túbulo
proximal, os complexos juncionais, como são conhecidas as estruturas que
conectam uma célula a outra, oferecem muito pouca resistência à passagem de
eletrólitos. Seu efeito elétrico, portanto, é o de uma resistência muito baixa
disposta em paralelo com as células epiteliais, colocando o sistema em curto-
circuito. Esse efeito atenua fortemente a diferença de potencial transepitelial
gerada pelo transporte de sódio e
ilustrada na Figura 5-8: ao invés de
algumas dezenas de mV, a diferença
de potencial transepitelial no túbulo
proximal não ultrapassa uns poucos
mV. Há ainda uma conseqúência
fisiológica importante: por permitir
um fluxo iônico considerável através
dos espaços intercelulares, os
complexos juncionais facilitam ainda
mais a absorção de íons pelo epitélio
do túbulo proximal. É graças a essa
propriedade que grandes quantidades de íons cloreto podem ser absorvidas,
facilitadas pela concentração de Cl- ao longo do túbulo proximal (Fig. 5-11). Sem
a existência da via paracelular, o fluxo de cloreto seria muito menor, já que a via
transcelular oferece grande resistência à passagem desse íon. Isso limitaria por sua
vez a absorção do próprio sódio, já que a entrada concomitante de um ânion é uma
das maneiras de garantir a eletroneutralidade do sistema, conforme discutido
Figura 5-11 – Mecanismo de absorção proximal de NaCl. L, lume; I, interstício
Na+
Na+
G
Cl-
ATP
L I
AA
Cl-
15
acima, especialmente quando o Na+ penetra a membrana luminal sem a absorção
simultânea de um ânion: esse é o caso da absorção de Na+ em associação com
moléculas sem carga elétrica resultante, como glicose e aminoácidos (Figura 5-11).
Epitélios como o do túbulo proximal, com grande capacidade absortiva e
baixa resistência elétrica intercelular, são denominados “epitélios de vazamento”
(“leaky”, em inglês). São epitélios adaptados ao transporte maciço de água e
eletrólitos, facilitados pelas propriedades descritas acima. São também encontrados
no intestino delgado e na vesícula biliar, epitélios onde esse ávido processo de
absorção também ocorre.
Apesar de sua capacidade de gerar grandes fluxos iônicos, o túbulo
proximal é incapaz de manter gradientes importantes de concentração. Isso ocorre
porque a baixa resistência
da via paracelular tende a
igualar (“curto-circuitar”)
quaisquer diferenças de
potencial elétrico ou
químico que a atividade
absortiva pudesse
estabelecer, exatamente por
faciltar a passagem de íons.
Assim como não consegue
sustentar gradientes elétricos ou químicos, o epitélio do túbulo proximal é também
incapaz de manter diferenças importantes de pressão hidráulica ou osmótica,
devido à alta permeabilidade à água desse segmento, consequente não apenas às
propriedades da via paracelular mas principalmente à presença de canais de água
(aquaporinas) na membrana luminal. Essa característica traz uma importante
conseqüência funcional: com a maciça absorção de sais de Na+, gera-se uma
ligeira, quase indetectável queda da pressão osmótica, de 288 mOsm,
Figura 5-12 – A absorção de sódio no túbulo proximal gera uma ligeira hipotonicidade intraluminal , suficiente para garantir a absorção isotônica de água. L, lume; I, interstício
L
ATPNa+
H2O
Na+
H2O
285 mOsm 288 mOsm
I
16
correspondente à osmolaridade do filtrado glomerular e do interstício, a 285
mOsm/L no fluido que percorre o túbulo proximal (Figura 5-12). Devido à alta
permeabilidade do epitélio proximal, esse pequeno gradiente osmótico acaba
gerando um fluxo de água da luz tubular ao interstício, o que impede que essa
diferença de pressão osmótica ultrapasse 2 a 3 mOsm/L. Portanto, as
características físicas do epitélio proximal fazem com que a absorção de água
nesse segmento permaneça estreitamente acoplada à de sódio. Por essa razão, a
absorção de fluido no túbulo proximal é isotônica, ou seja, sódio e água são
absorvidos na mesma proporção, de modo a não alterar a concentração de sódio no
fluido que permanece no lume tubular. É essa propriedade do epitélio do túbulo
proximal que torna possível a ação dos diuréticos osmóticos (Capítulo 6).
Embora as características básicas descritas acima estejam presentes em
todas as células do túbulo proximal, existe variação funcional importante ao longo
da extensão desse epitélio, de magnitude suficiente para que possamos dividi-lo
em três segmentos. Os dois primeiros, denominados S1 e S2, correspondem à parte
convoluta do túbulo, seguindo-se um segmento mais ou menos retilíneo, o
segmento S3, conhecido também como pars recta.
No segmento S1, correspondente às porções iniciais do túbulo proximal, a
absorção de sódio se dá principalmente em troca por H+, conforme discutido
acima. Uma parcela bem menor é absorvida por cotransporte com glicose e
aminoácidos, sendo necessariamente acompanhada pela reabsorção de um íon
cloreto. Sendo a absorção de NaHCO3 muito mai intensa que a de NaCl, o cloreto
acaba sendo concentrado ao longo do segmento S1. Já no segmento S2, a
concentração de cloreto chega a ser 30% superior à do plasma, enquanto a de
HCO3- cai muito devido à intensa absorção ocorrida no segmento S1. Diante desse
novo contexto, o cloreto agora difunde-se da luz ao interstício, facilitando,
conforme discutido acima, a absorção de sódio e de água. Essa difusão é tão
intensa que provoca uma deficiência relativa de cargas negativas na luz tubular,
17
chegando a inverter a diferença de potencial transepitelial, que passa de –3 mV a
+2 mV.
No segmento S3, os processos de absorção de NaCl descritos para o
segmento S2 continuam a ocorrer, em grau menos intenso devido ao esgotamento
do HCO3- luminal e o progressivo retorno ao normal da concentração de cloreto.
No entanto, o que caracteriza esse segmento é sua capacidade de secretar ácidos
orgânicos. Essa secreção, que depende de um transporte ativo secundário
envolvendo um complexo processo de contratransporte com sódio, é o que permite
a excreção renal de compostos endógenos, como o ácido úrico, e de fármacos,
como a aspirina, antibióticos e diuréticos, muitos dos quais são pouco filtrados no
glomérulo por ligarem-se às proteínas plasmáticas.
O intenso transporte de sódio e água que se processa ao longo de todo o
túbulo proximal acaba por levar indiretamente à absorção de vários outros solutos
de grande relevância, entre os quais se incluem o potássio, o cálcio, o magnésio e a
uréia. Os mecanismos através dos quais a absorção desses solutos se acopla à de
sódio não estão de todo esclarecidos, incluindo provavelmente transporte ativo
secundário, além de várias modlaidades de transporte passivo, tais como a difusão
simples através da via paracelular, “a reboque” da absorção de água, e o “arraste”
puro e simples (“solvent drag”) pelo próprio fluxo transepitelial de água. Devido a
esses processos de acoplamento, esses solutos acabam sendo absorvidos no túbulo
proximal na mesma proporção em que o são a água e o sódio. No caso do cálcio,
do fósforo e do magnésio, entram também em cena fatores hormonais, que
modulam a absorção desses íons de acordo com as necessidades do organismo (ver
Capítulo 13). Também a uréia tem seu transporte vinculado ao de sódio e água no
túbulo proximal. Essa relação torna-se importante quando analisamos o
comportamento da uréia nas desidratações (ver Capítulo 7).
Em resumo, o túbulo proximal realiza um intenso trabalho de absorção do
sódio e da água filtrados no glomérulo. O motor desse processo é a atividade da
18
Na+/K+- ATPase situada na membrana basolateral. Para facilitar esse transporte, o
túbulo proximal utiliza-se de vários transportadores situados na membrana
luminal, e dos complexos juncionais intercelulares, que oferecem pouca resistência
à passagem de água e de solutos. Em sua primeira porção, o segmento S1,
predomina a absorção de NaHCO3, enquanto nas porções restantes o sódio é
absorvido principalmente em associação com o cloreto. A absorção de água segue
fielmente a de sódio, arrastando consigo outros solutos como o potássio. Cerca de
2/3 de toda a água e sódio filtrados no glomérulo são absorvidos ao longo dos três
segmentos do túbulo proximal.
Alça de Henle
A alça de Henle divide-se em pelo menos três subsegmentos totalmente
distintos entre si do ponto de vista funcional: a porção fina descendente, a porção
fina ascendente e a porção espessa. As porções finas da alça de Henle, tanto a
descendente quanto a ascendente, são segmentos pouco adaptados à realização de
transporte intenso de água ou solutos. Seus epitélios são constituídos de células
pequenas, pobres em mitocôndrias, indicando pouco consumo de energia
metabólica e, coerentemente, pobres também em Na/K-ATPase basolateral. Apesar
de sua fraca atividade transportadora, as alças finas desempenham um papel
essencial no mecanismo de contracorrente responsável pela formação de urina
hipertônica (ver Capítulo 4), especialmente no caso das alças mais profundas.
A porção fina descendente da alça de Henle é altamente permeável à água e
pouco permeável a solutos. Como esse segmento atravessa regiões medulares de
osmolaridade crescente (especialmente em se tratando de néfrons profundos), a
osmolaridade do fluido intratubular equilibra-se rapidamente com a da medula,
chegando a ~1.300 mOsm na transição para a porção ascendente. A maior parte da
19
água que deixa o túbulo proximal (correspondente a 20% da taxa de filtração
glomerular) é assim absorvida nesse segmento. Apenas uma pequena parte da
hipertonicidade que se estabelece nesse segmento decorre da entrada, também
passiva, de cloreto de sódio do interstício para a luz tubular.
A porção fina ascendente da alça de Henle apresenta uma peculiaridade
importante: ocorre nesse segmento uma dissociação entre as permeabilidades à
água e a solutos. Enquanto o sódio e, em menor grau, a uréia, são capazes de
cruzar as paredes desse segmento, a água é retida na luz tubular: trata-se de um
segmento relativamente impermeável à água. Em conseqüência dessas
propriedades físicas, e à medida que o fluido percorre a alça fina ascendente,
distanciando-se da ponta da papila, ocorre saída de cloreto de sódio da luz para o
interstício (ou seja, absorção de sódio), obedecendo ao gradiente eletroquímico
favorável, enquanto a uréia, também a favor de um gradiente químico, movimenta-
se do interstício para a luz tubular (ou seja, ocorre secreção de uréia). Como a
saída de cloreto de sódio supera a entrada de uréia, o fluido tubular vai-se diluindo
à medida que se distancia da papila, acompanhando a queda correspondente da
osmolaridade intersticial.
Porção espessa da alça de Henle
A porção espessa ascendente da alça de Henle, que pode ser dividida em
uma porção medular e uma porção cortical, compartilha algumas características
físicas importantes com a porção fina ascendente: é também pouco permeável à
água e bastante permeável a eletrólitos como o sódio e o potássio. Apresenta, no
entanto, uma diferença importante com relação àquele segmento: suas células,
muito mais altas do que as das porções finas (o que confere a esse segmento a
característica anatômica de porção “espessa”), são extremamente ricas em
mitocôndrias, apresentando além disso uma alta densidade de Na+-K+ATPase na
membrana basolateral. Trata-se portanto de um epitélio altamente capacitado para
20
o transporte maciço de cloreto de sódio: cerca de 25% da carga filtrada de NaCl
são reabsorvidos nesse segmento. No entanto, a baixa permeabilidade à água faz
com que a porção espessa da alça de Henle seja também o principal segmento
diluidor do fluido tubular, sendo absolutamente essencial a que o organismo
consiga eliminar uma urina diluída. Por outro lado, sua atuação como segmento de
absorção de NaCl é importante para a geração da hipertonicidade medular (e
portanto para a eliminação de urina concentrada), o que torna a porção espessa da
alça de Henle um segmento chave nos processos de concentração e diluição
urinárias.
O funcionamento da porção
espessa da alça de Henle obedece ao
esquema típico dos epitélios
transportadores (Figura 5-13): a
Na/K-ATPase, abundante, como
vimos, nesse segmento, está no
entanto confinada à membrana
basolateral, enquanto na membrana
apical um sistema especializado
facilita o ingresso de íons à célula.
No caso da porção espessa da alça
de Henle, esse sistema é
representado por um
cotransportador bastante peculiar,
que promove o ingresso simultâneo à célula de 1 íon sódio, 1 íon potássio e 2 íons
cloreto. Esse cotransportador é sensível ao diurético furosemide (Capítulo 6). A
energia necessária a esse movimento é fornecida, como em outros epitélios
transportadores, pela Na+/K+-ATPase situada na membrana basolateral, a qual
mantém constantemente baixa a concentração intracelular de sódio. Graças a esse
Na+ Na+
ATP
L
Cl-K+
K+
Na+, K+, Ca++, Mg+++ - - +
K+
Cl-
I
Figura 5-13 - Estruturas transportadoras na porção espessa da alça de Henle. O cotransportador Na+/K+/2Cl é peculiar a esse segmento. L, lume; I, interstício
21
cotransportador, ocorre uma entrada maciça de cloreto e de potássio na célula,
elevando as concentrações intracelulares desses íons. O cloreto deixa a célula
atravessando a membrana basolateral, em cotransporte com o próprio potássio ou,
principalmente, através de canais específicos, o que despolariza a membrana
basolateral. Já o potássio pode também abandonar a célula através da membrana
basolateral, mas também através de um canal específico de alta condutância
situado na própria membrana apical, que a torna altamente permeável a esse íon.
Como a concentração intracelular de potássio é elevada devido à atividade do
cotransportador Na-K-2Cl, a membrana apical é hiperpolarizada. As alterações
combinadas de potencial nas membranas apical e basolateral fazem com que exista
na porção espessa da alça de Henle uma diferença de potencial transepitelial, com
o lume positivo em relação ao interstício. Essa diferença de potencial permite que
uma parte do Na+ e do K+ intraluminais, além daquela introduzida na célula pelo
cotransportador apical, seja absorvida por difusão passiva através dos espaços
intercelulares, altamente permeáveis a eletrólitos. Ocorre o mesmo com relação ao
Ca++ e ao Mg++.
No segmento cortical da porção espessa ascendente da alça de Henle
observa-se, além do complexo transporte de cloreto de sódio descrito acima,
também uma secreção de H+ através do contratransportador Na+-H+ presente na
membrana luminal, à semelhança do que ocorre no túbulo proximal. Graças a esse
transporte, cuja fonte energética é mais uma vez a Na/K-ATPase basolateral, cerca
de 10% da carga filtrada de bicarbonato, correspondentes à quase totalidade do que
escapou à absorção proximal, são recuperados nesse segmento (ver também
Capítulo 12).
Em resumo, ocorre nos dois segmentos que constituem a porção ascendente
espessa da alça de Henle um intenso processo de absorção de sódio, cloreto,
potássio e bicarbonato. Esse transporte é mantido, em última análise, pela
atividade da Na/K-ATPase basolateral, sendo extremamente facilitado pela
22
presença, na membrana apical, de um sistema de cotransporte através do qual 1 íon
sódio, 1 íon potássio e 2 íons cloreto são trazidos simultaneamente desde a luz
tubular até o interior da célula. A alta permeabilidade a íons dos complexos
juncionais permite o transporte, por difusão passiva, de quantidades adicionais de
sódio e potássio, além de cálcio e magnésio.
Túbulo Distal
O túbulo distal compreende dois
segmentos completamente diferentes quanto a
suas características transportadoras: um segmento
inicial, ou convoluto, e um segmento final, este
último constituído por dois subsegmentos, o
assim denominado túbulo de conexão e o túbulo
coletor cortical inicial (Figura 5-14).
O túbulo convoluto distal
apresenta uma importante
característica em comum com a
porção espessa da alça de Henle:
sua permeabilidade à água é muito
baixa. No entanto, o
cotransportador Na+/K+/2Cl- está
ausente desse segmento. Em seu
lugar, a membrana apical utiliza um
cotransportador Na+/Cl
-, peculiar a
Na+
Na+
Cl-ATP
K+Na+
Cl-
L I
Figura 5-15 – Mecanismos básicos de transporte de NaCl no túbulo contorneado distal. L, lume; I, interstício
Fig. 5-14 – Esquema dos principais segmentos do néfron. O túbulo distal é composto por dois segmentos básicos, o túbulo convoluto distal (TCD) e o túbulo distal final, este último constituído pelo túbulo de conexão (TC) e pelo coletor cortical inicial (CCI)
23
esse segmento do néfron, que promove o transporte eletroneutro de um íon Na+ e
um íon Cl- da luz tubular ao interior da célula (Figura 5-15). Esse cotransportador
pode ser inibido através da administração dos diuréticos tiazídicos (Capítulo 6).
Como em outros segmentos, também aqui o transporte de sódio através da
membrana luminal depende do gradiente eletroquímico favorável gerado pela
atividade da Na+/K+-ATPase basolateral. O fluxo de NaCl nesse segmento é
inteiramente transcelular, não envolvendo portanto a passagem de íons pelos
complexos juncionais.
O túbulo distal final apresenta atividade transportadora e
propriedades eletrofisiológicas bastante semelhantes às do túbulo coletor, as quais
serão analisadas em detalhe nos parágrafos que se seguem.
Túbulo coletor
O túbulo coletor costuma ser dividido em quatro segmentos, o cortical, o
medular externo, o medular interno e o duto papilar. Com exceção do último,
altamente permeável à uréia em presença do HAD (ver Capítulo 4), todos esses
segmentos possuem em comum algumas características funcionais básicas,
diferindo no entanto com relação à magnitude dos processos de transporte que ali
ocorrem. Por uma questão de simplicidade, o túbulo coletor será aqui considerado
como um único segmento.
No túbulo coletor, assim como na porção final do túbulo distal, dois tipos
celulares coexistem: as células principais, responsáveis pela absorção de sódio, e
as células intercaladas, especializadas no transporte de íons H+ e HCO3- (ver
Capítulo 12). Neste capítulo, analisaremos apenas o papel das células principais.
Nessas células (Fig. 5-16), o íon sódio penetra a membrana luminal, conduzido
pela diferença de potencial eletroquímico favorável, através de um canal
específico, que pode ser bloqueado pelo diurético amiloride (ver Capítulo 6). Uma
24
vez no interior da célula, os íons sódio
são bombeados através da membrana
basolateral pela Na/K-ATPase. Para
que a eletroneutralidade seja mantida,
parte desse fluxo transcelular de íons
sódio é compensada pela absorção de
íons cloreto através dos complexos
juncionais. Ocorre no entanto que, no
túbulo coletor, os complexos
juncionais são muito menos
permeáveis a eletrólitos do que os do
túbulo proximal ou os da porção
espessa da alça de Henle. Epitélios
como esse, em que as passagens intercelulares apresentam alta resistência elétrica,
são denominados “coesos” (“tight”, em inglês). Esse relativo isolamento elétrico
entre as células do túbulo distal final e do túbulo coletor tem algumas
conseqüências importantes. 1) esses segmentos, particularmente as porções finais
do túbulo coletor, são capazes de manter enormes gradientes de potencial
eletroquímico, baixando a níveis insignificantes a concentração intraluminal de
sódio. É na verdade nesses segmentos que se processa o ajuste fino da excreção de
sódio (ver adiante). 2) a diferença de potencial transepitelial, agora não mais
“curto-circuitada” pelas junções intercelulares, como no túbulo proximal, pode
atingir algumas dezenas de mV, devido à grande despolarização da membrana
luminal pela entrada de Na+ através de seu canal específico. O perfil elétrico desse
segmento assemelha-se àquele representado na Figura 5-8. 3) há um limite para o
fluxo de íons Cl- através das junções intercelulares. Por essa razão, não é possível a
esse segmento realizar um transporte maciço de NaCl, tal como ocorre no túbulo
proximal e na porção espessa da alça de Henle. 4) ainda em conseqüência do
Figura 5-16 – Representação esquemática do transporte de Na+, K+ e Cl- no túbulo distal final e no túbulo coletor. L, lume; I, interstício
Na+
Na+ATP
K+
Na+
Cl-Cl-
L I
+ -
-+
25
limitado fluxo de Cl- através das junções intercelulares, a manutenção da
eletroneutralidade nesse segmento exige a saída de um cátion da célula em direção
ao lume, para compensar parte da entrada de sódio. Por três razões básicas, esse
cátion é quase sempre o potássio: 1) trata-se do mais abundante íon intracelular,
superando em várias vezes a concentração dos demais. 2) A diferença de potencial
eletroquímico entre o interior da célula epitelial e o lume tubular (concentração de
potássio muito mais alta na célula, potencial elétrico bastante negativo no lume) é
amplamente favorável à evasão de potássio. 3) Existe nesses segmentos um canal
específico para potássio, que confere à membrana apical uma alta permeabilidade a
esse íon. Devido a esse comportamento, o túbulo distal final e o túbulo coletor
apresentam uma importante característica: ocorre nesse segmento uma secreção de
potássio. Essa secreção tem um papel relevante no processamento renal desse íon.
Conforme notado acima, o potássio filtrado é quase totalmente absorvido no túbulo
proximal e na porção espessa da alça de Henle. Para que o organismo possa
excretar uma quantidade de potássio apropriada ao estabelecimento de um balanço
desse íon, é necessário que ocorra secreção resultante de potássio nas porções
finais do néfron. Esse acoplamento elétrico entre a absorção de sódio e a secreção
de potássio, existente nas células principais, serve de modo conveniente a esse
propósito.
Sendo assim acoplada eletricamente à absorção de sódio, a secreção de
potássio nas células principais sofre a influência de uma série de fatores ligados ao
processamento desse íon. Desses, os principais são: 1) a oferta de sódio à porção
final do túbulo distal e ao túbulo coletor. É evidente que, quanto maior a
concentração de sódio luminal nesses segmentos, tanto maior será a entrada apical
do íon, despolarizando a membrana apical e aumentando a diferença de potencial
transepitelial, favorecendo assim a saída de potássio em direção ao lume. 2) o fluxo
intratubular. Quanto maior o fluxo do fluido intratubular nessas porções do néfron
(refletindo absorção de sódio diminuída nos segmentos anteriores do néfron), tanto
26
mais rápida será a “lavagem” do potássio, cuja concentração intraluminal será
mantida continuamente baixa, favorecendo sua saída da célula. 3) a ação da
aldosterona. A aldosterona é um mineralocorticóide, um hormônio de natureza
esteroidal produzido pelas glândulas suprarrenais e que modula tanto a reabsorção
de sódio quanto a secreção de potássio nas células principais. Sendo lipossolúvel, a
aldosterona penetra com facilidade no interior da célula, onde induz a síntese de
proteínas que promovem dois efeitos básicos: 1) aumento da densidade e da
atividade da Na+/K+-ATPase basolateral. 2) aumento da densidade de canais de
Na+ na membrana luminal, com conseqüente aumento da permeabilidade a esse
íon. Além de aumentar a taxa de absorção de Na+ pelo epitélio, este último efeito
tem como conseqüência a despolarização ainda maior da membrana luminal,
levando a uma elevação da diferença de potencial transepitelial. Aumenta além
disso a concentração intraluminal de K+, devido à ativação da Na+/K+-ATPase
basolateral. É possível ainda a ocorrência de um aumento da densidade de canais
de potássio na membrana apical. Dessa maneira, a aldosterona favorece a saída de
K+ através da membrana luminal, ou seja, a secreção de K+. Portanto, os efeitos
básicos da aldosterona são a conservação de sódio e a espoliação de potássio. A
aldosterona é acionada principalmente em situações de depleção de sódio e de
volume extracelular, como por exemplo nas desidratações (ver Capítulo 7). Essa
ativação ocorre na verdade como parte do funcionamento do sistema renina-
angiotensina-aldosterona, descrito em maior detalhe nos Capítulos 2 e 10. A
aldosterona pode ainda ser secretada em resposta a elevações da concentração
plasmática do próprio potássio, servindo nesse caso para regular diretamente a
secreção do íon.
27
Sendo a secreção de potássio nos
túbulos distal e coletor sujeita à ação de
tantos fatores, torna-se necessário ao
túbulo regulá-la, caso contrário o
organismo não teria como controlar de
modo independente as perdas urinárias
do íon. Para que esse ajuste fino ocorra,
parte do potássio secretado necessita
ser recuperada. Essa recuperação é
conseguida de duas maneiras: 1) por
difusão passiva através dos espaços
intercelulares. 2) por absorção ativa.
Ao menos parte desse transporte ativo
envolve a atividade de uma H+/K
+-
ATPase nas células intercaladas, que
promove a entrada de um íon K+ em
troca por um íon H+ e que é semelhante à existente na mucosa gástrica. Enquanto
esta última tem por finalidade a acidificação do lume gástrico, a H+/K+-ATPase
renal é acionada principalmente em situações de carência de potássio (ver adiante).
É possível ainda à célula principal limitar a secreção de potássio, em situações de
carência, alterando a densidade de canais específicos na membrana apical e/ou na
membrana basolateral, embora o modo pelo qual a célula atua nesse sentido seja
ainda obscuro.
Por maior que seja, a capacidade dos túbulos distal e coletor de ajustar a
secreção e a absorção de potássio pode ser vencida se a quantidade de sódio e o
volume de fluido que chegam a esses segmentos forem excessivos, aumentando
drasticamente a taxa de secreção tubular de potássio. É o que ocorre por exemplo
na expansão do volume extracelular e nos pacientes tratados cronicamente com
Figura 5-17 – Mecanismo de ação da aldosterona nas células principais do túbulo coletor e da porção final do túbulo distal: aumento da atividade da Na+/K+-ATPase basolateral, da permeabilidade da membrana luminal ao Na+ e, possivelmente, ao K+. Ocorrem em conseqüência retenção de Na+ e espoliação de K+. L, lume; I, interstício.
Na+
Na+ATP
K+
Na+
Cl-Cl-
L I
+ --+
?
28
diuréticos potentes, especialmente os portadores de patologias, como a
insuficiência cardíaca congestiva, em que ocorre produção excessiva de
aldosterona (ver Capítulo 6). Nesses casos, o organismo pode desenvolver uma
carência de potássio, com hipopotassemia e graves conseqüências clínicas (ver
Capítulo 8).
Ao contrário do que ocorre no túbulo proximal, a absorção de água na
porção final do túbulo distal e no túbulo coletor é dissociada da de sódio, estando
intimamente relacionada à regulação da tonicidade do meio interno e dependendo
criticamente da presença do hormônio antidiurético. Os detalhes do mecanismo de
transporte de água e também de uréia nesses segmentos são discutidos no Capítulo
4.
Em resumo, os túbulos distal e coletor, através das células principais,
realizam um importante trabalho de absorção de sódio, o qual pode estar acoplado
1) à absorção de cloreto através das junções intercelulares. 2) à secreção de
potássio para a luz tubular. É esta última o que permite ao néfron manter o balanço
de potássio, uma vez que esse íon é quase totalmente absorvido no túbulo proximal
e na porção espessa da alça de Henle. O aporte excessivo de sódio ao túbulos distal
e coletor pode provocar espoliação de potássio, como ocorre com o uso prolongado
de diuréticos.
Resposta do néfron a variações da ingestão de sódio
A ingestão de sódio varia amplamente de indivíduo a indivíduo, sendo
fortemente influenciada por fatores culturais e ambientais. Há povos, como os
ianomamis, cuja ingestão de sódio é baixíssima, inferior a 2 mEq/dia, enquanto em
certas regiões do Japão a ingestão de sódio pode chegar a 300 mEq/dia. Ao longo
dessa ampla faixa, os rins mantêm o balanço de sódio variando adequadamente a
excreção do íon (a excreção extrarrenal de sódio é normalmente insignificante). À
primeira vista, essa parece constituir uma tarefa extraordinária. Consideremos a
29
carga de sódio lançada diariamente pelos glomérulos ao túbulo proximal. A uma
taxa de filtração glomerular de ~170 L/dia e a uma concentração plasmática de
sódio de 140 mmol/L, a carga filtrada de sódio é de 140×170≅ 24.000 mmol/dia.
Mesmo uma ingestão (e portanto uma excreção) altíssima de sódio, de 300
mmol/dia, representa apenas 300/24.000 = 1,25% da carga filtrada. Denominamos
fração de excreção a esse quociente entre a carga excretada e a carga filtrada de
um substância. No exemplo anterior, portanto, a fração de excreção de sódio seria
de 1,25%. Imaginemos agora que um indivíduo aumente sua ingestão de sódio de
100 para 200 mmol/dia. Para manter o balanço de sódio, os rins necessitam elevar
sua fração de excreção de 0,42% (100/24.000) a 0,84 % (200/24.000). Como é
possível ao néfron cumprir essa tarefa com tamanha precisão? Fica mais fácil
responder a essa questão considerando o papel de cada segmento na absorção de
sódio (ver novamente a Figura 5-1). No túbulo proximal são reabsorvidos cerca de
2/3 do sódio filtrado, ou seja, 16.000 mmol/dia. Outros 27% da carga filtrada de
sódio, ou ~6.500 mmol/dia, são absorvidos na porção ascendente da alça de Henle,
principalmente em sua porção espessa. Cabe aos segmentos finais do néfron
(túbulos distal e coletor) absorver os restantes 6% da carga filtrada de sódio
(~1.500 mmol/dia). Desse total, cerca de 4% da carga filtrada (1.000 mOsm) são
absorvidos no túbulo distal, chegando apenas 500 mmol/dia (~2% da carga
filtrada) ao túbulo coletor. Para conseguir excretar 100 mmol/dia de sódio, por
exemplo, o túbulo coletor absorve 400 mmol/dia, ou 80% do que lhe chega. Para
excretar 200 mmol/dia de sódio, basta ao túbulo coletor reduzir sua taxa de
absorção para 300 mmol/dia, ou 60% do seu aporte de sódio. Se, ao contrário, for
necessário conservar sódio devido a uma baixa taxa de ingestão, o túbulo coletor é
capaz de absorver até 99,9% de todo o sódio que passa por ele. Desse modo, o
túbulo coletor é inteiramente capaz de proceder a um ajuste fino da excreção de
sódio, sem que seja necessário alterar o funcionamento dos segmentos anteriores.
30
O mecanismo de ajuste fino descrito acima deixa de funcionar se o aporte
de sódio às porções finais do néfron for excessivo, ultrapassando a relativamente
limitada capacidade absortiva desses segmentos. Esse desequilíbrio realmente
ocorre em situações de expansão do volume extracelular, ou sob a ação de
diuréticos, conforme mencionado acima. Considerando a enorme desproporção
entre a carga filtrada e a carga excretada de sódio, esse efeito poderia ser
observado até mesmo em conseqüência de pequenos aumentos do ritmo de
filtração glomerular. Consideremos um aumento de 8,3% no RFG, acarretando um
aumento de 24.000 para 26.000 mmol/dia na carga filtrada de sódio. Se não
houvesse adaptação alguma do túbulo proximal, da alça de Henle e do túbulo distal
a essa situação, o túbulo coletor passaria a receber não mais 500, e sim 2.500
mmol/dia de sódio. Uma vez que esse segmento não é capaz de processar uma
carga de sódio cinco vezes superior à habitual, o resultado final seria uma perda
urinária maciça de sódio. Para evitar situações desse tipo, os túbulos renais
dispõem de um mecanismo conhecido como balanço glomérulo-tubular. Graças a
esse mecanismo, os túbulos ajustam automaticamente sua taxa absoluta de
absorção de sódio em proporção a variações do RFG. Os mecanismos íntimos
responsáveis por essa adaptação não são claros, podendo envolver fatores
humorais e efeitos físicos, como o próprio aumento do fluxo intratubular e a
elevação da pressão oncótica peritubular. Inicialmente descrito para o túbulo
proximal, o conceito de balanço glomérulo-tubular aplica-se também à porção
espessa da alça de Henle, uma vez que esse segmento é também capaz de aumentar
sua taxa de absorção de sódio em proporção à carga que recebe. No exemplo
acima, o aumento da carga filtrada de 24.000 para 26.000 mmol/dia seria
acompanhado de um aumento proporcional das taxas absolutas de absorção do
túbulo proximal e da porção espessa da alça de Henle, as quais, combinadas,
permaneceriam portanto em 94% (67%+27%), deixando assim ao sistema
31
distal/coletor algo como 0.06×26.000 = 1.560 mmol/dia, apenas ligeiramente
superior ao aporte normal.
É necessário ressaltar, por fim, que a descrição que acabamos de fazer da
função tubular assume a existência de uma população homogênea de néfrons.
Sabemos no entanto que existem diferenças morfológicas e funcionais entre os
néfrons superficiais e os justamedulares, cujos glomérulos situam-se nas porções
mais profundas do córtex renal. Entre as diferenças é de se destacar a maior
capacidade dos néfrons justamedulares de variar a excreção de NaCl frente a
variações do volume extracelular, propriedade esta observada tanto em condições
de depleção quanto de expansão do volume extracelular. A diferença entre néfrons
justamedulares e superficiais manifesta-se também com relação à capacidade de
concentrar o fluido tubular: as porções finas das alças de Henle dos néfrons
justamedulares, que atingem a porção mais interna da medula renal, são capazes de
levar o fluido intratubular a concentrações próximas às existentes nessa região
(~1.300 mOsm/Kg). Já nas alças dos néfrons mais superficiais, que penetram
pouco na região medular, a osmolalidade do fluido intratubular não ultrapassa 600
mOsm. A compreensão dessa e de outras manifestações da heterogeneidade
funcional dos néfrons é essencial para se compreender adequadamente o
funcionamento renal no transporte de água e eletrólitos.
32
EXERCÍCIOS
1- Abra o programa “TRANSPORTE DE ÁGUA, SÓDIO E POTÁSSIO NO
NÉFRON”. Observe a figura central, que é uma representação esquemática do processo de absorção do material filtrado ao longo dos vários segmentos do néfron. Inicialmente, a região central dessa figura estará em aaammmaaarrreeelllooo, representando o fluxo de água remanescente no lume tubular, o qual vai caindo progressivamente, de 170 L/dia no início do túbulo proximal (correspondentes ao RFG) a 1,5 L/dia (urina final). Neste caso, a largura dessa região representa a quantidade de água remanescente no túbulo. As quantidades reabsorvidas estão representadas no gráfico situado à direita. No qquuaaddrroo situado abaixo e à direita, você pode optar entre água, sódio e potássio ( ppprrriiimmmeeeiiirrraaa llliiinnnhhhaaa). Você verá que a região central mudará de forma, refletindo as diferenças entre as taxas de absorção dessas substâncias ao longo do néfron, e também de cor (azul p/ sódio, verde p/ potássio). Se você quiser visualizar o perfil osmótico do fluido tubular, clique no qqquuuaaadddrrrooo logo abaixo do esquema do néfron. Para visualizar o efeito da ingestão (de água, de sódio, de potássio) ou de hormônios (HAD, aldosterona), cccllliiiqqquuueee na segunda linha. A quantificação desses efeitos (quantidade de ingestão, níveis hormonais) é obtida na ttteeerrrccceeeiiirrraaa llliiinnnhhhaaa. Para obter uma visão mais detalhada do que está ocorrendo nos segmentos “distal” e “coletor”, clique na llluuupppaaa. Para visualizar uma representação animada dos mecanismos básicos de transporte em cada segmento do néfron, clique nos respectivos botões marcados c/ “ vvveeerrr cccéééllluuulllaaa”.
2- Observe atentamente os valores basais. Varie agora a ingestão de água. Observe que,
aumentando a ingestão de água total (água como tal + água de alimentos) de 2,2 (normal) até 10 litros/dia, o que é um tremendo exagero (equivalente a 50 copos d’água, 29 latas de refrigerante ou 16 garrafas de cerveja), o volume urinário sofre aumento idêntico. Aumentando-se a ingestão total de água p/ 20 L/dia, o fluxo urinário não vai
33
além de 18,5 L/dia, indicando ser esse o máximo possível para um indivíduo normal (vai ocorrer um acúmulo de água nesse caso, podendo chegar até uma intoxicação hídrica em casos extremos). Reduza agora a ingestão de água a valores abaixo do normal. O fluxo urinário vai- tendendo a 0,5 L/dia, que é o mínimo necessário para acomodar a excreção diária de solutos (uréia, sódio, potássio). Tente agora descobrir em quais segmentos do néfron ocorre retenção ou rejeição de água conforme necessário. Repita todo o procedimento variando a concentração plasmática de ADH. Onde age esse hormônio?
3- Varie agora a ingestão de sódio, tomando o valor de 150 mEq/dia como sendo o
“normal” (em nosso meio, essa é uma dieta “moderada” em termos de sal). Observe que, entre 50 e 300 mEq, a excreção urinária de sódio sempre se iguala à ingestão. Se assim não fosse, estaríamos acumulando ou perdendo sódio. Este é um conceito extremamente importante: em uma situação estacionária (ou seja, com o paciente ou animal estável do ponto de vista fisiológico), há sempre um balanço entre ingestão e excreção de sódio (o que aliás é válido para qualquer outro íon ou composto). Observe ainda que, reduzindo-se a zero a ingestão de sódio, excreta-se ainda 1 mmol/dia, que é a taxa mínima de excreção urinária desse íon. Observe o que acontece em condições de expansão ou retração do volume extracelular. Tente agora descobrir em quais segmentos do néfron ocorre retenção ou rejeição de sódio conforme necessário. Repita todo o procedimento variando a concentração plasmática de aldosterona. Onde e como age esse hormônio?
4- Os procedimentos acima podem ser repetidos depois de selecionar “potássio” na
primeira linha do quadro de controle. No entanto, o potássio é estudado em detalhe no exercício correspondente ao Capítulo 8
1
CAPÍTULO 6: MECANISMO DE AÇÃO DE DIURÉTICOS
Antônio Carlos Seguro, Cláudia Maria de Barros Helou e Roberto Zatz
Definimos diuréticos como drogas que agem no néfron inibindo o
transporte de sódio, aumentando por isso a excreção desse íon e, em conseqüência,
o volume urinário. Os diuréticos são drogas largamente utilizadas na prática
clínica, especialmente no tratamento dos estados edematosos, os quais exigem
providências destinadas a aumentar a excreção urinária de sódio. O uso desse
grupo de medicamentos é historicamente recente, sendo que a totalidade dos
diuréticos atualmente utilizados foi sintetizada já na segunda metade deste século.
Para compreender adequadamente o funcionamento dos diuréticos, é
fundamental que o leitor esteja familiarizado com o funcionamento dos túbulos
renais na modulação da excreção de sódio, tarefa executada com perfeição em
condições normais, conforme discutido em detalhe no Capítulo 5 Os diversos
diuréticos disponíveis no mercado atuam em diferentes segmentos do néfron. É
esse local de ação o que determina a potência do efeito diurético, assim como a
maior parte dos efeitos colaterais associados ao uso dessas drogas (não serão
considerados aqui os efeitos colaterais dissociados da ação diurética propriamente
dita, como por exemplo a perda de acuidade auditiva com o uso do diurético
furosemide). Por essa razão, os diuréticos estão agrupados neste capítulo de acordo
com os segmentos do néfron onde exercem seu efeito inibitório sobre a absorção
de sódio. São eles o túbulo proximal; a porção espessa ascendente da alça de
Henle; o túbulo distal e o túbulo coletor. De modo geral, esses segmentos
agrupam-se em duas grandes categorias: 1) segmentos de alta capacidade de
transporte e baixa capacidade de gerar gradientes, como é o caso do túbulo
proximal e, até certo ponto, da porção espessa da alça de Henle. 2) segmentos de
2
baixa capacidade de transporte e alta capacidade de gerar gradientes, tipicamente
representados pelo túbulo coletor.
DIURÉTICOS QUE AGEM NO TÚBULO PROXIMAL
Diuréticos osmóticos
Conforme discutido no Capítulo 5, o túbulo proximal é um epitélio
de baixa resistência elétrica e alta condutância hidráulica, devido à facilidade com
que seus complexos juncionais intercelulares permitem a passagem de água e
eletrólitos. Essas propriedades
físicas facilitam ao túbulo
proximal o cumprimento de sua
tarefa básica: o transporte
maciço de água e de solutos, o
qual lhe permite absorver cerca
de 2/3 da carga filtrada de
sódio. Ao mesmo tempo, no
entanto, tornam-no incapaz de
manter através de suas paredes
qualquer gradiente de
concentração, potencial elétrico
ou pressão osmótica. É
exatamente essa característica o que torna o túbulo proximal suscetível à ação dos
diuréticos osmóticos. Esses diuréticos, cujo maior representante é o manitol, são na
verdade solutos não absorvíveis pelo epitélio do túbulo proximal e que por essa
razão são progressivamente concentrados na luz tubular à medida que a água vai
sendo reabsorvida . Com o conseqüente aumento da pressão osmótica intratubular,
a absorção de água pelo túbulo fica limitada, já que depende de uma pequena
Figura 6-1 – Mecanismo de ação dos diuréticos osmóticos. A presença na luz do túbulo proximal de um soluto impermeante (representado pelos pontos vermelhos) retém água e dilui o sódio e demais eletrólitos, fazendo com que haja um vazamento de água e solutos através dos espaços intercelulares do interstício para a luz tubular.
Na+
ATP
L I
Na+, Cl-, HCO3-, H2O
3
hipotonicidade intratubular associada a altos índices de condutância hidráulica
(Capítulo 5). Com a resultante retenção intratubular de água, o sódio vai sendo
diluído, havendo assim uma tendência à formação de um gradiente químico entre o
interstício e a luz tubular. Como no entanto o epitélio do túbulo proximal é um
epitélio de “vazamento” (“leaky”), ocorre um retorno de cloreto de sódio do
interstício para o lume tubular através do espaço intercelular, anulando ou
minimizando o gradiente criado pelo processo reabsortivo (Figura 6-1). Devido a
esse processo, uma parcela substancial do sódio e da água filtrados, dependendo da
dose do diurético osmótico, escapa à reabsorção proximal e é lançada aos
segmentos seguintes do néfron.
Tendo em vista a magnitude do transporte de água e eletrólitos no túbulo
proximal, seria de esperar que
mesmo uma inibição
moderada da absorção de
sódio nesse segmento fosse
acompanhada de uma
natriurese intensa. No entanto,
os segmentos do néfron que se
seguem ao túbulo proximal,
em especial a porção espessa
da alça de Henle, são capazes
de ajustar suas taxas de
absorção quando confrontados
com cargas maiores de sódio.
Imaginemos uma carga
filtrada de sódio de 24.000
mmol/dia em condições
normais e uma absorção proximal de sódio de 2/3, restando portanto 8.000
Figura 6-2 –Os segmentos que se seguem ao túbulo proximal, principalmente a porção espessa da alça de Henle, compensam em boa parte a rejeição de sódio promovida pelos diuréticos osmóticos no túbulo proximal, limitando a natriurese causada por essas drogas. As linhas pontilhadas indicam a absorção tubular em condições normais
DISTAL
ALÇA FINA
DESCENDENTE
ALÇAESPESSA
COLETOR
ALÇA FINAASCENDENTE
PROXIMAL
CARGA FILTRADA = 24000 mEq/dia
4
mmol/dia aos segmentos seguintes. Desse total, cerca de 6.000 mmol/dia (25% da
carga filtrada, ou 6.000/8.000 = 75% do aporte de sódio ao segmento) são
absorvidos na porção espessa da alça de Henle, enquanto 1.200 mmol/dia (5% da
carga filtrada) o são no túbulo distal. Cabe ao túbulo coletor o ajuste fino da
excreção de sódio, absorvendo, se necessário, a quase totalidade dos restantes 800
mmol/dia (~ 3 % da carga filtrada). Se agora administrarmos manitol a esse
indivíduo, de modo a que a absorção proximal de sódio caia a 40% da carga
filtrada, serão oferecidos aos segmentos seguintes 14.400 mmol/dia de Na+. A
porção espessa da alça de Henle, de alta capacidade absortiva, pode adaptar-se a
essa sobrecarga, absorvendo de novo 75% da carga de sódio que lhe chega,
correspondentes agora a 10.800 mmol/dia. Quanto aos 3.600 mmol/dia restantes,
deverão ser absorvidos pelos túbulos distal e coletor. Trata-se no entanto de uma
carga 80% superior à que chega habitualmente a esses segmentos, cuja capacidade
absortiva é limitada, conforme discutido acima. Se a absorção nesses segmentos
crescer, digamos, 30%, atingindo 2600 mmol/dia, a excreção de sódio aumentará,
chegando a 3.600-2.600 = 1.000 mmol/dia. Se a urina for isotônica em relação ao
plasma, essa excreção de Na+ corresponderá a um fluxo urinário de cerca de 7
L/dia. Portanto, os diuréticos osmóticos, por agir no túbulo proximal, permitindo a
ação compensatória do restante do néfron, promovem uma elevação apenas
mediana do fluxo urinário e da excreção de sódio, sendo assim considerados como
de média potência (Figura 6-2).
Como ocorre com a maioria dos diuréticos, o principal efeito colateral da
administração de diuréticos osmóticos é o desenvolvimento de hipopotassemia. É
fácil entender o mecanismo desse distúrbio relembrando o mecanismo de secreção
de K+ na porção final do túbulo distal e no túbulo coletor (Capítulos 5 e 8). Nesses
segmentos do néfron, ocorre um transporte passivo de K+ do interior das células
principais para o lume tubular, ou seja, uma secreção de K+. Esse movimento de
K+ é fortemente influenciado pelos seguintes fatores, discutidos em maior detalhe
5
nos Capítulos 5 e 8: 1) oferta de sódio à porção final do túbulo distal e ao túbulo
coletor. 2) o fluxo intratubular nesses segmentos. 3) a ação da aldosterona. Em
pacientes tratados com diuréticos osmóticos, aumenta a oferta de sódio às porções
finais do néfron, conforme discutido acima, o que evidentemente se faz
acompanhar de um aumento do fluxo intratubular. Se além disso estiver aumentada
a concentração plasmática de aldosterona, estarão estabelecidas as condições para
um forte aumento na taxa de secreção de potássio por esses segmentos, o que pode
levar à espoliação desse íon e à hipocalemia. Mais raramente, a administração
dessas drogas pode levar a uma desidratação hiponatrêmica e a distúrbios do
equilíbrio ácido-base.
Assim como nos túbulos renais, os diuréticos osmóticos funcionam como
solutos impermeantes no epitélio intestinal. Por essa razão, essas drogas não são
absorvidas por via oral e devem ser administradas exclusivamente por via
endovenosa, sendo assim inviável sua utilização na terapêutica dos estados
edematosos (não confundir com seu uso no tratamento do edema cerebral, com o
qual busca-se aumentar transitoriamente a pressão osmótica plasmática para retirar
água do sistema nervoso central). Na verdade, o poder dos diuréticos osmóticos de
promover uma diurese moderada é hoje utilizado principalmente na profilaxia da
insuficiência renal aguda em situações tais como as anemias hemolíticas, as
cirurgias extensas ou em presença de icterícia e nas lesões traumáticas graves (ver
também Capítulo 14).
Inibidores da anidrase carbônica
Conforme discutido no Capítulo 5, a membrana luminal das células do
túbulo proximal exibe uma série de estruturas de transporte destinadas a facilitar a
entrada à célula do íon Na+. Uma dessas estruturas é o contratransportador Na+/H+,
importante também no processo de acidificação urinária. Conforme discutido em
detalhe no Capítulo 12, os íons H+ secretados para a luz tubular reagem com o
6
bicarbonato filtrado, formando o ácido carbônico. Este por sua vez se decompõe
em água e gás carbônico, reação esta catalisada pela enzima anidrase carbônica,
abundante na borda em escova do túbulo proximal. Os inibidores da anidrase
carbônica, representados pela acetazolamida (Diamox), dificultam essa reação,
apresentando por isso um duplo efeito: de um lado, diminuem a taxa de secreção
de H+, provocando retenção de ácido; de outro, reduzem a taxa de absorção
proximal de sódio, apresentando portanto um efeito diurético. Como no entanto
essa droga inibe apenas uma parte dos mecanismos de absorção proximal de sódio,
e como existe a intervenção, descrita acima, do restante do néfron, seu efeito
diurético é apenas fraco, o que limita seu uso clínico. A acetazolamida é utilizada
principalmente no tratamento do glaucoma agudo, em cuja patogênese a anidrase
carbônica desempenha um papel fundamental, e em alguns casos de alcalemia
metabólica.
DIURÉTICOS QUE AGEM NA PORÇÃO ESPESSA ASCENDENTE DA
ALÇA DE HENLE: DIURÉTICOS DE ALÇA
A porção espessa ascendente da alça de Henle é responsável pela absorção
de cerca de 25% da carga filtrada de sódio, a maior taxa de absorção em um único
segmento, com exceção do túbulo proximal. A absorção de sódio nessa porção do
néfron é essencial para o funcionamento do sistema de contracorrente medular e
para os processos de concentração e diluição urinárias (Capítulo 4). Conforme
descrito em detalhe no Capítulo 5, o transporte de sódio nesse segmento depende
crucialmente de um cotransportador especial, que permite a entrada nas células,
através da membrana luminal, de 1 íon Na+, 1 íon K+ e 2 íons Cl- (cotransportador
Na+/K+/2 Cl-, Figura 6-3). Os assim denominados diuréticos de alça, tais como a
bumetanida, o ácido etacrínico e o mais conhecido de todos, a furosemida
(Lasix), inibem o funcionamento do cotransportador Na+/K+/2Cl-, diminuindo
assim drasticamente a absorção de eletrólitos nesse segmento. Um cálculo simples
Figura 6-3 – Mecanismo de ação dos diuréticos de alça. A inibição do cotransportador Na+/K+/2Cl- reduz drasticamente a absorção de NaCl e, em conseqüência, também a de K+, Ca++ e Mg++.L, luz tubular; I, interstício
Na+ Na+
ATP
L
Cl-K+
K+
Na+, K+, Ca++, Mg++
- +
K+
Cl-
I
+ -
7
é suficiente para ilustrar a potência natriurética dos diuréticos de alça (Figura 6-4).
Suponhamos mais uma vez que a carga filtrada de Na+ seja de 24.000 mmol/dia,
com uma taxa de absorção proximal de 2/3 e, portanto, um aporte de ~8.000
mmol/dia à porção espessa da alça de Henle. Se esse transporte for totalmente
bloqueado por um diurético de alça, todo esse fluxo de sódio chegará intacto aos
túbulos distal e coletor. Esses segmentos absorvem até ~2.000 mmol/dia de Na+ em
condições normais. Sendo no entanto incapazes de alcançar as altas taxas de
transporte observadas no túbulo proximal e na própria porção espessa da alça de
Henle, sua adaptação a esse aumento do aporte de Na+ é apenas parcial. Mesmo
que a taxa de absorção desses segmentos aumentasse em, digamos, 30%, (sendo
pois de ~2.600 mmol/dia a taxa absoluta de absorçãode sódio), seriam ainda
excretados 5.400 mmol/dia, correspondentes a um fluxo urinário superior a 38
L/dia! Devido à localização estratégica da porção espessa da alça de Henle,
portanto, a natriurese e diurese provocadas pelos diuréticos de alça são
extremamente intensas, caracterizando-os como de alta potência. Por essa razão,
esse grupo de diuréticos é largamente utilizado na prática clínica em situações que
requeiram a perda de grande quantidade de sódio, tal como nos estados edematosos
resultantes de disfunção cardíaca (insuficiência cardíaca congestiva) ou renal
(síndrome nefrótica), ou quando é imperioso o “enxugamento” rápido de fluido
acumulado em áreas críticas, como no edema pulmonar agudo.
8
A própria eficácia dos
diuréticos de alça é também a
causa dos importantes efeitos
colaterais que acompanham o
uso crônico dessas drogas. O
mais ameaçador desses efeitos é
sem dúvida a hipopotassemia.
Conforme discutido
anteriormente, a secreção de K+
nas porções finais do néfron,
especialmente aos túbulos
coletores, depende da oferta de
sódio e do fluxo intratubular
que chegam a esses segmentos, além da atividade da aldosterona. Como ilustrado
no exemplo acima, a inibição do transporte de NaCl na porção espessa da alça de
Henle promove um grande aumento no aporte de Na+ (e conseqüentemente no
fluxo intratubular) que chega aos túbulos distal e coletor. Considerando ainda que
em grande parte dos casos que requerem o uso continuado dessas drogas ocorre um
aumento da atividade da aldosterona (hiperaldosteronismo secundário), a secreção
de K+ nesses segmentos aumenta tremendamente, levando a uma excreção
exagerada desse íon. Os diuréticos de alça podem ainda aumentar diretamente a
excreção de K+: conforme discutido no Capítulo 5 e ilustrado na Figura 6-3, o
transporte transcelular de NaCl na porção espessa da alça de Henle está associado
ao estabelecimento de uma diferença de potencial transepitelial, com o lume
positivo em relação ao interstício. Essa diferença de potencial favorece a absorção,
através dos espaços intercelulares, de cátions como o K+, além do Ca++, Mg++ e do
próprio Na+. A inibição do transporte transcelular de NaCl na porção espessa da
alça de Henle tem portanto como conseqüência uma redução na absorção de K+
Figura 6-4 – Devido à localização estratégica do segmento onde atuam, os diuréticos de alça possuem alta potência natriurética. Isso acontece porque a alça de Henle absorve 25% da carga filtrada de sódio, enquanto os segmentos que se seguem (distal e coletor) são incapazes de adaptar-se a esse aumento da oferta de sódio. As linhas pontilhadas indicam a absorção de sódio em condições normais
DISTAL
ALÇA FINADESCENDENTE
ALÇAESPESSA
COLETOR
ALÇA FINAASCENDENTE
PROXIMAL
CARGA FILTRADA = 24000 mEq/dia
9
nesse segmento. Como resultado de todas essas alterações, a caliurese provocada
pelos diuréticos de alça pode atingir proporções alarmantes, levando à depleção
intensa de K+ e à hipopotassemia. Por essa razão, os diuréticos de alça são também
conhecidos como espoliadores de potássio.
O uso de diuréticos de alça pode também associar-se ao desenvolvimento de
alcalose metabólica. Há três razões principais para esse efeito: 1) a alça de Henle
secreta íons H+ através do contratransportador Na+/H+ situado na membrana
luminal, o que lhe permite contribuir para a recuperação do HCO3- filtrado
(Capítulos 5 e 12). A inibição do cotransportador Na+/K+/2Cl- leva a uma
diminuição da concentração intracelular de Na+, uma vez que a Na+/K+/ATPase
basolateral continua funcionando. Com isso, aumenta o transporte de Na+ para o
interior da célula através do contratransportador Na+/H+, com aumento
conseqüente da secreção de H+; 2) com o aumento do aporte de Na+ aos túbulos
distal e coletor e o consequente aumento da eletronegatividade luminal desses
segmentos, não só o K+ mas também o H+ tem sua secreção favorecida; 3) a
própria hipopotassemia promove a secreção exagerada de H+ devido à ativação da
H+/K+ ATPase situada no túbulo coletor, que retém K+ ao mesmo tempo em que
secreta H+ (Capítulo 5).
É interessante notar que os diuréticos de alça, por agir na face luminal do
epitélio da porção espessa da alça de Henle, necessitam estar presentes na luz
tubular. Como no entanto 98% da droga estão ligados às proteínas plasmáticas, sua
passagem através do glomérulo por filtração é muito baixa. Por essa razão, essas
drogas dependem, para sua ação farmacológica, do sistema de secreção de ácidos
orgânicos situado no segmento S3 do túbulo proximal, que permite a essas drogas
alcançar o lume tubular.
DIURÉTICOS QUE AGEM NO TÚBULO DISTAL: TIAZÍDICOS
10
Conforme descrito no
Capítulo 5, o túbulo distal
apresenta em sua membrana
luminal um cotransportador
Na+/Cl-, específico para esse
segmento e que promove o
transporte transcelular, neutro,
de NaCl (Fig. 6-5). Esse
cotransportador é inibido pelo
grupo de diuréticos conhecido
como tiazídicos, dos quais os
exemplos mais conhecidos são
a hidroclorotiazida e a
clortalidona. Os tiazídicos
foram desenvolvidos ainda nos
anos 50, tendo sido os primeiros diuréticos razoavelmente potentes e com baixa
toxicidade a serem
largamente utilizados na
prática clínica.
Conforme discutido
em detalhe no Capítulo 5, o
túbulo distal é responsável
pela absorção de apenas
cerca de 5% da carga filtrada
de sódio. Por esa razão,
mesmo uma inibição
completa do cotransportador
Figura 6-5– Os tiazídicos inibem o cotransportador Na+/Cl- existente no túbulo distal, diminuindo assim a absorção transcelular de NaCl nesse segmento. L, luz tubular; I, interstício
Na+
Na+
Cl-ATP
K+Na+
Cl-
L I
Figura 6-6 – Os tiazídicos agem no túbulo distal inicial, segmento responsável pela absorção de apenas 5% da carga filtrada. Por essa razão, a natriurese que produzem é apenas moderada. As linhas pontilhadas indicam a absorção de sódio em condições normais
DISTAL
ALÇA FINADESCENDENTE
ALÇAESPESSA
COLETOR
ALÇA FINAASCENDENTE
PROXIMAL
CARGA FILTRADA = 24000 mEq/dia
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NaCl existente nesse segmento leva a uma excreção urinária de sódio não superior
a 0.05×24.000=1.200 mmol/dia, correspondentes a um fluxo urinário de ~8 L/dia
(Figura 6-6). Os tiazídicos são portanto considerados como diuréticos de média
potência. Por essa razão, não são empregados atualmente na terapêutica do edema,
a qual freqüentemente exige o uso de duiréticos de alça. Os tiazídicos são no
entanto largamente utilizados no tratamento da hipertensão arterial sistêmica, para
o qual é necessário um aumento sutil na capacidade renal de excretar sódio
(Capítulo 10).
Por elevar a oferta de sódio ao túbulo coletor, os tiazídicos, tal como os
diuréticos de alça, aumentam a excreção de potássio nesse segmento. No entanto,
devido à menor intensidade de seu efeito diurético e ao fato de não inibirem a
absorção de potássio na alça de Henle, a magnitude da caliurese que os tiazídicos
provocam é bem menor do que a evocada pelos diuréticos de alça. Por essa razão,
é infreqüente o estabelecimento de hipopotassemia grave em pacientes tratados
cronicamente com tiazídicos. Contudo, é possível o desenvolvimento de
hipopotassemia mais intensa na presença de hiperaldosteronismo secundário,
comumente encontrado em estados edematosos tais como a insuficiência cardíaca
congestiva (ver Capítulos 5 e 9).
DIURÉTICOS QUE AGEM NO DUTO COLETOR: RETENTORES DE
POTÁSSIO
Conforme discutido no Capítulo 5, o duto coletor, através das células
principais, é capaz de absorver NaCl mesmo que a concentração intraluminal do
sal seja muito baixa. Em outras palavras, o duto coletor é capaz de manter através
de seu epitélio gradientes de potencial eletroquímico extremamente elevados. No
entanto, a capacidade absortiva desse epitélio é limitada, devido à baixa
condutância elétrica de suas junções intercelulares. Felizmente, o duto coletor
recebe apenas cerca de 2% da carga filtrada, graças ao intenso trabalho de
12
absorção realizado pelos segmentos anteriores do néfron. Apesar desse reduzido
aporte de sódio, o duto coletor realiza um importante trabalho de ajuste fino da
excreção de sódio, sendo na verdade o responsável pelo estabelecimento de um
balanço zero de sódio (Capítulo 5).
Para realizar seu trabalho de absorção, o duto coletor dispõe, além da
onipresente Na+/K+-ATPase basolateral, de um canal específico para sódio situado
na membrana luminal (Capítulo 5). É devido à existência desse canal que a
membrana luminal é despolarizada e a diferença de potencial transepitelial atinge
nesse segmento algumas dezenas de mV, favorecendo assim a secreção de
potássio através de um canal específico, também situado na membrana luminal.
Conforme discutido nos Capítulos 5 e 8, o aporte de sódio e o fluxo de
volume intratubular são determinantes importantíssimos da secreção de potássio
pelo túbulo coletor. Por essa razão, os diuréticos que agem nos segmentos
anteriores ao túbulo coletor (a maioria) tendem a aumentar a secreção de potássio e
a depletar o organismo desse íon, especialmente no caso dos diuréticos de alça
(espoliadores de potássio), cujo efeito natriurético é de longe o mais intenso.
Os diuréticos que agem
no túbulo coletor dividem-se
em dois grupos: 1) os
bloqueadores do canal
luminal de sódio, como o
amiloride e o triamterene. 2) os
antagonistas da aldosterona,
como a espironolactona.
Conforme seria de se
esperar, o bloqueio do canal
luminal de sódio impede a
absorção de sódio pelas células
Figura 6-7 – Por bloquear o canal luminal de sódio nas células principais do túbulo coletor, diuréticos como o amiloride promovem não apenas uma modesta natriurese, como também reduzem acentuadamente a secreção de potássio; L, luz tubular; I, interstício
Na+
Na+ATP
K+
Na+
Cl-
L I
+--+
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principais do túbulo coletor (Figura 6-7), resultando em um aumento da excreção
urinária desse íon. A natriurese observada com esse grupo de diuréticos, no
entanto, é muito modesta comparada à obtida com diuréticos de alça ou tiazídicos.
A razão para isso é simples: apesar de sua importância no ajuste fino da excreção
de sódio, o túbulo coletor absorve apenas de 2 a 3% da carga filtrada do íon
(Capítulo 5), o que equivale a, no máximo, 720 mmol/dia, correspondentes a ~5
L/dia. Os bloqueadores de canal de sódio são portanto considerados diuréticos
fracos, não sendo por isso empregados no tratamento dos edemas. Sua grande
utilidade consiste em seu efeito sobre a secreção de potássio no túbulo coletor, e
portanto sobre a excreção urinária desse íon. Conforme discutido nos Capítulos 5,
8 e acima, a secreção de potássio nesse segmento depende da existência na
membrana luminal de canais específicos, que permitem a entrada de sódio na
célula, com conseqüente despolarização da membrana luminal, o que favorece o
movimento de potássio do interior da célula para o lume tubular. Portanto, o
bloqueio dos canais luminais de sódio por drogas como o amiloride não apenas
promove uma natriurese (ainda que modesta), como também, e principalmente,
limita a excreção urinária de potássio (Figura 6-7). Por essa razão, os
bloqueadores do canal luminal de sódio são também denominados retentores de
potássio, sendo amplamente utilizados em associação com diuréticos potentes,
especialmente os diuréticos de alça, com o intuito de atenuar a perda de potássio
que essas drogas provocam.
Conforme descrito no Capítulo 5, a aldosterona aumenta nas células
principais a quantidade de canais luminais de sódio, além de estimular a atividade
da Na+/K+-ATPase basolateral, sendo por isso um hormônio retentor de sódio e
espoliador de potássio. Nos estados edematosos, é freqüente a presença de
hiperaldosteronismo secundário, o que tende a agravar a hipopotassemia causada
pelo uso, freqüente nesses pacientes, de diuréticos potentes. A conseqüente
depleção de potássio pode assim ser limitada pelos antagonistas da aldosterona,
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cujo efeito farmacológico é portanto análogo ao dos bloqueadores do canal luminal
de sódio.
É exatamente a propriedade de conservar potássio que origina o efeito
colateral potencialmente mais danoso dos diuréticos retentores de potássio: a
hipercalemia. Esse efeito é observado principalmente em pacientes já com alguma
tendência prévia à retenção de potássio, como por exemplo nas fases avançadas da
insuficiência renal crônica. A ocorrência de hiperpotassemia associada ao uso de
retentores de potássio é também freqüente em pacientes com tendência a
hipoaldosteronismo, como ocorre em certos pacientes com nefropatia diabética. A
anomalia é também observada em pacientes recebendo tratamento crônico com
inibidores da enzima conversora de angiotensina I (captopril, enalapril, etc.), nos
quais os níveis de angiotensina II, e conseqüentemente os de aldosterona, são mais
baixos. Outro possível efeito colateral associado ao uso de retentores de potássio é
a acidemia metabólica que pode ocorrer no emprego de inibidores da aldosterona,
uma vez que não só a secreção de potássio, mas também a de íons hidrogênio,
pode ser inibida por essas drogas.
EXERCÍCIOS
No programa “Diuréticos”, simule experimentos com manitol, furosemida (Lasix®) e
tiazídico (assinalando os círculos correspondentes) e observe os valores obtidos para as
taxas de excreção urinária de água, sódio e potássio. Observe ainda o segmento do néfron
onde ocorre o efeito de cada um dos diuréticos estudados. Clique no botão “Ver célula” ,
quando for o caso, para uma representação aniamda do mecanismo celular de ação de cada
diurético, tanto no segmento em que cada um atua como naqueles que se seguem.
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1. Qual o diurético mais potente? Por que esse diurético é tão potente? Qual o menos
potente? Por que?
2. Qual o que provoca a maior espoliação de potássio?
3. Há alguma relação entre potência natriurética e espoliação de potássio?
4. Associe furosemida e hiperaldosteronismo (situação comum, já que é frequente o
uso de diuréticos em pacientes com hiperaldosteronismo secundário). O que ocorre à
natriurese? E à caliurese?
5. Associe agora furosemida e amiloride. Qual o efeito observado?
6. Estude o efeito da associação de outros diuréticos com um retentor de potássio
Não se esqueça de observar o efeito celular de cada um dos diuréticos, acionando os
respectivos botões “Ver Célula”
CAPÍTULO 7: CONTRAÇÃO DO VOLUME
EXTRACELULAR: DESIDRATAÇÕES
Roberto Zatz, Jaques Sztajnbok e Antonio Carlos Seguro
Desidratação é a contração do volume extracelular secundária a perdas hídricas.
Essas perdas podem ou não se fazer acompanhar de perdas de sódio. A proporção de água e
sódio nessas perdas, determinará se vai ou não ocorrer uma alteração da concentração de
sódio no plasma e, portanto, no volume extracelular. A concentração plasmática de sódio
resultante dessas perdas determinará a classificação das desidratações em isotônica
(isonatrêmica), hipotônica (hiponatrêmica) e hipertônica (hipernatrêmica). Apesar de
considerarmos neste capítulo o termo “desidratações hiponatrêmicas” como sinônimo de
“desidratações hipotônicas”, deve-se lembrar que nem sempre uma hiponatremia está
associada a uma hipotonicidade. Na verdade, a hiponatremia pode associar-se em certos
casos a um estado de hipertonicidade, como ocorre na administração exógena de solutos
osmoticamente ativos como o manitol (uso terapêutico) ou o metanol (intoxicação aguda).
Na presença desses solutos, a água desloca-se do meio intracelular para o extracelular,
diluindo o sódio e promovendo uma hiponatremia. Embora hiponatrêmico, o meio
extracelular está hipertônico devido à atividade osmótica desses solutos.
A compreensão dos mecanismos fisiopatológicos e características clínicas dos
diferentes tipos de desidratação requer um conhecimento aprofundado das dimensões e da
composição dos compartimentos em que se distribuem os fluidos corpóreos.
ANATOMIA DOS FLUIDOS CORPÓREOS (ver também Capítulo 9)
Em um indivíduo adulto normal do sexo masculino, pesando 70 kg, a água total
corresponde a cerca de 60% do peso corpóreo, ou cerca de 42 L. Aproximadamente 2/3
desse total distribuem-se no espaço intracelular (Fig. 1), enquanto 1/3, ou cerca de 14 L,
constituem o espaço extracelular (correspondendo portanto a cerca de 20% do peso
corpóreo. O volume extracelular (VEC) divide-se, por sua vez, em dois outros
compartimentos: o volume plasmático, que mede aproximadamente 3 L (o restante do
volume sangüíneo, que totaliza 5 L, é representado pelo volume das hemácias, que no
entanto são parte integrante do espaço intracelular) e o espaço intersticial, que corresponde
a cerca de 11 L. Denominamos espaço intravascular a soma do volume plasmático (parte do
espaço extracelular) e do volume de hemácias (parte do espaço intracelular), o que equivale
portanto ao volume sangüíneo. Uma pequena fração do espaço extracelular, normalmente
inferior a 100 ml, distribui-se por cavidades tais como a pleural, a pericárdica, a peritoneal e
as sinoviais. Os fluidos em trânsito pelo intestino, como as secreções digestivas, podem
também ser considerados como integrantes desse segmento. Ao conjunto desses fluidos
denominamos terceiro espaço. O volume desse compartimento é reduzido, mas pode crescer
Fig. 7-1 – Anatomia dos fluidos corpóreos
VOL. PLASMÁTICOVOL. HEMÁCIAS
VOUME INTRACELULARVOLUME
INTERSTICIAL
VOL. INTRAVASCULAR
VOL. EXTRACELULARVOL. INTRACELULAR
muito em determinadas condições patológicas, como as obstruções intestinais e os grandes
derrames cavitários,
O sódio e os ânions que o acompanham, principalmente o cloreto e o bicarbonato,
constituem mais de 90% dos solutos do VEC. Podemos então considerar o sódio como o
principal determinante do VEC.
REGULAÇÃO DO VEC
A regulação do volume extracelular consiste essencialmente na regulação do volume
intravascular. Isso faz sentido na medida em que as alterações do volume intravascular
podem ter conseqüências gravíssimas e que ameaçam a própria sobrevivência do indivíduo.
Um aumento do volume intravascular pode levar ao desenvolvimento de edema pulmonar
agudo, ao passo que sua diminuição pode levar a um estado de hipoperfusão generalizada,
caracterizando o estado de choque circulatório.
A regulação do volume intravascular envolve dois tipos de mecanismos: 1) aferentes,
representados por baroceptores e mecanoceptores situados principalmente em grandes vasos
torácicos e na circulação renal. 2) eferentes, representados essencialmente pela atividade
excretora renal e os fatores, nervosos e humorais (sistema renina-angiotensina-aldosterona,
catecolaminas, hormônio antidiurético, fator natriurético atrial e outros), que a regulam.
Esses mecanismos são considerados em detalhe no Capítulo 9.
Nas desidratações, todo o sistema de regulação do VEC está orientado no sentido de
reter ao máximo água e sódio. Com esse objetivo, aumenta tremendamente o influxo
simpático aos rins, assim como os níveis circulantes de compostos que também promovem
a retenção renal de água e sódio (por exemplo, a angiotensina II e o hormônio antidiurético,
entre vários outros). Os mecanismos renais envolvidos nessa regulação, incluindo a
fisiopatologia dos processos de transporte de água e eletrólitos pelo néfron, estão descritos
em detalhe nos Capítulos 5 e 14. Além do rim, a pele também contribui para minimizar as
perdas de sódio e água em situações de contração do VEC. Os mecanismos aí envolvidos
não estão claros, sendo possível no entanto que a aldosterona desempenhe algum papel
nesse processo.
Como seria de se esperar, as desidratações estimulam fortemente os dois
mecanismos básicos de conservação de água, a sede e a secreção de hormônio antidiurético
(HAD) (ver Capítulo 11). Em condições normais, tanto a sede quanto a secreção de ADH
podem ser deflagrados por um aumento na osmolalidade plasmática. Trata-se de
mecanismos bastante sensíveis, especialmente o da secreção de HAD, e que permitem
manter a osmolalidade plasmática dentro de uma faixa bastante estreita. Quando o
organismo perde fluido e se desidrata, ambos os mecanismos são acionados, mesmo que a
hipovolemia resultante da desidratação não tenha resultado em alteração da pressão
osmótica do plasma, indicando que a conservação do volume intravascular (e portanto da
perfusão dos tecidos) é prioritária em relação à regulação da tonicidade do meio interno.
Esse conceito tem importantes implicações na fisiopatologia das desidratações
hiponatrêmicas, conforme veremos adiante.
TIPOS DE DESIDRATAÇÃO
Desidratações isotônicas
Nas desidratações isotônicas, ou isonatrêmicas, como o nome indica, a concentração
extracelular de sódio não se altera, ou se altera muito pouco, em relação ao normal. Isso
ocorre porque as perdas de água e de sódio nesses casos seguem uma proporção aproximada
de 150 mEq de sódio para cada litro de água. O indivíduo está na realidade perdendo para o
exterior uma parcela de seu fluido extracelular (Fig. 9-2). Como a concentração de sódio no
espaço extracelular não se altera, não se estabelece uma força osmótica entre o espaço intra e
o extracelular. O espaço intracelular mantém-se portanto praticamente inalterado, ficando a
depleção de água e sal confinada ao compartimento extracelular.
Causas de desidratação isonatrêmica
Podemos dividir as causas de desidratação isotônica em dois grandes grupos, de
acordo com as vias através das quais essas perdas ocorrem: perdas extrarrenais e perdas
renais
Perdas extrarrenais
VOL. EXTRACELULARVOL. INTRACELULAR
Fig.7-2 – Representação esquemática das alterações dos fluidos corpóreos em uma desidratação isotônica. os compartimentos estão divididos de modo simplificado em intra e extracelular. Apenas o volume extracelular está reduzido neste caso. As linhas pontilhadas indicam as dimensões normais do espaço extracelular
As perdas extrarrenais constituem a causa mais comum de desidratação isotônica.
Incluem-se nessa classificação as perdas de fluido pelo trato digestivo, especialmente as
diarréias, que podem chegar a vários litros por dia em formas graves como o cólera.
Juntamente com esse tipo de perdas, que poderíamos chamar de “espontâneas”, alinham-se
as perdas crônicas impostas por procedimentos cirúrgicos, principalmente em pacientes
internados durante longos períodos. Sondas nasogástricas, bem como drenos torácicos e
abdominais, podem levar a uma depleção importante de fluido isotônico, caso as perdas
diárias correspondentes não sejam repostas de modo adequado. O mesmo pode ocorrer em
pacientes submetidos a ileostomias, ou portadores de fístulas biliares ou pancreáticas. Uma
situação especial é representada pelas perdas para o terceiro espaço, como nos derrames
pleurais e nos íleos, em que cessa a movimentação intestinal, com conseqüente acúmulo de
grandes quantidades de fluido na luz entérica. Nesses casos, no entanto, não se trata de uma
desidratação propriamente dita, mas de uma redistribuição interna de fluidos corpóreos, que
ficam sequestrados no terceiro espaço. Outra condição especial é representada pelas
queimaduras graves, em que ocorre perda de fluido isotônico (além de proteínas
plasmáticas) através da pele.
É importante observar que muitos casos de desidratação hipotônica iniciaram-se na
verdade com perdas isotônicas ou hipotônicas de fluido, e portanto com concentrações
normais ou até elevadas de sódio no plasma. Como no entanto a contração do VEC estimula
poderosamente a sensação de sede, esses pacientes são freqüentemente capazes de corrigir a
deficiência de água, mas não a de sódio, vindo portanto a desenvolver uma desidratação
hipotônica (ver adiante).
Nas desidratações isotônicas por perdas extrarrenais, os rins, estando funcionalmente
íntegros, comportam-se de modo a reter a maior quantidade possível de água e sódio. Com
isso, o volume urinário cai a 500 ml/dia ou menos, enquanto a concentração urinária de
sódio torna-se inferior a 10 mmol/L. Em condições normais, o ajuste fino da excreção de
sódio é quase inteiramente executado no túbulo coletor (ver Capítulo 5). Durante uma
hipovolemia intensa, todo o néfron, e não apenas o túbulo coletor, passa a integrar o esforço
para reter o máximo possível de sódio, o que explica a baixíssima excreção urinária do íon.
Uma das conseqüências desse perfil anômalo de transporte no néfron é a retenção
desproporcional de uréia. Em condições normais, a uréia é absorvida no túbulo proximal
mais ou menos em proporção à absorção de sódio, sendo posteriormente secretada na porção
fina ascendente da alça de Henle e novamente absorvida na porção terminal do túbulo
coletor (ver Capítulo 4). Nas desidratações de origem extrarrenal, o ritmo de filtração
glomerular diminui, o que faz aumentar a concentração sangüínea de uréia e também a de
creatinina, esta última um marcador mais fiel do RFG (ver Capítulo 1). Já a uréia, absorvida
em grande quantidade no túbulo proximal, ávido por sódio, tem sua retenção agravada, o
que se reflete em um aumento ainda mais intenso de sua concentração sangüínea, elevando
portanto o quociente [ureia]/[creatinina]. Esse quociente constitui-se em um parâmetro útil
ao diagnóstico clínico das contrações do VEC e da própria insuficiência renal aguda pré-
renal (ver Capítulo 14)
Todas essas características das desidratações isotônicas podem ser também observadas
nas desidratações hipotônicas e hipertônicas, desde que também de origem extrarrenal,. As
alterações renais associadas às desidratações refletem portanto o efeito da hipovolemia, mais
do que o das alterações da tonicidade do meio interno.
Perdas renais
Nesses casos, a hipovolemia resulta de um processamento inadequado de água e sódio
pelos rins, o que termina por levar à excreção urinária de uma grande quantidade de água e
cloreto de sódio em proporção isotônica. As desidratações de origem renal podem resultar
de doenças renais primárias, em que o rim se torna incapaz de absorver e/ou concentrar
adequadamente o filtrado glomerular. Os exemplos mais importantes são as formas não
oligúricas da insuficiência renal aguda (ver Capítulo 14), a insuficiência renal crônica (ver
Capítulo 15) e a poliúria que se segue ao alívio de uma obstrução das vias urinárias. Podem
também ocorrer perdas renais isotônicas de fluido devido a uma falta de ação da aldosterona,
seja por síntese deficiente, seja por ausência de resposta do túbulo coletor a esse hormônio.
Por fim, as perdas renais podem ter origem no uso abusivo de diuréticos, seja por prescrição
médica (iatrogenia), seja por automedicação, em geral com a finalidade (equivocada )de
emagrecer.
É evidente que, ao contrário do que ocorre nas desidratações de causa extrarrenal, as
de origem renal caracterizam-se por concentrações elevadas de sódio na urina, em geral
superiores a 30 mmol/L. Portanto, a eliminação de uma urina rica em sódio na presença de
sinais evidentes de desidratação sugere a presença de uma perda renal primária. Na verdade,
é preferível, para discernir entre causas extrarrenais e renais, o uso da fração de excreção de
sódio, que é o quociente entre a taxa de excreção urinária e a carga filtrada de sódio,
expressa em porcentagem (ver Capítulo 5). Essa abordagem tem a vantagem de levar em
conta as alterações do RFG, refletindo portanto de modo mais preciso a atividade de
absorção tubular.
Manifestações clínicas das desidratações isotônicas
Como a osmolalidade do meio extracelular permanece constante, as principais
manifestações clínicas das desidratações isotônicas são aquelas decorrentes da hipovolemia:
sede intensa, taquicardia, queda da pressão arterial, principalmente na posição ereta
(hipotensão ortostática ) e, nos casos mais graves, choque circulatório. Outros sinais clínicos
comuns são o ressecamento das mucosas e a diminuição do turgor cutâneo, especialmente
em crianças. Durante o primeiro ano de vida é também freqüente a depressão das fontanelas.
Fraqueza, apatia, cefaléia e cãibras são também queixas comuns.
Desidratações hipotônicas
As desidratações hiponatrêmicas são as mais freqüentemente encontradas na prática
clínica. A razão para isso é a necessidade imperiosa que tem o organismo de defender o
volume circulante, ainda que isso exija deixar de regular a tonicidade do meio extracelular.
Uma queda do volume circulante estimula não apenas a retenção de sódio, mas também os
dois mecanismos de conservação de água: a sede e a secreção de hormônio antidiurético
(HAD). A concentração plasmática de HAD pode aumentar 10 vezes ou mais nessas
condições, mas isso por si só não seria suficiente para causar hiponatremia, uma vez que o
efeito do HAD sobre o fluxo urinário já é máximo quando sua concentração é apenas duas
vezes superior à normal (ver Capítulo 11). Portanto, para que uma desidratação se torne
hipotônica é obrigatória a introdução de água externa no organismo, seja motivada pelo
estímulo da sede, seja por administração de fluidos em ambiente hospitalar (é comum por
exemplo a infusão de volumes consideráveis de soro glicosado para manter o acesso ao
sistema venoso).
Ao contrário do que ocorre nas desidratações isonatrêmicas, as desidratações
hipotônicas alteram não apenas o volume extracelular, mas também o intracelular. A queda
da concentrração de sódio faz com que apareça uma força osmótica que tende a deslocar
água do espaço extracelular para o intracelular (Fig. 9-3). Esse movimento traz duas
conseqüências: 1) a redução do volume extracelular é bastante acentuada, pois ocorre perda
de fluido extracelular não apenas para o meio externo mas também para o espaço
intracelular. 2) o espaço intracelular pode aumentar de volume, o que pode trazer graves
conseqüências neurológicas (ver adiante).
Causas de desidratação hipotônica
Conforme discutido acima, qualquer desidratação pode tornar-se hipotônica mesmo que
de início as perdas de fluido tenham sido isotônicas. Isso significa que um processo iniciado
por qualquer das causas de desidratação isotônica enumeradas acima, renais ou extrarrenais,
pode apresentar-se ao clínico como uma hiponatremia. Há no entanto algumas situações em
que ocorre uma perda específica de sódio. É o caso das nefrites intersticiais crônicas, que
podem levar a grandes perdas urinárias de sal. Enquadram-se aí também as hiponatremias
provocadas por exercícios físicos extremos, como a disputa de maratonas: a intensa sudorese
provocada por essa prática pode levar não apenas à perda de água mas também de grandes
quantidades de sódio. Se o indivíduo repuser apenas a perda hídrica, tenderá a desenvolver
hiponatremia. No entanto, a sudorese intensa pode também ser uma causa de hipernatremia,
conforme veremos adiante.
VOL. EXTRACELULARVOL. INTRACELULAR
Fig.7-3 – Representação esquemática das alterações dos fluidos corpóreos em uma desidratação hipotônica. Enquanto o volume extracelular está bastante reduzido, o volume intracelular pode até estar aumentado. As linhas pontilhadas indicam as dimensões normais dos espaços intra e extracelular. A seta amarela indica o deslocamento de fluido do espaço extracelular para o intracelular.
Manifestações clínicas das desidratações hipotônicas
Como as desidratações hipotônicas alteram tanto o volume extracelular quanto o
intracelular, suas manifestações clínicas são mais complexas do que as das desidratações
isotônicas. Em primeiro lugar, a maior contração do volume extracelular torna mais intensos
os sinais e sintomas de hipovolemia (taquicardia, hipotensão, fraqueza) nesses pacientes,
que evoluem com maior freqüência ao estágio de choque circulatório. Mais importante, o
inchaço do espaço intracelular pode manifestar-se de modo particularmente grave no
encéfalo, que acaba sendo submetido a pressões hidráulicas muito altas devido à baixíssima
complacência da caixa craniana. Esses pacientes podem apresentar uma série de distúrbios
neuropsiquiátricos, como confusão mental, convulsões e coma, podendo chegar ao óbito
(ver Capítulo 11). A probabilidade de que um evento desses venha a ocorrer é tanto mais
alta quanto mais rápida tiver sido a instalação da hiponatremia. Uma vez havendo tempo
suficiente, as células nervosas são capazes de se adaptar a uma hipotonicidade crônica
reduzindo a osmolalidade do citosol.
Assim como nas desidratações isotônicas, também nas hipotônicas os rins comportam-
se de modo a concentrar ao máximo a urina. Isso quer dizer que, se examinarmos a urina de
um paciente nessas condições, encontraremos uma concentração muito baixa de sódio,
enquanto a osmolalidade está bastante elevada em relação à do plasma.
No diagnóstico clínico das desidratações hiponatrêmicas, deve-se sempre levar em
conta outras situações que podem reduzir a tonicidade do meio extracelular sem redução da
volemia. Algumas dessas situações são facilmente diagnosticadas, como a insuficiência
cardíaca congestiva e a cirrose hepática descompensada, que têm características clínicas
bastante específicas, como o edema generalizado (ver Capítulo 9). No entanto, o diagnóstico
diferencial com outros processos, como a secreção inapropriada do hormônio antidiurético
(SIHAD), pode ser problemática. Na SIHAD, também ocorre hiponatremia, motivada
principalmente pela incapacidade renal de diluir adequadamente a urina em resposta a
sobrecargas hídricas. Essa incapacidade é por sua vez decorrente de uma produção
descontrolada de HAD, seja por ativação anômala da neuro-hipófise, seja por produção
ectópica do hormônio (ver Capítulo 11). Ao se examinar a urina desses pacientes, também
iremos encontrar uma osmolalidade elevada. A concentração de sódio na urina tende a ser
normal ou alta, mas pode ser baixa em casos em que a baixa concentração plasmática de
sódio restrinja a excreção urinária do íon. O mesmo ocorre com a fração de excreção de
sódio. Isso quer dizer que uma hiponatremia associada a uma baixa concentração urinária de
sódio não indica necessariamente estarmos na presença de uma desidratação hipotônica.
Podem-se utilizar alguns elementos diagnósticos auxiliares, como a relação
[uréia]/[creatinina] (que tende a ser elevada na hipovolemia e baixa na SIHAD) e o nível
plasmático de ácido úrico (que tende a ser elevado na hipovolemia e baixo na SIHAD).
Alguns investigadores preconizam até mesmo a administração de um pequeno volume de
solução salina a esses pacientes com finalidade diagnóstica. Se a fração de excreção de
sódio, que como vimos está baixa, pouco se alterar em resposta a essa infusão, isso estará
indicando que a retenção renal de sódio persistiu, sugerindo tratar-se de uma hiponatremia
hipovolêmica. Se, ao contrário, a fração de excreção de sódio apresentar um aumento
acentuado, de várias vezes em relação ao valor inicial, é mais provável estarmos diante de
um caso de SIHAD. Deve-se ressaltar no entanto que essa técnica não está padronizada e
deve ser utilizada com cautela devido aos riscos envolvidos.
Desidratações hipertônicas
As desidratações hipertônicas são menos freqüentes do que as iso e hipotônicas.
Desenvolve-se uma hipernatremia quando a perda de água pelo organismo é
desproporcionalmente maior em relação à de sódio. Como nas desidratações hipotônicas,
ocorre aqui também movimentação de água entre os compartimentos intracelular e
extracelular. Neste caso, no entanto, a elevação da concentração plasmática de sódio faz com
que esse movimento ocorra do compartimento intracelular para o extracelular, promovendo
portanto uma desidratação celular (Fig. 9-4). Essas alterações podem tornar-se clinicamente
evidentes, sendo a mais séria delas o aparecimento de sérios distúrbios neurológicos (ver
adiante). Já a contração do espaço extracelular tende a ser menos intensa do que nas outras
formas de desidratação, devido ao deslocamento de fluido desde o espaço intracelular.
Causas de desidratação hipertônica
Tal como as outras formas de desidratação, as desidratações hipertônicas podem ter
origem renal ou extrarrenal.
VOL. EXTRACELULARVOL. INTRACELULAR
Fig. 7-4 – Representação esquemática das alterações dos fluidos corpóreos em uma desidratação hipertônica. Tanto o volume extracelular quanto o intracelular estão reduzidos. As linhas pontilhadas indicam as dimensões normais dos espaços intra e extracelular. A seta amarela indica o deslocamento de fluido, que neste caso ocorre do espaço intracelular para o extracelular.
Causas extrarrenais (ver também Capítulo 11)
Possivelmente a causa mais óbvia de hipernatremia é a falta de ingestão de água.
Não se trata evidentemente de uma perda primária de água, mas de um balanço negativo de
água motivado pela falta de ingestão e pela perda obrigatória de água através da urina, fezes,
pulmões e pele. A deficiência isolada de ingestão de água (hipodipsia ou, em casos
extremos, adipsia) é uma ocorrência relativamente rara, observada principalmente em
pacientes idosos, demenciados ou apresentando seqüelas neurológicas de acidentes
vasculares cerebrais ou de processos tumorais. Mais comumente, as desidratações
hipernatrêmicas resultam de perdas desproporcionais de água em relação às de sódio.
Dessas, a causa mais comum é a sudorese excessiva, como na exposição a altas temperaturas
ambientes ou durante exercícios físicos extenuantes. Os estados febris podem também
causar grandes perdas hídricas devido à sudorese abundante, ao aumento da perspiração e à
hiperventilação pulmonar usualmente associada a esses casos, e que acarreta grandes perdas
de vapor d’água.
Causas renais
Em determinadas situações, a perda excessiva de água decorre de uma disfunção renal.
O exemplo mais claro dessa condição é o diabetes insípido (DI) (ver Capítulo 11), que
consiste na excreção indevida de uma urina diluída em relação ao plasma. Essa anomalia
resulta de uma secreção deficiente de HAD (DI central ou hipotalâmico) ou de uma resposta
tubular diminuída a esse hormônio (DI nefrogênico). Obviamente o distúrbio só se manifesta
se estiver associado à diminuição da ingestão de água. Por exemplo, se um paciente com
diabetes insipidus central (falta de produção de HAD) urinar 10 litros de água por dia, com o
centro da sede íntegro e pleno acesso a água, ele ingerirá 10 litros de água e não terá
qualquer distúrbio. No entanto, se por exemplo o paciente estiver vomitando em
conseqüência de uma gastrite, ele não conseguirá ingerir água e desenvolverá uma
desidratação hipertônica.
Dentre as causas mais comuns de DI central citam-se aquelas decorrentes da
destruição da neuro-hipófise como os tumores, quadros infecciosos (abscessos, meningites,
encefalites, etc.) e traumas, sejam primários ou secundários à intervenções (ver cap.11)
cirúrgica. Dentre as causas de DI nefrogênico, podem-se citar a hipocalemia, hipercalcemia,
drogas como o lítio além das causas congênitas.
É possível a ocorrência de perdas renais excessivas de água mesmo que o sistema de
concentração e diluição urinárias esteja funcionalmente íntegro. Na diabetes mellitus
descompensada, a elevada concentração de glicose no filtrado satura a capacidade de
absorção desse composto pelo túbulo proximal. Em conseqüência, parte da glicose filtrada
comporta-se como um soluto não absorvível e, portanto, como se fosse um diurético
osmótico (ver Capítulo 6). Como resultado desse efeito, a absorção proximal de sódio
diminui, levando a uma oferta aumentada de água e sódio aos segmentos subseqüentes do
néfron. Na porção espessa da alça de Henle, ocorre absorção intensa de cloreto de sódio,
sem a correspondente absorção de água, já que as paredes tubulares são praticamente
impermeáveis à água - na verdade, essa porção do néfron é conhecida como segmento
diluidor (ver Capítulos 4 e 5). O fluido assim diluído chega ao túbulo coletor, onde, na
presença de HAD, deveria ser concentrado pela difusão osmótica de água em direção à
medula renal, onde a osmolalidade é mais alta (ver Capítulo 4). Esse movimento é no
entanto dificultado pela presença de glicose no fluido tubular. Além disso, o alto fluxo
intratubular imposto pela diurese osmótica deixa pouco tempo a que a osmolalidade do
fluido urinário se equilibre com a do interstício medular. Como resultado, a concentração de
sódio na urina final será relativamente baixa, levando ao desenvolvimento de uma
hipernatremia..
É importante ressaltar que a existência de uma hipernatremia não significa
necessariamente que esteja ocorrendo um balanço positivo de sódio. Ao contrário, pode
estar havendo até mesmo um balanço negativo do íon, como é o caso da diabetes mellitus
descompensada, descrito acima. O que vai determinar a concentração final de sódio no meio
extracelular é a diferença entre os balanços de água e sódio. Se ambos forem negativos, mas
a magnitude do de água for maior, a concentração plasmática de sódio se elevará.
Manifestações clínicas das desidratações hipertônicas
Conforme discutido acima, as desidratações hipertônicas provocam uma redução do
volume intracelular, enquanto a perda de volume extracelular não é tão acentuada quanto
nas outras formas. Em conseqüência dessa característica, as manifestações externas de
desidratação celular, como o ressecamento da pele e das mucosas e a presença de olhos
encovados, são bastante proeminentes. A repercussão neurológica da contração do volume
intracelular é também exuberante. A irritabilidade é um dos sintomas mais característicos
de hipernatremia. As outras manifestações neurológicas da hipernatremia podem ser bem
mais graves, incluindo sonolência, confusão mental, convulsão e coma. Pode ocorrer
hemorragia meníngea secundária à tração dos vasos meníngeos pela contração do tecido
nervoso (principalmente em lactentes jovens). A letalidade das hipernatremias é
considerável.
Apesar da elevada concentração plasmática de sódio, a concentração urinária de sódio é
baixa nas desidratações hipertônicas. Mais uma vez, esse achado reflete a extrema
importância atribuída pelo organismo à conservação de volume, ainda que em detrimento da
regulação da tonicidade dos fluidos corpóreos.
As hipernatremias quase sempre indicam a presença de uma desidratação, ou seja, uma
perda de água pelo organismo. É raríssima a observação, em adultos, de hipernatremia por
excesso de ingestão de sódio. Se o centro da sede estiver íntegro, a ingestão de uma
quantidade anormalmente alta de sódio aumenta rapidamente a pressão osmótica do meio
extracelular. Como basta uma elevação de 2 ou 3 mOsm/L para deflagrar a sensação de sede
(ver Capítulo 11), o indivíduo ingere água até anular essa variação, desenvolvendo expansão
do volume extracelular, mas não hipernatremia. No entanto, a hipernatremia pode estar
associada em alguns casos a um genuíno excesso de ingestão de sal. Essa anomalia tem sido
observada em lactentes, os quais, por não ter acesso à água, não têm como diluir uma
eventual ingestão excessiva de sódio. A fração de excreção urinária de sódio pode ser
utilizada para distinguir os casos de oferta excessiva de sódio (em que a fração de excreção
de sódio está alta) dos de desidratação hipernatrêmica (em que a fração de excreção de sódio
está baixa).
TERAPÊUTICA DAS DESIDRATAÇÕES
Desidratações isonatrêmicas
O tratamento de qualquer tipo de desidratação deve se iniciar pela restauração rápida da
volemia, buscando a estabilização dos sinais vitais. Portanto, se houver repercussão
hemodinâmica da desidratação, a reposição de volume, através de uma rápida infusão de
solução salina isotônica (“fase rápida”), deve ter prioridade absoluta sobre o tratamento dos
demais distúrbios eletrolíticos – trata-se afinal de assegurar a perfusão de tecidos vitais,
como o cerebral e o miocárdico, garantindo assim a sobrevida do paciente. Nos casos de
desidratação isonatrêmica, a infusão de solução isotônica já será suficiente para a correção
do distúrbio hemodinâmico. É evidente que, em qualquer caso, é imperativo estancar as
perdas de fluido corrigindo o distúrbio primário.
Desidratações hiponatrêmicas
Também nas desidratações hiponatrêmicas a terapêutica deve ser em princípio iniciada
pela restauração da volemia através da infusão de uma solução salina isotônica, antes mesmo
de se corrigir a própria hiponatremia. Quando no entanto a hiponatremia estiver causando
manifestações graves, como convulsões, deve-se também elevar a concentração plasmática
de sódio a níveis mais seguros. Nesses casos, a conduta consiste em administrar solução
salina hipertônica (NaCl a 3%, equivalente a 500mEq de Na+/L, ou 1000mOsm/L)
juntamente com a solução salina isotônica ou imediatamente antes dela. Após a
estabilização dos sinais vitais, a hiponatremia deve ser definitivamente corrigida pela
administração de solução de sódio hipertônica. É importante que a correção da hiponatremia
não seja realizada muito rapidamente. As células cerebrais são capazes de diminuir a
osmolalidade do seu meio quando submetidas durante algum tempo a uma hipotonicidade
do meio externo; trata-se de um mecanismo de defesa contra o edema celular. Se a
osmolalidade do meio externo aumentar muito rapidamente, como na administração de
sódio hipertônico, as células cerebrais não terão tempo de se readaptar, e poderão sofrer um
efeito oposto àquele que se pretende evitar: ao invés de edema, poderemos ter uma
desidratação cerebral, com graves conseqüências como hemorragias meníngeas e mielinose
pontina. O risco de que essas complicações se desenvolvam é tanto maior quanto maior tiver
sido a duração da hiponatremia e, portanto, a magnitude da adaptação. Para evitá-las, a
correção da natremia deve ser sempre lenta, admitindo-se como seguro um ritmo de
elevação de, no máximo, 1,5 mEq/L/hora.. Nos casos em que a hiponatremia se tiver
desenvolvido agudamente, não dando tempo às células cerebrais de se adaptar, o risco
dessas complicações é menor, permitindo uma correção mais rápida da natremia com o
intuito de prevenir o edema cerebral.
Desidratações hipernatrêmicas
Após a restauração rápida da volemia e a estabilização dos sinais vitais, também aqui
prioritárias, a hipernatremia deve ser corrigida pela administração de solução hipotônica
(NaCl a 0,45%, correspondente a 75mEq Na/L, ou 150mOsm/L). Como no caso das
desidratações hiponatrêmicas, pode ser necessário administrar a solução hipotônica durante
a infusão de solução isotônica ou até mesmo antes dela caso a hipernatremia esteja
provocando manifestações neurológicas graves. Também aqui é importante que a correção
da natremia seja lenta. As células cerebrais, quando expostas a um meio extracelular
hipertônico, elevam sua osmolalidade sintetizando moléculas osmoticamente ativas, os
assim chamados osmóis idiogênicos. Essa adaptação será tanto mais completa quanto mais
longa tiver sido a duração da hipernatremia. Se a queda da osmolalidade plásmatica for
excessivamente rápida, pode não haver tempo para que as células cerebrais reduzam sua
osmolalidade interna. Com isso, estabelece-se uma força osmótica que tende a levar
rapidamente água do meio extracelular para as células cerebrais, promovendo o
desenvolvimento de edema cerebral. Por essas razões, o ritmo de redução da natremia deve
ser lento, não ultrapassando 1,5 mEq/L/hora. Se no entanto a instalação da hipernatremia
tiver sido abrupta, a correção da natremia poderá ser mais rápida.
EXERCÍCIOS
Abra o programa “DESIDRATAÇÕES”. Esse programa está organizado sob a forma
de “casos” clínicos típicos. Observe os valores padrão para a ingestão e as perdas de
água e sódio. Selecione cada um dos casos clicando na linha correspondente dentro do
quadro de controle. Clique em “dados clínicos” para conhecer os principais detalhes
clínicos do caso. Observe quais parâmetros de ingestão e/ou excreção estão alterados.
Observe também a variação dos compartimentos intra e extracelular, representados no
gráfico situado na parte inferior esquerda da tela e indicados pela direção em que a mão
está apontando. Anote qual o tipo de desidratação (hipertônica, isotônica) que ocorre em
cada caso. Clique em “CORRIGIR DEFICITS” para ter acesso aos meios de tratamento
(Soro glicosado/água, soro fisiológico ou NaCl hipertônico). Tente corrigir cada
distúrbio utilizando a solução ou associação de soluções mais adequada.
1
CAPÍTULO 8 - DISTÚRBIOS DO METABOLISMO DE
POTÁSSIO
Antonio Carlos Seguro, Gerhard Malnic e Roberto Zatz
O potássio é o mais importante íon do espaço intracelular, exercendo por essa
razão um papel fundamental na manutenção de algumas das funções básicas da célula.
São três os principais efeitos celulares do íon potássio: 1) o íon potássio é o principal
responsável pela manutenção do volume intracelular, da mesma forma que o sódio
constitui o principal cátion do espaço extracelular. 2) alterações relativamente
modestas da concentração intracelular de potássio podem acarretar grandes variações
do pH intracelular, uma vez que os íons K+ e H+ competem por sítios de ligação junto
às macromoléculas intracelulares (ver adiante). 3) Como o potencial de membrana
depende crucialmente do K+ (ver Capítulo 5), as variações das concentrações desse
íon, especialmente no espaço extracelular, podem levar a importantes perturbações
funcionais das células cardíacas, dando origem a arritmias potencialmente fatais (ver
adiante). Por essa razão, a concentração de K+ no espaço extracelular (e portanto no
plasma, onde pode ser facilmente medida) deve ser mantida dentro de limites
estreitos, entre 3,5 e 5,5 mEq/L em condições normais.
Para analisar a fisiopatologia das alterações do metabolismo do K+, é
necessário compreender adequadamente a distribuição desse íon no organismo. A
quantidade total de K+ em um adulto normal é de 3.500 a 4.000 meq. Desse total, 90
% localizam-se no espaço intracelular (onde a concentração de K+ varia entre 140 e
K : Plasma + Interstício
K INTRACELULAR: Músculo, Hemácia, etc...K: OSSO
Fig. 8-1 – Distribuição de K+ nos compartimentos intracelular, extracelular e ósseo
2
150 mEq/l), enquanto cerca de 10% situam-se no espaço extracelular. Desses 10%, no
entanto, cerca de 8% situam-se no tecido ósseo, de onde apenas muito lentamente são
mobilizados, enquanto apenas cerca de 2% encontram-se verdadeiramente em solução
no plasma e no fluido intersticial, onde sua concentração é, como vimos, muito
inferior à do espaço intracelular. Para todos os efeitos práticos, portanto, temos no
organismo dois compartimentos de tamanhos extremamente desiguais em termos de
suas quantidades de K+, e que se encontram separados por uma extensa fronteira,
representada pelas membranas celulares. As dimensões relativas desses
compartimentos encontram-se representadas esquematicamente na Fig. 8-1. A
extrema disparidade dessa distribuição faz com que pequenos deslocamentos de K+
entre os compartimentos intra e extracelular exerçam um efeito avassalador sobre a
concentração extracelular do íon (ver adiante).
As células musculares constituem de longe o maior reservatório corpóreo de
K+, armazenando de 2.300 a 3.000 mEq do íon + (o que faz com que a massa muscular
influencie profundamente a quantidade corpórea de K+). Esse predomínio não chega a
surpreender, considerando o importante papel que o K+ desempenha no processo de
contração muscular. Já as células ósseas abrigam cerca de 300 mEq, os hepatócitos e
as hemácias em conjunto contribuem com cerca de 500 mEq, enquanto todo o restante
das células é responsável por 300 mEq.
Para manter os níveis de K+ entre 3,5 e 5,5 mEq/L, é necessário ao organismo
manter rigorosamente nulos dois tipos de balanço. O primeiro deles é o balanço
externo, ou seja, a diferença entre a quantidade de K+ ingerida com a alimentação e
aquela que é perdida para o meio externo. Normalmente, a maior parte dessa perda é
representada pela excreção urinária (aproximadamente 90%), enquanto a excreção
fecal responde pelos restantes 10%. A dieta ocidental contém entre 50 e 150 mEq/dia,
dependendo da quantidade de carnes, frutas e verduras que compõem o cardápio de
cada um. Isso corresponde a uma excreção urinária entre 45 e 135 mEq/dia e a uma
excreção fecal entre 5 e 15 mEq/dia. No entanto, a excreção fecal pode superar 100
mEq/dia em condições patológicas como as diarréias. Além disso, perdas inteiramente
anômalas de K+, como os vômitos, podem ocorrer. Nesses casos, poderemos ter um
balanço externo negativo de K+. Os próprios rins, se houver perda tubular excessiva,
podem provocar o aparecimento de um balanço negativo de K+. Por outro lado,
3
quando a excreção urinária de K+ for deficiente, estabelece-se um balanço positivo do
íon.
O segundo tipo de balanço que o organismo deve manter é o balanço interno,
que consiste na diferença entre a quantidade de K+ que passa diariamente do
compartimento intra para o extracelular e aquela que se movimenta em sentido
contrário. Conforme observado acima, trata-se de um balanço necessariamente
delicado, dada a enorme desproporção entre as quantidades do íon armazenadas nos
compartimentos intra e extracelular. Uma série de fatores, de natureza principalmente
humoral, influencia essa distribuição, podendo assim alterar a concentração
extracelular de K+ (ver adiante).
REGULAÇÃO DO BALANÇO EXTERNO DE K+
A única maneira de se promover um ajuste fino na excreção de K+, garantindo
assim o balanço do íon, é através da regulação de sua excreção renal. As fezes não são
reguladas, apesar de haver uma certa proporcionalidade entre ingestão e excreção
DISTAL
ALÇA FINADESCENDENTE
ALÇAESPESSA
COLETOR
ALÇA FINAASCENDENTE
PROXIMAL
CARGA FILTRADA = 700 mEq/dia
Fig. 8-2. Processamento de K+ nos diferentes segmentos do néfron
4
fecal, além de uma modulação da excreção intestinal de K+ pela aldosterona. Outras
perdas como os vômitos obviamente são aleatórias e não podem ser usadas pelo
organismo para regular o balanço de K+.
Pouco menos de 700 mEq de K+ (170 L/dia × 4 mEq/L) são filtrados
diariamente nos glomérulos. A maior parte (~2/3) dessa carga filtrada é absorvida nos
túbulos proximais, em estreita associação com a absorção de Na+ (Fig. 8-2). As
evidências atualmente disponíveis indicam que a absorção proximal de K+ é um
processo de natureza essencialmente passiva, acoplado, como vários outros, à
absorção ativa de Na+ (ver também Capítulo 5). É provável que a maior parte desse
fluxo absortivo de K+ ocorra ao longo dos espaços paracelulares, uma vez que são
muito poucos os canais específicos para K+ presentes na membrana luminal dessas
células. É possível, no entanto, que parte dessa absorção ocorra por transporte ativo,
através da porção da membrana basolateral adjacente ao espaço paracelular (Fig. 8-3).
Na porção fina descendente da alça de Henle, a principal modalidade de
transporte é, conforme discutido no Capítulo 5, a saída passiva de água, a qual permite
o aumento da osmolalidade do fluido tubular até 1.300 mOsm (na curvatura das alças
longas). Há no entanto evidências de que ocorre nesse segmento, assim como nas
porções finais do túbulo proximal, um fluxo considerável de K+ desde o interstício até
o lume (portanto um processo de secreção de K+), elevando progressivamente a
concentração luminal desse íon à medida em que nos aproximamos da curvatura da
alça. Esse movimento de K+ parece fazer parte de um processo de reciclagem de K+,
que se inicia na porção final dos túbulos coletores, atravessa o interstício medular e
termina por trazer de volta o K+ à porção final do túbulo proximal (pars recta) e à
porção fina descendente da alça de Henle. Esse processo de reciclagem pode ter
grande importância na conservação de K+ e na própria absorção de Na+ nos túbulos
coletores (ver adiante).
É possível que ocorra alguma absorção de K+ ao longo da porção ascendente
fina da alça de Henle, uma vez que a permeabilidade iônica desse segmento é
considerável. É porém na porção espessa da alça de Henle que ocorre a maior taxa de
absorção de K+ depois do túbulo proximal. Nesse segmento, conforme descrito no
Capítulo 5, ocorre o transporte de Na+, K+ e 2 Cl- através da membrana luminal, por
intermédio de um cotransportador especializado, sensível à ação do diurético
furosemide (ver Capítulo 6). O K+ assim transportado para o interior da célula retorna
5
ao lume através de um canal específico situado na membrana luminal, permitindo a
continuidade da absorção de NaCl através dessa mesma membrana. A pequena
diferença de potencial elétrico transtubular gerada por essa atividade transportadora,
positiva no lume em relação ao interstício, governa a absorção de Na+, Cl- e também
de K+ através dos espaços paracelulares, amplamente permeáveis a íons. Por meio
desse processo, a porção espessa da alça de Henle promove a absorção de cerca de 25
a 30% da carga filtrada de K+. Como cerca de 2/3 dessa carga já são absorvidos no
túbulo proximal, menos de 5% da carga filtrada de K+ atingem os túbulos distais e
coletores. Uma vez que nas sociedades ocidentais a ingestão de K+ varia de 50-100
mEq/dia, e como cerca de 90% desse total são eliminados através da urina, conclui-se
que a fração de excreção de K+ (porcentagem da carga filtrada excretada na urina)
varia aproximadamente entre 7 e 13%. Segue-se portanto que uma parcela substancial,
talvez a maior parte, do K+ excretado na urina provém da secreção desse íon na
porção final do túbulo distal e no túbulo coletor.
As chamadas células principais dos túbulos coletores, bem como as da porção
final do túbulo distal (túbulo de conexão e coletor cortical inicial), captam ativamente
o K+, como todas as demais células tubulares, através da ação da Na+,K+-ATPase
presente na membrana basolateral (Fig. 8-4) (ver Capítulo 5). O K+ é posteriormente
K+
ATPase
K+
K+
Na+
Na+
Na+
H+
GLICOSE,AA, PO
4
Na+
ATP
Fig. 8-3. Representação esquemática dos mecanismos de absorção de K+ no túbulo proximal
6
secretado para a luz tubular através de canais específicos situados na membrana
luminal. Esse movimento é extremamente favorecido pelo gradiente eletroquímico de
K+ entre o interior da célula e o lume tubular: em primeiro lugar, a concentração de K+
no interior da célula é mais de 30 vezes superior à do lume. Em segundo lugar, a
diferença de potencial elétrico entre o interior da célula e o lume é relativamente baixa
(ou seja, o interior da célula é pouco negativo em relação ao lume) devido à entrada de
Na+ através da membrana luminal, facilitada pela presença nessa membrana de canais
específicos para Na+ (ver também Capítulo 5). É comum denominar a esse processo
“troca de Na+ por K+”. Embora estejam realmente aí ocorrendo movimentos de Na+ e
de K+ em sentidos opostos, não se trata de uma troca no sentido estrito do termo, uma
vez que inexistem, na membrana luminal das células principais, contratransportadores
ou qualquer outra estrutura que acople a saída de K+ à entrada de Na+. É portanto mais
correto afirmar que a entrada de Na+ favorece a saída de K+ na porção final do túbulo
distal e no túbulo coletor cortical.
Apesar dessa característica eminentemente secretora da porção final do túbulo
distal e do túbulo coletor cortical, ocorre também absorção de K+ nesses segmentos,
principalmente na porção medular do túbulo coletor, através das células intercaladas
do tipo α. Essas células possuem uma ATPase especial em sua membrana luminal, a
qual promove a entrada de um íon K+ acoplada à saída de um íon H+. Essa ATPase é
semelhante àquela existente na mucosa do estômago, cuja função é a de acidificar o
conteúdo gástrico. O papel fisiológico dessa bomba não está ainda totalmente
esclarecido, embora pareça evidente sua importância nos estados de depleção de K+
Figura 8-4 – Representação esquemática do transporte de Na+, K+ e Cl- no túbulo distal final e no túbulo coletor. L, lume; I, interstício
Na+
Na+ATP
K+
Na+
Cl-Cl-
L I
+ -
-+
7
(ver adiante). É possível que a absorção de K+ nesse segmento sirva para modular a
secreção desse íon, ajudando assim a estabelecer um ajuste fino de sua excreção. É
possível também que essa absorção de K+ nas porções finais do túbulo coletor
constitua a base da chamada recirculação de K+: várias evidências experimentais
sugerem que uma parte do K+ secretado nos túbulos distal final e coletor cortical
retorna ao néfron através da pars recta do túbulo proximal e da porção descendente
fina da alça de Henle (ou seja, acaba sendo secretado também nesses segmentos).
Esse fenômeno parece ocorrer principalmente nos néfrons justamedulares, cujas alças
finas alcançam a papila renal e, portanto, as regiões da medula onde é máxima a
concentração de solutos, inclusive a de K+. O significado fisiológico dessa
recirculação é também obscuro. É possível que o fenômeno sirva para facilitar a
absorção de Na+ nesses segmentos, sem que para isso seja necessário excretar grandes
quantidades de K+ (ver Capítulo 5). É possível ainda que a recirculação de K+
contribua para aumentar a concentração de solutos e, portanto, a osmolalidade do
interstício medular, participando assim do processo de concentração urinária.
FATORES QUE INFLUENCIAM A SECREÇÃO DE K+ NOS TÚBULOS
DISTAL E COLETOR
Tendo em vista os mecanismos de secreção de K+ na porção final do túbulo
distal e no túbulo coletor cortical, descritos acima, fica fácil compreender os fatores
que influenciam esse processo.
1. Aporte de Na+. Conforme discutido acima, a entrada de Na+ através da
membrana luminal das células principais diminui a negatividade intracelular,
favorecendo assim a secreção de K+. Além disso, o aumento da concentração
intracelular de Na+ estimula a atividade da Na+,K+-ATPase basolateral,
elevando a concentração intracelular de K+ e contribuindo assim para
aumentar ainda mais a secreção do íon. Por essa razão, as situações em que
aumenta a oferta de Na+ à porção final do túbulo distal (por exemplo,
expansão intensa do volume extracelular ou administração de diuréticos)
acabam levando à depleção de K+ (ver também os Capítulos 5 e 6).
8
2. Fluxo intraluminal de fluido. A secreção de K+ pelas células principais é um
processo passivo, dependente da diferença de potencial elétrico, e também da
diferença entre as concentrações de K+, entre o interior da célula e a luz
tubular. Por essa razão, tudo o que fizer diminuir a concentração intraluminal
de K+ na porção final do túbulo distal e no túbulo coletor cortical estimulará
a sua secreção. Quando o fluxo intraluminal de fluido aumenta nesses
segmentos (por exemplo, após a administração de um diurético), o K+
secretado é rapidamente “lavado”, o que mantém baixa sua concentração
intraluminal, aumentando assim a secreção e a perda renal de K+.
3. Aldosterona. A aldosterona é um hormônio produzido pelas suprarrenais,
cuja principal função é a de conservar Na+, constituindo na verdade parte do
sistema renina-angiotensina-aldosterona (ver Capítulos 2 e 10). Embora o
principal fator de estímulo à sua síntese sejam os níveis circulantes de
angiotensina II, a aldosterona pode ser secretada também em resposta a uma
estimulação direta da suprarrenal por um aumento da concentração
plasmática de K+. A aldosterona estimula a secreção de K+ pelas células
principais através de dois mecanismos: 1) aumento da atividade da Na+,K+-
ATPase basolateral (por aumento da quantidade de sítios catalíticos ali
presentes), aumentando assim a concentração intracelular de K+; 2) aumento
da quantidade de canais específicos para Na+ presentes na membrana
luminal, promovendo a entrada de Na+ na célula e, em conseqüência,
aumentando o gradiente elétrico que favorece a secreção de K+. Além disso,
o conseqüente aumento da concentração intracelular de Na+ estimula ainda
mais a atividade da Na+,K+-ATPase basolateral.
4. Presença de ânions não absorvíveis na luz tubular. O principal ânion
existente no lume dos túbulos distal e coletor é o Cl-, parte do qual atravessa,
com dificuldade, o espaço intercelular (Fig. 8-4). Há ainda nesses segmentos
uma certa quantidade de ânions de absorção ainda mais difícil, tais como os
sulfatos e, até certo ponto, os fosfatos, que servem de tampões fixos (ver
Capítulo 12). A permanência deses ânions no espaço intraluminal, em face da
contínua absorção de Na+, ajuda a manter negativa a diferença de potencial
9
elétrico lume-interstício, o que favorece a secreção de K+. Se administrarmos
a um indivíduo uma quantidade extra desses ânions sob a forma de um sal de
Na+ (por exemplo, sulfato de Na+), o íon Na+ continuará a ser absorvido
nesses segmentos, mas o sulfato ficará retido no lume. Como conseqüência, o
lume tubular torna-se ainda mais negativo, aumentando a taxa de secreção de
K+. Mais comum é a presença anômala de bicarbonato no lume desses
segmentos, como por exemplo nas alcaloses metabólicas, em que pode
ocorrer rejeição proximal desse íon. Como os túbulos distal e coletor não são
adaptados para absorver grandes quantidades de HCO3-, este irá agir como
um ânion não absorvível, aumentando portanto a secreção de K+. Esse efeito
ajuda a explicar a hipopotassemia que se associa às alcaloses metabólicas
(ver adiante).
5. Equilíbrio ácido-base. Por razões até hoje não totalmente esclarecidas, o pH
do meio interno tem um profundo efeito sobre a distribuição de K+ entre os
compartimentos intra e extracelular. Esse complexo efeito manifesta-se de
modo diferente conforme se trate de uma alteração aguda ou crônica do pH.
Em condições de acidose aguda, a entrada de K+ nas células é dificultada,
fazendo com que o íon se acumule no espaço extracelular, enquanto o oposto
ocorre em situações de alcalose aguda. Os mecanismos envolvidos na gênese
desse efeito são desconhecidos. É concebível que uma alta concentração de
íons H+ iniba a atividade da Na+,K+-ATPase celular, promovendo assim uma
redistribuição de K+ do espaço intra para o extracelular, embora não existam
ainda evidências concretas nesse sentido. Outra possibilidade é a de que o pH
ácido aumente a permeabilidade das membranas celulares ao K+. Como o
potencial eletroquímico para o K+ é muito maior no interior da célula, o
efeito de um aumento da permeabilidade ao K+ é o de aumentar sua saída,
elevando sua concentração no meio extracelular. Um possível mecanismo
para esse efeito da acidose sobre a permeabilidade ao K+ é o aumento da
probabilidade de abertura dos canais ROMK, específicos para esse íon. Seja
qual for o mecanismo envolvido, a depleção de K+ se faz sentir também nas
10
células principais: a acidose aguda diminui nelas a concentração intracelular
de K+, reduzindo assim a secreção do íon e promovendo sua retenção, o que
contribui para manter e agravar a hiperpotassemia. Esse quadro torna-se
ainda mais complexo quando consideramos que nem todas as acidoses
comportam-se do mesmo modo: enquanto as acidoses metabólicas
hiperclorêmicas, como as resultantes de diarréias (ver Capítulo 12),
associam-se a hipercalemia intensa, as acidoses metabólicas orgânicas (como
a acidose láctica) e as acidoses respiratórias provocam elevações bem mais
modestas na calemia. As razões para essa diferença de comportamento não
estão claras.
Nas alcaloses agudas, o K+ desloca-se, por mecanismo análogo ao
observado nas acidoses, do compartimento extra para o intracelular, levando
a uma hipopotassemia, agravada pelo efeito do HCO3- enquanto ânion não
absorvível (ver acima). Ocorre um processo semelhante nas alcaloses
crônicas. Já nas acidoses crônicas a calemia varia de modo mais complexo e
dependente da causa primária do distúrbio: nas fases avançadas da
insuficiência renal crônica, o que se observa é uma hiperpotassemia (ver
Capítulo 15), enquanto nas acidoses tubulares renais, que são distúrbios
primários da acidificação renal, a regra, paradoxalmente, é a ocorrência de
hipopotassemia por perda renal de K+. Um tratamento mais detalhado da
controvérsia em torno dos possíveis mecanismos aí envolvidos transcende o
escopo deste texto.
BALANÇO INTERNO
O balanço interno de K+, que conforme definido acima representa a
distribuição deste cátion entre o intra e o extracelular, é basicamente regulado pelos
níveis de insulina, de catecolaminas e de aldosterona, podendo ainda ser
11
profundamente afetado por alterações do equilíbrio ácido-base e da tonicidade do
meio extracelular. Vejamos em detalhe a influência de cada um desses fatores.
Insulina
Os níveis plasmáticos de insulina constituem um dos mais importantes
reguladores da concentração extracelular de K+. A insulina promove a entrada de K+
para o interior da célula, ao que tudo indica de modo independente de sua ação sobre o
metabolismo da glicose. Vários mecanismos são propostos para explicar esse efeito.
Em primeiro lugar, a insulina ativa diretamente a onipresente Na+,K+-ATPase,
tornando as célula ainda mais ricas em K+ e depletando-as de Na+. Além disso, a
interação da insulina com o seu receptor na superfície da célula estimula um contra-
transportador Na+-H+, resultando em uma entrada de Na+ na célula, que por sua vez
vai estimular ainda mais a atividade da Na+,K+-ATPase, aumentando assim a
concentração intracelular de K+: Há evidências ainda de que essa complexa série de
efeitos desempenha um papel regulatório, uma vez que os níveis de K+ no espaço
extracelular parecem aumentar a liberação de insulina pelo pâncreas, caracterizando
um processo de realimentação negativa, típica de sistemas reguladores.
Catecolaminas
As catecolaminas contribuem para diminuir os níveis de K+ plasmático através
dos receptores β2 adrenérgicos. A interação entre catecolaminas e receptores β2
estimula a adenilciclase, que cliva o ATP gerando um segundo mensageiro, o
3’,5’cAMP, mais conhecido por AMP cíclico. Este por sua vez estimula diretamente a
Na+,K+-ATPase, aumentando assim o ingresso de K+ à célula. Por essa razão, o uso de
β2-estimulantes e/ou de inibidores da degradação do 3’,5’cAMP, como por exemplo a
teofilina (aminofilina), pode levar a uma queda nos níveis plasmáticos de K+. Convém
lembrar que esse efeito é específico para os receptores β2, uma vez que os estudos
realizados com agonistas β1 não mostraram qualquer efeito dessas drogas sobre a
concentração extracelular de K+. Por mecanismos exatamente inversos, os β-
bloqueadores, como o propranolol, podem elevar a concentração plasmática de K+.
12
Se por um lado a estimulação dos receptores β2 pode produzir hipocalemia por
estímulo direto da Na+,K+-ATPase, os receptores α adrenérgicos podem induzir
hipercalemia devido não somente à sua ação inibitória sobre a Na+,K+-ATPase como
também por inibir a liberação da insulina.
Aldosterona
Várias evidências experimentais sugerem que a aldosterona age nas células
extrarrenais de modo semelhante ao observado nas células principais dos túbulos
distais e coletores. No cólon, esse efeito é evidente, uma vez que nesse local a
aldosterona promove secreção de K+ e absorção de Na+ interiamente análogos aos
observados no néfron. Já em células musculares, por exemplo, há controvérsia quanto
ao efeito do hormônio, que no entanto parece favorecer a entrada de K+ na célula por
estimular a Na+,K+-ATPase, promovendo assim o deslocamento de K+do espaço extra
para o intracelular e contribuindo para a hipocalemia associada à ação desse hormônio
(ver adiante).
Equilíbrio ácido-base
Conforme descrito acima, as alterações do pH do meio extracelular influenciam
fortemente a distribuição do K+ entre os meios intra e extracelular. Essa
característica tem profundas conseqüências fisiopatológicas e terapêuticas,
conforme veremos mais adiante.
Tonicidade plasmática
O aumento da tonicidade plasmática, ou seja, de sua osmolalidade, acarreta a
desidratação do compartimento intracelular, especialmente quando a anomalia se
instala abruptamente, como na cetoacidose diabética. Nesses casos, a movimentação
de água provoca a saída de K+ do intracelular através de um mecanismo de arraste
(“solvent drag”), podendo favorecer a instalação de uma hipercalemia.
13
RESPOSTA DO ORGANISMO A VARIAÇÕES NA INGESTÃO DE K+
a) Renal
Quando consideramos a resposta do néfron a variações na carga ingerida de
K+, dois conceitos fundamentais devem ficar bem claros:
1) Em um indivíduo normal, as taxas de ingestão e de excreção (renal +
fecal) de K+ são idênticas. O balanço externo de K+ é zero. Essa regra se
aplica a uma faixa bastante ampla de ingestão de K+, a qual inclui desde
dietas pobres em K+ até grandes sobrecargas do íon, de 300 mEq/dia ou
mais (dificilmente a ingestão de K+ chega a ultrapassar os 500 mEq/dia).
Esse balanço só é quebrado em casos de extrema carência de K+ (como por
exemplo na anorexia nervosa), já que há sempre uma excreção mínima de
K+ a que os túbulos coletores são obrigados.
2) O processamento do íon K+ no túbulo proximal e nas alças de Henle
varia muito pouco com a taxa de ingestão do íon. O balanço de K+ é
obtido graças à atuação da porção final do túbulo distal e,
principalmente, do túbulo coletor (pode haver uma pequena participação
do cólon, graças à ação da aldosterona).
14
Em condições de sobrecarga de K+, aumenta a secreção do íon através da
membrana luminal das células principais, graças ao aumento da atividade dos canais
de K+ ali existentes, em parte devido à ação da aldosterona, cuja secreção é sensível à
concentração plasmática de K+. A taxa de excreção (carga excretada) de K+ assim
obtida pode chegar a mais de 50% de sua carga filtrada (Fig. 8-5A). Já em situações
de carência de K+, a secreção tubular do íon cai a valores muito baixos (Fig. 8-5B),
enquanto a atividade da K+-H+-ATPase das células intercaladas (e o próprio número
dessas células) aumenta, absorvendo assim a maior parte do K+ que chega aos túbulos
coletores. Ainda assim, uma parte desse K+ acaba escapando à absorção, levando ao
estabelecimento de um balanço negativo em condições de depleção extrema do íon.
b) Extrarrenal
Além dos mecanismos renais descritos acima, outros processos de adaptação
podem contribuir para a regulação da excreção de K+. A excreção fecal de K+ pode
variar de acordo com a ingestão do íon, talvez devido à ação da aldosterona no
epitélio do cólon, de modo análogo ao observado nos túbulos distal e coletor. O
organismo pode ainda reagir a estados de retenção ou depleção de K+ deslocando o
DISTAL
ALÇA FINADESCENDENTE
ALÇAESPESSA
COLETOR
ALÇA FINAASCENDENTE
PROXIMAL
CARGA FILTRADA = 680 mEq/dia
DISTAL
ALÇA FINADESCENDENTE
ALÇAESPESSA
COLETOR
ALÇA FINAASCENDENTE
PROXIMAL
CARGA FILTRADA = 700 mEq/dia
Fig. 8-5 – Representação esquemática do processamento renal de potássio em condições de sobrecarga (A) e depleção (B) do íon
A B
15
íon do espaço extra para o intracelular ou vice-versa, conforme o caso, embora o
efeito desse recurso seja relativamente limitado.
HIPOCALEMIAS
As hipocalemias são diagnosticadas, por definição, quando a concentração
plasmática de K+ cai abaixo de 3,5 mEq/l. As hipocalemias ocorrem sempre que um
dos balanços de K+ descritos acima, externo ou interno, torna-se negativo.
Hipocalemias por perda externa de K+.
Quando se estabelece um balanço externo negativo de K+, a concentração de
K+ cai de acordo com a função representada na Fig. 8-6. Dois aspectos destacam-se ao
exame dessa figura. Em primeiro lugar, a magnitude da deficiência acumulada pode
facilmente atingir algumas centenas de mEq. Como o espaço extracelular contém
apenas cerca de 60 mEq de K+, e como o K+ ligado ao tecido ósseo mobiliza-se muito
lentamente, segue-se que a maior parte do K+ perdido ao meio externo provém do
espaço intracelular. Em segundo lugar, a forma da curva é nitidamente não linear. Isso
significa que, uma vez tendo a concentração de K+ caído a níveis muito baixos
(inferiores a 2 mEq/L), uma pequena queda da calemia pode estar indicando um sério
agravamento da deficiência acumulada do íon.
As perdas externas de K+ podem envolver diretamente os rins (perdas renais)
ou outras estruturas (perdas extrarrenais).
0
1
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3
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9
10
-1000 -800 -600 -400 -200 0 200
GANHOP ERDA
BALANÇO CUMULATIVO DE K, mmo l
[K]
plas
ma,
mm
ol/L
Fig. 8-6 – Concentração plasmática de K+ em função do balanço externo do íon
16
Perdas extrarrenais.
1. Falta de ingestão
É muito rara a ocorrência de hipocalemia por falta de ingestão de
K+, uma vez que este é o cátion mais abundante nos alimentos de
origem animal ou vegetal. Entretanto, indivíduos portadores de
anorexia nervosa, cuja ingestão de K+ pode cair a níveis
baixíssimos, ocasionalmente desenvolvem hipocalemias graves e
potencialemnte fatais. A razão para isso é que sempre existe
alguma secreção de K+, por menor que seja, nos túbulos distal e
coletor, bem como no cólon. Mantido ao longo de semanas ou
meses, esse pequeno balanço negativo de K+ pode levar ao
acúmulo de uma grande deficiência do íon.
2. Diarréia
Em indivíduos normais, a concentração de K+ nas fezes é
relativamente elevada (~50-100 meq/L). No entanto, as perdas entéricas
diárias deste cátion são baixas, dado o baixo o volume de água excretado
com as fezes (~100-200 ml/dia). Já nas diarréias, o volume de água excretado
com as fezes pode estar 10 ou mais vezes aumentado em relação ao normal,
levando assim a perdas significativas de K+. Essa depleção pode ocorrer
muito rapidamente nas diarréias agudas muito intensas, como ocorre na
cólera. Nesses casos, pode não haver tempo para que o K+ saia do espaço
intracelular em quantidade suficiente para atenuar a queda na concentração
plasmática de K+, levando a hipocalemias bastante graves. No entanto, é mais
comum a ocorrência de hipocalemias profundas nas diarréias crônicas.
Nesses casos, embora o volume das fezes seja menor do que nas diarréias
agudas, o tempo durante o qual o problema persiste é longo o suficiente para
que se acumule uma grande deficiência de K+, que se reflete na concentração
plasmática do íon.
17
As hipocalemias causadas por diarréias podem ser mascaradas pela
freqüente ocorrência de acidose metabólica nesses pacientes, decorrente de
uma perda fecal de bicarbonato, conseqüente por sua vez ao próprio aumento
de fluxo e à alteração da flora bacteriana intestinal (ver também Capítulo 12).
Nesses casos, o que ocorre é um deslocamento para cima da curva que
relaciona a concentração plasmática de K+ e a deficiência acumulada do íon
(Fig. 8-7), indicando um deslocamento de K+ do espaço intra para o
extracelular. Isso significa que, se a acidose for corrigida sem que ao mesmo
tempo se reponha o K+ perdido, normalizando a curva da Fig. 8-7, a
hipocalemia pode agravar-se abruptamente. A acidose pode ainda, conforme
discutido acima, limitar a secreção de K+ pelas células principais, o que
contribui para obscurecer ainda mais o quadro.
Previsivelmente, a resposta renal aos quadros diarreicos é a de
conservação de K+, com drástica diminuição da secreção tubular e ativação
da K+ ,H+-ATPase das células intercaladas. No entanto, essa resposta pode
sofrer influências antagônicas de dois fatores: de um lado, a acidose
metabólica tende, como vimos, a limitar a secreção de K+. De outro, o
excesso de aldosterona que se associa aos quadros de hipovolemia pode
estimular a secreção de K+. O caráter conflitante dessas influências faz com
que a contribuição renal para a depleção de K+ nas diarréias seja
inconsistente e quantitativamente pouco importante.
3. Vômitos-
Fig. 8-7 – Concentração plasmática de K+ em função do balanço externo do íon, em presença de acidose metabólica (curva em vermelho). A curva em azul representa a mesma função em condições normais
0
1
2
3
4
5
6
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8
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10
-1000 -800 -600 -400 -200 0 200 400
GANHOP ERDA
BALANÇO CUMULATIVO DE K, mmo l
[K]
plas
ma,
mm
ol/L
18
A concentração de K+ no suco gástrico não é alta (≈15 meq/l).
Mesmo com vômitos muito intensos, da ordem de 2 ou 3 litros/dia, a perda
diária de K+ não vai além de umas poucas dezenas de mg. Mesmo assim, a
perda de suco gástrico por vômito ou por sonda naso-gástrica
freqüentemente resulta em hipocalemia. Essa anomalia decorre na verdade
da perda de ácido clorídrico pelo suco gástrico, muito mais do que da perda
direta de K+ por essa via. A razão para isso é a alcalose metabólica que se
instala nesses pacientes (ver Capítulo 12). O mecanismo da hipocalemia
que daí decorre é duplo: de um lado, a alcalose leva, como vimos, a um
deslocamento de K+ para o interior das células, depletando desse íon o
espaço extracelular. Além disso, a alcalose facilta, como vimos, a secreção
de K+ pelas células principais, favorecendo a perda externa de K+. De outro
lado, a contração do volume extracelular, decorrente da perda de água e de
NaCl, promove um aumento das taxas plasmáticas de aldosterona, o que irá
acelerar ainda mais a perda renal de K+. Neste caso, portanto, ao contrário
do que ocorre nas diarréias, os efeitos do distúrbio ácido-base e os do
excesso de aldosterona somam-se, fazendo com que as perdas renais
contribuam de modo decisivo para o estabelecimento da hipocalemia.
Perdas renais.
Os rins, normalmente muito eficientes na manutenção do balanço de
K+, podem em certas circunstâncias constituir a causa primária de uma perda externa
de K+.
1. Abuso de diuréticos
O mecanismo mais freqüente de perda renal de K+ é o abuso de diuréticos, seja
por prescrição médica (hipocalemia de origem iatrogênica), seja por iniciativa do
próprio paciente, julgando erroneamente que assim conseguirá “emagrecer”. Todos os
diuréticos atualmente em uso, com exceção dos retentores de K+, provocam caliurese
por elevar o aporte de Na+Cl- e o fluxo intraluminal de fluido aos túbulos distal e
coletor, aumentando assim a secreção de K+ por esses segmentos. As maiores
19
depleções de K+ ocorrem em associação com o uso dos diuréticos de alça e dos
tiazídicos (ver Capítulo 6).
2. Excesso de aldosterona
O hiperaldosteronismo, tanto o primário (tumores e hipertrofia da
suprarrenal) quanto o secundário (em conseqüência de hipovolemia ou de
hipoperfusão renal, como na insuficiência cardíaca congestiva e na cirrose
hepática) é também causa frequente de hipocalemia, tanto pelo aumento que
promove na secreção de K+ como pelo efeito da alcalose metabólica associada.
3. Anomalias genéticas
Há uma série de defeitos genéticos que, embora raros, são valiosos para
ajudar a compreender alguns mecanismos íntimos de transporte de eletrólitos
no néfron. Não consideraremos em detalhe as características clínicas
específicas, os tipos de herança ou os mecanismos gênicos envolvidos nessas
doenças, limitando-nos a abordar os aspectos diretamente ligados ao transporte
de eletrólitos e, em especial, ao transporte de K+.
A síndrome de Bartter caracteriza-se basicamente por uma perda renal
exagerada de Na+, Cl- e K+, levando a um quadro de desidratação e
hipocalemia persistentes. A razão para essa anomalia é um defeito no
transporte desses íons na porção espessa da alça de Henle, seja no
cotransportador Na+-K+-2 Cl- da membrana luminal, no canal de K+ situado na
mesma membrana, ou no canal de Cl- localizado na membrana basolateral (ver
Capítulo 5). Em qualquer dos casos, o indivíduo comporta-se como se
estivesse recebendo, de modo contínuo, um diurético de alça tal como o
furosemide (ver Capítulo 6). Além das perdas urinárias de Na+, Cl- e K+,
ocorre também hipercalciúria, o que pode levar a um quadro de
desmineralização óssea (ver Capítulo 13).
Na síndrome de Gitelman, o defeito situa-se no cotransportador Na+-
Cl- característico do túbulo distal inicial (ver Capítulo 5). Nesse caso, o
paciente comporta-se como se estivesse tomando cronicamente um diurético
do grupo dos tiazídicos (ver Capítulo 6), apresentando-se em hipovolemia e
20
hipocalemia. Nesses casos, a excreção urinária de Ca++ está anormalmente
baixa, devido a um excesso de absorção desse íon pelo próprio túbulo distal,
bem como a uma hiperatividade compensatória da porção espessa da alça de
Henle. Essa característica é útil no diagnóstico diferencial entre as síndromes
de Bartter e Gitelman.
A ação tubular da aldosterona pode estar primariamente alterada em
uma série de anomalias genéticas. Na síndrome de Liddle, o canal luminal de
Na+ característico das células principais (ver Capítulo 5) permanece aberto
durante um período muito superior ao normal, aumentando assim de modo
acentuado a condutância luminal a esse íon. Na síndrome do excesso aparente
de mineralocorticóide, uma deficiência enzimática específica faz com que se
acumulem, no tecido renal, grandes quantidades de cortisol, cujos efeitos sobre
as células principais são semelhantes aos da aldosterona. Na síndrome do
hiperaldosteronismo sensível a corticosteróides, os genes que controlam as
enzimas respectivamente envolvidas na síntese de aldosterona e de cortisol
fundem-se em um único gen (quimerismo), controlado pelo ACTH, levando à
produção de um excesso de aldosterona. A administração de corticosteróide
exógeno deprime a síntese de ACTH e corrige o excesso de
mineralocorticóide. Previsivelmente, todas essas anomalias simulam um
quadro de hiperaldosteronismo primário, com manifestações de hipervolemia e
de hipocalemia.
4. Presença de ânions não absorvíveis no lume tubular
Como vimos acima, a presença de ânions não absorvíveis no lume dos
túbulos distal e coletor aumenta a eletronegatividade luminal, favorecendo a
secreção de K+. Além do bicarbonato, cuja concentração intraluminal aumenta
nas alcaloses metabólicas, também algumas drogas podem exercer esse efeito,
como por exemplo as penicilinas.
5. Outras causas
O tratamento sistêmico com a anfotericina B, um potente
antifúngíco, tem como um de seus efeitos colaterais a hipocalemia. Essa
droga promove a formação de poros na membrana luminal das células
21
principais, provocando assim grandes perdas de K+ devido ao aumento da
secreção desse cátion, por vazamento, para a luz tubular.
A deficiência de magnésio tem sido apontada como uma possível
causa de perda renal de K+, o que pode ajudar a explicar muitos casos de
hipocalemia sem causa óbvia. Os mecanismos envolvidos na gênese desse
efeito não estão ainda esclarecidos.
Em pacientes diabéticos, a correção da cetoacidose, se não
acompanhada de reposição de K+, pode levar a uma hipocalemia grave por
deslocamento abrupto do íon para o espaço intracelular (ver adiante).
Hipocalemias por redistribuição de K+.
Conforme discutido nas seções anteriores, a quantidade de K+ presente
no espaço extracelular, daí excluído o tecido ósseo (ou seja, plasma +
interstício), é irrisória comparada àquela existente no espaço intracelular.
Por esse motivo, pequenos deslocamentos entre os dois compartimentos
podem acarretar grandes variações na concentração plasmática de K+. Esse
mecanismo ajuda a compreender a gênese de uma série de hipocalemias que
não podem ser explicadas somente por perda externa de K+.
1. Alcalose metabólica
Nas alcaloses metabólicas, o alto pH do meio interno ativa a Na+,K+-
ATPase das membranas celulares, promovendo assim a entrada de K+ no
interior das células. Além disso, e em razão desse mesmo movimento, a
secreção de K+ pelas células principais é acelerada, aumentando a perda
renal do íon, o que contribui para agravar e perpetuar a hipocalemia. As
alcaloses respiratórias também se fazem acompanhar de hipocalemia. No
entanto, esta é menos intensa do que nas alcaloses metabólicas. A razão
para essa diferença é ainda obscura.
22
2. Excesso de catecolaminas.
O feocromocitoma é um tumor das células cromafins da medular da
suprarrenal, o qual pode produzir catecolaminas em grande quantidade. O
paciente desenvolve sintomas típicos de hiperatividade simpática, como
suores nas mãos e taquicardia, além de hipertensão grave. Esses casos
podem fazer-se acompanhar de hipocalemia intensa, devido ao efeito da
estimulação, pelo excesso de catecolaminas, dos receptores β2, e ao
conseqüente ingresso de K+ ao interior das células.
3. Paralisia periódica familiar.
Esta rara condição caracteriza-se por surtos abruptos de extrema
fraqueza muscular, ocasionalmente associados a arritmias cardíacas. O
distúrbio segue um padrão de herança autossômica recessiva. O exame
laboratorial desses pacientes revela hipocalemia acentuada, a qual não pode ser
atribuída a perdas externas. A causa imediata dessa anomalia é o súbito
deslocamento de K+ para o espaço intracelular. O mecanismo desse
deslocamento não está estabelecido, podendo envolver uma ativação anômala
da Na+,K+-ATPase.
4. Hipertiroidismo
Em raros pacientes com excesso de função tiroideana observaram-se
episódios de hipocalemia bastante semelhantes aos descritos em indivíduos
com paralisia periódica familiar, tanto em suas manifestações clínicas quanto
em sua fisiopatologia. O mecanismo responsável por essa complicação é
também desconhecido, embora seja plausível uma participação da
hiperatividade simpática característica do hipertiroidismo.
Manifestações clínicas das hipocalemias
O potencial de repouso da membrana das células musculares depende da
relação entre as concentrações intra e extracelulares de K+. Nas hipopotassemias, as
membranas celulares ficam hiperpolarizadas, ou seja, aumenta a magnitude do
potencial de membrana. Com isso, o estímulo à contração muscular, que consiste em
23
uma despolarização da membrana, torna-se mais difícil. Essa alteração
eletrofisiológica constitui a base para a compreensão das principais alterações clínicas
associadas às hipocalemias: o enfraquecimento muscular e as arritmias cardíacas.
A principal queixa manifestada pelos pacientes com hipocalemia é a fraqueza
muscular. Sendo mais difícil a estimulação dos músculos esqueléticos, não chega a
surpreender que esses pacientes apresentem uma sensação subjetiva de “fraqueza”. No
entanto, essa anomalia pode acarretar manifestações objetivas graves, tais como
paralisias da musculatura periférica e até mesmo, em casos extremos, da musculatura
respiratória. Pode desenvolver-se ainda um quadro de destruição de células
musculares esqueléticas (rabdomiólise) A musculatura lisa visceral pode também
sofrer os efeitos de uma hipocalemia grave, desenvolvendo-se em conseqüência um
quadro de íleo paralítico, o que também configura uma emergência médica. Também
pode ocorrer, por mecanismos análogos, um quadro de retenção urinária por
hipofuncionamento vesical.
As complicações cardíacas das hipocalemias, freqüentes e potencialmente
letais, são também conseqüência da hiperpolarização das membranas celulares. Como
o K+ participa diretamente do processo de repolarização dos cardiócitos, as primeiras
alterações a aparecer no eletrocardiograma são as associadas à onda T, que se torna
progressivamente achatada, podendo aparecer uma onda U proeminente. Com
hipocalemias mais graves, o intervalo QT pode ser prolongado, enquanto o segmento
ST pode estar deprimido. A hiperpolarização celular leva ainda a uma alteração das
velocidades de condução do impulso cardíaco, o que predispõe o paciente a arritmias
graves, tais como taquicardias supraventriculares e ventriculares, que podem evoluir
para fibrilação ventricular e assistolia, especialmente em pacientes que desenvolvem
hipocalemia durante a administração de digitálicos (na verdade, a hipocalemia
predispõe o paciente à intoxicação digitálica). Essa associação entre hipocalemia e
tratamento com digitálicos é comum porque os cardiopatas freqüentemente
desenvolvem insuficiência cardíaca congestiva, a qual é tratada com diuréticos
potentes, nem sempre, infelizmente, em associação com diuréticos retentores de K+ ou
reposição do íon.
As hipocalemias podem afetar diretamente a estrutura e a função renais,
levando, por mecanismos ainda desconhecidos, a uma vasoconstrição renal que resulta
em hipoperfusão e queda da taxa de filtração glomerular. Essas alterações tornam o
24
rim susceptível ao desenvolvimento de insuficiência aguda em resposta a uma
isquemia ou à administração de drogas nefrotóxicas. A perda da capacidade de
concentração urinária, com o desenvolvimento de poliúria e polidipsia, é outra
complicação comum das hipocalemias. Acredita-se que a depleção de K+ iniba
parcialmente o cotransporte Na+-K+-2Cl- da porção espessa da alça de Henle. Pode
também desenvolver-se uma resistência à ação do hormônio anti-diurético nos túbulos
distal e coletor, o que configura um quadro de diabetes insípido nefrogênico (ver
Capítulo 11). Outros efeitos renais das hipocalemias são a vacuolização das células
proximais, um aumento da produção de amônia e o desenvolvimento de nefrites
interstiticiais.
As hipocalemias podem ainda causar anomalias metabólicas, tais como uma
diminuição na capacidade pancreática de secretar insulina, levando a uma intolerância
à glicose. A depleção de K+ pode ainda levar a uma alcalose metabólica, devido a um
aumento na secreção renal de íons H+. Como a alcalose metabólica pode por sua vez
provocar uma hipocalemia, conforme discutido acima, forma-se um ciclo vicioso que
só é quebrado quando as perdas de K+ são devidamente corrigidas.
Tratamento das hipocalemias
Além da correção do distúrbio primário (tratamento de vômitos ou diarréia,
suspensão de diuréticos, etc.), duas modalidades de tratamento são
utilizadas no tratamento e prevenção das hipocalemias: 1) reposição de K+;
2) administração de retentores de K+.
Reposição de K+.
A administração exógena de K+ é uma óbvia medida a ser
tomada visando à correção das hipocalemias, até mesmo nos casos
em que estas decorrem de um deslocamento de K+ para o espaço
intracelular. No entanto, algumas medidas de cautela são necessárias
para evitar que se instale uma hipercalemia iatrogênica. Em
primeiro lugar, mesmo em pacientes com hipocalemia grave, a taxa
de administração de K+ não pode, em hipótese alguma. ultrapassar
40 mEq/hora (a uma concentração na solução infundida de até 100
25
mEq/L), chegando a um máximo de 250 mEq/dia. A razão para isso
é a velocidade relativamente limitada com que o íon K+ se desloca
do espaço extracelular para o intracelular, limitação essa
provavelmente relacionada à capacidade de transporte da Na+,K+-
ATPase celular. Se a velocidade de reposição de K+ for excessiva e
se nem todo o K+ infundido alcançar o compartimento intracelular,
haverá acúmulo do íon no espaço extracelular, o que pode levar à
hipercalemia. Em segundo lugar, o compartimento intracelular tem
uma capacidade relativamente limitada de absorver K+ em
quantidades superiores ao normal, conforme se depreende da
ausência de linearidade da curva representada na Fig. 8-6. Por essa
razão, mesmo uma infusão lenta de K+ pode levar a uma
hipercalemia se a quantidade necessária à reposição das perdas for
inadvertidamente superada.
Retentores de K+
A administração de diuréticos retentores de K+ é outra conduta
óbvia no tratamento das hipocalemias. No entanto, essa medida
serve principalmente à prevenção das perdas de K+, não podendo
substituir a administração do próprio íon quando essas perdas já se
estabeleceram. A prevenção da hipocalemia é especialmente
importante em pacientes recebendo simultaneamente digitálicos e
diuréticos para o tratamento da insuficiência cardíaca congestiva.
HIPERCALEMIAS
As hipercalemias são diagnosticadas, por definição, quando a concentração
plasmática de K+ ultrapassa 5,0 mEq/l. As hipercalemias ocorrem sempre que um dos
balanços de K+ descritos acima, externo ou interno, torna-se positivo.
26
Examinemos novamente a função representada na Fig. 8-6. Conforme
observado anteriormente, essa curva apresenta uma natureza nitidamente não linear.
Examinando a porção da curva situada à direita, ou seja, aquela correspondente às
retenções de K+, notamos que, ao contrário do que ocorre nas depleções do íon, o
acúmulo de quantidades relativamente modestas do íon, de 150 ou 200 mEq, pode
levar a grandes elevações da calemia. A razão para esse comportamento não está
clara, embora seja plausível supor que, à medida em que aumenta a concentração
intracelular de K+, aumente também a dificuldade para que novos íons K+ sejam
lançados àquele espaço. Seja qual for o seu mecanismo, essa característica ajuda a
entender por que as hipercalemias instalam-se freqüentemente de maneira abrupta.
Tal como no caso das hipocalemias, as hipercalemias podem resultar de uma
anomalia no balanço externo de K+ ou de um deslocamento de pequenas quantidades
do íon entre os espaços intra e extracelulares.
Hipercalemias por retenção de K+
Sendo a excreção renal a mais importante via de saída de K+ do
organismo (a excreção fecal é pequena e apenas grosseiramente regulada),
todas as situações que se caracterizam por retenção primária de K+ (ou seja,
balanço externo positivo) consistem em alterações da capacidade renal de
excretar esse íon. Essa capacidade pode estar limitada por redução global da
função renal (insuficiência renal) ou por alterações específicas da função
tubular.
1. Hipercalemias por insuficência renal
Na insuficiência renal aguda, a taxa de filtração glomerular cai
abruptamente a valores muito baixos (ver Capítulo 14). Além disso, a
capacidade secretora do néfron diminui em razão da queda do fluxo
intraluminal e do aporte de sódio aos túbulos distal e coletor, além da lesão
tubular que se instala na insuficiência renal aguda estabelecida (Capítulo 14).
Se o indivíduo reduzir concomitantemente a ingestão de K+, o que é comum, a
retenção desse íon será mínima e a tendência ao estabelecimento de uma
hipercalemia será limitada (embora possa haver saída de K+ desde o espaço
intracelular por efeito da acidose metabólica que se estabelece, ver adiante). O
paciente em insuficiência renal aguda pode, no entanto, continuar a receber um
27
aporte externo de K+, por ingestão ou administração parenteral. Pode ainda
haver nesses pacientes, conforme a causa primária do distúrbio, deslocamentos
súbitos de K+ do espaço intra para ao extracelular, em decorrência de
hemólise, rabdomiólise, catabolismo aumentado ou acidose metabólica. Por
ser assim grande o risco de se desenvolver uma hipercalemia, esses pacientes
devem ser atentamente monitorizados.
Na insuficiência renal crônica, o que ocorre é uma destruição
progressiva dos néfrons, levando a uma perda insidiosa de função renal. Os
néfrons remanescentes têm assim tempo suficiente para adaptar-se,
aumentando em várias vezes sua capacidade de excretar K+ (ver Capítulo 15).
Também o cólon aumenta sua capacidade de excreção de K+, embora a
influência dessa adaptação seja menor do que a da adaptação renal. Graças a
esses mecanismos, o paciente pode manter-se em balanço de K+ até fases
bastante avançadas da doença. Com taxas de filtração glomerular de 5% do
normal ou inferiores, no entanto, o paciente pode começar a reter K+
progressivamente, chegando a taxa plasmática do íon a superar 7 mEq/L. Se
esses pacientes tiverem associada uma deficiência na síntese de aldosterona ou
forem tratados com supressores do sistema renina-angiotensina, a retenção de
K+ pode sobrevir muito antes (ver adiante). O desenvolvimento de
hipercalemia pode também ser antecipado se a ingestão de K+ for alta.
2. Hipercalemias por deficiência de aldosterona
A aldosterona exerce um papel relevante no processo de
secreção tubular de K+, aumentando, nas células principais, a atividade da
Na+,K+-ATPase basolateral e o número de canais específicos situados na
membrana luminal (ver Capítulos 2 e 5). Na ausência de aldosterona, ocorre
um pequeno balanço positivo de K+ o qual, acumulado ao longo de dias ou
semanas, pode levar ao estabelecimento de hipercalemias graves.
A deficiência de aldosterona pode decorrer de uma deficiência
global da suprarrenal, na qual não apenas a síntese de aldosterona, mas
também a de glicocorticóides, esteja diminuída ou ausente (doença de
Addison). Essa anomalia pode ser causada pela destruição parcial ou total da
suprarrenal por processos infecciosos (tuberculose, viroses). Pode também
28
resultar de deficiências enzimáticas específicas, que impedem a adequada
biossíntese de glico e mineralocorticóides e, por vezes, levam à produção
anômala de esteróides sexuais e a anomalias genitais.
Seja qual for a causa do hipoaldosteronismo, há sempre uma
tendência ao desenvolvimento simultâneo de hipercalemia e hipovolemia. Se o
paciente conseguir ingerir Na+ em quantidade suficiente para evitar a
hipovolemia, a hipercalemia será discreta ou inexistente. É nos pacientes
hipovolêmicos (portanto aqueles em que as células principais estão mais
ávidas por Na+) que se estabelecem as mais graves hipercalemias.
Um caso especial de hipoaldosteronismo é aquele representado
pela assim denominada síndrome do hipoaldosteronismo hiporreninêmico.
Essa anomalia manifesta-se em pacientes com insuficiência renal crônica
progressiva, principalmente nos portadores de nefropatia diabética. Nesses
pacientes, a produção de renina pelas células do aparelho justaglomerular cai a
quase zero, levando a níveis muito baixos também a produção de angiotensina
e de aldosterona. Os portadores desta síndrome apresentam-se com
hipercalemia de intensidade desproporcional à queda da função renal, o que
muitas vezes serve para alertar o médico para o diagnóstico correto.
3. Retenção de K+ de origem medicamentosa
Dois grandes grupos de drogas podem provocar, devido a seu
mecanismo de ação, um quadro de hipercalemia semelhante ao observado nos
estados de hipoaldosteronismo: 1) os supressores do sistema renina-
angiotensina-aldosterona. 2) os bloqueadores do canal luminal de Na+.
Os supressores do sistema renina-angiotensina vêm sendo
utilizados já há quase duas décadas no tratamento da hipertensão arterial, na
insuficiência cardíaca congestiva e na cirrose hepática (para combater o
hiperaldosteronismo secundário) e nas insuficiências renais crônicas
progressivas (para retardar a evolução ao estágio terminal, em que o paciente
passa a requerer a realização de diálise ou transplante renal). Os primeiros
representantes desse grupo a serem largamente utilizados na prática clínica
foram os inibidores da enzima conversora de angiotensina II, tais como o
29
captopril, o enalapril e o ramipril, entre vários outros. Mais recentemente, têm-
se juntado a esse grupo o dos antagonistas do receptor da angiotensina II, como
o losartan, o irbesartan e o candesartan, entre outros. Essas drogas vieram
revolucionar a terapêutica de todas as anomalias citadas acima. No entanto,
exatamente por suprimir o sistema renina-angiotensina-aldosterona, essas
drogas podem provocar hipercalemia, especialmente em pacientes com
insuficiência renal crônica avançada. Os anti-inflamatórios não hormonais
também podem induzir hipercalemia em pacientes com déficit de função renal,
possivelmente pelo bloqueio da produção de prostaglandinas e conseqüente
redução do estímulo à síntese de renina.
Os assim denominados diuréticos retentores de potássio (ver
Capítulo 6) também podem dar início a um quadro de hipercalemia. O
mecanismo desse efeito é auto-evidente no caso dos antagonistas da
aldosterona, como a espironolactona. Já os bloqueadores do canal luminal de
Na+ das células principais, como o amiloride e o triamterene, agem, como o
nome indica, impedindo a entrada de Na+ nas células principais dos túbulos
distal e coletor. Com isso, a secreção de K+ nesses segmentos é dificultada,
levando a um quadro de retenção análogo ao que se estabelece nas deficiências
de aldosterona. Por essa razão, o uso dessas drogas requer cuidado,
especialmente em pacientes com função renal diminuída. Tanto os retentores
de potássio quanto os supressores do sistema renina-angiotensina são
formalmente contraindicados quando a taxa de filtração glomerular é inferior a
20% do valor normal. O antimicrobiano trimetoprim, utilizado em associação
com uma sulfa no tratamento de vários tipos de infecção bacteriana, apresenta
um efeito retentor de K+ semelhante ao do amiloride, presumivelmente por
bloqueio do mesmo canal iônico. Por esse motivo, o uso desse medicamento
requer cuidados semelhantes àqueles empregados no tratamento com os
retentores de K+.
Hipercalemias por redistribuição de K+
1. Acidoses
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Conforme discutido acima, as acidoses podem acarretar grandes
deslocamentos de K+ do compartimento intra para o extracelular,
especialmente no caso das acidoses hiperclorêmicas. As acidoses orgânicas,
como a acidose láctica, tendem a provocar hipercalemias bem menos intensas.
Uma possível razão para essa diferença é a maior facilidade que encontram os
ânions orgânicos para penetrar no espaço intracelular, arrastando consigo os
íons K+. Uma notória exceção a essa regra é representada pela cetoacidose
diabética (ver adiante). Também nas acidoses respiratórias a hipercalemia que
se desenvolve é de proporções modestas em comparação com as acidoses
metabólicas hiperclorêmicas. A razão para essa discrepância é obscura.
2. Deficiência insulínica
A cetoacidose diabética pode provocar hipercalemia por
transferência de K+ do espaço intra para o extracelular. Além da
própria hipoinsulinemia, colabora para esse efeito a
hiperosmolaridade que esses pacientes apresentam. Esta decorre,
por sua vez, da própria hiperglicemia (em estados de deficiência
insulínica, a glicose, cujo acesso às células é limitado, funciona
como um osmolito) e da hipernatremia que se desenvolve em razão
da perda urinária de água em desproporção à de sódio. Podem
contribuir ainda para o quadro o hipoaldosteronismo
hiporreninêmico, que freqüentemente se associa à diabetes
mellitus, e a própria acidose metabólica, embora o efeito desta
última seja modesto por se tratar de uma acidose orgânica. É
interessante observar que, em termos de balanço externo, a
cetoacidose diabética promove uma perda renal de K+, devido à
diurese osmótica provocada pela hiperglicemia, ao conseqüente
aumento do aporte de Na+ aos túbulos distal e coletor e ao aumento
do fluxo intraluminal de fluido a esses segmentos. O efeito dessa
perda é amplamente compensado pelo deslocamento de K+ desde o
espaço intracelular. Há aqui uma importante implicação
terapêutica: ao se corrigir a deficiência insulínica, bem como as
31
anomalias dela decorrentes, há uma forte tendência à
movimentação de K+ para o espaço intracelular, levando ao rápido
estabelecimento de uma hipocalemia que, agora sim, reflete a
deficiência de K+. A reposição de K+, antes mesmo de que essa
hipocalemia se estabeleça, é portanto imperativa nesses casos.
3. Administração de β-bloqueadores
Conforme discutido acima, o estímulo dos receptores β2
adrenérgicos tende a facilitar o ingresso de K+ às células. Não
chega a surpreender, portanto, que os β bloqueadores, amplamente
utilizados no tratamento da hipertensão arterial, tendam a elevar
modestamente a concentração plasmática de K+. Na presença de
outros fatores tendentes a elevar a calemia, como por exemplo uma
insuficiência renal, a hipercalemia resultante pode chegar a níveis
alarmantes, obrigando à suspensão da medicação ou à sua
substituição por antagonistas β1-específicos.
4. Síndrome do esmagamento (“crush syndrome”) e rabdomiólises
A chamada síndrome do esmagamento ocorre em vítimas de
acidentes como colisões graves e, principalmente, desabamentos de
edifícios. Nesses casos, a destruição maciça de tecido muscular
lança à circulação enormes quantidades de K+, oriundas do interior
dos miócitos, elevando instantaneamente a calemia a valores que
podem chegar a 10 mEq/L em casos extremos. O quadro é
agravado se o paciente também apresentar, como é freqüente nesses
casos, insuficiência renal aguda, a qual pode inclusive resultar da
própria destruição de células musculares e consequente
mioglobinúria (ver Capítulo 14).
A rabdomiólise pode decorrer de uma série de agressões
mecânicas ou químicas às células musculares esqueléticas, tais
como traumas, ataques de animais peçonhentos, infecções e uso de
medicamentos. As principais conseqüências das rabdomiólises,
32
hipercalemia e insuficiência renal aguda por mioglobinúria, são
análogas às da síndrome do esmagamento.
5. Hemólises
As hemólises maciças, tais como as associadas a transfusões de
sangue incompatível e às anemias hemolíticas graves, promovem
hipercalemia transitória por mecanismo análogo ao das
rabdomiólises, ou seja, destruição de um grande número de células,
com liberação de uma carga considerável de K+ para a circulação.
Também no caso das hemólises pode ocorrer uma insuficiência
renal aguda, devido à liberação de um pigmento, no caso a
hemoglobina. Neste caso, a hipercalemia será obviamente muito
mais acentuada.
6. Quimioterapia de neoplasias
O tratamento quimioterápico de neoplasias, especialmente
linfomas e leucemias, acarreta a rápida destruição de um grande
número de células, levando a uma liberação maciça de K+ para o
meio extracelular e podendo causar hipercalemia, especialmente
em pacientes com função renal reduzida.
7. Pseudo-hipercalemia
A concentração plasmática de K+ pode estar falsamente elevada
devido a procedimentos errôneos na coleta e/ou no manuseio das
amostras de sangue. O mais freqüente desses erros é a aplicação de
sucção excessiva à seringa, com formação de bolhas, hemólise
parcial da amostra e liberação de K+ para o soro. A aplicação
prolongada de um garrote para facilitar a coleta de sangue pode
também contribuir para elevar falsamente a concentração sérica de
K+. Em alguns pacientes, a permeabilidade da parede das hemácias
a K+ in vitro é alta, permitindo a rápida saída do íon após a coleta.
Finalmente, amostras de sangue contendo altas contagens de
leucócitos podem ser contaminadas com K+ egresso dessas células.
33
O mesmo pode ocorrer com amostras ricas em plaquetas. Em todos
esses casos, a adoção de procedimentos técnicos adequados durante
a coleta de sangue e a imediata centrifugação da amostra a fim de
separar dela os elementos figurados previnem o problema.
8. Outras causas
As hipercalemias podem ainda resultar de a) intoxicações
digitálicas, que causam uma inibição acentuada da Na+,K+-
ATPase, dificultando a entrada de K+ na célula. b) exercícios
exaustivos, como as maratonas, durante os quais quantidades
substanciais de K+ podem deixar as células musculares
esqueléticas. c) tratamento com relaxantes musculares
despolarizantes, tais como a succinilcolina, utilizada em cirurgias
extensas. d) paralisia periódica hipercalêmica, uma rara condição
familiar em que ocorrem crises de hipercalemia e paralisia
muscular, aparentemente associadas à despolarização da membrana
das células musculares e a um rápido efluxo de K+, talvez por uma
disfunção da Na+,K+-ATPase. Esse distúrbio não deve ser
confundido com a paralisia periódica familiar, descrita acima, na
qual ocorre hipocalemia. O fato de que tanto uma quanto outra
podem promover paralisia muscular reflete a complexidade do
efeito do K+ sobre a eletrofisiologia celular (ver adiante)
Manifestações clínicas das hipercalemias
Ao contrário da hipocalemia, que é cedo percebida pelo paciente, a
hipercalemia é oligo ou assintomática. Sua primeira manifestação clínica pode ser
uma arritmia grave, o que torna obrigatória a monitorização contínua de pacientes
com hipercalemia persistente. Como nas hipocalemias, o mecanismo básico das
arritmias associadas à hipercalemia é a alteração do potencial de membrana dos
cardiócitos. Neste caso, o aumento da concentração de K+ no meio extracelular leva à
despolarização das células, o que traz dois efeitos principais: 1) aumento do
automatismo cardíaco, com aparecimento de focos ectópicos de estimulação. 2)
34
diminuição da velocidade de transmissão do estímulo, com a conseqüente instalação
de bloqueios de condução. O processo de repolarização celular, dependente de um
efluxo de K+, também é alterado. A combinação dessas três anomalias leva a uma
série de distúrbios da eletrofisiologia do estímulo cardíaco. A primeira delas é uma
alteração da onda T do eletrocardiograma, que assume um aspecto pontiagudo e
simétrico (“em tenda”). Mais tarde, a onda P torna-se achatada e de difícil
identificação, enquanto o intervalo PR é prolongado e o complexo QRS alargado, com
aprofundamento da onda S. Com o agravamento do processo, o eletrocardiograma
pode assumir um aspecto “sinusoidal”, indicando ser iminente a instalação de uma
fibrilação ventricular ou mesmo de uma parada cardíaca. Embora exista uma certa
correlação entre a magnitude da hipercalemia e a gravidade das alterações
eletrocardiográficas decorrentes, é comum a ocorrência de arritmias graves e até fatais
em pacientes com elevações relativamente moderadas da concentração plasmática de
K+, especialmente as de instalação abrupta. Por essa razão, as hiperpotassemias devem
ser consideradas como anomalias de extrema gravidade, requerendo tratamento
imediato.
As manifestações neuromusculares das hipercalemias são relativamente raras e
pouco importantes do ponto de vista clínico, talvez por serem precedidas pelas
alterações cardíacas, que acabam forçando à rápida resolução do problema. Em casos
extremos, em que as concentrações séricas de K+ podem chegar a 9 ou 10 mEq/L,
pode ocorrer paralisia flácida muscular, atingindo até mesmo a musculatura
respiratória, como na paralisia periódica hipercalêmica, mencionada acima. O
mecanismo desse raro distúrbio, bem como a razão para que tanto hipocalemias
quanto hipercalemias extremas resultem em paralisia muscular, são desconhecidos.
Tratamento das hipercalemias
Devido à gravidade das arritmias trazidas pela hipercalemia, o fator tempo é
essencial quando consideramos seu tratamento. Por essa razão, deve-se combater de
imediato os efeitos da hipercalemia, ao mesmo tempo em que se utilizam manobras
destinadas a depletar de K+ o espaço extracelular.
1. Gluconato de cálcio
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A maneira mais rápida de se combater a hipercalemia consiste em
atacar diretamente seus efeitos sobre os tecidos excitáveis. O cálcio
antagoniza os principais efeitos eletrofisiológicos do K+, reduzindo o
automatismo cardíaco e aumentando a velocidade de condução do
estímulo. Por ser também extremamente tóxico, o cálcio deve ser
administrado com cautela, lentamente e sob monitorização cardíaca.
2. Alcalinização do meio interno.
A alcalinização do meio interno através da administração endovenosa
de bicarbonato de sódio promove a entrada de K+ nas células, reduzindo
rapidamente sua concentração plasmática. Também aqui é necessário
cuidado, pois a alcalose metabólica resultante pode vir a se constituir em
um novo problema.
3. Insulina
A administração endovenosa de insulina facilita, como vimos, a
entrada de K+ nas células, constituindo-se em uma maneira simples e
eficaz de reduzir em minutos a calemia. Ë necessária a administração
simultânea de glicose (4g para cada unidade de insulina) a fim de evitar o
desenvolvimento de uma hipoglicemia.
4. β-adrenérgicos
Assim como a insulina, os β-adrenérgicos promovem a entrada de K+
nas células. Devem ser utilizados com bastante cuidado, uma vez que
podem facilitar a instalação de arritmias cardíacas. Seu uso deve ser
evitado em pacientes com miocardiopatias ou com arritmias já instaladas
5. Correção da retenção de K+: diuréticos, mineralocorticóides e resinas
Todas as manobras citadas até aqui consistem em fazer deslocar K+ do
espaço extra para o intracelular, ou em antagonizar a ação celular da
hiperpotassemia. Esses efeitos benéficos são no entanto temporários,
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sendo necessário romper o processo de retenção de K+, além de eliminar o
excesso de K+ já acumulado.
A administração de diuréticos não retentores de potássio ajuda a
estabelecer um balanço negativo de K+ através do efeito caliurético dessas
drogas (ver Capítulo 6). Ë necessário no entanto que o paciente apresente
alguma função renal, ainda que reduzida, para que a) o diurético chegue a
seu sítio de ação. b) exista algum aporte de Na+ aos túbulos distal e
coletor, para que ocorra a secreção de K+. É preciso notar que, mesmo na
presença dessas condições favoráveis, os diuréticos não têm efeito
imediato sobre os níveis de K+, sendo assim pouco úteis para o tratamento
emergencial das hipercalemias.
A aldosterona promove, como vimos, um aumento da excreção de K+.
Os análogos da aldosterona, como o fludrocortisona (Florinef®), são
portanto úteis no tratamento das hipercalemias, especialmente em
pacientes com deficiência primária de mineralocorticóides. Mais uma vez,
é necessária a presença de alguma função renal para que esse tratamento
seja eficaz. Como os diuréticos, também esses compostos necessitam de
tempo para exercer seu efeito benéfico.
As resinas de troca iônica, como o Kayexalate® e o Sorcal®, agem na
luz intestinal, promovendo a quelação de K+ em troca por outros íons,
reduzindo assim os níveis extracelulares de K+. Agem de modo ainda mais
lento do que os diuréticos e mineralocorticódes, embora sejam bastante
eficazes na remoção do excesso acumulado do íon.
É evidente, por fim, que a reposição de fluidos, naqueles casos em que
a hipercalemia decorre essencialmente de uma insuficiência renal aguda
pré-renal (ver Capítulo 14), pode por si só corrigir os níveis de K+ no
compartimento extracelular.
37
EXERCÍCIOS
Abra o programa “Transporte de potássio no néfron”
1. Observe os valores basais, notando que a absorção de potássio segue um perfil semelhante ao do sódio até a porção espessa da alça de Henle. Na porção final do túbulo distal, ocorre um acoplamento entre a absorção de sódio e a saída de potássio, de modo a ocorrer secreção resultante de potássio nesse segmento. No coletor esse processo ocorre com intensidade ainda maior.
2. Varie a ingestão de potássio de aciordo com os valores propostos. Observe que a
excreção urinária de potássio, como no caso do sódio, acompanha fielmente a ingestão do íon (ou seja, o indivíduo mantém-se em balanço potássio). Observe ainda que, no túbulo distal e, principalmente, no coletor, a secreção de potássio torna-se cada vez mais importante quando se aumenta a sua ingestão, mostrando que é nesses segmentos que se processa a regulação fina da excreção desse íon.
3. Faça agora variar a concentração plasmática de aldosterona. Observe que, com
concentrações baixas desse hormônio, a secreção de potássio no túbulo distal (e também no coletor) diminui, levando a uma menor excreção urinária e portanto a uma retenção do íon. Já com altas concentrações de aldosterona, ocorre maior secreção e portanto espoliação de potássio. Lembrar que o efeito sobre o sódio é exatamente inverso. Na verdade, a aldosterona é um hormônio retentor de sódio.
Abra o programa “Distúrbios do metabolismo de potássio” 1. . Logo que o programa é iniciado, a opção que está ativada é “Variação livre dos
parâmetros”. Varie a ingestão de potássio e a perda desse íon através da urina, fezes ou vômitos. Observe o que acontece ao estoque de potássio intracelular (barra rósea) e extracelular (barra verde). Observe a variação da concentração plasmática de potássio e o caráter não linear da variação desse parâmetro em relação ao balanço de potássio (concentrações plasmáticas de 2.0 mmol/L podem ou não refletir uma grande perda acumulada de potássio. Já os balanços positivos de potássio tendem a promover uma rápida elevação da [K] plasmática). É possível variar o número de dias durante os quais a situação criada persiste. Pode-se ainda variar o estado do equilíbrio ácido-base escolhendo “acidose” ou “alcalose” no quadro correspondente. Observe o efeito dessas alterações sobre a distribuição de K entre os compartimentos intra e extracelular.
2. Vamos agora examinar os casos representados no quadro maior. Escolha
inicialmente a opção “Normal”. Observe a quantidade de potássio ingerida e sua excreção. Observe a proporção entre o K intracelular e o extracelular. Clique sobre “Visualizar o néfron” para observar novamente a absorção (túbulo proximal e porção espessa) e a secreção (túbulos distal e coletor) de potássio ao longo do néfron em uma situação de normalidade.
38
3. Escolha agora “Anorexia nervosa” (A descrição deste e de todos os outros casos pode ser obtida clicando sobre a tecla “TEXTO EXPLICATIVO”). Observe a ingestão, excreção, a [K] plasmática e os balanços diário e cumulativo de K (gráfico à esqerda). O que aconteceu com o K intra e extracelular? Por que o ponto vermelho no gráfico à direita se desloca para esquerda? Clique “visualizar o nefrón”. O que aconteceu com a secreção de K nos túbulos distal e coletor?
4. Escolha “Diabetes mellitus descompensado” (Clique novamente em “TEXTO
EXPLICATIVO” para conhecer os principais dados clínicos do caso”). Observe os valores de ingestão e excreção de K, a [K] plasmática e o balanço cumulativo. Por que a [K] plasmática está aumentada se o balanço cumulativo é negativo? Observe que o K intracelular diminuiu e o K extracelular aumentou. Estes achados são representados pelo desvio da curva para cima e do ponto vermelho para a esquerda no gráfico à direita. Clique “visualizar o néfron”. Quais os segmentos responsáveis pelo aumento da excreção de potássio? Por que esta aumenta?
5. Clique sobre “Diarréia”. Observe o aumento da excreção fecal, o balanço
cumulativo negativo, a diminuição do potássio intra e extracelular. Clique sobre “visualizar o néfron” e observe como o rim defende o organismo da perda extra-renal de potássio.
6. Clique “Hiperaldosteronismo”. Observe que a excreção urinária de K aumentou,
com balanço cumulativo negativo. Ocorreu diminuição do K intra e extracelular. Clique visualizar o néfron para ver quais os segmentos responsáveis pelo aumento da excreção urinária de K.
7. Clique “Hipertireoidismo”.Observe que não houve alteração na ingestão e
excreção de K. Por que houve desvio da curva para a direita e para baixo no gráfico à direita? Descreva as alterações do K extra e intracelular. Verifique se ocorreram alterações na excreção de K ao longo do néfron.
8. Clique “Hipoaldosteronismo” Por que o paciente apresentou hiperpotassemia? Por
que ocorreu desvio da curva para esquerda no gráfico? Clique visualizar o néfron para observar quais os segmentos tubulares responsáveis pela diminuição da excreção de K.
9. Clique “Insuficiência renal aguda”. Por que o paciente desenvolveu
hiperpotassemia? Observe que a excreção urinária de K é praticamente zero. Por que? Houve passagem de K do intra para o extracelular. Por que? Clique “visualizar o néfron” e interprete a alteração observada
10. Clique “Insuficiência renal crônica”. Observe o balanço cumulativo de K e o
aumento do estoque de K, tanto intra como extracelular. Veja que a excreção fecal de K aumentou e que a excreção urinária é quase normal devido ao aumento da excreção pelos néfrons remanescentes (isso será discutido em maior detalhe na aula de IRC). Clique “visualizar o néfron” para observar e interpretar as alterações ocorridas
39
11. Clique “Síndrome do esmagamento”. Observe que o intracelular diminuiu e o extracelular aumentou, caracterizando uma brutal redistribuição de K do intra para o extracelular, ilustrada tsambém pelo desvio da curva no gráfico à direita.
12. Finalmente, clique em “Vômitos”. Observe o balanço cumulativo de K. Por que a
excreção urinária de K não só não diminuiu como até aumentou? Clique “visualizar o néfron” para ver os segmentos responsáveis pelo aumento da excreção de K.
CAPÍTULO 9: FISIOPATOLOGIA DO EDEMA
Antônio Carlos Seguro, Cláudia Maria de Barros Helou e Roberto Zatz
Definimos edema como o acúmulo anormal de fluido em qualquer parte do
organismo. Em geral, o termo edema, utilizado sem qualquer qualificativo, refere-se à
acumulação de um ultrafiltrado de plasma no espaço intersticial, devido a uma alteração
patológica das forças que governam o movimento de fluido através das paredes capilares
(forças de Sarling). Esse processo, também denominado transudação, é o que leva à
formação de edema localizado, como nas insuficiências venosas periféricas, ou
generalizado, como na insuficiência cardíaca congestiva, na síndrome nefrótica e na
cirrose hepática. Um caso particular de transudação é o edema pulmonar, comum na
insuficiência cardíaca congestiva e potencialmente letal por levar a uma insuficiência
respiratória aguda.
Vários tipos de edema podem ocorrer através de mecanismos diferentes dos do
edema por transudação, não podendo ser confundidos com este último. O edema linfático
não resulta diretamente de uma alteração primária das forças de Starling no capilar, e sim
de uma obstrução dos vasos linfáticos em um ou mais territórios. O edema inflamatório,
como o nome indica, acompanha processos inflamatórios, em geral de natureza aguda,
nos quais a permeabilidade capilar a proteínas aumenta de modo súbito e muito intenso,
fazendo com que um fluido rico em proteínas plasmáticas (neste caso denominado
exsudato) passe ao interstício. Finalmente, o edema intracelular ocorre em casos de
diminuição da tonicidade do meio extracelular, como nas desidratações hiponatrêmicas
(Capítulo 7) e na síndrome da secreção inapropriada do hormônio antidiurético
(Capítulo 11). Essa modalidade de edema, cuja manifestação mais importante é o edema
cerebral, nada tem a ver, em termos de fisiopatologia ou expressão clínica, com as
enumeradas acima, que constituem exemplos de edema extracelular.
ANATOMIA DOS FLUIDOS CORPÓREOS (ver também Capítulo 7)
Em um indivíduo adulto normal do sexo masculino, pesando 70 kg, a água total
corresponde a cerca de 60% do peso corpóreo, ou cerca de 42 L. Aproximadamente 2/3
desse total distribuem-se no espaço intracelular (Fig. 9-1), enquanto 1/3, ou cerca de 14
L, constituem o espaço extracelular. Este, por sua vez, divide-se em dois
compartimentos: o volume plasmático, que mede aproximadamente 3 L (o restante do
volume sangüíneo é representado pelo volume das hemácias, que no entanto constituem
parte integrante do espaço intracelular) e o espaço intersticial, que corresponde a cerca de
11 L. Denominamos espaço intravascular a soma do volume plasmático (parte do espaço
extracelular) e do volume de hemácias (parte do espaço intracelular), equivalendo
portanto ao volume sangüíneo, que num adulto normal totaliza 5 L (Fig 9-1) . Por uma
Fig. 9-1 – Anatomia dos fluidos corpóreos
VOL. PLASMÁTICOVOL. HEMÁCIAS
VOUME INTRACELULARVOLUME
INTERSTICIAL
VOL. INTRAVASCULAR
VOL. EXTRACELULARVOL. INTRACELULAR
VOL. INTRACELULAR
VOL. INTERSTICIAL
VOL. INTRAVASCULAR
Fig. 9-2 – Anatomia dos fluidos corpóreos: por simplicidade, o volume intravascular está representado como um único compartimento
questão de clareza, o volume intravascular está representado na Fig 9-2 como um único
compartimento. Uma pequena fração do espaço extracelular, normalmente inferior a 100
ml, distribui-se em cavidades tais como a pleural, a pericárdica, a peritoneal e as
sinoviais. Por suas reduzidas dimensões (a não ser em condições especiais como efusões
pleurais, pericárdicas, etc.), esses fluidos não serão considerados neste capítulo.
O presente capítulo focaliza os edemas por transudação, que consistem em um
acúmulo anômalo de ultrafiltrado plasmático no espaço intersticial (Fig. 9-3).
A REGULAÇÃO DO VOLUME INTRAVASCULAR
Embora o volume intravascular constitua uma parcela minoritária do volume
extracelular, suas dimensões são estreitamente reguladas, por meio de um complexo
sistema de controle. Em grande parte, a regulação do volume intravascular confunde-se
com o controle da pressão arterial, uma vez que, na presença de uma bomba cardíaca
eficiente, pequenas variações do volume intravascular refletem-se rapidamente em
alterações importantes da pressão arterial (ver Capítulo 10). Assim, a manutenção da
pressão arterial dentro de limites estreitos implica na necessidade de manter relativamente
constante também o volume intravascular.
Existem na verdade dois tipos de regulação da pressão arterial: 1) a regulação
rápida, que envolve a participação de baroceptores localizados no arco aórtico e nos seios
carotídeos, ligados por meio de fibras aferentes ao centro vasomotor. Quando a pressão
VOL. INTRACELULAR
VOL. INTERSTICIAL
VOL. INTRAVASCULAR
Fig. 9-3 – Edema é definido como um acúmulo de fluido no espaço intersticial
arterial se eleva, esses baroceptores imediatamente emitem ao centro vasomotor
estímulos inibitórios, fazendo cair o influxo simpático ao coração e aos vasos sangüíneos,
corrigindo assim rapidamente o distúrbio hemodinâmico. É graças a esse sistema que a
pressão arterial mantém-se praticamente constante diante de alterações abruptas das
condições hemodinâmicas, como por exemplo durante a passagem da posição supina
(horizontal) para a posição ereta ou durante a realização de um exercício rápido. 2) a
regulação lenta, realizada essencialmente pelos rins, através do fenômeno da natriurese
pressórica: quando a pressão arterial se eleva, os rins respondem com um aumento da
taxa de excreção de sódio; se a pressão arterial cair, ocorre retenção de sódio (ver
Capítulo 10). Graças a essa propriedade, o organismo mantém constantes a pressão
arterial e, até certo ponto, o próprio volume intravascular. A natriurese pressórica é uma
propriedade intrínseca dos rins, devendo-se portanto a um efeito direto da pressão arterial
sobre o tecido renal. No entanto, os rins são também capazes de detectar variações da
pressão arterial indiretamente, por meio de baroceptores situados em sua própria
vasculatura, ou através de estímulos nervosos e/ou humorais deflagrados pela ação de
sensores extrarrenais (por exemplo, os próprios baroceptores aórticos e carotídeos).
O organismo é capaz de detectar variações do volume intravascular de modo
independente da pressão arterial, emitindo sinais para que os rins variem a excreção de
água e sódio conforme o necessário (Fig. 9-4). Vários sistemas participam desse processo.
Há sensores de tensão (mecanoceptores) situados nos átrios e, possivelmente, no tecido
Excreção de Na+
Natriurese pressóricaInervação simpáticaCatecolaminasSistema renina-angiotensinaHormônio antidiuréticoFator natriurético atrial
Volume intravascular
Fig. 9-4 – Representação esquemática do sistema de regulação do volume intravascular. A excreção renal de sódio desempenha um papel central nesse processo.
pulmonar, capazes de perceber variações de tensão indicativas de uma sobrecarga de
volume circulante. Diante desse estímulo, disparam sinais que correm juntamente com os
nervos glossofaríngeo e vago e que, devidamente processados no centro vasomotor,
traduzem-se em uma inibição do influxo simpático através dos nervos renais. Como a
estimulação simpática do rim leva a uma antinatriurese, a inibição desses impulsos leva a
uma eliminação de sódio pelos rins, neutralizando assim o fenômeno que desencadeou
toda essa reação, ou seja, o aumento do volume intravascular. Outra resposta dos átrios a
variações do volume intravascular é a secreção do fator natriurético atrial (FNA), um
peptídeo liberado à circulação quando a parede atrial é distendida. A ação mais
importante desse composto ocorre no rim: o ritmo de filtração glomerular aumenta,
enquanto a capacidade de absorver sódio do túbulo coletor diminui, em parte por um
efeito direto e em parte por um aumento do fluxo sangüíneo da porção medular interna.
Graças a esses efeitos, o FNA aumenta em dezenas de vezes o volume urinário e a taxa de
excreção de sódio. O FNA também aumenta a condutância hidráulica dos capilares
extrarrenais, facilitando o extravasamento de fluido para o espaço intersticial, além de
diminuir a resistência periférica e, portanto, baixar a pressão arterial. Desse modo, uma
retenção de volume, por promover uma distensão das paredes atriais, promove a liberação
do FNA e, em conseqüência: 1) uma natriurese intensa. 2) um deslocamento temporário
de fluido do espaço intravascular para o intersticial. O resultado final da ação desse
composto é, portanto, uma diminuição do retorno venoso, o que, em associação com a
diminuição da resistência periférica, impede que uma sobrecarga de fluido eleve
catastroficamente a pressão arterial. Ocorre o contrário durante uma depleção de volume,
quando os níveis plasmáticos do FNA podem aproximar-se de zero.
Além do sistema nervoso simpático e do FNA, outros sistemas de controle
contribuem significativamente para regular a excreção renal de água e sódio e manter
constante o volume intravascular. O sistema renina-angiotensina-aldosterona (ver
Capítulos 2 e 5) é um poderoso instrumento de regulação cuja ativação culmina com a
produção de um octapeptídeo (a angiotensinaII), que atua como um vasoconstritor e
promove uma intensa retenção de sódio. A angiotensina II exerce um duplo efeito sobre a
absorção de sódio: 1) no túbulo proximal, estimula diretamente o contratransportador
Na+/H+, aumentando assim a entrada de Na+ na célula; 2) através de seu efeito sobre a
suprarrenal, aumenta a secreção de aldosterona por aquela glândula. A aldosterona, por
sua vez, aumenta a absorção de sódio na porção final do túbulo distal e no túbulo coletor
cortical (ver Capítulos 2 e 5). Embora seu efeito seja mais lento do que o do simpático ou
o do FNA, o sistema renina-angiotensina-aldosterona participa ativamente da
conservação a médio prazo do volume extracelular. Sua disfunção tem um papel chave na
retenção de volume em estados patológicos, como veremos adiante.
A vasopressina, ou hormônio antidiurético, pode também participar do esforço do
organismo para conservar fluido em situações patológicas. Embora normalmente a
principal função desse hormônio seja a de regular a pressão osmótica do meio interno
(ver Capítulos 4 e 5), sua concentração plasmática pode subir 10 vezes ou mais em
condições de hipovolemia, nas quais a prioridade é reter o máximo possível de fluido.
Essa é uma das razões por que muitos estados hipovolêmicos se fazem acompanhar de
hiponatremia (ver Capítulo 7). Outros compostos, como o óxido nítrico (NO) e a
bradicinina, que são vasodilatadores, e a endotelina, que é um potente vasoconstritor,
podem ainda estar envolvidos na regulação do volume intravascular, embora o papel
exato de cada um seja ainda indeterminado.
Sejam quais forem os mediadores, humorais e nervosos, envolvidos no processo
de regulação do volume intravascular, os rins constituem sempre o órgão efetor, o único
no organismo capaz de eliminar ou conservar sódio de maneira regulada ao longo de uma
faixa extremamente ampla de variação. Por essa razão, a retenção de fluido sob a forma
de edema sempre envolve a presença de uma disfunção renal, primária ou não.
A MANUTENÇÃO DO VOLUME INTERSTICIAL - TROCAS DE FLUIDO
ENTRE CAPILARES E INTERSTÍCIO – AS FORÇAS DE STARLING
Vimos na seção anterior que o organismo despende um esforço considerável para
manter o volume intravascular dentro de limites bastante estreitos. Não existe um esforço
comparável diretamente dirigido à conservação do volume intersticial. Mesmo assim, o
volume intersticial mantém-se constante em indivíduos normais. A razão para isso é a
existência de uma complexa interface entre o espaço intravascular e o interstício,
representada pelas paredes dos capilares sistêmicos. Conhecer o funcionamento dessa
interface é essencial para que possamos compreender os mecanismos de formação de
edema.
Tal como no capilar glomerular (ver Capítulo 1), toda movimentação de fluido
0
5
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20
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30
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60
0 0.2 0.4 0.6 0.8 1
∆ P ∆ PI
Distância
Dif
ere
nça
de
Pre
ssã
o (m
mH
g)
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0 0.2 0.4 0.6 0.8 1
Distância
Dife
renç
a de
Pre
ssã
o (m
mHg
)
Delta P Delta PI
∆π
∆π
Fig. 9-5 – Dinâmica da ultrafiltração a) no capilar glomerular. b) nos capilares sistêmicos
através das paredes dos capilares extrarrenais obedece ao jogo das forças de Starling.
Essas forças são: 1) a diferença entre a pressão hidráulica do interior do capilar (Pc) e a do
espaço intersticial, (Pi): ∆P= Pc-Pi; 2) a diferença entre a pressão oncótica do interior do
capilar (πc) e a do espaço intersticial, (πi), ∆π=πc-πi). A taxa de ultrafiltração (F) através
da parede capilar depende ainda de seu coeficiente de condutância hidraúlica (Kf), o qual
mede a “facilidade”, por assim dizer, com que a água atravessa essa parede. Temos assim:
F = Kf [(Pc-Pi) - (πc - πi)] = Kf (∆P-∆π) (1)
Apesar dessas semelhanças, o capilar sistêmico difere radicalmente do capilar
glomerular (ver Capítulo 1) quanto à sua dinâmica e quanto à lógica de seu
funcionamento. A dinâmica do capilar glomerular está totalmente orientada à
ultrafiltração de plasma, etapa indispensável à formação da urina. Para cumprir essa
finalidade, o capilar glomerular trabalha sob um regime de alta pressão hidráulica,
associada a um alto Kf de suas paredes (Fig. 9-5a). Além disso, existem nesse sistema
duas arteríolas de resistência, uma pré-glomerular (a arteríola aferente) e outra pós-
glomerular (a arteríola eferente). Ë graças à existência da arteríola eferente que o capilar
glomerular pode manter um regime de alta pressão hidráulica, que se mantém quase
inalterada ao longo de seu trajeto. Já os capilares extrarrenais dispõem de apenas um
esfíncter, o esfíncter pré-capilar. Por essa razão, o ∆P é muito mais baixo, e sua queda
muito mais acentuada, nos capilares extrarrenais (Fig. 9-5b). Seu Kf, por outro lado, é
muito mais baixo do que o dos capilares glomerulares, o que faz com que a curva de ∆π
suba muito mais lentamente do que no capilar glomerular. A rápida queda de ∆P ao longo
do capilar faz com que as curvas de ∆P e ∆π.acabam por cruzar-se aproximadamente à
metade do percurso (Fig. 9-5b). Com isso, a passagem de fluido através da parede desses
capilares ocorre em duas fases distintas. Na primeira metade do capilar, ocorre filtração
resultante de fluido para o interstício. Na segunda, ocorre absorção de fluido. Como
resultado de um ligeiro desequilíbrio entre ∆P e ∆π, há uma tendência contínua à saída
resultante de uma pequena quantidade de líquido dos capilares rumo ao interstício,
motivada pelo ligeiro predomínio da força de filtração (∆P) ao longo do capilar. Em
outras palavras, o capilar extrarrenal não constitui uma estrutura adaptada à filtração de
grandes quantidades de fluido (na verdade, tal filtração é indesejável nesses capilares).
Sua função é a de levar oxigênio e nutrientes aos tecidos, e deles retirar catabólitos. Essas
tarefas são cumpridas através da rápida difusão dessas substâncias através das paredes
capilares, a favor de seus respectivos gradientes de concentração.
MECANISMOS DE DEFESA CONTRA A FORMAÇÃO DE EDEMA
Normalmente, a ultrafiltração é um processo bastante limitado nos capilares
extrarrenais. Em um dia, apenas 2 L de ultrafiltrado plasmático atravessam as paredes
desses capilares, o que representa menos de 0,1% do fluxo de plasma que os percorre.
Mesmo essa ínfima quantidade, no entanto, representaria uma sobrecarga intolerável ao
interstício se não fosse continuamente removida, já que em apenas 1 mês teríamos o
acúmulo de 60 L de edema. Na verdade, o interstício dispõe de uma série de mecanismos
que o defendem continuamente de uma inundação por parte do fluido proveniente da
circulação. Um primeiro dispositivo é representado pela atividade dos capilares linfáticos.
Quando ocorre por qualquer razão um aumento da ultrafiltração através das paredes
0
10
20
30
40
50
60
-6 -4 -2 0 2 4 6 8 10 12
Pressão intersticial, mmHg
Vo
lum
e i
nte
rsti
cia
l, L
Fig. 9-6 – A quantidade de fluido que o interstício acomoda aumenta exponencialmente com a pressão intersticial quando esta assume valores positivos
capilares, o fluxo através do sistema linfático pode aumentar em até 8 vezes, impedindo o
acúmulo de fluido no interstício. Um segundo mecanismo protetor é a diluição das
proteínas intersticiais. A medida que mais e mais fluido percorre o interstício e é
carregado de volta à circulação pelos linfáticos, as proteínas dissolvidas no fluido
intersticial vão sendo progressivamente "lavadas", já que o ultrafiltrado proveniente dos
capilares é usualmente pobre em proteínas. Com isso, cai a pressão oncótica intersticial,
atenuando assim o processo de ultrafiltração (Equação 1) e limitando a formação de
edema. Finalmente, as próprias características físicas do interstício dificultam o
extravasamento de fluido dos capilares. O que chamamos de matriz intersticial consiste
na verdade em uma matriz de proteoglicanos e fibras de colágeno, em cujas malhas estão
alojadas as células. O fluido intersticial tem seu movimento limitado por esse arcabouço,
o que o impede de deslocar-se às porções mais baixas do organismo e confere à pele seu
turgor normal. Esse conjunto está normalmente submetido a uma discreta pressão
negativa, da ordem de 3 mmHg, originada pela atividade dos vasos linfáticos e pela
própria elasticidade da malha intersticial. Todo esse arranjo faz com que a complacência
do interstício em condições normais seja muito baixa, ou seja, são necessárias elevações
consideráveis da pressão hidráulica intersticial para que pequenas quantidades de fluido
sejam ali acomodadas. Como a pressão hidráulica intersticial opõe-se à saída de fluido do
capilar, esse é também um mecanismo eficiente de prevenção de edema.
Se a causa da transudação, seja qual for, persistir, e se todos os mecanismos de
defesa descritos acima se esgotarem, haverá um lento acúmulo de fluido no interstício, até
que a pressão hidráulica intersticial torne-se positiva (Fig. 9-6). A partir desse ponto, ou
seja, quando a pressão intersticial superar a pressão atmosférica, a complacência do
interstício aumenta abruptamente, ou seja, ocorre entrada de quantidades cada vez
maiores de ultrafiltrado plasmático (que se acumula sob forma de edema), com elevação
relativamente pequena da pressão hidráulica local (Fig. 9-6). As fibras que constituem a
matriz intersticial não mais conseguem restringir a movimentação de fluido, passando o
interstício a se comportar cada vez mais como uma solução comum. Com isso, o edema
tende a se acumular nas regiões mais baixas, por um simples efeito gravitacional. Se não
houver qualquer interferência externa, o processo de formação de edema prosseguirá,
com retenção de quantidades crescentes de fluido, que pode em alguns casos chegar a 40
L ou mais. Nesses casos, a única defesa possível contra a formação de edema é a elevação
da pressão hidráulica intersticial. Como no entanto a complacência do interstício nessa
fase é muito alta, há necessidade de que se acumule uma grande quantidade de fluido na
região intersticial para que o processo cesse por esse mecanismo. Felizmente, a grande
maioria dos pacientes busca atenção médica quando o acúmulo de fluido chega a cerca de
10% do peso corpóreo, ou cerca de 7 L em um homem adulto médio, uma vez que é nesse
momento que a existência do edema é percebida pelo paciente ou por sua família. Em
outras palavras, a maior parte dos pacientes com edema generalizado busca atenção
médica em uma fase em que o edema ainda está em processo de formação. Isso significa
que a maioria dos pacientes edemaciados encontra-se em balanço positivo de sódio
quando examinados pela primeira vez.
ALTERAÇÃO DAS FORÇAS DE STARLING: MECANISMOS BÁSICOS DE
FORMAÇÃO DE EDEMA
Sendo a movimentação de fluido através das paredes capilares um processo
dependente das forças de Starling, é no desarranjo dessas forças que devem ser buscados
os mecanismos básicos de formação de edema. Em outras palavras, a formação de todo
e qualquer edema implica sempre no desequilíbrio das forças de Starling. Há
basicamente dois tipos de desequilíbrio: 1) aumento de ∆P; 2) queda de ∆π. Todos os
tipos de edema por transudação conhecidos, localizados ou generalizados, envolvem
algum tipo de alteração de um ou de outro desses parâmetros, ou de ambos. É possível
ainda que um aumento no Kf da parede capilar contribua para elevar a taxa de
ultrafiltração através das paredes capilares, embora não haja ainda evidência direta da
participação desse fator nas síndromes edematosas. Pode participar também da
patogênese de algumas formas de edema um aumento da permeabilidade da parede
capilar a macromoléculas, com queda correspondente de ∆π.
Examinaremos a seguir as principais causas de edema e os mecanismos
envolvidos, considerados sempre como variações dos mecanismos básicos descritos
acima.
EDEMA LOCALIZADO
Alguns indivíduos normais podem desenvolver edema de membros
inferiores após permanecer sentados por várias horas (durante uma viagem longa, por
exemplo). Em outros, a formação de edema de membros inferiores, unilateral ou bilateral,
ocorre mesmo em condições habituais, devido a uma insuficiência venosa, como nos
portadores de veias varicosas. Em ambos os casos, o que ocorre é uma elevação
acentuada de ∆P, a tal ponto que as defesas do interstício são vencidas e começa o
extravasamento de fluido para o interstício (Fig. 9-7). As insuficiências venosas podem
ser tratadas com métodos específicos, muitas vezes de natureza cirúrgica. Há no entanto
um tipo de tratamento que ilustra de modo interessante a dinâmica do interstício. Trata-se
do uso, bastante difundido, de dispositivos de compressão, como as meias elásticas. Em
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5
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Distância
Dif
ere
nça
de
Pre
ssã
o (
mm
Hg
)
∆ P Normal ∆ P ∆π
Fig. 9-7 – Dinâmica da ultrafiltração capilar na insuficiência venosa
grande parte dos casos, esses tratamentos são bastante eficientes no tratamento do
desconforto provocado pelo edema. Seu funcionamento é muito simples: por seu efeito
compressivo, elevam a pressão hidráulica intersticial, ou seja, reforçam aquela que é a
última trincheira contra a formação de edema, tornando desnecessário o acúmulo de uma
enorme quantidade de fluido para fazer cessar a transudação. Dito de outra maneira, esses
tratamentos compressivos desviam para a direita a curva da Fig. 9-6, ou seja, diminuem a
complacência do interstício.
EDEMA GENERALIZADO POR RETENÇÃO RENAL: O MECANISMO DE
TRANSBORDAMENTO (“OVERFLOW”)
O conceito de que uma redução da capacidade renal de excretar sódio leva à
retenção desse íon e de água e ao acúmulo de fluido no organismo, particularmente no
interstício, é bastante intuitivo. É exatamente isso o que acontece nas glomerulonefrites,
como por exemplo a glomerulonefrite difusa aguda, uma afecção renal benigna comum
em crianças em idade escolar. Nesses pacientes, instala-se abruptamente um quadro de
hematúria (devido à ruptura de algumas alças glomerulares), proteinúria moderada,
hipertensão e edema também moderado (visível principalmente nas pálpebras e membros
inferiores). Esse conjunto de sinais e sintomas, freqüentemente encontrado em outras
glomerulonefrites, recebe o nome de síndrome nefrítica. Enquanto a hematúria e a
proteinúria indicam a presença de lesão glomerular, a hipertensão e o edema refletem a
retenção de fluidos pelo organismo.
Sempre que os rins tiverem diminuída sua capacidade de excretar sódio, enquanto
o indivíduo mantém inalterada a ingestão desse íon, haverá a instalação de um balanço
positivo de sódio. Devido ao mecanismo da sede, a retenção de sódio acaba levando à
retenção simultânea de uma quantidade proporcional de água (1 L a cada 140 mEq de
sódio retidos). Esse excesso de fluido vai inicialmente aumentar o volume sangüíneo,
provocando uma elevação da pressão arterial. Se a pressão hidráulica capilar também se
elevar, haverá um desequilíbrio das forças de Starling, com extravasamento de fluido do
compartimento intravascular para o intersticial, exatamente como no edema por
insuficiência venosa (Fig. 9-7). Esse processo pode agravar se quando além disso houver
um aumento dos níveis circulantes de FNA, com aumento conseqüente da permeabilidade
capilar a proteínas. Se o distúrbio não for corrigido, as defesas do interstício contra o
acúmulo de fluido serão vencidas, ocorrendo assim a formação de edema. Esse
mecanismo de retenção de fluido devido a um distúrbio renal primário é mais conhecido
por sua designação em inglês, “overflow”, que poderia ser livremente traduzida como
“transbordamento”. Esse mecanismo está presente não apenas na síndrome nefrítica, mas
também na insuficiência renal crônica, na qual a capacidade de excreção de sódio está
reduzida devido a uma perda de néfrons. Os edemas resultantes desse processo são em
geral modestos, raramente adquirindo um caráter generalizado.
EDEMA GENERALIZADO POR QUEDA PRIMÁRIA DO VOLUME
SANGÜÍNEO: O MECANISMO DE SUBPREENCHIMENTO
(“UNDERFILLING”)
Em condições normais, a bomba cardíaca consegue atender com facilidade às
necessidades de perfusão sangüínea de todos os tecidos do organismo. Há uma série de
Fig. 9-8 – Representação esquemática da dinâmica circulatória na presença de uma fístula artério-venosa (F) . Uma parcela considerável do débito cardíaco fica confinada ao circuito “coração-fístula”, podendo restringir a perfusão dos demais territórios, incluindo a circulação renal
F
Retençãode Na+
situações, no entanto, em que o coração não consegue, por insuficiência do miocárdio
(ver adiante) ou devido a certas anomalias da rede vascular, manter em nível adequado as
taxas de perfusão tecidual. Um exemplo clássico desse tipo de situação são as fístulas
artério-venosas (Fig. 9-8). Se instituirmos cirurgicamente, em um animal de laboratório,
uma anastomose entre a aorta e a veia cava inferior (isso pode ocorrer também,
espontaneamente, em seres humanos), o coração será obrigado a manter um fluxo
sangüíneo muito superior ao normal para atender à demanda anômala do circuito
“coração-fístula”. Se essa sobrecarga for suficientemente elevada, mesmo um coração
sadio pode ser insuficiente para manter esse fluxo e mais uma perfusão adequada de todos
os tecidos. Nesse caso, o organismo comporta-se como se estivesse ocorrendo uma
hipovolemia: há uma pequena queda da pressão arterial sistêmica, o que faz com que
aumente o estímulo neuro-humoral aos rins, que passam a reter sódio a fim de compensar
a “hipovolemia” que percebem. Em conseqüência, o volume circulante aumenta, embora
a maior parte desse aumento fique confinada ao território anômalo criado pela presença
da fístula. Essa discrepância entre o volume circulante total (aumentado) e o fluxo
sangüíneo aos tecidos (reduzido ou, no máximo, ligeiramente inferior ao normal) levou à
elaboração do conceito de volume arterial efetivo. Embora difícil de definir em termos de
uma grandeza quantificável, o volume arterial efetivo serve para caracterizar uma
situação de perfusão arterial inadequadamente baixa, que leva à retenção de sódio e água
pelos rins. Se houver ao mesmo tempo um desequilíbrio das forças de Starling (o que é
provável, dada a elevação da pressão venosa, que se transmite retrogradamente aos
capilares), uma parte do fluido retido irá para o espaço intersticial, levando ao acúmulo de
edema. O processo é inteiramente revertido quando se fecha a fístula. Esse mecanismo de
formação de edema conseqüente a uma redução crônica do volume arterial efetivo é
conhecido por sua designação em inglês, “underfilling”, que poderíamos traduzir por
“subpreenchimento”. Neste caso, ao contrário do que ocorre no mecanismo de
“overflow”, a causa primária da retenção de sódio não é uma disfunção renal. Ao
contrário, os rins são funcionalmente competentes e fazem o que deles se espera, ou seja,
respondem a uma situação de hipoperfusão absorvendo a maior quantidade possível de
sódio. O mecanismo de “underfilling” desempenha um papel importante na gênese do
edema associado à insuficiência cardíaca congestiva, à cirrose hepática e à síndrome
nefrótica, conforme veremos a seguir.
MECANISMO DE FORMAÇÃO DE EDEMA NA INSUFICIÊNCIA CARDÍACA
CONGESTIVA
Conforme discutido acima, o coração consegue folgadamente, em condições
habituais, manter em níveis adequados a taxa de perfusão tecidual e, portanto, o débito
cardíaco. Na verdade, o coração é capaz de multiplicar em várias vezes esse valor, mesmo
em indivíduos sedentários, quando as condições assim o exigem (por exemplo, se o
indivíduo precisar correr subitamente). A mecânica desse processo é descrita na curva A
da Fig. 9-9. Essa curva representa a lei de Starling para o coração (não confundir com as
forças de Starling descritas acima). De acordo com esse princípio, e dentro dos limites
fisiológicos, a força de contração do miocárdio durante a ejeção sistólica é tanto maior
quanto maior for o estiramento a que o miocárdio está submetido ao final da diástole. Isso
significa que, quanto maior o volume diastólico, maior o volume sistólico, ou, em outras
palavras, quanto maior o retorno venoso, maior o débito cardíaco. Como o volume
diastólico é proporcional à pressão do átrio direito, podemos representar o débito cardíaco
como uma função da pressão atrial direita, como na curva A da Fig. 9-9. Observe-se ainda
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PRESSÃO ÁTRIO DIREITO, mmHg
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/min
A
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C
Fig. 9-9 –Curva de Starling para um coração normal. A linha pontilhada representa a demanda tecidual .
que o débito cardíaco tende a um máximo (representado pelo platô B) conforme a pressão
atrial direita (e portanto o retorno venoso) atinge valores exageradamente elevados (esse
débito cardíaco máximo pode ser aumentado com o treinamento do indivíduo). Se
representarmos agora as necessidades totais de perfusão dos tecidos (ou seja, a soma de
todos os fluxos sangüíneos requeridos pelo organismo) pela linha C da Fig. 9-9, o débito
cardíaco e a pressão atrial direita observadas em um determinado momento e em um
determinado indivíduo corresponderão à interseção entre a curva A e a linha C.
Normalmente, como se pode observar, esse ponto está longe do platô (B) que representa o
débito cardíaco máximo, indicando a existência de uma reserva cardíaca. Se a demanda
por parte dos tecidos aumentar, como ocorre durante a realização de um exercício (ou
seja, se a linha C for elevada), o coração ainda é capaz de atender a essas necessidades,
sendo agora o débito cardíaco determinado pela nova interseção entre A e C. Se a
demanda for tal que a interseção A×C fique na região do platô (B), a elevação da pressão
atrial direita será excessiva e o coração não conseguirá manter por muito tempo o débito
exigido: o indivíduo pára por estafa (em um indivíduo treinado esse limite é
evidentemente muito mais alto).
Na presença de uma lesão miocárdica, primária ou não, a curva A desloca-se para
a direita e para baixo. Em fases não muito avançadas, ainda é possível manter a demanda
dos tecidos, e até mesmo realizar algum esforço físico. O preço dessa adaptação, no
Fig.9-10– Curva de Starling na insuficiência cardíaca descompensada. A linha pontilhada (C) representa a demanda tecidual . O ponto vermelho representa a pressão atrial direita (A e C nunca se cruzam)
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PRESSÃO ÁTRIO DIREITO
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S
A
C
entanto, é uma significativa elevação da pressão atrial direita. Denominamos esta fase
insuficiência cardíaca compensada. Apesar da elevação da pressão venosa (conseqüente
à elevação da pressão atrial direita), a pressão capilar não se eleva o suficiente para
vencer as defesas do interstício, e não se forma edema. Se a falência miocárdica for muito
grave, no entanto, o platô B ficará abaixo da linha de demanda C (Fig 9-10). Não será
possível ao coração manter as necessidades do organismo, mesmo em repouso. Há duas
conseqüências importantes desse descompasso. Em primeiro lugar, como o coração já não
consegue manter um débito cardíaco adequado, a volemia arterial efetiva diminui, tal
como no exemplo da fístula artério-venosa (Fig. 9-8). Com isso, a pressão arterial média
cai ligeiramente e os rins passam a reter água e sódio com avidez, como se o organismo
estivesse diante de uma hipovolemia real. Contribuem para isso estímulos nervosos
(iniciados pela estimulação de baroceptores arteriais) e humorais, como o aumento dos
níveis circulantes de catecolaminas, angiotensina II, aldosterona e hormônio antidiurético.
Em segundo lugar, a pressão atrial direita eleva-se acentuadamente (a curva A nunca
chega a cruzar a linha C), refletindo a incapacidade cardíaca de dar conta adequadamente
do fluido represado na circulação venosa. Seu valor pode ultrapassar 20 mmHg, levando
inclusive ao desenvolvimento de estase jugular. Essa hipertensão venosa transmite-se
retrogradamente à microcirculação, provocando uma elevação da pressão hidráulica
capilar e alterando totalmente a dinâmica capilar, que assume um perfil de filtração, como
no caso do edema localizado e da síndrome nefrítica (ver Fig. 9-7). Se a magnitude dessa
alteração for suficientemente intensa, as defesas do interstício serão vencidas,
acumulando-se agora uma grande quantidade de edema. A passagem de fluido ao
interstício pode ainda ser agravada pela elevação dos níveis de FNA (em conseqüência da
elevação da pressão atrial), o que faz aumentar a permeabilidade capilar a proteínas.
Portanto, nesta fase avançada, denominada insuficiência cardíaca congestiva, os rins
passam a reter sal e água que, devido ao simultâneo desequilíbrio das forças de Starling (e
possivelmente ao excesso de FNA), acumulam-se continuamente no espaço intersticial. O
mecanismo inicial da formação de edema na insuficiência cardíaca congestiva é portanto
o subpreenchimento da circulação arterial (“underfillling”).
MECANISMO DE FORMAÇÃO DE EDEMA NA CIRROSE HEPÁTICA
A microcirculação hepática apresenta características bastante peculiares quando
comparada às de outros territórios. Os sinusóides hepáticos, arranjados em lóbulos (Fig.
9-11), são alimentados ao mesmo tempo pela artéria hepática e, principalmente, pelo
sistema porta. Sua drenagem se dá através da veia centrolobular, que é por sua vez
tributária das veias suprahepáticas (Fig. 9-11). Esse arranjo complexo permite ao fígado
metabolizar rapidamente os nutrientes, drogas e outras substâncias absorvidas nos
capilares intestinais. Esse sistema apresenta ainda características hemodinâmicas bastante
especiais. Em primeiro lugar, sendo alimentado principalmente pela veia porta, o
sinusóide apresenta uma pressão hidráulica baixa, da ordem de 5-7 mmHg. Essa
propriedade faria prever uma taxa de filtração baixa através das paredes dos sinusóides.
Estes apresentam, no entanto, outra singularidade: sua permeabilidade a macromoléculas
é altíssima em comparação com os capilares de outros territórios, o que traz duas
conseqüências importantes: 1) a restrição oferecida à passagem de proteínas através das
paredes dos sinusóides é quase nula. 2) a pressão oncótica exercida através das paredes
desses capilares (que depende de sua capacidade de restringir a passagem de proteínas) é
também muito baixa (Fig. 9-12). Os sinusóides hepáticos trabalham assim sob um regime
de alta filtração de água, eletrólitos e proteínas, o que obriga o fígado a manter um fluxo
linfático alto para fazer retornar esse filtrado à circulação sangüínea.
Artéria hepática
Veia porta
Canalículo biliar
Sinusóides
Veia centrolobular
Fig.9-11– Representação esquemática do lóbulo hepático e de seu arranjo vascular
Como a pressão oncótica é baixíssima no interior dos sinusóides hepáticos,
qualquer elevação da pressão hidráulica intracapilar leva instantaneamente a um grande
aumento do fluxo linfático. É o que ocorre por exemplo na insuficiência cardíaca
congestiva avançada, que eleva a pressão atrial direita e, em conseqüência, a pressão nas
veias supra-hepáticas, nas veias centrolobulares e nos sinusóides hepáticos. Se o fluxo
linfático atingir seu limite máximo, o fluido filtrado não terá onde se acumular (o espaço
intersticial intra-hepático é pouco complacente) e acabará extravasando para a cavidade
peritoneal, caracterizando a formação de ascite.
Na cirrose hepática, ocorre uma elevação da pressão do sinusóide por um
mecanismo conhecido como bloqueio pós-sinusoidal, decorrente da formação de nódulos
de regeneração. Esses nódulos substituem adequadamente os hepatócitos destruídos pelo
processo de base (necrose ou esteatose hepática), o que garante em um primeiro momento
a continuidade da função hepática. No entanto, o processo de regeneração não consegue
reproduzir totalmente a arquitetura vascular original do lóbulo: não se forma uma veia
centrolobular e, em conseqüência, o sangue é obrigado a passar às veias hepáticas através
de vênulas de pequeno calibre. Além disso, as próprias veias hepáticas acabam sendo
obstruídas pelos nódulos de regeneração e pela fibrose que se instala. A hipertensão
capilar assim originada provoca o extravasamento de plasma e, uma vez ultrapassada a
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mHg)
Capilar comum ∆Ρ ∆π
Fig.9-12–Dinâmica do sinusóide hepático. As linhas cinzentas representam as pressões hidráulica e oncótica em um capilar comum
capacidade linfática, ao acúmulo de um líquido rico em proteínas no interstício hepático.
Ao contrário do interstício de outros territórios, o interstício hepático não é capaz de
armazenar grandes quantidades de fluido. Por isso, o fluido que extravasa os sinusóides
logo se acumula na cavidade peritoneal, esta sim capaz de acumular volumes
consideráveis. Podem ficar ali retidos litros e litros de líquido ascítico, até que a tensão da
parede abdominal aumente o suficiente para elevar a pressão hidráulica abdominal e
estancar a passagem de fluido através das paredes dos sinusóides.
Além da formação de ascite, a hipertensão sinusoidal tem outra importante
conseqüência clínica: a elevação da pressão hidráulica nos sinusóides transmite-se
retrogradamente a toda a circulação portal (hipertensão portal), podendo levar à formação
de varizes esofágicas, cuja ruptura provoca graves hemorragias digestivas, em grande
parte responsáveis pela alta mortalidade desses pacientes.
O acúmulo de ascite requer, como a formação de qualquer edema, a retenção de
água e sódio por parte dos rins. Não há consenso atualmente sobre como essa retenção
acontece. Alguns evidências obtidas em animais de laboratório sugerem que a queda na
excreção renal de sódio e a formação de um balanço positivo desse íon iniciam-se antes
do extravasamento de quantidades significativas de fluido para a cavidade peritoneal.
Segundo os proponentes dessa teoria, a elevação da pressão portal estimula os rins a reter
sódio através de mecanismos ainda não esclarecidos. O fluido retido, ainda de acordo
com essa teoria, passa à cavidade peritoneal devido à hipertensão sinusoidal resultante do
bloqueio venoso descrito acima e da própria retenção primária de água e sódio. Essa
teoria atribui assim a uma disfunção renal o início do processo de formação de edema na
cirrose hepática, baseando-se portanto em um mecanismo de “overflow”. Outras teorias,
no entanto, calcadas em evidências clínicas e experimentais, centralizam-se em um
mecanismo de “underfilling” para explicar a retenção de fluido na cirrose hepática. De
acordo com essas teorias, mais freqüentemente aceitas, a retenção de fluido inicia-se com
a redução da volemia arterial efetiva devido a uma ou mais das seguintes anomalias: 1)
deslocamento de fluido para a cavidade peritoneal, de acordo com os mecanismos
descritos acima. 2) formação de fístulas artério-venosas, dentro da própria circulação
hepática (entre a artéria e veia hepáticas), assim como em outros territórios, como a pele e
os pulmões. Enquanto é provável que a formação dessas fístulas no interior do fígado faça
parte do processo geral de desestruturação hepática que acompanha a cirrose, sua
presença em outros territórios não encontra atualmente explicação satisfatória. 3) queda
da resistência periférica, motivada pela produção exagerada de um ou mais
vasodilatadores, tais como a bradicinina, as prostaciclinas, o óxido nítrico e outros.
É bastante provável que o mecanismo de “underfilling”, seja qual for sua origem,
participe efetivamente do processo de formação do edema da cirrose, uma vez que esses
pacientes apresentam alguns sinais típicos de hipovolemia, como uma discreta hipotensão
arterial e a produção excessiva de renina, angiotensina II, aldosterona, catecolaminas e
hormônio antidiurético. Além disso, o paciente com ascite costuma responder com
natriurese intensa a manobras destinadas a aumentar a volemia arterial efetiva, tais como
a imersão em água e a implantação da válvula de Le Veen, um dispositivo que drena
fluido da cavidade peritoneal para a veia jugular.
Nas fases avançadas da cirrose hepática, um outro fator contribui para o acúmulo
de edema: trata-se da síntese deficiente de albumina, motivada pela destruição, pelo
processo de fibrose, da maior parte dos hepatócitos. Em conseqüência, desenvolve-se
uma hipoalbuminemia intensa, com queda generalizada da pressão oncótica plasmática.
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∆ P Normal ∆ P ∆π
Fig.9-13–Dinâmica dos capilares extra-hepáticos na cirrose hepática avançada com produção insuficiente de proteínas pelo fígado. A linha cinzenta representa a pressão oncótica normal
Nos sinusóides hepáticos, essa alteração tem pouco impacto, devido à alta permeabilidade
a proteínas desses capilares. Em outros territórios, no entanto, a hipooncoticidade
plasmática leva a uma mudança acentuada da dinâmica capilar, cujo perfil passa a
favorecer a filtração, devido à diminuição da força que se opõe a esta última (Fig. 9-13).
Essa anomalia permite assim a formação de edema em outros territórios que não a
circulação portal. Além disso, e apesar de não atuar nos sinusóides, esse mecanismo
favorece a formação de ascite por estar presente nos capilares peritoneais e mesentéricos:
nestes, um aumento exagerado da filtração também leva ao acúmulo de fluido na
cavidade peritoneal. A hipooncoticidade plasmática desempenha um importante papel
também na formação do edema nefrótico, conforme veremos a seguir.
EDEMA NA SÍNDROME NEFRÓTICA
Denominamos síndrome nefrótica a associação de quatro sinais e sintomas
característicos: 1) proteinúria maciça, por definição superior a 3,5 g/dia, podendo no
entanto atingir 20 g/dia ou mais. 2) hipoalbuminemia, com concentrações plasmáticas de
albumina usualmente inferiores a 3 g/dL. 3) hipercolesterolemia, podendo a concentração
plasmática de colesterol total ultrapassar 400 mg/dL. 4) edema generalizado (anasarca).
Existe uma nítida relação de causalidade entre os três primeiros elementos dessa
síndrome: a hipoalbuminemia decorre da perda exagerada de proteínas na urina,
particularmente a albumina, perda essa que supera amplamente a taxa de síntese hepática
dessa proteína. A hipercolesterolemia, por sua vez, decorre de um aumento generalizado
da atividade de biossíntese por parte do fígado, num esforço para recompor os níveis
circulantes de proteínas: nesse processo, aumenta também a síntese de lipoproteínas.
Portanto, o fenômeno primário na síndrome nefrótica é a perda maciça de proteínas
pela urina.
Embora a formação de edema nesses indivíduos esteja obviamente ligada à proteinúria e à
hipoalbuminemia, os mecanismos que levam à retenção de fluido na síndrome nefrótica
não estão ainda totalmente esclarecidos. Dos anos 30 aos anos 70, predominou a teoria de
que a formação de edema na síndrome nefrótica decorria direta e exclusivamente da
hipoalbuminemia. De acordo com essa teoria, hoje conhecida como teoria clássica, a
queda da pressão oncótica capilar leva a um desequilíbrio das forças de Starling nos
capilares, cuja dinâmica adquire um padrão em que predomina a filtração (Fig. 9-13).
Quando o fluxo linfático atinge seu limite máximo, o filtrado acumula-se rapidamente no
interstício, caracterizando a formação de edema. Como resultado dessa transferência,
ocorre uma contração do volume circulante. Os rins são então estimulados a reter sódio e
água, na tentativa de corrigir essa hipovolemia. Portanto, essa concepção baseia-se
puramente em um mecanismo de “underfilling”. Uma série de evidências acumuladas
durante aquele período veio reforçar essa teoria. É possível observar a formação de
edema, mesmo na ausência de doença renal, cardíaca ou hepática, em indivíduos com
analbuminemia, uma rara condição hereditária em que a concentração plasmática de
albumina é praticamente zero. Muitos pacientes nefróticos apresentam claros sinais de
hipovolemia, tais como uma produção elevada de renina, angiotensina, aldosterona e
hormônio antidiurético. Alguns chegam a entrar em choque hipovolêmico, obrigando à
reposição rápida de plasma ou à infusão de albumina humana. Nesses pacientes, o
mecanismo de “underfilling” deve contribuir significativamente para a formação de
edema. Na maioria desses casos, o exame histológico do tecido renal revela poucas
anormalidades, muitas vezes observáveis somente à microscopia eletrônica – são as
chamadas síndromes nefróticas de lesões mínimas, que ocorrem principalmente em
crianças e adolescentes. A partir dos anos 70, no entanto, foi-se tornando cada vez mais
claro que esse esquema nem sempre explica satisfatoriamente a formação de edema na
síndrome nefrótica. Um grande número de pacientes apresenta sinais de hipervolemia,
sendo possível medir uma expansão de seu volume plasmático, ao invés de sua contração.
Além disso, a atividade plasmática de renina pode estar normal ou mesmo baixa em
pacientes nefróticos, enquanto os níveis circulantes de FNA estão elevados. Em muitos
pacientes, a remissão da síndrome nefrótica, espontânea ou não, faz-se acompanhar de
uma redução da volemia. Em vários estudos experimentais obtiveram-se dados
consistentes com essas observações clínicas. Esse conjunto de evidências indica que, em
muitos casos, o edema da síndrome nefrótica não pode ser explicado por um mecanismo
puro de “underfilling”. Para explicar os sinais de hipervolemia que acompanham esses
pacientes, é necessário postular a participação de um mecanismo de “overflow”, ou seja,
de retenção renal primária de água e sódio. Essa tendência obviamente contribui para
intensificar o acúmulo de líquido intersticial devido à elevação da pressão hidráulica
capilar, a qual, em associação com a queda da pressão oncótica, promove uma filtração
exagerada ao longo da maioria dos capilares do organismo (Fig. 9-14). Há inúmeras
evidências de que, em muitos pacientes nefróticos, os rins possuem uma tendência
intrínseca à retenção de sódio. É comum a presença, nesses pacientes, de
glomerulonefrites, usualmente da forma membranosa e membranoproliferativa
(raramente da forma difusa aguda mencionada acima) e de outras glomerulopatias, como
a glomerulosclerose focal e a glomerulosclerose diabética. Em todos esses casos, é
razoável supor que a lesão renal leva a uma redução intrínseca da capacidade renal de
excretar sódio e água, resultando na retenção de fluido e formação de edema por
“overflow” (ou seja, o processo adquire um caráter “nefrítico”). Várias evidências obtidas
em animais de laboratório, utilizando modelos experimentais de síndrome nefrótica por
lesão tóxica ou imunológica do glomérulo, vieram reforçar essa hipótese. Tomados em
Fig.9-14–Dinâmica dos capilares periféricos na síndrome nefrótica com retenção renal primária de sódio. As linhas cinzentas representam as pressões hidráulica e oncótica normais
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Pressões normais ∆ P ∆π
conjunto, os dados hoje disponíveis sugerem que o edema da síndrome nefrótica resulta
de uma associação entre uma queda da pressão oncótica plasmática e uma elevação da
pressão hidráulica capilar devido a uma retenção renal primária de sal e água. Em alguns
casos, em que a perda proteica é muito intensa e a capacidade renal de excretar sódio está
conservada, é possível explicar o edema nefrótico por um mecanismo de “underfilling”.
Em outros, a retenção renal primária de sódio e água parece ser o mecanismo
predominante, levando à formação de edema por um mecanismo de “overflow”, embora o
processo seja certamente facilitado pela diminuição simultânea da pressão oncótica
plasmática.
TRATAMENTO DO EDEMA
Como é óbvio, a terapêutica de qualquer edema deve incluir, sempre que possível,
a remoção da causa primária do distúrbio: cardiotônicos na insuficiência cardíaca
congestiva, corticosteróides na síndrome nefrótica, etc, embora existam casos em que
essa abordagem é difícil ou impossível, como na cirrose hepática. Além de tratar a causa
primária do edema, é quase sempre necessário promover um balanço negativo de sódio,
para que o volume circulante se reduza, a pressão hidráulica capilar diminua e haja
movimentação de fluido do interstício para o espaço intravascular e daí à urina. É
possível conseguir essa perda de sódio restringindo-se severamente a ingestão de sal, ou
aumentando sua excreção através do uso de diuréticos. No entanto, como os diuréticos
espoliam inicialmente o espaço intravascular, o uso indiscriminado dessas drogas pode
provocar hipovolemias graves e até mesmo a insuficiência renal aguda em pacientes com
redução intensa do volume arterial efetivo, como por exemplo os cirróticos avançados.
Tais tratamentos devem ser acompanhados de perto, com medida diária do peso, volume
urinário e pressão arterial nas posições supina e ereta. O tratamento imediato com
indução de grande diurese só cabe em situações de emergência, como no edema agudo de
pulmão.
EXERCÍCIOS
Ative o programa “MECANISMOS DE FORMAÇÃO DE EDEMA”. Nesse programa
existem alguns elementos de animação, concebidos de modo a demonstrar em seqüência o
processo de formação de edema, sendo exatamente por essa razão um pouco lentos.
Observe a seqüência com atenção, repetindo o processo tantas vezes quanto necessário para
melhor entendê-lo.
1 – Observe inicialmente o gráfico no alto à direita, onde estão representadas as duas forças
de Starling: a diferença de pressão hidráulica (∆P) e a diferença de pressão oncótica
(∆π) entre o interior do capilar e o interstício. Note a semelhança com as forças que
governam a ultrafiltração no capilar glomerular. Observe também o gráfico situado
abaixo e à direita. Nele está representado o volume de fluido existente no interstício
(ordenadas) em função da pressão hidráulica intersticial (abscissas). Na condição
normal, existem cerca de 11 L no interstício, a uma pressão hidráulica de –3 mmHg.
(observe a localização do círculo vermelho). Aumentos no volume de fluido intersticial
corresponderão à formação de edema.
2 – Eleve agora a pressão hidráulica capilar. Note que o volume de fluido intersticial
(gráfico inferior à direita) não aumenta (ou seja, não se forma edema) de imediato,
mesmo com elevações consideráveis da pressão hidráulica capilar. Leia com atenção a
mensagem que agora aparece, discutindo as adaptações que previnem a formação de
edema nessas condições.
3 – Se a elevação da pressão hidráulica capilar for suficientemente intensa (especialmente se
a pressão venosa também estiver elevada), terá início a formação de edema. Observe a
movimentação do círculo vermelho à medida que o edema se acumula. Enquanto a
pressão hidráulica intersticial se mantiver em níveis subatmosféricos (ou seja, enquanto
o círculo vermelho estiver à esquerda da linha pontilhada vertical), a quantidade de
edema que se forma é muito pequena: o interstício tem uma capacidade muito limitada
de armazenar fluido nessas condições. A mensagem que aparece na tela trata de
explicar essa circunstância. Quando no entanto a pressão hidráulica intersticial se torna
positiva (ou seja, quando o círculo vermelho ultrapassa o limite representado pela linha
pontilhada vertical), ocorre um rápido acúmulo de edema: o interstício agora é capaz de
acumular grandes quantidades de fluido livre, isto é, não ligado à matriz intersticial. A
quantidade de fluido livre presente no interstício é representada pela linha amarela
vertical compreendida entre a curva azul (fluido intersticial livre) e a vermelha (fluido
intersticial ligado à matriz) no gráfico inferior à direita. Note que o acúmulo de líquido
intersticial sempre cessa depois de algum tempo, devido à elevação da pressão
hidráulica intersticial. A mensagem que aparece na tela explica esses mecanismos.
Observe que, para maior clareza, o gráfico no alto à direita (dinâmica capilar) e o
esquema de filtração/absorção capilar (embaixo à direita) mantêm-se constantes
durante a animação, representando o desequilíbrio inicial que levou à formação de
edema. Na verdade, os valores de ∆P e dos fluxos modificam-se conforme a pressão
hidráulica intersticial se vai elevando.
4 – Faça retornar o sistema à condição padrão. Diminua agora, lentamente (utilizando a seta
à esquerda da barra deslizante) a concentração plasmática de proteínas. Baseado nos
exercícios anteriores e nas mensagens que continuam a aparecer, procure entender por
que não se forma edema de imediato. Que adaptações ocorrem neste caso? (Observe
novamentre o fluxo linfático e a pressão oncótica intersticial). Quando a concentração
plasmática de proteínas for suficientemente baixa, há formação de edema. Observe
novamente a seqüência de eventos que acompanham a formação de edema e sua
cessação. Interprete.
5 – Acione o botão “MECANISMOS BÁSICOS DE FORMAÇÃO DE EDEMA e
observe a nova tela. Na condição normal, o sistema circulatório funciona sem
qualquer extravasamento de fluido para o interstício. Acione agora os botões
correspondentes a cada uma das situações propostas. Em cada uma elas, há uma
seqüência de eventos indicada pelos números inscritos nos círculos amarelos. Em
alguns casos, há dois eventos com o mesmo número, indicando que, à luz dos
conhecimentos atuais, esses eventos são aproximadamente simultâneos. Observe
também que sempre se indica o mecanismo predominante (overflow ou underfilling)
correspondente a cada uma das situações. Identifique em cada uma das situações,
com o auxílio do texto deste capítulo, a anomalia que deu origem à formação de
edema. Consulte os textos explicativos para esclarecer detalhes importantes de cada
uma das situações estudadas.
CAPÍTULO 10: FISIOPATOLOGIA DA HIPERTENSÃO ARTERIAL
Joel Cláudio Heimann, José Eduardo Krieger e Roberto Zatz
I. INTRODUÇÃO:
A função do sistema cardiovascular pode ser quantificada por meio de grandezas
físicas. Uma destas é a pressão que o sangue exerce sobre a parede das grandes artérias,
denominada pressão arterial. Alguns indivíduos desenvolvem, a partir de um determinado
momento da vida, uma pressão arterial acima de certos valores aceitos como normais. A
fisiopatologia desta elevação crônica da pressão arterial é uma temática muito complexa,
até mesmo por não haver, ainda hoje, uma definição precisa de hipertensão arterial. Neste
capítulo será discutida uma parte do que é conhecido a respeito dos principais mecanismos
responsáveis pela geração e manutenção da hipertensão arterial.
II. CARACTERÍSTICAS CLÍNICAS E EPIDEMIOLÓGICAS DA HIPERTENSÃO
ARTERIAL:
A pressão arterial é uma variável cuja distribuição na população é gaussiana: os
valores de pressão arterial distribuem-se de modo contínuo e simétrico entre um valor
mínimo e um valor máximo (Fig. 10-1), o que torna difícil estabelecer um ponto de corte
acima do qual o indivíduo passa a ser considerado hipertenso. Na verdade, a definição de
hipertensão arterial tem de certo modo uma natureza estatística: trata-se de um desvio da
normalidade, no qual os níveis pressóricos dos indivíduos acometidos situam-se
cronicamente acima de um determinado limite, estabelecido por convenção. O limite
atualmente adotado é o de 135 mmHg para a pressão sistólica e de 85 mmHg para a pressão
diastólica. É comum o uso exclusivo do nível de pressão diastólica como critério
diagnóstico, embora o efeito deletério da hipertensão sistólica esteja bem estabelecido.
A dificuldade em se diagnosticar a hipertensão arterial é ainda agravada pela
variabilidade da pressão arterial em cada indivíduo. A pressão arterial varia de acordo com
a hora do dia, com o grau de atividade física e com o estado emocional, podendo ser
influenciada até mesmo pela presença do médico (“hipertensão do jaleco branco”).. Essas
características tornam imperativa a adoção de procedimentos padronizados para a medida
Fig. 10-1 – Representação esquemática da freqüência de distribuição da pressão arterial diastólica na população. A área hachurada corresponde à porcentagem de hipertensos que será observada caso o critério para a definição de hipertensão seja o de pressão diastólica > 85 mmHg (linha pontilhada vertical)
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Pressão diastólica, mmHg
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da pressão arterial e para o diagnóstico da hipertensão arterial. Por exemplo, a
determinação da pressão arterial deve sempre ser feita por pessoal devidamente treinado,
com o paciente na mesma posição (deitado ou sentado), em ambiente tranqüilo e sempre no
mesmo horário, devendo-se medir a pressão arterial mais de uma vez em uma mesma
consulta. Para se estabelecer o diagnóstico de hipertensão arterial é ainda necessário que a
pressão arterial esteja alta em três consultas sucessivas, para evitar que uma elevação
acidental e temporária seja erroneamente interpretada (e tratada) como se fosse uma
condição permanenete.
Uma vez cumpridos adequadamente esses procedimentos diagnósticos, é possível
observar que a hipertensão arterial é um distúrbio extremamente freqüente. Se por exemplo
estabelecermos como ponto de corte uma pressão diastólica de 85 mmHg, a prevalência da
hipertensão (ou seja, a porcentagem de hipertensos em um determinado momento), chega a
superar os 25% da população geral. Se considerarmos a subpopulação de adultos do sexo
masculino com idade superior a 40 anos, essa prevalência pode ultrapassar 50%. Fica fácil
assim entender o impacto social da hipertensão arterial, já que a agressão mecânica imposta
ao sistema cardiovascular e renal por um aumento crônico da pressão arterial reflete-se no
alto risco que apresentam os pacientes hipertensos de desenvolver vasculopatias graves.
Dentre estas, as mais conhecidas pela população, por seu caráter dramático e por sua
enorme divulgação pelos meios de comunicação, são as coronariopatias e os acidentes
vasculares cerebrais. Mais insidiosa, mas igualmente deletéria, é a hipertrofia cardíaca,
conseqüência da maior quantidade de trabalho mecânico realizado pelo coração quando a
pressão arterial (pós-carga) está elevada. Essa hipertrofia acaba comprometendo a
oxigenação do miocárdio e o próprio desempenho cardíaco, levando à insuficiência
cardíaca. Outra complicação silenciosa mas potencialmente letal da hipertensão é a
insuficiência renal crônica . Através de mecanismos ainda não totalmente esclarecidos, a
exposição do tecido renal durante muitos anos a altas pressões de perfusão leva uma parte
dos pacientes a desenvolver uma fibrose crônica do parênquima renal, que termina
causando a perda irreversível da função desse órgão. Finalmente, uma pequena parcela dos
hipertensos desenvolve hipertensão maligna, na qual a pressão arterial eleva-se muito
rapidamente, levando à progressão acelerada de todas as complicações descritas acima.
Apesar de sua alta prevalência, da gravidade de suas complicações e do fato de ser
conhecida há mais de 1 século, a hipertensão ainda representa em grande parte um enigma
quando se consideram suas causas. Na verdade, apenas em cerca de 10% dos pacientes
hipertensos é possível identificar uma causa definida para a elevação da pressão arterial,
como por exemplo uma produção anômala de aldosterona (hiperaldosteronismo primário)
ou um estreitamento arterial renal (hipertensão renovascular). Nesses casos, a hipertensão é
conhecida como hipertensão secundária, em contraposição ao conceito de hipertensão
primária, ou hipertensão essencial. Nesta, que representa cerca de 90 % de todas as
hipertensões, não se consegue encontrar uma causa definida para o distúrbio. Isso não
significa que a hipertensão arterial seja uma condição incompreensível para a Medicina. Na
verdade, um número crescente de evidências clínicas e experimentais indica com clareza
cada vez maior que a hipertensão não pode ser considerada como o resultado de um único
agente ou fator etiológico. De acordo com os conceitos mais modernos, a hipertensão
primária resulta da interação entre fatores genéticos (ou seja a disfunção de um ou mais
genes) e fatores ambientais (consumo excessivo de sal, obesidade, fumo, entre outros).
Embora nosso conhecimento sobre a etiologia da hipertensão arterial seja ainda
fragmentário, sabemos muito hoje em dia sobre os mecanismos fisiopatológicos envolvidos
nesse processo. O conhecimento desses mecanismos é essencial para se compreender não
apenas o funcionamento do sistema cardiovascular sob pressão arterial elevada, como
também os princípios básicos da terapêutica da hipertensão arterial.. Nas seções seguintes,
esses mecanismos serão considerados em detalhe, a começar pela hemodinâmicas normal
do sistema circulatório.
III. DETERMINANTES HEMODINÂMICOS DA PRESSÃO ARTERIAL:
Estudando sistemas hidráulicos, Poiseuille estabeleceu a seguinte relação:
F=(Pi-Pf)/R,
onde F é o fluxo de fluido em uma tubulação rígida, Pi e Pf são, respectivamente, as
pressões no início e no fim da tubulação e R é a resistência oferecida ao fluxo. Esta relação
entre F, Pi, Pf e R, conhecida como equação de Pouiseille, pode ser transposta, com
pequenas modificações, ao sistema circulatório. Desta forma, teremos
DC=(PA-PV)/R
onde DC representa o débito cardíaco (portanto o fluxo hidraúlico), PA a pressão arterial
média, PV a pressão venosa e R a resistência hidráulica do sistema, que no sistema
cisculatório é denominada resistência periférica. Comparada à PA, a PV tem uma
magnitude muito pequena, sendo possível retirá-la da fórmula sem incorrer em um erro
muito grande. Fica-se então com
DC= PA/R (1),
Essa equação é mais freqüentemente expressa como
PA = DC×R (2)
O conceito contido na equação 2 pode ser melhor visualizado com o auxílio da Figura 10-2,
que mostra um esquema simplificado da circulação.
Pode-se demonstrar que a resistência periférica total é inversamente proporcional à quarta
potência do raio da tubulação:
R= k/r4 (3)
Substituindo-se o valor de R na equação (1) pela equação (3) tem-se:
DC=k×PA/r4 (4)
A pressão arterial é, portanto, diretamente proporcional ao débito cardíaco e inversamente
proporcional à quarta potência do raio dos condutos que formam o sistema circulatório, ou
seja, os vasos sangüíneos. A maior parte desse efeito é representada pelas arteríolas, que
constituem a porção do sistema circulatório que mais influi na resistência periférica. É
principalmente nas arteríolas que agem os compostos vasoativos que ajudam a regular
momento a momento a pressão arterial. É também principalmente através das arteríolas que
os tecidos regulam o fluxo sangüíneo que os perfunde, num processo conhecido como
autorregulação e que tem grando importância na gênese da hipertensão, como veremos
PA = DC • RP
~
RP
DC
PA
Fig. 10-2 – Representação esquemática e simplificada da circulação. A pressão arterial (PA) sempre pode ser expressa como o produto do débito cardíaco (DC) e da resistência periférica (RP)
adiante.
Apesar da simplicidade da equação 2, são extremamente complexos os mecanismos
que regulam a pressão arterial e que deixam de funcionar adequadamente no indivíduo
hipertenso. Sejam quais forem esses mecanismos, no entanto, seus efeitos sobre a pressão
arterial envolvem necessariamente uma alteração do débito cardíaco, da resistência
periférica, ou de ambos.
IV. MECANISMOS DE REGULAÇÃO DA PRESSÃO ARTERIAL
A pressão arterial é regulada por um sistema de controle de natureza extremamente
complexa. De modo geral, um sistema regulador consiste em um dispositivo cibernético
constituído de um sensor, de um sistema de transmissão, de um centro de integração, onde
o sinal captado é processado e comparado a alguma referência interna e de um efetor, capaz
de influir sobre a variável regulada de modo a mantê-la próxima a um valor previamente
ajustado. É assim que funciona, por exemplo um termostato de refrigerador ou de
aquecedor. É assim que funciona também o nosso termostato interno: sensores cutâneos e
centrais levam a um centro integrador hipotalâmico as informações sobre as respectivas
variações de temperatura, gerando respostas efetoras tais como a vasodilatação ou
vasoconstrição cutâneas, sudorese e tremores musculares, corrigindo, através desse sistema
de realimentação negativa, quaisquer desvios da temperatura corpórea de seu ponto de
ajuste. Sistemas semelhantes atuam na regulação do nível sérico de cálcio (ver Capítulo 13)
e da pressão osmótica do organismo (ver Capítulo 11).. Já a regulação da pressão arterial é
um processo bem mais complexo. Temos aqui a interação de vários mecanismos atuando
em paralelo, cada um com sua própria dinâmica e com seus próprios efetores. Há
mecanismos de ação rápida, como os baroreceptores, os quimioceptores arteriais e a
resposta isquêmica do sistema nervoso central, capazes de responder em questão de
segundos a variações bruscas da hemodinâmica circulatória, como a mudança da posição
supina (horizontal) para a ereta. Esses sistemas são também muito úteis em situações de
emergência, como em uma hemorragia, por exemplo. A médio prazo (horas ou dias),
adquire maior destaque a ação das propriedades mecânicas das paredes vasculares, capazes
de acomodar seu diâmetro a situações de estiramento prolongado, e a reabsorção de fluido
do interstício para o interior dos capilares, em situações de hipotensão prolongada.
A longo prazo, isto é, após um intervalo de alguns dias, entra em ação a capacidade
dos rins de controlar a excreção de sal e água. Essa capacidade baseia-se no fato de que a
pressão de perfusão renal exerce uma profunda influência sobre a excreção de sódio e água.
Esse fenômeno, denominado natriurese pressórica, transforma o rim num poderoso agente
efetor na regulação da pressão arterial. Quando a pressão arterial se eleva, a excreção renal
de água e sódio aumenta, reduzindo o volume sangüíneo. Com isso, cai o débito cardíaco,
baixando a pressão arterial (Equação 2 e Fig. 10-2) e trazendo de volta ao nível anterior a
taxa de excreção renal de sódio (ver adiante).
Adquirem aqui especial importância os hormônios e autacóides vasoativos e/ou
aqueles que influenciam a excreção renal de sódio, tais como a angiotensina II, a
vasopressina e as catecolaminas (vasoconstritores) e a insulina, a prostaciclina, a
bradicinina, o fator natriurético atrial e o óxido nítrico (vasodilatadores), além da
aldosterona, um retentor de sódio por excelência (ver Capítulo 2). É fácil perceber, tendo
em vista o esquema mostrado na Fig. 10-2, que esses compostos podem alterar a pressão
arterial influenciando a resistência periférica (vasodilatadores e vasoconstritores) ou o
débito cardíaco, regulando a excreção renal de sódio (natriuréticos e antinatriuréticos). De
modo geral, os vasoconstritores, como as catecolaminas e a angiotensina II, funcionam
também como retentores de sódio (antinatriuréticos), enquanto os vasodilatadores, como o
fator natriurético atrial e o óxido nítrico, atuam como espoliadores de sódio (natriuréticos).
Por essa razão, é praticamente impossível obter um efeito puramente antinatriurético ou
vasoconstritor mediante a administração exógena de compostos vasoativos ou da
estimulação de sistemas que liberam esses compostos, como o sistema nervoso simpático e
o sistema renina-angiotensina-aldosterona.
V. FISIOPATOLOGIA DA HIPERTENSÃO ARTERIAL: AS DUAS PRINCIPAIS
TEORIAS
Sendo assim complexo o sistema de regulação da pressão arterial, e não havendo
consenso quanto à importância relativa de cada um, não chega a surpreender que também
quanto aos mecanismos que levam à hipertensão essencial haja uma grande dose de
controvérsia. Basicamente, a polêmica opõe duas grandes correntes: de um lado, os que
propõem a existência, em hipertensos essenciais, de uma alteração do sistema nervoso
central, de modo a que o ponto de ajuste da pressão arterial, presumivelmente determinado
pelo próprio SNC, está elevado em relação ao normal. De outro lado, temos os que
defendem um papel preponderante, na gênese da hipertensão, de uma retenção de sal e água
pelos rins. Vamos analisar separadamente cada uma dessas duas grandes hipóteses.
1) Teoria neurogênica:
Os proponentes da hipótese de que a hipertensão essencial é uma doença do sistema
nervoso central invocam série de evidências em apoio a sua tese. Salientam a importância
do achado de que, em pacientes jovens com hipertensão limítrofe, a anomalia
hemodinâmica encontrada é basicamente uma elevação do débito cardíaco e não, de início,
um aumento da resistência periférica. Mais do que isso, apresentam evidências de que esse
estado de hipercinese circulatória é decorrência de uma atividade do sistema nervoso
autônomo, já que a administração de um beta-bloqueador e de um parassimpatolítico
abolem a anomalia. Aliás, a administração de beta-bloqueadores é um dos procedimentos
mais comuns no tratamento da hipertensão essencial, em consistência com essa hipótese.
Na mesma linha, o grupo de Allyn Mark demonstrou que, em indivíduos com hipertensão
limítrofe, o influxo simpático à circulação periférica, estimado através do registro direto da
atividade nervosa, está aumentado. Além disso, a atividade parassimpática está reduzida
nesses pacientes.. Os indivíduos com hipertensão limítrofe são ainda, de acordo com
algumas evidências, exageradamente responsivos ao estresse, desenvolvendo uma atividade
simpática excessiva e hipertensão. Stevo Julius, um dos mais destacados defensores da
hipótese da origem nervosa da hipertensão, argumenta em favor desse ponto de vista que as
manobras que elevam a pressão arterial o fazem mesmo em face de profundas modificações
hemodinâmicas induzidas farmacologicamente. Quando por exemplo se produz hipertensão
por compressão do quarto traseiro de cães anestesiados, a base hemodinâmica da
hipertensão é um aumento da resistência periférica. Quando este é prevenido pela
administração de um alfa-bloqueador, a pressão arterial continua a se elevar, agora à custa
de um aumento no débito cardíaco. Baseado nesse tipo de evidência, Stevo Julius propõe
que o sistema nervoso central seja na verdade o grande controlador da pressão arterial,
mantendo-a constantemente ao redor de um valor previamente ajustado. Desarranjos desse
mecanismo central, de acordo com essa teoria, forçam a pressão arterial a elevar-se. Se se
tentar impedir essa elevação bloqueando por exemplo a vasoconstrição periférica, o sistema
ainda assim conseguirá trazer a pressão arterial a seu novo valor, aumentando o débito
cardíaco. O inverso ocorrerá se o parâmetro bloqueado for o débito cardíaco: o que
aumenta nesse caso é a resistência periférica.. Portanto, o sistema nervoso central funciona,
de acordo com essa hipótese, como um regulador a longo prazo da pressão arterial. Nos
hipertensos, o ponto de ajuste está alterado, de modo análogo ao que ocorre com o centro
termorregulador em estados febris.
O sistema nervoso central exerce, sem sombra de dúvida, uma enorme influência
sobre a pressão arterial. O centro vasomotor, situado na substância reticular do bulbo e na
porção inferior da ponte, mantém através das fibras simpáticas um tônus contrátil na
musculatura lisa vascular, aumentando-o ou diminuindo-o conforme as necessidades
imediatas do sistema circulatório, utilizando-se também do sistema parassimpático quando
necessário. É crucial para o seu funcionamento a atuação de um sistema sensor, capaz de
perceber variações da pressão arterial. Esse sistema é constituído pelos baroceptores
situados no arco aórtico e no seio carotídeo. Através dos nervos vago, de Hering e
glossofaríngeos (vias aferentes), esses baroceptores emitem continuamente sinais nervosos
para o centro vasomotor, inibindo-o parcialmente e portanto modulando o efluxo simpático
que dele emana. Quando a pressão arterial se eleva, o fluxo inibitório originado nos
baroceptores aumenta, fazendo-a retornar a seu valor inicial. É por essa razão que a
ligadura simultânea de ambas as carótidas, manobra que estimula ao máximo os
baroceptores situados no seio carotídeo, provoca uma elevação acentuada da pressão
arterial, servindo mesmo como um modelo de hipertensão arterial aguda.
Seria então a disfunção dos baroceptores uma causa de hipertensão arterial? Essa
possibilidade parece hoje um tanto remota. O sinal proveniente dos baroceptores é de curta
duração, esgotando-se após algumas horas se a alteração da pressão arterial persistir. Em
outras palavras, os baroceptores adaptam-se ao novo nível pressórico, passando a adotá-lo
como nova referência. Esta característica torna difícil imaginar como uma alteração do
componente sensor desse sistema de controle poderia originar uma hipertensão persistente.
Essa limitação fica evidente quando observamos o que ocorre quando os baroceptores são
desconectados do sistema nervoso central (deaferentados), por denervação dos receptores
carotídeos e aórticos. Nos animais assim tratados, ocorre um grande aumento da
instabilidade hemodinâmica, com ampla flutuação da pressão arterial, em contraste com os
estreitos limites de variação observados em animais intactos. Isso ocorre porque
perturbações corriqueiras da circulação (mudança de posição, atividade física, sustos,
sonolência, etc.), fortemente atenuadas pelo sistema nervoso central em animais intactos,
deixam de sê-lo nos animais intactos. No entanto, a pressão arterial mantém-se, na média
diária, em níveis semelhantes aos observados antes da denervação, ou seja, os animais com
baroceptores deaferentados não se tornam hipertensos. Como não se conhecem outras
formas através das quais o sistema nervoso central poderia perceber variações da pressão
arterial sistêmica, fica difícil entender como poderia funcionar o sistema de realimentação
negativa proposto por Stevo Julius. Existe no entanto a possibilidade de que uma disfunção
do sistema nervoso central eleve cronicamente a pressão arterial através de sua íntima
relação com o funcionamento renal, conforme veremos mais adiante.
2) Teoria renal:
A teoria de que a hipertensão essencial é basicamente uma disfunção renal tem em
Arthur Guyton o seu defrensor mais destacado. De acordo com essa teoria, o rim, único
órgão a regular de modo significativo a excreção de sódio pelo organismo, é por essa
mesma razão o responsável último pelos níveis de pressão arterial sistêmica a longo prazo.
Ainda de acordo com essa teoria, além de constituir a única via de excreção de sódio de que
dispõe o organismo, os rins são também o único sistema capaz de responder diretamente a
alterações da pressão arterial com uma variação da excreção desse íon. Isso ocorre devido
ao fenômeno, mencionado acima, da natriurese pressórica, através do qual variações da
pressão de perfusão renal, em geral idêntica à pressão arterial sistêmica, deflagram
rapidamente no interior do parênquima renal uma série de fenômenos ainda não muito bem
compreendidos. Alguns desses processos são de natureza puramente física, como por
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Fig. 10-3 – Natriurese pressórica. Variações da pressão arterial promovem um aumento da taxa de excreção urinária de sódio ao longo da linha azul. O círculo vermelho, que marca a intersecção dessa linha com a linha vermelha, representatrva da taxa de ingestão de sódio, é denominado ponto de
equilíbrio.A) - Em condições normais, esse ponto corresponde a uma pressão arterial média entre 90 e 95 mmHg . B) - Se a pressão arterial média se elevar a cerca de 100 mmHg, a taxa de excreção de sódio dobrará, levando a um desequilíbrio entre ingestão e excreção de sódio.
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exemplo as alterações das pressões hidráulica e oncótica (forças de Starling) junto ao
túbulo proximal e o aumento do fluxo sanguíneo ao longo dos vasos retos medulares. Essas
alterações tendem a alterar a excreção renal de sódio no mesmo sentido do distúrbio inicial
da pressão arterial, ao longo da linha de natriurese pressórica (Fig. 10-3a). A intersecção
dessa linha com a linha de ingestão de sódio é denominada ponto de equilíbrio. É esse
ponto de equilíbrio o que determina a longo prazo o valor da pressão arterial. Se por
exemplo a pressão arterial se elevar, a excreção de sódio aumentará ao longo da linha de
natriurese pressórica. (Fig. 10-3b). Como a ingestão de sódio permanece constante, passa a
ocorrer um desequilíbrio entre ingestão e excreção, resultando num balanço positivo de
sódio (e conseqüentemente de água). Havendo tempo suficiente, essa perda de sódio e água
resultará em uma lenta redução do volume plasmático, e portanto em um progressivo
retorno da pressão arterial a seu valor original. Uma queda na pressão arterial tem um efeito
exatamente inverso, novamente resultando em uma normalização da pressão arterial. Essa
normalização é sempre completa, já que o efeito da pressão arterial sobre o rim é
obrigatório, e não cessará enquanto a pressão arterial não houver retornado a seu valor
original. Dessa maneira, a pressão arterial será determinada, de um lado, pela taxa diária de
ingestão de sódio e de outro pela inclinação da linha de natriurese pressórica, que reflete em
última análise a sensibilidade do rim a variações de sua pressão de perfusão e, portanto, sua
capacidade de excretar sódio. Como essa linha é, em indivíduos normais, quase vertical, a
pressão arterial altera-se em geral muito pouco com a ingestão de sódio, mesmo que esta
varie amplamente.
Ë fácil depreender do exame da Figura 10-3 que é impossível alterar
permanentemente a pressão arterial sem que seja modificada a relação entre ingestão e
excreção renal de sódio. Uma maneira de se obter esse efeito poderia ser um aumento
substancial da ingestão de sódio. No entanto, um exame simples da linha azul na Fig. 10-3
indica que seria necessário aumentar extraordinariamente a ingestão de sódio para que
ocorresse uma elevação de uns poucos mmHg na pressão arterial média. Portanto, a única
maneira de se instalar uma hipertensão duradoura é promover uma alteração nas
características da natriurese pressórica. A Figura 10-4 ilustra duas alterações possíveis: na
Fig. 10-4a, a inclinação da linha azul diminuiu, ou seja, a linha de natriurese pressórica
deslocou-se para a direita, indicando uma menor capacidade renal de excretar sódio: são
agora necessárias pressões arteriais mais elevadas para que ocorra a excreção de uma
mesma quantidade de sódio. Não ocorrendo variação da ingestão de sódio, a pressão
arterial eleva-se até que a excreção e a ingestão de sódio se igualem. estabilizando-se nesse
novo valor, necessariamente elevado em relação ao normal. Esse efeito pode ser obtido em
animais de laboratório através da administração de uma droga retentora de sódio, como a
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Fig. 10-4 – Duas maneiras de se alterar a natriurese pressórica e provocar hipertensão arterial (deslocamento do ponto de equilíbrio). A) diminuindo a declividade da linha de natriurese pressórica. Neste caso temos uma hipertensão sal-sensível. B) deslocando a linha de natriurese pressórica para a direita, mantendo inalterada sua declividade. As linhas pontilhadas indicam a natriurese pressórica normal.
aldosterona ou a angiotensina II, ou pode ocorrer espontaneamente em um paciente com
hipertensão essencial. Note-se que, em um indivíduo com esse tipo de anomalia, a pressão
arterial cai sensivelmente quando se reduz a ingestão de sal – o ponto de equilíbrio desloca-
se para a esquerda e para baixo, sendo possível até mesmo normalizar a pressão arterial.
Essas hipertensões são portanto sal-sensíveis. Uma outra maneira de se interferir com a
natriurese pressórica, baixando a pressão arterial, é a administração de um diurético, como
por exemplo um tiazídico (ver Capítulo 6). Nesse caso, a linha azul inclina-se para a
esquerda e a pressão arterial cai até que ingestão e excreção de sódio novamente se
igualem. Poderíamos obter um resultado semelhante administrando uma droga
vasodilatadora, como por exemplo um supressor do sistema renina-angiotensina,. Em
ambos os casos, estaremos aumentando a capacidade renal de excretar sódio. Essa constitui
na verdade a base racional para o tratamento da hipertensão. Na Fig. 10-4b está
esquematizada uma outra maneira de se provocar uma hipertensão persistente alterando as
características da natriurese pressórica. Neste caso, a reta está deslocada para a direita,
mantendo-se no entanto paralela àquela observada em indivíduos normais. Aqui também
será necessária uma pressão arterial mais elevada para uma mesma excreção de sódio,
levando assim a um deslocamento para a direita do ponto de equilíbrio. No entanto, a
pressão arterial neste caso seria pouco afetada retirando-se o sal da dieta, uma vez que a
inclinação da linha não se alterou em relação ao normal. Temos aqui portanto um exemplo
de hipertensão sal-insensível ou sal-resistente. Nesse caso, a restrição salina teria pouco
efeito, sendo necessário administrar drogas que tendam a trazer a natriurese pressórica a
suas características normais. É provável que uma parcela considerável dos hipertensos
reúna características comuns a esses dois modelos de disfunção. Por essa razão, a restrição
ainda que parcial à ingestão de sal e o uso de diuréticos integram de modo proeminente o
arsenal terapêutico utilizado no combate à hipertensão.
É importante ressaltar que o modelo de Guyton e associados, mesmo assumindo que
o hipertenso sempre apresenta uma relativa incapacidade de excretar sódio, não requer
necessariamente um aumento do volume plasmático. A razão para isso é que um aumento
do volume plasmático termina sempre levando a um aumento do débito cardíaco, e portanto
a um aumento do fluxo sangüíneo aos tecidos periféricos. Estes no entanto possuem a
capacidade de regular sua própria perfusão modificando a resistência das arteríolas que os
alimentam. Essa propriedade, conhecida como autorregulação, decorre de uma variação da
concentração local de catabólitos, como o O2, o CO2 e os íons H+, à medida que varia o
fluxo sangüíneo. Quando este é baixo, acumulam-se catabólitos dilatadores, como o CO2.
Quando o fluxo é excessivamente alto, cai a pressão parcial de CO2, enquanto a de O2 se
eleva: o resultado é um aumento da resistência vascular. Quando diminui a capacidade
renal de excretar sódio e o indivíduo passa a reter o íon, esse processo ocorre de modo
generalizado no organismo, promovendo um aumento progressivo da resistência periférica.
Essa anomalia tende a elevar ainda mais a pressão arterial. No entanto, essa elevação é
autolimitada, porque promove um aumento da excreção de sódio, o que aos poucos reduz o
volume plasmático a níveis quase normais. Em conseqüência, a hipertensão que se
desenvolve, inicialmente dependente de uma aumento no volume plasmático e no débito
cardíaco (Fig. 10-2), muda de perfil, tornando-se dependente de um aumento da resistência
periférica. Quando finalmente o indivíduo chega à situação estacionária (ou seja, quando a
pressão arterial se estabiliza no novo valor), o volume plasmático está normal ou
minimamente elevado, a resistência periférica está elevada e o balanço de sódio é igual a
zero (ou seja, como seria de se esperar, a ingestão e a excreção de sal são exatamente iguais
na situação estacionária). Portanto, mesmo que a hipertensão resulte de uma limitação à
excreção renal de sódio, como propõe o modelo de Guyton, não se observa um balanço
positivo de sódio. O indivíduo só retém uma pequena quantidade de sódio durante um curto
período, imediatamente anterior à instalação da hipertensão e que obviamente nunca é
detectado. Quando se apresenta ao clínico, o paciente hipertenso sem complicações está
invariavelmente em balanço zero de sódio.
A teoria defendida por Guyton e outros encontra apoio em uma série de evidências
experimentais produzidas por esse grupo. Em cães que tiveram 70% de sua massa renal
removida, esses investigadores demonstraram que, mesmo nessas condições, o tecido renal
era ainda capaz de manter uma pressão arterial relativamente normal, provavelmente por
adaptação dos néfrons remanescentes (ver Capítulo 15). No entanto, quando esses animais
bebiam salina a 0,9% ao invés de água, desenvolviam hipertensão acentuada, a qual era
revertida quando voltavam a receber água pura. Esses resultados sugeriam que o que
provocava a hipertensão arterial era a incapacidade do tecido renal remanescente de dar
conta de uma sobrecarga de sódio. Essa intolerância ao sódio também se desenvolve
quando os rins, mesmo sem sofrer redução de sua massa, têm diminuída sua capacidade
intrínseca de excretar sódio, como no hiperaldosteronismo primário e nos modelos
experimentais de administração crônica de vasoconstritores como a angiotensina II. Nesse
caso, os rins exigem uma elevação persistente da pressão arterial a fim de chegar a uma
taxa de excreção de sódio idêntica à de ingestão, ou seja, para chegar a um balanço zero de
sódio. Segundo a teoria de Guyton, um mecanismo semelhante a esse atua na maior parte
dos indivíduos com hipertensão essencial - o defeito básico é sempre um comprometimento
da capacidade renal de excretar sódio , com desvio para a esquerda da linha de natriurese
pressórica, com ou sem redução de sua declividade,
Uma série de evidências clínicas e experimentais obtidas por diversos outros grupos
dão respaldo à teoria da origem renal da hipertensão essencial. Talvez as evidências mais
convincentes sejam aquelas obtidas através de transplantes experimentais e em humanos.
Em experimentos realizados com várias cepas de ratos com hipertensão de origem genética,
observou-se de modo bastante consistente que a hipertensão "segue o rim". Isso fica claro
quando se transplanta, para um animal normotenso previamente nefrectomizado, um rim de
um doador hipertenso. Nesse caso, o receptor torna-se hipertenso. Isso ocorre mesmo
quando o doador é previamente mantido normotenso por meios farmacológicos, indicando
que a anomalia que leva à hipertensão é intrínseca àquele rim . O experimento inverso
mostra resultados análogos: quando se transplanta um rim de um doador normotenso para
um receptor hipertenso, a hipertensão arterial é prevenida se o receptor for jovem e ainda
normotenso e atenuada se o receptor já for adulto e hipertenso. Observações semelhantes
foram realizadas em transplantes humanos: receptores provenientes de famílias
normotensas e que recebem rins de doadores de famílias hipertensas necessitam de mais
medicação anti-hipertensiva do que nos casos em que a família do doador é normotensa.
Em outro estudo, pacientes com nefropatia hipertensiva terminal tiveram sua pressão
arterial normalizada ao receberem enxertos de doadores normotensos, mantendo-se assim
durante pelo menos 4 anos e meio.
Outras evidências menos diretas dão também respaldo à teoria da origem renal da
hipertensão essencial. As hipertensões adquiridas ou induzidas em animais previamente
normotensos envolvem de modo consistente um comprometimento da capacidade renal de
excretar sódio. É o caso do hiperaldosteronismo primário, mencionado acima, da coartação
de aorta, da redução cirúrgica da massa renal e talvez até mesmo de modelos classicamente
atribuídos à hiperatividade do sistema renina-angiotensina, como a hipertensão de Goldblatt
com dois rins (com um clip em uma das artérias). Algumas formas hereditárias de
hipertensão experimental dependem nitidamente da retenção renal de sódio, como é caso do
rato Dahl sensível, que se torna hipertenso quando submetido a um regime de alta ingestão
de sal. Outra linha de evidência em apoio à hipótese da retenção de sal é representada por
estudos populacionais em que se observou o efeito da ingestão de sal sobre a pressão
arterial. Esses estudos, dos quais um dos mais conhecidos é o INTERSALT, mostraram
que, em populações onde o consumo de sal é baixo, o aumento da pressão com a idade é
modesto ou inexistente, ao passo que os níveis pressóricos aumentam acentuadamente com
a idade em populações afeitas dietas ricas em sal. Finalmente, deve-se lembrar que uma
grande parte das hipertensões essenciais responde satisfatoriamente a uma diminuição da
ingestão de sal e ao uso de diuréticos, mostrando que a capacidade renal de excretar sódio
influencia fortemente os níveis pressóricos.
3) Interação entre mecanismos nervosos e renais na regulação da pressão arterial
O papel dominante desempenhado pelos rins na regulação a longo prazo da
pressão arterial e o caráter transitório da atuação dos baroceptores não exclui a participação
do sistema nervoso na gênese e manutenção da hipertensão arterial. Conforme observado
anteriormente, sabemos identificar os mecanismos fisiopatológicos associados à
hipertensão, mas desconhecemos a etiologia da maioria dos casos. Sabemos existirem
fatores genéticos capazes de causar hipertensão, mas ignoramos quais são os produtos
gênicos envolvidos. Dada a íntima conexão entre os rins e o sistema nervoso, é possível que
um desajuste deste provoque o desenvolvimento de hipertensão através de uma ação sobre
os rins. Os vasos renais e o processo de transporte tubular de sódio respondem a uma série
de estímulos de origem nervosa, seja através da inervação direta do parênquima renal, seja
através da ação renal de compostos vasoativos circulantes originados no sistema nervoso.
Embora plausível, essa concepção carece ainda de evidências sólidas em seu favor.
VI.1. Fatores humorais: a importâncai do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA):
Os rins respondem a uma série de compostos vasoativos que fazem parte de
sistemas complexos , como o das prostaglandinas, o sistema L-arginina/óxido nítrico, o
sistema calicreina-cinina, entre outros (ver Capítulo 2). Dentre todos esses, o sistema
renina-angiotensina-aldosterona (SRAA), cuja descrição inicial remonta a mais de 60 anos,
é ainda hoje considerado por muitos como o mais importante, devido a três razões
principais: 1) trata-se de um dos mais potentes sistemas vasoativos conhecidos. 2)
oespectro de sua atuação é enorme, compreendendo desde a ação vasoconstritora da
angiotensina II até a retenção de sódio e espoliação de potássio promovidas pela
aldosterona, passando por uma série de efeitos celulares que podem influenciar
decisivamente o desenvolvimento de processos inflamatórios renais e até mesmo
extrarrenais. Por essa razão, o SRAA é considerado em detalhe neste capítulo (ver também
o Capítulo 2).
Sabe-se desde os clássicos experimentos de Goldblatt, em 1934, que a constricção
de uma artéria renal produz hipertensão arterial em animais. A contrapartida clínica desse
modelo é a hipertensão renovascular. A hipertensão arterial nestas situações é o exemplo
maior da relação entre hiperatividade do SRAA e a elevação pressórica. A constricção da
artéria renal ativa a produção e liberação de um hormônio produzido pelas células
justaglomerulares denominado renina. A renina, por sua vez, age sobre um substrato
sintetizado no fígado, o angiotensinogênio. O produto dessa interação é a angiotensina I,
um decapeptídeo que, sob ação de uma enzima hidrolítica (enzima conversora da
angiotensina I), é transformado em angiotensina II (A II), um octapeptídeo. A A II é um
potente vasoconstrictor, elevando agudamente a pressão arterial através deste e outros
efeitos. Além da ação sobre os vasos, a angiotensina II também promove a liberação de
aldosterona na córtex das supra-renais. A aldosterona é um hormônio esteróide cuja ação
nos túbulos distais finais e coletores corticais promove reabsorção de sódio e água (ver
Capítulo 5). Esse efeito retentor de sódio contribui para a elevação da pressão arterial. A
secreção aumentada de aldosterona ocorre de forma autônoma quando da existência de um
tumor da supra-renal, produtor deste hormônio. Como vimos anteriormente, esta anomalia é
denominada hiperaldosteronismo primário.
O sistema renina angiotensina é estruturado como um sistema endócrino típico.
Neste modelo, o substrato (angiotensinogênio hepático) sofre modificações por duas
enzimas (renina renal e enzima conversora de angiotensina I, presente principalmente no
endotélio pulmonar) resultando na produção da substância ativa do sistema, a A II, que age
nos vários órgãos através da circulação. Este modelo é útil e consistente com o que se
observa em diversas situações fisiológicas e patológicas. A avaliação da atividade do
SRAA baseia-se primariamente na aferição dos níveis circulantes de angiotensinogênio,
renina, ECA, Ang I e A II na circulação. Com bases nestes dados tornou-se claro que o
fator limitante para a formação de A II no plasma é a atividade da renina. Sabemos hoje que
a produção/liberação de renina na circulação é controlada por três estímulos principais: 1)
a diminuição da pressão de perfusão renal (por exemplo, em uma hemorragia). 2) a
diminuição da concentração de cloreto de sódio que alcança a mácula densa (por exemplo,
na administração de uma dieta pobre em cloreto de sódio). 3) aumento da atividade
simpática (por exemplo, em uma hipovolemia). É ainda pouco conhecida a importância
relativa desses estímulos, ou seja, a hierarquização dos mesmos nas diferentes situações
fisiológicas e patológicas. O desenvolvimento de agentes farmacológicos que interferem
com o sistema, principalmente aqueles que o inibem, foi muito importante no tratamento de
doenças cardiovasculares e como ferramentas farmacológicas para compreender melhor o
SRAA. A utilização mais freqüente dessas drogas, principalmente a dos inibidores da
ECA, a partir dos anos 70 tornou-se um marco importante na medicina, pois veio
revolucionar o tratamento de várias afecções cardiovasculares como a própria hipertensão
arterial, o diabetes melito, o infarto do miocárdio e a insuficiência cardíaca congestiva. Por
outro lado, diversas evidências experimentais e clínicas colocaram em dúvida o modelo
tradicional endócrino. Por exemplo, o sucesso dos “inibidores” do sistema não se
correlacionava em todos os pacientes com a atividade da renina, como sugeria o modelo.
Na mesma época a popularização das técnicas de biologia molecular fazia com que esta
abordagem de alto poder analítico começasse a ser amplamente utilizada. Isto propiciou a
constatação de que os componentes do SRAA estavam presentes de forma mais ampla do
que a imaginada, principalmente nas células e tecidos que compreendem o sistema
cardiovascular (vasos, coração, rins, adrenais e sistema nervoso). Esses achados forçaram a
uma revisão do paradigma anterior. Considera-se hoje a existência, além do sistema SRAA
endócrino, de sistemas SRAA locais (ou seja, é possível a vários órgãos e tecidos produzir
sua própria A II sem depender de componentes circulantes), que poderiam desempenhar
ações parácrinas (sobre células de tecidos vizinhos) e autócrinas (sobre células do mesmo
tecido). Este novo paradigma permite explicar, portanto, a ausência de correlação entre a
eficácia do tratamento com inibidores do SRAA e os níveis circulantes dos componentes do
sistema. A existência de uma produção local de A II sugere também que esse peptídeo, que
exerce diversos efeitos celulares além da constricção do músculo liso, participa de
processos não hemodinâmicos como a proliferação celular, a formação de matriz
extracelular e as inflamações crônicas. Esses achados sugerem ainda que a AII pode
participar da seqüência de eventos que conduzem à perda progressiva da função renal (ver
Capítulo 15) e ajudam a explicar a eficácia dos supressores do SRAA na prevenção desses
processos.
EXERCÍCIOS
Abra o programa HIPERTENSÃO ARTERIAL”. Há nesta tela duas áreas para a entrada de
parâmetros, denominadas 0-45 dias e 45-90 dias. Os parâmetros que constam de cada área podem
ser variados de modo inteiramente independente.
1) Aumente a ingestão de sódio no dia zero para 200 mEq/dia (a ingestão aos 45 dias acompanha essa
variação). Observe que: a) a pressão arterial e o débito cardíaco praticamente não variam. b) a
excreção urinária de sódio aumenta gradativamentede modo a igualar a quantidade ingerida. c) as
linhas azuis que representam a natriurese pressórica nos gráficos situados nos cantos inferiores
direito (0-45 dias) e esquerdo (45-90 dias) da tela tornam-se um pouco mais verticais, indicando
um aumento da capacidade renal de excretar sódio. Observe que, neste exercício, esses dois
gráficos são idênticos. Observe ainda a movimentação do ponto de equilíbrio (representado nos
dois gráficos pelo pequeno círculo vermelho).
2) Mantendo a ingestão inicial de sódio em 200 mEq/dia, reduza a 100 mEq/dia o valor
correspondente ao período 45-90 dias. Verifique o retorno dos parâmetros aos valores basais
3) Pressione novamente “PADRÃO”. Imagine agora uma situação em que o sistema nervoso
autônomo conseguisse a façanha de aumentar a resistência periférica sem alterar a resistência renal
e, portanto, a capacidade renal de excretar sódio (isso na verdade não ocorre na prática). Para isso,
aumente a resistência periférica de 20 para 25 mmHg/ml/min. Observe que a pressão arterial eleva-
se a princípio, retornando porém rapidamente ao valor basal à custa de uma queda no débito
cardíaco, motivada por uma perda urinária de sódio (forçada pela própria elevação da pressão
arterial – natriurese pressórica).
4) Reduza agora a declividade da reta de natriurese pressórica movendo a barra deslizante
correspondente (“capacidade renal de excreção de sódio”). Observe que: a) as reta azuis nos
gráficos inferiores esquerdo (0-45 dias) e direito (45-90 dias) deslocam-se para a direita e para
baixo, indicando uma redução de sua declividade e, portanto, de sua capacidade renal de excretar
sódio. b) desta vez a pressão arterial eleva-se progressivamente, estabilizando-se em um valor
permanentemente elevado em relação ao basal. c) ocorre de início uma redução na excreção
urinária de sódio, refletindo a dificuldade dos rins em excretar sódio na vigência de uma pressão
arterial normal. Com o passar do tempo, a excreção urinária de sódio retorna ao valor basal,
refletindo a elevação da pressão arterial (natriurese pressórica). O preço dessa adaptação é no
entanto a hipertensão arterial. e) o débito cardíaco aumenta gradativamente, explicando neste caso
a elevação da pressão arterial. Refaça o exercício observando atentamente a movimentação do
ponto de equilíbrio.
5) Mantendo os demais parâmetros em valores idênticos aos do exercício anterior, ative a
autorregulação tecidual (no gráfico débito cardíaco vs. tempo). Observe que agora o aumento do
débito cardíaco, verificado no exercício anterior, não se mantém: ocorre uma progressiva
normalização do débito cardíaco, enquanto a resistência periférica se eleva. Esse quadro, de
aumento da resistência periférica, e não aquele observado no exercício 4, de aumento de débito
cardíaco, é o que na realidade se encontra nos pacientes hipertensos. A explicação para esse
fenômeno é a de que o débito cardíaco é progressivamente forçado a reduzir-se (e a resistência
periférica a elevar-se) devido à autorregulação tecidual, que limita os fluxos sangüíneos locais.
6) Vamos tentar agora tratar a hipertensão desse paciente. Reduza para 20 mEq/dia, na seção 45-90
dias, a ingestão de sódio. Observe que há uma queda dos níveis pressóricos e da resistência
periférica. Portanto, quando a declividade da reta de natriurese pressórica está diminuída, a
hipertensão é extremamente sensível à ingestão de sal. Observe agora o efeito da administração de
um diurético (assinalando o círculo correspondente) sobre a declividade da reta de natriurese
pressórica no gráfico à direita (correspondente ao período 45-90 dias). Observe novamente o
deslocamento do ponto de equilíbrio. Observe o que acontece ao débito cardíaco. Por que ocorre
isso?
7) Retorne a capacidade renal de excretar sódio ao normal, mantendo ativada a autorregulação.
Aumente para 110 o intercepto da reta de natriurese pressórica em relação ao eixo das abscissas.
Observe a reta deslocar-se para a direita, sem alterar sua declividade (mantendo-se portanto
paralela à reta normal). Observe o deslocamento do ponto de equilíbrio. Verifique que a pressão
arterial, a excreção urinária de sódio e o balanço de sódio comportam-se de modo semelhante ao
observado no ítem 6. Reduza agora a ingestão de sódio da segunda fase (45-90 dias) para 20 como
no ítem 7. Observe que o efeito hipotensor dessa manobra é agora bem mais modesto. Observe
também o efeito da administração de um diurético nessa fase. Portanto, quando a reta da natriurese
pressórica é paralela à normal, a hipertensão é pouco sensível à ingestão de sal. O efeito da
administração de diuréticos é também relativamente modesto. Isso não significa que a restrição
salina e o uso de diuréticos sejam inúteis a esses pacientes, uma vez que alguma redução pressórica
sempre ocorre. No entanto, esses pacientes quase sempre necessitam de outros medicamentos anti-
hipertensivos.
8) Combine agora as duas anomalias renais, reduzindo a declividade e aumentando o intercepto para
100 (essa é provavelmente a situação mais freqüente). Verifique que a sensibilidade a sal é
intermediária. Isso quer dizer que, de modo geral, vale a pena tentar controlar a hipertensão
restringindo a ingestão de sal e administrando diuréticos, nem que seja como um tratamento
coadjuvante.
9) Finalmente, mantendo a autorregulação ativada, observe o efeito hipotético de uma ativação do
sistema nervoso central sobre a excreção renal de sódio e a pressão arterial. De acordo com o
conceito aqui representado, um excesso de atividade do sistema nervoso central pode em tese levar,
através do sistema nervoso autônomo, a uma vasoconstrição renal e a uma diminuição da
capacidade de excreção de sódio, com as conseqüências observadas no exercício no. 5.
CAPÍTULO 11: DISTÚRBIOS DA TONICIDADE DO MEIO INTERNO:
REGULAÇÃO DO BALANÇO DE ÁGUA
Antônio Carlos Seguro e Roberto Zatz
A água é um componente essencial de todos os organismos vivos, representando
cerca de 60% do peso corpóreo de um mamífero adulto e constituindo a maior parte do
sangue e do compartimento intracelular. A conservação da água é por essa razão um
imperativo na luta pela sobrevivência. Os organismos superiores desenvolveram dois
conjuntos básicos de mecanismos destinados a conservar água: 1) os mecanismos de
preservação do volume extracelular, os quais controlam basicamente o balanço de sódio e,
indiretamente, o de água (Capítulos 6 e 7). 2) os mecanismos de conservação de água como
tal, de que nos ocuparemos neste capítulo.
Em condições usuais, ocorre sempre um balanço de água, ou seja, perdas e ganhos
ao longo de um determinado período (um dia, por exemplo) igualam-se exatamente. Um
humano adulto transfere ao meio externo cerca de 2.500 ml de água por dia, sendo a maior
parte desse volume representada pela urina (1.500 ml), enquanto as perdas insensíveis
(eliminação de vapor d’água pela pele e pelas vias aéreas) chegam a 700 ml. Há também
perda de água pelas fezes (200 ml) e pela transpiração (100 ml). Uma pequena parte dessas
perdas (300 ml) é compensada pela geração endógena de água através do metabolismo. Para
repor inteiramente as perdas diárias, o indivíduo precisa ainda ingerir cerca de 2.200 ml de
água. Em um adulto normal, essa ingestão consiste em ~1.200 ml de água como tal (“pura”,
refrigerantes, sucos, etc.) e ~1.000 ml de água ingerida com os alimentos (água de
cozimento, frutas, verduras, etc.). É evidente que esses são valores médios, tanto com
relação às perdas como aos ganhos, ocorrendo enorme variação de indivíduo para indivíduo
(diferentes ritmos de transpiração, diferentes hábitos alimentares, etc.).
Para garantir a conservação de água, os organismos superiores lançam mão de dois
mecanismos básicos: 1) a sensação de sede, a qual compele o indivíduo à ingestão de
líquido hipotônico. 2) a secreção de hormônio antidiurético (HAD), o qual promove
retenção de água e a eliminação de uma urina hipertônica (ver também o Capítulo 4).
A sensação de sede, definida como uma necessidade consciente de ingerir água,
origina-se no hipotálamo, na região conhecida como centro da sede, localizado nas porções
anterior e ventromedial do hipotálamo, e que consiste em uma série de neurônios
especializados, denominados osmoceptores, sensíveis a variações da pressão osmótica do
plasma (Posm) e portanto a alterações do balanço hídrico do organismo. Para que a sensação
de sede se torne consciente, é ainda necessário que os sinais assim gerados sejam
conduzidos por neurônios especializados a centros corticais superiores, onde a informação
deve ser adequadamente interpretada.
Antes de prosseguirmos, é útil relembrar aqui as definições de osmolalidade e
osmolaridade. A pressão osmótica de qualquer solução é usualmente expressa como a razão
entre a massa total de solutos (Msolutos) e a massa total de solvente (Msolvente) ali presentes.
Denomina-se ao quociente Msolutos/Msolvente osmolalidade da solução, a qual é medida em
mOsm/kg. Embora seja esse parâmetro aquele que
melhor se correlaciona com as propriedades físicas da
solução (pontos de fusão e ebulição, pressão de vapor,
etc.), é comum expressar-se a pressão osmótica de
soluções aquosas como a razão entre Msolutos e o volume
total de solvente, V. A esse quociente, Msolutos/V,
denomina-se osmolaridade, a qual é medida em
mOsm/L. Como a densidade de soluções biológicas,
mesmo as mais concentradas, é próxima a 1, podemos
utilizar aqui o parâmetro osmolaridade como medida
da pressão osmótica.
200 250 300 350 400 450
Posm, m Osm /L
SE
DE
(u
nid
ad
es
arb
itrá
ria
s)
Fig. 11-1 - A int ensidade da sede expressa emunidades arbit rárias como uma função
aproximadam ente linear da P osm . O lim iar da
sede é represent ado pela linha cinzent at racejada cinzent a. O círciulo vermelhorepresent a a condição norm al.
Utilizando essa definição, e considerando no organismo humano um total de solutos
de ~12.000 mOsm e um volume total de água de 42 L (Capítulos 6 e 7), a osmolalidade
plasmática será de 12.000/42 ≅ 288 mOsm/L. Uma perda pequena, de 0,5 litro, por
exemplo, fará com que a Posm se eleve a 289 mOsm/L. Esse valor é ainda insuficiente para
deflagrar a sensação de sede, a qual vai aparecer somente quando a Posm ultrapassa ~291
mOsm/L. Esse valor é denominado limiar da sede (Fig. 11-1). Se no entanto ocorrer um
deficit 1 litro, correspondente a pouco mais de 2% do volume de água corpórea total, a Posm
chegará a 293 mOsm/L. Esse valor, apenas 5 mOsm/L superior ao normal, é já suficiente
para superar o limiar da sede. Aumentos ulteriores da Posm incrementam de modo
grosseiramente proporcional a intensidade da sede (por ser uma sensação, de natureza
subjetiva por definição, a sede é uma grandeza difícil de quantificar). Por forçar desse modo
o indivíduo à busca e ingestão de água, a sede permite que qualquer deficiência hídrica seja
rapidamente corrigida, desde que seja possível, evidentemente, o acesso a alguma fonte de
água, o que ocorre na maioria das situações. Por essa razão, a sede constitui-se em um
mecanismo indispensável à manutenção da homeostase, enquanto a atenuação ou perda
dessa sensação pode levar até mesmo à morte (ver adiante).
O segundo mecanismo de manutenção do equilíbrio hídrico é a secreção de
hormônio antidiurético (HAD). Conforme discutido em detalhe no Capítulo 4, o HAD faz
aumentar intensamente a permeabilidade à água da porção final do túbulo distal e,
especialmente, dos dutos coletores. Dessa maneira, ocorre nesses segmentos uma absorção
de água “livre”, ou seja desacompanhada de solutos, equilibrando gradativamente as
osmolaridades do fluido intratubular e da medula hipertônica. Em conseqüência disso, o
fluxo urinário reduz-se drasticamente, permitindo uma grande economia de água por parte
do organismo. Na ausência de HAD, ao contrário, não é possível ao fluido intratubular
equilibrar-se com a medula hipertônica, havendo pouca absorção de água nos túbulos distal
e coletor. Em conseqüência disso, o organismo elimina quantidades enormes de urina
diluída. Essa relação inversa entre o fluxo urinário e a concentração plasmática de HAD
[HAD]p está representada na Fig. 11-2. É interessante
observar que, quando os níveis circulantes de HAD são
normais ou baixos, variações mínimas da [HAD]p provocam
grandes variações inversas do fluxo urinário. Quando a
[HAD]p ultrapassa o dobro do valor normal, no entanto,
aumentos ulteriores não mais conseguem reduzir o fluxo
urinário, que permanece em um valor mínimo (em humanos,
cerca de 600 ml em condições habituais). Isso ocorre porque o
sistema de contracorrente medular possui um limite físico,
não podendo aumentar a osmolaridade medular acima de um
valor máximo, que no homem é de ~1.300 mOsm/L.
Para a economia do organismo, a capacidade de variar assim amplamente o
volume urinário é extremamente importante. Todos os organismos são obrigados a descartar
continuamente uma série de solutos, desde moléculas tóxicas como a uréia, até solutos
ingeridos em excesso e que precisam ser eliminados (p. ex, o sódio e o potássio). A
quantidade de solutos a serem excretados na urina depende do hábito alimentar de cada
indivíduo. A ingestão de cloreto de sódio, por exemplo, pode variar desde quase zero até
250 mmol/dia, na dependência de fatores geográficos e culturais. A de potássio é
tremendamente influenciada pela ingestão de frutas e verduras, enquanto a produção de
uréia é extremamente sensível à taxa de ingestão de proteínas. Por essa razão, a excreção
urinária de solutos pode variar de 400 a 1500 mOsm/dia. Um homem adulto normal,
ingerindo uma quantidade “média” de sódio (100 mmol/dia) e potássio (50 mmol/dia),
necessita excretar solutos a uma taxa de cerca de ~650 mOsm/dia. Desse total, cerca de 200
mOsm/dia correspondem à excreção do sódio ingerido (100 mmol de sódio e 100 mmol do
respectivo ânion, representado essencialmente pelo cloreto), enquanto 100 mOsm/dia
equivalem à ingestão diária de potássio (50 mmol/dia de KCl). Os 350 mOsm/dia restantes
correspondem à excreção de outros eletrólitos (cálcio, magnésio, fosfatos, ácidos orgânicos,
0
2
4
6
8
10
12
14
16
18
20
0 3 6 9 12 15 18
HAD, pg/m l
Flu
xo
uri
ná
rio
, L
/dia
Fig. 11-2 - Variação inversa do
fluxo urinário com a [HAD]p. O
círculo vermelho represent a acondição norm al.
etc.) e, principalmente, uréia. Em condições habituais de ingestão de água (2.000-2500
ml/dia), a osmolaridade urinária não chega ao dobro da plasmática, variando entre 400 e 450
mOsm/L. Para uma osmolaridade urinária de 430 mOsm/L, por exemplo, o volume urinário
será de 650/430 ≅ 1,5 L/dia. Se a ingestão de água for escassa, a absorção de água “pura”
nos segmentos finais do néfron aumenta graças à ação do HAD, podendo a osmolaridade
urinária chegar ao limite máximo de 1.300 mOsm/L. Nesse caso, o volume urinário será de
650/1.300 ≅ 0.5 L. Essa economia de 1.000 ml/dia de água “livre” pode revelar-se preciosa
em situações de extrema escassez de água1.
Tanto quanto a capacidade de concentrar a urina, que permite reter água, é
essencial ao organismo ser capaz de diluir a urina, para eliminar excessos de água “livre”.
Essa propriedade torna-se especialmente importante tendo em vista ser corriqueiro, nas
civilizações modernas, ingerir líquidos “socialmente” (festas, reuniões, “happy hour”, etc.),
por hábito (às refeições, ao deitar-se, etc.) ou simplesmente por prazer (refrigerantes, sucos,
cerveja, etc.). Normalmente, os rins são capazes de eliminar integralmente até mesmo
sobrecargas astronômicas de água “livre”, de 15 L/dia ou superiores. Para isso, necessitam
reduzir a osmolaridade urinária a 50 mOsm/L ou menos. Uma incapacidade renal de
eliminar adequadamente sobrecargas de água “livre” pode trazer como conseqüência uma
diluição do meio interno, com graves danos ao sistema nervoso central (ver adiante).
Do ponto de vista molecular, o HAD é um decapeptídeo cuja estrutura varia
ligeiramente de espécie a espécie (arginina vasopressina em humanos, lisina vasopressina
em suínos, etc.). Esse peptídeo é produzido pelos corpos celulares dos neurônios situados
nos núcleos paraventricular e supraótico do hipotálamo, bastante próximos ao centro da
sede, tanto assim que lesões do hipotálamo podem provocar deficiência da sede e diabetes
insipidus simultaneamente (ver adiante). Uma vez “empacotado” sob a forma de grânulos, o
HAD percorre o axoplasma dos neurônios que o produzem, em direção à hipófise posterior
1 Na verdade, é possível diminuir ainda mais o fluxo urinário, se levarmos em conta que a ingestão de alimentos(e portanto de solutos) pode também reduzir-se substancialmente em situações de escassez de água.
(neuro-hipófise). No interior desses grânulos, o hormônio anti-diurético liga-se a uma
proteina específica denominada neurofisina A ou neurofisina II, formando um complexo.
Alguns investigadores sugerem a existência na neurohipófise de dois reservatórios (“pools”)
de HAD, um deles “rápido” e pronto a ser liberado, outro “lento” e destinado a servir de
estoque. Os grânulos “rápidos” tendem a situar-se próximo à membrana celular, sendo
secretados por um mecanismo de exocitose, possivelmente dependente da entrada de cálcio
na célula.
O estímulo primário à produção de HAD é exatamente o mesmo que deflagra
a sensação de sede, ou seja, uma elevação da tonicidade
ou, mais especificamente, da pressão osmótica plasmática
(Posm)2. Na verdade, para valores de Posm superiores a ~280
mOsm/L, denominado limiar osmótico, a [HAD]p aumenta
de modo praticamente linear com a Posm (Fig. 11-3). Essa
relação é de tal modo previsível em cada indivíduo que em
animais de laboratório é possível prever a Posm, com erro
inferior a 1%, a partir da [HAD]p. Há no entanto duas
diferenças importantes em relação à sede: 1) enquanto esta
é totalmente suprimida quando a osmolaridade plasmática
está normal ou subnormal, o HAD tem sua taxa de secreção diminuída quando a
osmolaridade plasmática cai abaixo do normal, sendo suprimido apenas quando ela cai a
280 mOsm/L (ou seja, 8 mOsm/L abaixo do normal). É essa propriedade que permite ao
organismo eliminar grandes volumes de urina diluída quando necessário (ver adiante). 2)
enquanto existe um “limiar” para o surgimento da sensação de sede, pouco superior a 290
mOsm/L, a secreção de HAD varia continuamente com a Posm sempre que esta for superior a
2Para que um determinado soluto exerça um efeito osmótico é necessário que a membrana celularnão lhe seja permeável. Solutos que penetram facilmente a membrana celular, como por exemplo auréia, são incapazes de estimular de modo contínuo quer a sensação de sede, quer a liberação deHAD.
0
2
4
6
8
10
12
14
16
18
200 250 300 350 400 450
Posm, m Osm /L
[HA
D] p
, p
g/m
l
Fig. 11-3 - Variação linear da [HAD]p com
a P osm. O círculo vermelho represent a a
condição normal
280 mOsm/L. Dessa maneira, mesmo uma alteração minúscula da Posm, de 1 mOsm ou
menos, é capaz de fazer variar perceptívelmente a secreção de HAD.
Além da variação da tonicidade, alterações hemodinâmicas podem funcionar como
um poderoso estímulo à secreção de HAD. Se intensas o suficiente, contrações do volume
intravascular e/ou quedas da pressão arterial podem elevar os níveis plasmáticos de HAD a
valores dez ou mais vezes superiores aos normais. Nessas circunstâncias, o organismo tende
a perder a capacidade de regular a tonicidade do plasma (ou seja, vai ocorrer uma diluição
do meio interno). Por inadequada que possa parecer, tal resposta é lógica quando se
consideram as circunstâncias em que ocorre. Em um indivíduo com depleção aguda do
volume intravascular, por hemorragia ou desidratação intensa, há necessidade urgente não
apenas de se conservar volume como também de se promover vasoconstrição generalizada,
na tentativa de se manter a pressão arterial e a perfusão do sistema nervoso central e do
miocárdio. Sob o ponto de vista da conservação de água, é inútil, como vimos, elevar a
concentração plasmática de HAD acima de 5 pg/ml, uma vez que a osmolaridade urinária já
é máxima a essa concentração. No entanto, concentrações mais altas de HAD estimulam
fortemente os receptores vasculares (V1), levando a uma vasoconstrição intensa que
contribui para a manutenção dos níveis pressóricos até que a condição de emergência tenha
sido superada. O inconveniente desse mecanismo de adaptação é, como vimos, a diluição
indesejada do meio interno.
As vias aferentes que conduzem ao hipotálamo a informação de que está ocorrendo
hipovolemia ou hipotensão não foram ainda plenamente caracterizadas. Sabe-se no entanto
que essa via neural inicia-se nos baroceptores situados no arco aórtico e seios carotídeos
(sensores de pressão arterial) e receptores atriais de estiramento (sensores de volume). Os
neurônios que se originam nesses receptores estendem-se, ao longo dos nervos
glossofaríngeo e vago, até o núcleo do trato solitário, situado no bulbo, de ondem partem
fibras pós-sinápticas que se projetam nos núcleos supra-óptico e paraventricular do
hipotálamo.
Em resumo, os organismos superiores, o humano em especial, conseguem manter o
balanço de água através de osmoceptores capazes de detectar pequenas variações da Posm.
Parte desses sensores faz variar a secreção de HAD e, em conseqüência, o volume urinário,
permitindo conservar ou eliminar água quando necessário. Outros osmoceptores deflagram a
sensação de sede em situações de escassez de água, levando à rápida recomposição do
estoque de água do organismo. Alterações de qualquer um desses mecanismos podem levar
a sérios distúrbios hidro-eletrolíticos, como veremos a seguir.
DIABETE INSÍPIDO (DI)
A palavra “diabetes” tem o significado de “sifão” em grego, tendo sido por isso
aplicado a estados crônicos de intensa poliúria e polidipsia (sede excessiva). A forma mais
conhecida é a diabetes mellitus, a qual decorre de uma insuficiência, absoluta ou relativa, de
insulina. O termo “mellitus” refere-se à presença de glicose na urina, o que lhe confere um
sabor adocicado (à época em que esse termo foi cunhado o exame do sabor da urina era um
dos poucos recursos diagnósticos disponíveis). Verificou-se mais tarde a existência de outra
modalidade de diabetes, também caracterizada por poliúria e polidipsia intensas, sem que a
urina apresentasse sabor adocicado. Por essa razão, denominou-se a esse distúrbio diabetes
insípido (sem sabor). Verificou-se mais tarde que na diabetes insípido o efeito do HAD
sobre os túbulos distal e coletor era deficiente ou ausente. Verificou-se ainda que essa
anomalia podia resultar de dois mecanismos básicos: 1) secreção insuficiente de HAD pela
neuro-hipófise (diabetes insípido hipofisário). 2) resposta deficiente dos túbulos renais à
ação do HAD (diabetes insípido nefrogênico).
Diabetes insípido hipofisário
O diabetes insípido hipofisário, também denominado central, ocorre quando a
secreção de HAD pela neurohipófise é parcial ou totalmente interrompida, trazendo os
níveis plasmáticos do hormônio a valores muito baixos ou mesmo a zero. O DI hipofisário é
usualmente causado por lesões mecânicas ao trato hipotálamo-hipofisário, as quais podem
resultar de 1) trauma craniano. 2) cirurgia da hipófise (para remoção de tumores). 3)
Compressão da neuro-hipófise e/ou do hipotálamo por tumores, locais ou metastáticos. Nos
dois primeiros casos, a lesão do hipotálamo decorre da formação de edema do sistema
nervoso central, sendo portanto quase sempre reversível (a menos, é claro, que tenha havido
remoção cirúrgica da própria neuro-hipófise). Já no caso da compressão por tumores, ocorre
destruição de neurônios hipotalâmicos; a DI nesses casos é portanto irreversível. A DI pode
ainda ser causada por edema cerebral conseqüente a uma hiponatremia (ver adiante). Outras
causas de DI hipofisário, incluindo as hereditárias, são mais raras.
No DI hipofisário, a capacidade do sistema
hipotálamo-neuro-hipófise de responder
adequadamente a uma elevação da Posm cai
drasticamente. Conseqüentemente, os níveis
plasmáticos de HAD permanecem baixos mesmo frente
a uma elevação considerável da Posm (Fig. 11-4).
Submetidos a níveis assim reduzidos de HAD os
túbulos distal e coletor absorvem apenas quantidades
mínimas de água “livre”, havendo eliminação
obrigatória de um volume enorme de urina diluída. Se
houver uma produção residual de HAD, o fluxo
urinário pode não ultrapassar 5 L/dia, com uma
osmolaridade urinária de ~130-150 mOSm/L. Se essa produção for mínima, no entanto, o
fluxo urinário pode exceder 10 L/dia (osmolaridade urinária <100 mOsm/L), chegando ao
0
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200 250 300 350 400 450Posm, m Osm /L
[HA
Dp,,
pg
/ml
Fig. 11-4 - A relação linear ent re [HAD]p e
P osm é perdida na DI hipofisária. A [HAD]p
perm anece baixa mesmo diant e de de um a P osm
bast an t e elevada (círculo verm elho). A relação
normal ent re [HAD]p e P osm est á represent ada
pela linha cinzent a t racejada.
limite fisiológico de 17-18 L/dia quando a concentração plasmática de HAD cai a zero (Fig.
11-2).
Sendo os rins incapazes de concentrar a urina e, portanto, de conservar água
adequadamente, a única defesa que resta ao organismo contra uma maciça espoliação de
água na DI é o mecanismo de sede. Se esse mecanismo estiver intacto, o indivíduo vai
ingerir a quantidade de água necessária para trazer a Posm de volta ao normal ou a valores
ligeiramente superiores ao normal. Essa quantidade vai depender do grau de lesão imposta
ao sistema hipotálamo-neuro-hipófise e, portanto, da magnitude da secreção residual de
HAD. Se no entanto houver algum tipo de lesão ao centro da sede (é comum ocorrer um
comprometimento simultâneo da sede e da secreção de ADH, devido à proximidade física
entre os respectivos neurônios), pode ocorrer desidratação grave, com hiperosmolaridade
plasmática e distúrbios neurológicos (ver adiante).
Enquanto as DIs hipofisárias transitórias (por trauma ou cirurgia) não
necessitam de qualquer tratamento específico e desaparecem espontaneamente, as
resultantes de lesão hipotalâmica irreversível, obrigam à implementação de terapêuticas
apropriadas. Embora seja possível o tratamento desses pacientes com drogas de ação
paliativa, com as sulfoniluréias e os tiazídicos (ver DI nefrogênica), o tratamento mais
eficaz é a administração exógena de análogos do HAD, que podem ser facilmente
administrados por via intranasal. Os inconvenientes desse tratamento são 1) o preço,
proibitivo para um grande número de pacientes, e 2) o risco de se desenvolver uma
intoxicação hídrica (excesso de água com diluição do meio interno). Essa complicação pode
desenvolver-se em casos de administração de quantidades excessivas de HAD ou em
pacientes tratados com HAD e que ingerem excesso de líqüidos (sendo quase todo o HAD
circulante administrado exogenamente, e não originário da neuro-hipófise, não há como
baixar a [HAD]p em resposta a uma queda da Posm).
Diabetes insípido nefrogênico
No DI nefrogênico, a capacidade do sistema hipófise-hipotálamo de produzir
e secretar HAD está intacta, mas a resposta tubular renal ao HAD é deficiente, o que faz
com que a permeabilidade à água desses segmentos seja baixa, levando a uma poliúria
intensa. A DI nefrogênica pode ter origem genética: nesses casos, a anomalia básica
consiste em um defeito no receptor V2 ou em qualquer dos elementos envolvidos na geração
de AMP cíclico e portanto na transmissão da mensagem ao interior da célula tubular (ver
Capítulo 4). As DI nefrogênicas adquiridas podem constituir um efeito colateral de certas
drogas, como a demeclociclina (um tipo de tetraciclina) e o lítio, utilizado no tratamento de
pacientes psiquiátricos. Dois distúrbios hidroeletrolíticos, a hipocalemia e a hipercalcemia,
A B
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e U
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[HAD]p
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Fig. 11-5 – A relação inversa entre fluxo urinário e [HAD]p atenua-se ou mesmo deixa de
existir na diabetes insípida moderada (A) ou intensa (B). Se o mecanismo da sede estiver intacto, a ingestão de água compensará a deficiência da resposta renal, mantendo a [HAD]
p
em níveis apenas moderadeamente elevados (círculos vermelhos). As curvas cinzentas representam a realção normal entre o fluxo urinário ea [HAD]
p.
podem também causar DI nefrogênica. Ao contrário das Dis nefrogênicas hereditárias, as
adquiridas tendem a ser reversíveis, desaparecendo após a suspensão do tratamento ou a
correção do distúrbio.
No DI nefrogênico, a curva que relaciona o fluxo urinário ao HAD está deslocada
para a direita e para cima (Fig. 11-5), o que significa que, para se obter um fluxo urinário
“normal” de 1,5 L/dia, é necessário elevar substancialmente a [HAD]p. Isso é perfeitamente
possível porque, neste caso, a neuro-hipófise é capaz de responder a elevações da Posm. Essa
hiperosmolaridade plasmática tenderia no entanto a estimular a sensação de sede, o que
forçaria a um aumento da ingestão de água e a um retorno da Posm a um valor apenas
ligeiramente superior ao normal. Por essa razão, a [HAD]p não se eleva muito nesses
pacientes. Se a resposta renal ao HAD não estiver muito deprimida, o fluxo urinário
correspondente a esse valor da [HAD]p não será muito elevado (curva A na Fig. 11-5); a
poliúria resultante pode não ser exagerada. Se no entanto a DI for muito intensa, a resposta
renal ao HAD será mínima (curva B na Fig. 11-5), desenvolvendo-se necessariamente uma
poliúria maciça. Seja qual for a gravidade da DI nefrogênica, a sobrevivência do indivíduo
depende criticamente da integridade do mecanismo da sede. Havendo livre acesso à água, a
Posm (e a concentração plasmática de HAD) sempre retornam a valores próximos ao normal,
mas ainda discretamente elevados, já que, conforme discutido acima, existe um limiar para a
sede. Os achados clínicos típicos em um paciente com DI nefrogênica são, portanto: 1)
[HAD]p moderadamente elevada, 2) poliúria e polidipsia, cuja intensidade vai depender do
grau de resposta renal residual ao HAD.
Ao contrário do que ocorre no caso da DI central, de nada adianta a
administração exógena de HAD ou de seus análogos, uma vez que o que está comprometido
é justamente a resposta renal ao hormônio, cujas concentrações plasmáticas, como vimos,
estão elevadas. Nesses casos, o paciente deverá ser mantido hidratrado, por via oral ou não,
até que a condição que originou a DI seja superada. No caso das DIs hereditárias, que são
irreversíveis, as únicas opções terapêuticas são representadas por tratamentos paliativos. As
sulfoniluréias, usualmente utilizadas como hipoglicemiantes no tratamento da diabetes
mellitus do Tipo II, estimulam a produção residual de HAD pelo hipotálamo e ao mesmo
tempo potencializam seu efeito tubular. Paradoxalmente, o uso de diuréticos, especialmente
os tiazídicos, pode também ajudar a reduzir o volume urinário em pacientes com DI
nefrogênica. O mecanismo pelo qual ocorre esse efeito não foi ainda de todo esclarecido. É
possível que a depleção de sódio provocada pelos tiazídicos acarrete uma contração do
volume extracelular, com conseqüente diminuição da volemia, do fluxo plasmático renal e
da taxa de filtração glomerular. Como a taxa de reabsorção de fluido pelo túbulo proximal
está normal ou até aumentada, diminuiria a quantidade de fluido oferecido à porção espessa
da alça de Henle (segmento diluidor) e aos demais segmentos, reduzindo a poliúria em cerca
de 50%.
Distúrbios do mecanismo de concentração urinária
Alguns investigadores incluem também, entre as causas de DI nefrogênica, aquelas
situações caracterizadas por defeitos no mecanismo de concentração urinária. Entre essas
anomalias incluem-se as formas não oligúricas da insuficiência renal aguda (Capítulo 14), a
insuficiência renal crônica (Capítulo 15), as nefrites intersticiais, as obstruções das vias
urinárias, a anemia falciforme, várias doenças hereditárias e até mesmo o uso de
determinados diuréticos (Capítulo 6). De fato, esses pacientes podem comportar-se em
certas circunstâncias como se apresentassem DI nefrogênico, desenvolvendo balanço
negativo de água e elevação da Posm. É mais comum, no entanto, reservar a designação “DI
nefrogênico” para aqeles casos em que tais desequilíbrios decorrem de um defeito específico
na resposta tubular ao HAD.
Produção excessiva de HAD
Secreção inapropriada de HAD
Em certos pacientes, a secreção de HAD pela neuro-hipófise pode deixar de
obedecer integralmente ao controle exercido pelo hipotálamo, mantendo níveis plasmáticos
de HAD anormalmente elevados, mesmo diante de valores baixos de Posm. Esses pacientes
não conseguem diluir apropriadamente a urina e retêm água, podendo desenvolver
hiponatremia e os distúrbios neurológicos associados a uma diminuição da Posm. Essa
anomalia pode decorrer de dois tipos básicos de distúrbio: 1) uma disfunção do próprio
hipotálamo. 2) produção descontrolada de HAD por células não situadas no hipotálamo, ou
seja, produção ectópica de HAD.
Uma série de afecções do sistema nervoso central pode conduzir a uma produção
excessiva de HAD pelo hipotálamo e a uma retenção de água. Entre as anomalias mais
comuns incluem-se traumas cranianos, tumores malignos, primários ou metastáticos,
acidentes vasculares cerebrais e infecções, tais como as meningites e as encefalites. A
náusea é um estímulo extremamente potente à secreção de HAD, mesmo que não venha a
resultar em vômitos incoercíveis e conseqüente hipovolemia. Também a hipóxia e a
hipoglicemia podem levar à liberação excessiva de HAD pela neuro-hipófise.
Dentre as causas de produção ectópica, autônoma, de HAD, a mais comum é sem
dúvida o carcinoma pulmonar de células pequenas, embora alguns carcinomas brônquicos
também possam comportar-se de modo semelhante. Alguns cânceres do aparelho digestivo,
bem como certos linfomas, podem também, eventualmente, funcionar como sítios de
produção ectópica de HAD. Às vezes, a primeira manifestação clínica de um processo
neoplásico maligno é o achado de uma hiponatremia ou o aparecimento de algum sintoma a
ela relacionado.
Qualquer que seja sua causa, a síndrome da secreção inapropriada de HAD
caracteriza-se por uma Posm baixa, em presença de uma elevação da concentração plasmática
de HAD e da osmolaridade urinária. Quando a [HAD]p é expressa como função da Posm, os
pontos caem sistematicamente à esquerda da curva
que representa a relação normal entre [HAD] e Posm,
havendo além disso uma correlação irregular entre
os dois parâmetros (Fig. 11-6). Isso significa que a
[HAD]p nesses pacientes não responde corretamente
às variações da Posm, mantendo-se inadequadamente
elevada e forçando a uma absorção contínua de água
nos túbulos distal e coletor, impedindo assim a
diluição da urina e a excreção de um excesso de
água quando necessário.
O tratamento ideal para a SIHAD é,
evidentemente, a eliminação da causa primária do
distúrbio. No entanto, isso nem sempre é possível de
imediato, sendo freqüentemente necessário adotar providências urgentes para reverter
rapidamente a hiponatremia e evitar graves sequelas neurológicas. Essas medidas
terapêuticas devem ser implementadas com grande cautela, para não agravar ainda mais o
processo. Por exemplo, a administração de 1000 ml de uma solução isotônica de cloreto de
sódio (“soro fisiológico”) a um paciente com SIHAD pode exacerbar a hiponatremia, ao
invés de atenuá-la: sendo de 140 mmol a concentração de sódio nessa solução, o total de
osmoles administrado ao paciente (Na+ + Cl-) é de 140�2= 280 mmol. Como a urina está
concentrada ao máximo, ou seja, a 1.300 mOsm/L, esses 280 mmol de NaCl serão
excretados em apenas 280mOsm/1.300 mOsm/L ≅ 220 ml. Isso significa que, dos 1000 ml
de água que foram administrados, o organismo reteve 780 ml, os quais irão evidentemente
contribuir para o aprofundamento da hiponatremia. Por essa razão, a administração de sódio
a esses pacientes deve ser feita utilizando soluções concentradas (hipertônicas) de NaCl,
para reduzir a um mínimo o ingresso de fluido no organismo.
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Fig. 11-6 - Secreção inapropriada de HAD.
[HAD]p. Embora e P osm est eja abaixo do
normal., a [HAD]p est á anormalmente elevada.
O círculo vermelho, simbolizando a condição dopacient e, est á sempre à esquerda da linhacinzent a, que represent a a relação normal ent re
[HAD]p e P osm.
Outras causas de produção excessiva de HAD
Hipovolemia
Conforme discutido acima, a hipovolemia pode desviar para a direita a curva HAD
vs. Posm, deflagrando assim uma produção exagerada de HAD mesmo na ausência de
estímulo osmótico. Se o estado de hipovolemia, conseqüente, por exemplo, a uma diarréia
crônica, não for adequadamente diagnosticado (o que ocorre freqüentemente em casos de
distúrbio mental ou de pacientes idosos internados em certas “clínicas de repouso”),
desenvolve-se um quadro de diluição do meio interno, com hiponatremia e o aparecimento
de uma série de distúrbios neurológicos (ver acima). Se o quadro se arrastar por vários dias
e o paciente receber quantidades consideráveis de água “pura”, por via oral ou sob a forma
de soro glicosado (utilizado com freqüência para “manter a veia”), a hiponatremia e o
quadro neurológico tendem a agravar-se, levando ao aparecimento de distúrbios
neurológicos e/ou ao agravamento dos sinais neuropsiquiátricos pré-existentes. A demora
em se instituir o tratamento correto pode tornar irreversíveis essas alterações, além de
acarretar outras complicações sérias características dos estados hipovolêmicos, como a
necrose tubular aguda (ver Capítulo 14). Todo esse processo pode muitas vezes ser evitado
simplesmente repondo as perdas e restaurando o espaço extracelular. É importante ressaltar
que os altos níveis circulantes de HAD, que na SIHAD decorrem de uma secreção
patologicamente elevada do hormônio, representam na hipovolemia uma resposta
fisiológica, destinada a conservar água e combater a hipotensão. Por essa razão, ao contrário
do que ocorre na SIHAD, a correção da hiponatremia associada à hipovolemia implica na
reconstituição do volume extracelular, utilizando soluções isotônicas de NaCl.
Evidentemente, essa conduta deve ser instituída o mais rápido possivel, já que na ausência
de complicações sérias o processo é inteiramente reversível.
Cirurgias
Pacientes submetidos a cirurgias extensas tendem a produzir quantidades
exageradas de HAD, sendo comum apresentarem hiponatremia dentro da primeira semana
pós-operatória. O efeito sobre o hipotálamo da anestesia a que esses pacientes são
submetidos é sem dúvida um dos estímulos a essa produção excessiva de HAD, embora
também contribuam para isso a hipóxia, a náusea e a hipoglicemia freqüentemente
observadas nesses pacientes.
Insuficiência adrenal
Em pacientes com insuficiência adrenal, seja por deficiência da própria
glândula, seja por baixa produção de ACTH pela hipófise (doença de Addison), pode haver
uma elevação substancial da [HAD]p, levando a um quadro de hiponatremia. O aumento na
taxa de secreção do hormônio pode resultar da hipovolemia que caracteriza esses pacientes,
por sua vez conseqüente à produção insuficiente de aldosterona. No entanto, níveis elevados
de HAD podem ser observados mesmo em casos de deficiência seletiva de glicocorticóides,
em que não se observam sinais de hipovolemia. A retenção de água que acompanha esses
casos responde prontamente à administração de corticosteróide exógeno. O mecanismo pelo
qual a deficiência de corticosteróides estimula diretamente a secreção de HAD pelo
hipotálamo é desconhecido.
Hipotiroidismo
Por razões ainda não de todo esclarecidas, os níveis circulantes de HAD
estão elevados em pacientes com hipotiroidismo. Ë possível que parte desse efeito tenha
origem hemodinâmica, uma vez que o fluxo sangüíneo renal e o próprio débito cardíaco
estão reduzidos nesses pacientes. É possível, no entanto, que uma alteração hipotalâmica
diretamente relacionada à própria deficiência hormonal contribua para elevar a [HAD]p.
Uso de diuréticos
A administração crônica de diuréticos, especialmente se não for
adequadamente acompanhada pelo médico ou se resultar de automedicação, pode levar a
uma depleção do volume extracelular, com conseqüentes hipovolemia, elevação da [HAD]p
e hiponatremia, através dos mecanismos descritos acima. O quadro pode tornar-se ainda
mais sério se o diurético utilizado for o furosemide ou outro diurético de alça (ver capítulo
6), uma vez que esses diuréticos agem sobre a porção espessa da alça de Henle, que é o
principal segmento diluidor do néfron, comprometendo assim ainda mais a capacidade renal
de diluir a urina.
Outras drogas
Os antiinflamatórios não esteroidais são drogas largamente utilizadas no tratamento
de artrites e outros processos inflamatórios. Seu mecanismo básico de ação é a inibição da
síntese de prostaglandinas, compostos envolvidos na patogênese da dor e da inflamação.
Ocorre que as prostaglandinas também modulam o efeito tubular do HAD, atenuando sua
ação antidiurética. Por inibir a síntese de prostaglandinas, os antiinflamatórios não
esteroidais aumentam a sensibilidade dos túbulos distal e coletor ao HAD, podendo assim
dificultar a diluição da urina, particularmente quando associados a outros fatores adversos
como a hipovolemia.
A oxitocina é um hormônio peptídico produzido por neurônios dos núcleos
supraópticos e paraventriculares do hipotálamo, e transportado através de seus axônios para
a neuro-hipófise, de onde é liberado para a circulação. Apesar das nítidas semelhanças com
o HAD, são totalmente diversas a ação fisiológica da oxitocina e as circunstâncias em que é
secretada. O principal estímulo fisiológico para a liberação de oxitocina é a sucção exercida
pelo lactente durante a amamentação, enquanto seus principais efeitos fisiológicos são 1) a
contração das células mioepiteliais das glândulas mamárias e conseqüente ejeção de leite e
2) a contração do miométrio durante e logo após o parto. Existe no entanto alguma
semelhança fisiológica entre a oxitocina e o HAD, uma vez que a oxitocina exerce um fraco
efeito antidiurético nos túbulos distal e coletor. Embora de reduzida importância fisiológica,
esse efeito pode tornar-se importante quando a oxitocina é utilizada em doses
farmacológicas para indução do parto. Nesses casos, a ação tubular da oxitocina pode levar
a uma retenção de água e a sérias complicações neurológicas, particularmente se houver
administração concomitante de grande quantidade de água “pura” (por exemplo, sob a
forma de soro glicosado).
Alguns hipoglicemiantes orais como a clorpropamida podem provocar o
aparecimento de hiponatremia devido à conhecida ação dessas drogas sobre o HAD,
aumentando sua secreção pelo hipotálamo e sensibilizando os túbulos distal e coletor a sua
ação antidiurética. Esses efeitos constituem a base racional para o uso desses compostos no
tratamento do diabetes insípido (ver acima).
DISTÚRBIOS DA SEDE
Hipodipsia e adipsia
Em uma série de distúrbios do sistema nervoso central, a sensação de sede
pode estar comprometida parcial (hipodipsia) ou totalmente (adipsia). As causas de
hipodipsia coincidem em grande parte com as causas de diabetes insípido hipofisário,
enumeradas acima: são os traumas, infecções, tumores e acidentes vasculares que atingem o
sistema nervoso central e que podem lesar o hipotálamo, onde a sensação de sede é
originada. Outros pacientes têm dificuldade em reconhecer a sensação de sede, talvez por
lesão à própria córtex cerebral. Grande parte desse contingente é constituído de idosos,
especialmente aqueles com afecções neurológicas (sequelas de acidentes vasculares
cerebrais, mal de Alzheimer, etc.).
A hipodipsia pode apresentar-se como um desvio para a direita do limiar da sede ou,
seja, a sensação de sede permanece ausente mesmo que a Posm se eleve bem acima do limiar
normal (pouco superior a 290 mOsm/L), chegando a, por exemplo, 300 mOsm/L (Fig. 11-
7). Outro padrão possível de hipodipsia é o de uma redução da “sensibilidade” da sensação
de sede, ou seja, para uma mesma variação da Posm, esses pacientes experimentam uma
sensação de sede muito menos intensa do que um indivíduo normal (Fig. 11-7).
Por impedir a adequada reposição de água “pura” quando necessário, a hipodipsia
acaba provocando uma elevação da Posm e,
conseqüentemente, da [HAD]p e do fluxo urinário. Se
a hipodipsia não for muito intensa e as perdas
insensíveis (por perspiração e através das vias
respiratórias) estiverem dentro dos limites normais, a
simples redução do fluxo urinário pode impedir o
estabelecimento de um balanço negativo de água, caso
em que o quadro pode perdurar indefinidamente. Se
no entanto a sensação de sede estiver muito deprimida
e/ou se houver uma exacerbação das perdas
insensíveis (febre, infecções respiratórias, etc.), o
paciente vai desenvolver um deficit de água “livre” e,
se o processo persistir por vários dias, um quadro
bastante sério de desidratação com hipotensão,
choque circulatório e as complicações neurológicas da hipernatremia. Embora esse quadro
se assemelhe àquele decorrente de um diabetes insípido, podemos distinguir com facilidade
as duas condições simplesmente examinando a urina quanto ao fluxo (extremamente
aumentado na DI e drasticamente reduzido na hipodpsia) e da osmolaridade (inferior a 100
mOsm na DI e próxima ao máximo de 1.300 mOsm na hipodipsia). Evidentemente, é
necessário repor as perdas com fluido hipotônico, além de tratar as condições que levaram
ao aumento das perdas insensíveis. Mesmo após superado o episódio agudo, esses pacientes
200 250 300 350 400 450
Posm, m Osm /L
SE
DE
(u
nid
ad
es
arb
itrá
ria
s)
Fig. 11-7 - Na hipodispsia, o lim iar para oaparecimento da sede está deslocado para a direit a(linha t racejada cinzenta). A sede está ausent eapesar de um a elevação subst ancial da
P osm.(observe a posição do círculo vermelho) e só
vai aparecer depois de ult rapassado o novo limiar.Além disso , a sensibilidade da sede a variações da
P osm. pode est ar diminuída (com pare a inclinação
da linha vermelha, que represent a a hipodipsia,linha sólida cinzenta, represent ando asensibilidade norm al).
necessitam de cuidados ininterruptos para garantir a ingestão adequada de líquidos e evitar
nova desidratação.
Polidipsia primária
A polidipsia primária, definida como uma ingestão compulsiva de quantidades
enormes de água em face de uma Posm normal ou mesmo diminuída, resulta de uma
estimulação exagerada das estruturas do sistema nervoso central responsáveis pela sensação
de sede, podendo incluir o hipotálamo, onde ela se origina, e a própria região cortical que a
torna consciente. Tal estimulação pode originar-se de uma agressão (trauma craniano,
tumores, infecções) ou de distúrbios psiquiátricos, tais como quadros psicóticos e
esquizofrenia.O paciente com polidipsia primária comporta-se como se o limiar da sede estivesse
baixo, ou seja, como se a curva que representa a
intensidade da sede como função da Posm estivesse
desviada para a esquerda (Fig. 11-8). Desse modo, o
indivíduo experimentará uma sensação de sede
intensa mesmo que a Posm esteja abaixo do normal.
Esses pacientes ingerem água compulsivamente,
chegando a consumir 1 copo a cada 10 ou 15 minutos,
totalizando por vezes 15 a 20 litros/dia. Com isso, o
balanço de água torna-se ligeiramente positivo,
fazendo baixar a Posm. Mesmo que esta última caia
apenas uns poucos mOsm/L, permanecendo dentro de limites considerados “normais”, a
[HAD]p. reduz-se substancialmente, devido à extrema inclinação da curva [HAD]p vs. Posm
(Fig. 11-2), fazendo aumentar inversamente o volume urinário e restabelecendo o balanço
200 250 300 350 400 450
Posm, m Osm /L
SE
DE
(u
nid
ad
es
arb
itrá
ria
s)
Fig. 11-8 - Na `polidipsia prim ária, o limiar parao aparecimento da sede está deslocado para aesquerda (linha t racejada cinzent a), assim com o acurva que descreve a sede (linha vermelha). Alinha negra sólida descreve a sede normal. O
indivíduo tem sede mesmo que a P osm est eja baixa
(círculo vermelho).
de água. Em princípio, essa situação pode manter-se indefinidamente. No entanto, se a
ingestão de água exceder ~16-18 L/dia, a capacidade máxima renal de excretar água “livre”
será ultrapassada. Nesse caso, não mais será possível manter o balanço de água, ocorrendo
um crescente acúmulo de água no organismo, com queda progressiva da Posm, culminando
com um quadro de intoxicação hídrica, com graves alterações neurológicas. Tal quadro é
observado apenas infreqüentemente, tendo em vista a dificuldade em se manter ritmo tão
extremo de ingestão hídrica. No entanto, é possível chegar-se mais rapidamente a um
quadro de intoxicação hídrica se o paciente estiver exposto a qualquer fator que dificulte a
diluição urinária, como por exemplo o uso de antiinflamatórios não esteroidais ou de
diuréticos.
O quadro clínico apresentado por pacientes com polidipsia primária, com polúria e
polidipsia maciças e baixos níveis circulantes de HAD, é muito semelhante ao observado
em pacientes com diabetes insípido central. Na verdade, pode ser difícil distinguir entre
esses dois quadros, mesmo dispondo de recursos diagnósticos sofisticados. Algumas
diferenças sutis podem facilitar essa tarefa. Em primeiro lugar a Posm, que como vimos tende
a manter-se ligeiramente acima do normal em pacientes com DI central, está ligeiramente
abaixo do normal em pacientes com polidipsia primária. Pode-se utilizar também uma
manobra diagnóstica conhecida como prova de concentração, que consiste em restringir
durante algumas horas a ingestão de água, observando cuidadosamente o volume e a
osmolaridade urinárias, assim como a Posm. Em pacientes com DI, a restrição hídrica não
afeta a [HAD]p, exercendo assim pouco efeito sobre o volume ou a osmolaridade urinárias,
enquanto a Posm pode elevar-se, distanciando-se ainda mais dos valores normais (é
necessário muito cuidado para não provocar desidratação grave durante esse procedimento).
Já em casos de polidipsia primária, a osmolaridade urinária tende a elevar-se à medida que
sobe a [HAD]p, enquanto a Posm tende a retornar ao normal.
EXERCÍCIOS
Acione “Distúrbios do metabolismo de água”. Observe a condição basal. Nela, tudo
está em balanço, com as perdas e ganhos de água equivalendo-se perfeitamente (ver gráfico
“Balanço hídrico”) (você verá que esse balanço será mantido na maior parte das situações a
serem estudadas). Observe que a osmolalidade urinária (Uosm, curva azul no gráfico da parte
inferior da tela) é mais alta do qua a do plasma.
Neste programa é necessário deslizar o cursor das barras de rolagem para fazer variar
cada um dos quatro parâmetros básicos (ingestão diária de água, ingestão diária de água com
alimentos, taxa de sudorese e taxa de administração de água parenteral.
1. Reduza agora a ingestão de água. Observe que a osmolalidade urinária sobe, enquanto o
volume urinário se reduz (gráfico na parte inferior da tela). Observe as curvas que
relacionam a osmolalidade urinária e o volume urinário à concentração de HAD, as quais
apresentam comportamento inverso: quando se aumenta a concentração de HAD, o volume
urinário cai, enquanto a osmolalidade urinária sobe. Note no entanto que o volume urinário
nunca se reduzirá a menos do que ~0.6 L/dia, mesmo que a concentração plasmática de
HAD se eleve a 5 ou 6 vezes o normal. A razão para isso é que a osmolalidade urinária
máxima que o rim humano consegue gerar é de cerca de 1300 mOsm (observe a curva
osmolalidade urinária vs. HAD). Como somos obrigados a excretar cerca de 750 mOsm por
dia (150×2 mEq/dia NaCl + 50×2 mEq/dia de potássio + ~350 mEq/dia de uréia), o volume
mínimo possível de urina é de 750/1300 = 0.57 L. Note ainda que redução da ingestão de
água levou a um aumento na concentração plasmática de HAD (na verdade essa elevação foi
o que motivou a redução do volume e a elevação da osmolalidade da urina).
2. Observe agora o gráfico situado na porção inferior esquerda da tela, que relaciona a
concentração plasmática de HAD à osmolalidade plasmática (Posm). É fácil constatar que esta
última é extremamente sensível mesmo a variações mínimas da osmolalidade plasmática, o
que indica que o organismo defende tenazmente a tonicidade do meio interno. Observe que a
falta de ingestão de água como tal durante apenas 1 dia elevou a Posm em apenas 2 mOsm/L.
No entanto, a [HAD] plasmática elevou-se ao dobro do normal.
3. Reduza agora também a ingestão de água com os alimentos, trazendo-a aos poucos até zero.
Observe que a osmolalidade plasmática se eleva em mais alguns mOsm/L, desenvolvendo-se
portanto uma hipernatremia. A osmolalidade urinária atinge seu valor máximo, o fluxo
urinário cai a um valor mínimo e a concentração plasmática de HAD mais do que
quadruplica em relação ao normal. Desenvolve-se um pequeno balanço hídrico negativo.
Aparece agora um novo e importante elemento; a sede. Observe o gráfico situado no alto à
esquerda. Nele, a sede é expressa em unidades arbitrárias como uma função
aproximadamante linear da Posm (na verdade, é muito difícil quantificar a sensação de sede,
embora todos saibamos por experiência própria que essa sensação varia diretamente com a
carência de água). Note que existe um limiar para o aparecimento da sede, que no ser
humano é ligeiramente superior a 290 mOsm. Note também que, ao se atingir esse limiar, a
[HAD] plasmática já está elevada, e o fluxo urinário, reduzido.
4. Aumente agora gradativamente a perda hídrica por sudorese, até atingir o valor máximo de 5
L/dia (esta poderia ser a condição de alguém perdido no deserto, por exemplo). Observe que
a sensação de sede vai-se intensificando, enquanto a Posm se eleva. Quando a hipertonicidade
atinge um valor suficientemente alto, começam a aparecer distúrbios neurológicos como
confusão mental, em decorrência da desidratação cerebral decorrente dessa hipertonicidade.
5. Normalize a perda pelo suor e faça com que o distúrbio (falta de ingestão de água) perdure
por mais do que 1 dia (para isso você deve acionar o quadrinho correspondente). O efeito é
parecido com o da sudorese em um único dia, mas aqui é possível observar melhor a
seqüência que termina com a morte por desidratação cerebral.
6. Retorne à condição padrão pressionando o botão correspondente. Aumente
progressivamente a ingestão de água. Note que o volume de urina também aumenta, a
osmolalidade urinária reduz-se a valores inferiores aos do plasma e a concentração
plasmática de HAD cai a níveis quase indetectáveis. Mesmo com uma ingestão absurda de
água, como 10 L/dia, o balanço hídrico e a osmolalidade plasmática estão praticamente
mantidos. Leve a ingestão de água para 18 L/dia. Observe que agora instalou-se um balanço
hídrico positivo. A capacidade renal de eliminar “água livre”, ou seja, de diluir a urina,
chegou ao máximo. A osmolalidade urinária chegou a um mínimo, enquanto a osmolalidade
plasmática reduziu-se. Instala-se um quadro de intoxicação hídrica. Se esse quadro perdurar
por vários dias (experimente!), o paciente morre devido ao desenvolvimento de edema
cerebral (na verdade é improvável que isso ocorra, porque antes disso o indivíduo
desenvolveria sintomas que o impediriam de continuar a ingerir água no mesmo ritmo). Se
você aumentar a taxa de ingestão hídrica para 26 L/dia, esse efeito será observado em um
único dia (tal ingestão é ainda mais improvável).
7. Vamos estudar agora alguns dos mais comuns distúrbios da tonicidade do meio interno.
Selecione inicialmente os botões correspondentes a diabetes insípido (DI) hipotalâmico,
moderado e intenso. Observe o que acontece no gráfico situado no canto inferior direito da
tela. Note que a linha que representa a variação do HAD com a Posm está “quebrada”,
indicando que o hipotálamo é incapaz de elevar a concentração de HAD acima de um certo
nível (é esse nível que determina a diferença entre DI “moderado” e “intenso”). Se a ingestão
de água não for mantida em níveis elevados (encontre os níveis mínimos necessários a cada
caso), o indivíduo entra em balanço hídrico negativo e morre em pouco tempo (no caso do
DI “intenso” basta 1 dia), como nos exercícios 5 e 6. Observe o que acontece ao fluxo e à
osmolalidade urinários.
8. Estude agora os casos de diabetes insípido nefrogênico. Observe que as alterações do fluxo e
da osmolalidade urinários são semelhantes às do exemplo anterior. A curva que relaciona
HAD e Posm está normal. No entanto, a curva que descreve Uosm e Fluxo urinário em função
da [HAD] está deslocada para cima e para a direita enquanto o nível plasmático de HAD está
extremamente elevado, indicando que neste caso o problema reside na incapacidade renal de
responder ao efeito biológico do hormônio. Observe ainda que, tal como no caso anterior, o
indivíduo necessita ingerir grandes quantidades de água, sob pena de entrar em desidratação
hipernatrêmica grave.
9. Vamos agora estudar o quadro conhecido por secreção inapropriada de hormônio
antidiurético (SIADH). Nesses casos, uma produção anômala de ADH (por exmplo, por um
tumor) impede que os níveis plasmáticos de ADH caiam quando necessário, como nos
exemplos desenvolvidos acima. Marque o círculo correspondente a SIADH. Varie a ingestão
de água e verifique que o nível plasmático de HAD aumenta apropriadamente quando a
ingestão de água está muito reduzida. Se no entanto a ingestão de água estiver próxima ao
normal, instala-se um balanço hídrico positivo, com hipoosmolalidade e hiponatremia
plasmáticas. Se a anomalia persistir, a hiponatremia se agrava, podendo desenvolver-se um
quadro de intoxicação hídrica que termina com a morte por edema cerebral. Por ser incapaz
de baixar a concentração plasmática de HAD, o indivíduo não consegue reduzir a
osmolalidade urinária ,eliminando uma urina inadequadamente concentrada e retendo água.
10. Passemos agora aos distúrbios da sede. Selecione “hipodipsia moderada” e observe o que
acontece quando se priva o indivíduo de água por um período prolongado (reduzindo a zero
a ingestão de água como tal e com os alimentos e aumentando progressivamente o número
de diaas em que essa condição persiste). Note que a sensação de sede demora a aparecer, e
quando finalmente aparece sua progressão é mais lenta do que o normal (observe o gráfico
no alto à direita). Já na “hipodipsia intensa” a sensação de sede pode não se manifestar até as
fases avançadas da hipernatremia, quando o indivíduo já começa a apresentar distúrbios
neurológicos.
11. Finalmente, observe o que acontece na polidipsia primária “moderada” (selecione a opção e
estude novamente o gráfico no alto à direita). Acontece aqui o oposto do que se viu no
exercício anterior. Devido a um distúrbio neurológico ou psiquiátrico, o indivíduo está
sempre com sede, mesmo que sua osmolalidade plasmática esteja abaixo do normal, e só
consegue saciá-la ingerindo quantidades enormes de água. No caso da polidipsia “intensa”, a
sede não chega a ser saciada. Apesar dessa ingestão maciça, o balanço de água está
usualmente mantido, graças à poliúiria que se instala (observe a concentração plasmática de
HAD). Quando a ingestão de água excede 18 L/dia, no entanto, estabelece-se um balanço
hídrico positivo, podendo-se instalar um quadro de intoxicação hídrica, embora a ingestão
compulsiva de água tenda a diminuir quando os distúrbios neurológicos mais graves
começam a se manifestar.
CAPÍTULO 12: DISTÚRBIOS DO EQUILÍBRIO ÁCIDO-BASE
Roberto Zatz e Gerhard Malnic
A) ÁCIDOS FIXOS E ÁCIDOS VOLÁTEIS Antes de abordar diretamente a fisiopatologia do equilíbrio ácido-base, é útil recordar os conceitos de ácido e base, de acordo com a definição de Brönstein-Lowry. Denomina-se ácido todo composto capaz de doar prótons quando em solução, enquanto as bases são definidas como compostos capazes de aceitar prótons. Os organismos superiores podem gerar dois tipos principais de ácidos: os ácidos fixos, representados por compostos que, como o nome indica, permanecem indefinidamente em solução. São integrantes desse grupo o ácido sulfúrico, o ácido fosfórico, o ácido láctico e outros. Já os ácidos voláteis são representados pelo dióxido de carbono (CO2), composto que, apesar de produzido continuamente pelo metabolismo oxidativo, abandona rapidamente o organismo através dos alvéolos pulmonares. A concentração hidrogeniônica do meio interno é extremamente baixa comparada à de outros eletrólitos. Enquanto as concentrações de sódio, potássio e cálcio variam de 5 a 150 milimoles (10-3) por litro (mmol/L), a de hidrogênio situa-se ao redor de 40 nanomoles (10-9) por litro (nmol/L). A manutenção do pH do meio interno em uma faixa estreita é de enorme importância para o funcionamento dos organismos avançados. Devido à relação logarítmica entre pH e concentração, pequenas variações no pH correspondem a variações importantes na concentração hidrogeniônica (Fig. 12-1). Por exemplo, uma queda de apenas 0,2 unidades de pH de 7,4 para 7,2 corresponde a um aumento superior a 50% na concentração hidrogeniônica (de 40 nmol/L para 63 nmol/L).
7.0
7.5
8.0
8.5
0 20 40 60 80
H+, mmol/L
pH
Figura 12.1 – O pH é uma função logarítmica da concentração de prótons
Alterações do pH da ordem de poucos décimos de unidade podem alterar profundamente as propriedades físico-químicas de soluções complexas como o plasma ou o citosol, ricas em proteínas cuja conformação costuma ser extremamente sensível à variação de cargas eletrostáticas. Há portanto necessidade de se controlar o pH dentro de limites bastante estreitos, usualmente da ordem de centésimos de unidade de pH. O organismo humano produz continuamente quantidades enormes de ácido, cerca de 15.000 mmoles por dia. Mais de 99% desse total são constituídos pelo CO2 gerado metabolicamente, sendo portanto de natureza volátil. Na verdade, o CO2 não se constitui propriamente em um ácido, no sentido estritamente químico do termo (ou seja, o CO2 não funciona diretamente como um doador de prótons). No entanto, quando em presença de anidrase carbônica, uma enzima abundante em locais chave como as hemácias, os pulmões e os rins, o CO2 é hidratado e dá origem ao ácido carbônico (H2CO3) o qual, este sim, origina um íon hidrogênio e um íon bicarbonato.
↑CO2 + H2O H2CO3 H+ + HCO3
- (1) A cadeia de reações químicas representadas na equação (1) é usualmente
expressa de modo abreviado, omitindo a etapa intermediária, representada pelo ácido carbônico. Temos então:
↑CO2 + H2O H+ + HCO3- (2)
Para todos os efeitos práticos, portanto, o CO2 pode ser considerado um
ácido, e como tal será tratado a partir deste ponto. O principal órgão responsável pela excreção desse ácido volátil é o pulmão,
o qual é capaz de eliminar todo o CO2 gerado pelo metabolismo, mantendo no entanto a pressão parcial de gás carbônico (pCO2) constante e em torno de 40mmHg. Os pulmões conseguem desempenhar facilmente essa função ajustando finamente a ventilação alveolar: Quando a ventilação alveolar aumenta, o ar contido nos alvéolos é "lavado" com ar atmosférico. Se essa hiperventilação for muito intensa, a pCO2 pode cair a níveis muito baixos (o limite teórico para essa queda é a pCO2 do ar atmosférico, ou seja, praticamente zero, embora na prática seja muito difícil observar níveis inferiores a 20 mmHg). Devido a esse eficiente sistema de regulação da pCO2 e à associação com o íon bicarbonato, presente em concentração apreciável no meio interno, o CO2 contribui na verdade de forma decisiva para a manutenção do equilíbrio ácido-base, conforme veremos a seguir. Apesar de sua alta eficiência na eliminação de CO2, os pulmões são incapazes de eliminar ácidos não voláteis, ou fixos. A ingestão ou infusão de 20 mmoles de um ácido forte ou de cloreto de amônio (NH4
+Cl-), que cede um íon H+
A.C.
A.C.
quando dissolvido no plasma, implica na adição ao organismo de idêntica quantidade de ácido, sem que os pulmões tenham qualquer possibilidade de eliminá-la. Na verdade, mesmo em condições normais, o organismo humano adulto é bombardeado diariamente por cerca de 1 a 2 mEq/kg de ácidos não-voláteis gerados em processos metabólicos. O principal destes é o catabolismo de aminoácidos contendo enxofre, como por exemplo o da metionina:
CH3-S-CH2-CH2-CHNH3+
-COOH + 2O2 + H2O -------> CH3-CHNH3+-COOH + 2H+ + SO4—(2)
Esse processo gera ácido sulfúrico, sendo os prótons resultantes simplesmente adicionados ao organismo. Outros processos, como por exemplo a catabolização de ácidos nucleicos, podem gerar ácido fosfórico e ácido úrico, enquanto períodos de jejum prolongado levam à formação dos ácidos orgânicos acetoacético e beta-hidroxibutírico. Foi portanto necessário que a evolução desenvolvesse outros mecanismos de defesa contra sobrecargas de ácido fixo, para impedir que estas resultassem invariavelmente em um acúmulo de prótons e na queda do pH do organismo.
B) TAMPÕES Quando confrontado com uma sobrecarga ácida (ou alcalina), o organismo coloca em ação uma série de linhas de defesa. A primeira e mais simples delas consiste no tamponamento químico desse ácido ou base adicionado ao sistema. Vários tipos de moléculas e sistemas iônicos presentes no organismo são capazes de reter prótons, podendo assim funcionar como tampões, ou seja, compostos que atenuam a variação de pH provocada pela adição de ácido ou álcali forte a uma solução. Esses tampões, que podemos denominar tampões fixos, são sempre constituídos pela associação entre um ácido fraco (representado por HA) e o sal correspondente (representado por Na+A- ou simplesmente por A-). São tampões comuns no organismo dos mamíferos a hemoglobina, a albumina plasmática, o sistema HPO4
--/H2PO4- e os carbonatos ósseos, estes últimos especialmente em
situações de sobrecarga ácida prolongada. Podemos representar a reação básica de dissociação de um sistema tampão como:
H+ + A- HA- (4)
A constante de equilíbrio (K)dessa reação obedece à relação:
K = [H+]⋅[A-]/[HA] (5), onde [HA] representa a concentração da forma ácida (não dissociada) do tampão, [H+] representa a concentração de prótons e [A-] representa a concentração da forma salina (dissociada) do tampão. A reação representada em (5) é usualmente expressa pela equação de Henderson-Hasselbalch, derivada diretamente de (5) através de um simples cálculo logarítmico:
pH = pK + log ( [A-]/[HA] ) (6) O pK dessa reação, o qual é uma das características básicas de um sistema
tampão, é definido como o cologaritmo de sua constante de dissociação (-logK). Examinemos uma típica curva de dissociação de um desses sistemas tampão (Fig. 12-2). É evidente ao exame da curva que mesmo a adição de
quantidades consideráveis de ácido forte a esse sistema pouco altera o pH da solução. Esse efeito tamponante é especialmente acentuado na porção central da curva, quando metade do sistema tampão está na forma ácida ou indissociada (HA), enquanto a outra metade está na forma salina ou dissociada (A-). Pode-se demonstrar que o pH correspondente a essa exata equivalência entre HA e A-, no qual a eficiência tamponante é máxima, é numericamente idêntico ao pK do tampão. Quando no entanto nos afastamos o bastante do pK, o pH passa a variar de
Figura 12.2 – Curva de dissociação de um tampão fixo
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
20 15 10 5 0
pH
ÁCIDO ADICIONADO mmol
modo extremamente rápido, indicando esgotamento do tampão. O sistema tende a ficar totalmente na forma HA, caso seja adicionada uma quantidade excessiva de ácido forte (dizemos nesse caso que o tampão foi titulado com excesso de ácido), ou na forma A-, quando se adiciona excesso de base forte (titulação com excesso de base). Ë importante observar que tanto nos fluidos do organismo (intracelular e extracelular) como na urina diversos sistemas tampão coexistem, cada qual contribuindo de acordo com sua concentração e seu pK para atenuar variações de pH. Esse conceito é de grande importância para se compreender não apenas os mecanismos de defesa do pH do meio interno mas também o processo de acidificação urinária, como veremos mais adiante. Dentre os diversos tampões que atuam no espaço extracelular, o sistema HCO3
-/CO2 é sem dúvida o mais importante. Isso se deve a dois fatores: 1) a abundância do íon HCO3
-, cuja concentração, de cerca de 24 mmol/L em circunstâncias normais, é várias vezes superior à de qualquer dos outros tampões. 2) a especial circunstância de que sua fase ácida, ou seja o CO2, é facilmente eliminada pelos pulmões e portanto mantida constante no organismo, ao contrário do que ocorre com os tampões fixos, também denominados “tampões não-bicarbonato”, cuja fase ácida (HA) vai aumentando à medida em que mais e mais ácido é adicionado ao sistema. Para o sistema HCO3
-/CO2, a equação de Henderson-Hasselbalch assume a forma:
pH = pK + log ( [HCO3-]/[CO2] ) (7),
lembrando que a concentração de CO2 em uma solução é diretamente proporcional à pCO2. Quando comparamos a curva de dissociação do bicarbonato (Figura 12.3) à de um tampão fixo (Figura 12.2), duas diferenças essenciais tornam-se de imediato aparentes. 1) é muito maior a quantidade de ácido ou base forte que pode ser absorvida pelo sistema HCO3
-/CO2; 2) o pH permanece relativamente estável (ou seja, o poder tamponante permanece elevado) mesmo quando nos afastamos do pK do sistema HCO3
-/CO2, que é de 6,1 (é o que ocorre no organismo, uma vez que, em condições normais, o pH do meio interno varia uns poucos centésimos de unidade em torno de 7,40). A razão para esse comportamento é, como vimos, a constância da pCO2 e, portanto, da concentração da fase ácida do sistema. Essa característica contribui decisivamente para o elevado poder tamponante do sistema HCO3
-/CO2.
Examinemos atentamente a família de curvas representada na Figura 12.3. Cada uma dessas curvas descreve a variação do pH em função da quantidade de ácido ou base adicionada ao sistema, mantendo-se a pCO2 constante em um determinado valor (indicado junto a cada uma das curvas). Por essa razão, essas curvas são denominadas isóbaras de CO2 (literalmente, valores correspondentes a uma mesma pressão – no caso, pressão parcial de CO2). Conforme variamos a pCO2, o pH passa a variar (com a adição de ácido fixo) ao longo da isóbara correspondente (note-se que, apesar de estarem representadas curvas discretas, a pCO2 pode assumir um número infinito de valores intermediários). Esse conceito é importante para a compreensão do efeito fisiológico da pCO2 sobre o equilíbrio ácido-base.
C) EFEITO DA VARIAÇÃO DA pCO2 SOBRE O pH: A CURVA DE TAMPONAMENTO DO CO2 Apesar de esclarecedor quanto à relação direta entre pH e [HCO3
-], o exame da Figura 12.3 e de sua família de isóbaras nos dá apenas uma idéia superficial e um tanto confusa sobre o efeito da variação da pCO2 sobre o pH. Vamos tornar esse efeito um pouco mais claro omitindo as isóbaras do diagrama pH-bicarbonato e observando o efeito da variação da pCO2.sobre o pH e a concentração de
Figura 12.3 – Curvas de dissociação do bicarbonato para diferentes níveis de pCO2
5
6
7
8
9
0 20 40 60 80
BASE ADICIONADA, mmol
pH
pCO2 = 10(mmHg) 20
40 60 80 100
bicarbonato em uma solução contendo apenas o sistema HCO3
-/CO2. Previsivelmente, uma elevação da pCO2 leva a uma queda no pH, sem no entanto
alterar de modo perceptível a concentração de bicarbonato (Fig. 12-4). Esse comportamento pode parecer um tanto paradoxal tendo em vista as equações (1) e (2), as quais prevêem um aumento da concentração de bicarbonato conforme se eleva a pCO2. Deve-se observar, no entanto, que a quantidade de bicarbonato assim gerada é idêntica à de prótons, ou seja, corresponde a uma alteração da ordem de nanomoles por litro na concentração de bicarbonato. Quando lembramos que a concentração de bicarbonato no meio interno é da ordem de milimoles por litro, fica fácil entender por que é em princípio insignificante a variação da concentração de bicarbonato resultante de uma variação da pCO2. Às considerações acima são válidas para um sistema HCO3
-/CO2 “puro” ou seja, na ausência de outros sistemas tampão. Não é isso no entanto o que acontece no organismo dos mamíferos. Conforme discutido acima, uma série de tampões coexiste e interage com o sistema HCO3
-/CO2. Esses tampões atenuam as variações da pCO2 exatamente como atenuariam uma sobrecarga de ácido fixo, de acordo com a equação: CO2 + A-+ H2O HA + HCO3
- (8)
Figura 12.4 – Curva de tamponamento do CO2 em uma solução contendo apenas bicarbonato
7.1
7.2
7.3
7.4
7.5
7.6
7.7
0 10 20 30 40 50
BASE ADICIONADA. mmol
pH
elevação de pCO2
queda de pCO2
Note-se que para cada molécula de CO2 assim neutralizada pelos tampões fixos (sistemas A-/HA) gera-se uma molécula de HCO3
-. Chegamos dessa maneira a uma importante conclusão: ao contrário do que ocorre com um sistema HCO3
-
/CO2 puro, um sistema “misto” é capaz de gerar uma certa quantidade de HCO3-
quando submetido a uma elevação da pCO2. Essa quantidade é limitada pela quantidade e pelo pK dos tampões “fixos” presentes. O efeito de uma variação da pCO2 sobre o pH e a concentração de bicarbonato de um sistema como esse está representado na Figura 12.5: Note-se que um aumento da pCO2 em relação ao normal leva agora a um pequeno aumento da concentração de bicarbonato, da ordem de uns poucos mmol/L, enquanto uma redução na pCO2 produz o efeito contrário. Essa influência da pCO2 sobre sistemas tamponados ao mesmo tempo pelo bicarbonato e por tampões fixos (como por exemplo o sangue dos mamíferos) tem enorme importância para uma correta compreensão dos distúrbios do equilíbrio ácido-base. Uma vez que os efeitos da adição de ácido fixo (representado pela curva de dissociação do bicarbonato – Figura 12.3) e da variação da pCO2 (representado pela curva de tamponamento do CO2 – Figura 12.5) ocorrem no mesmo sistema, podendo ser inclusive simultâneos, é conveniente representá-los em um único gráfico, combinando as Figuras 12.3 e 12.5 (Fig. 12-6):
Figura 12.5 – Curva de tamponamento do CO2 em uma solução contendo bicarbonato e tampões fixos
7.1
7.2
7.3
7.4
7.5
7.6
7.7
0 10 20 30 40 50
BASE ADICIONADA. mmol
pH
elevação de pCO2
queda de pCO2
Uma sobrecarga de ácido fixo, por exemplo, levará a uma variação do pH e do bicarbonato, a partir do ponto de equilíbrio (representado pela intersecção entre as duas linhas), a qual deve necessariamente ocorrer ao longo da curva de dissociação de bicarbonato (isóbara de 40 mmHg, se a pCO2 for mantida nesse nível). Já uma variação pura da pCO2 acompanhará a linha de tamponamento de CO2. É comum a ocorrência dos dois fenômenos no mesmo indivíduo, conforme veremos na próxima seção
D) PAPEL DOS PULMÕES NA REGULAÇÃO DO EQUILÍBRIO ÁCIDO-BASE
Em vista dos mecanismos físico-químicos descritos nas seções anteriores, fica fácil compreender o importante papel da resposta respiratória, utilizada pelo organismo como uma segunda linha de defesa no combate aos distúrbios do equilíbrio ácido-base. Sendo capazes de controlar a pCO2 e portanto a
Figura 12.6 – Representação simultânea do efeito da variação da pCO2 e da adição de ácidos fixos em uma solução tamponada por bicarbonato e tampões fixos
7.1
7.2
7.3
7.4
7.5
7.6
7.7
0 10 20 30 40 50
BASE ADICIONADA. mmol
pH
elevação de pCO2
queda de pCO2
adição de ácido fixo
adição de base fixa
concentração da fase ácida do maior sistema tampão do organismo, os pulmões podem contrapor-se rapidamente a uma sobrecarga ácida ou alcalina não volátil. Assim, se por exemplo adicionarmos ao organismo uma carga ácida suficiente para provocar ainda que uma pequena queda na concentração de HCO3
- e no pH do meio interno, haverá uma estimulação dos centros respiratórios, capazes de detectar em pouco tempo a alteração do pH, deflagrando uma resposta hiperventilatória (aumento da ventilação alveolar), com queda consequente da
pCO2 e um retorno do pH a valores menos ácidos (embora ainda anormais). Da mesma forma, a adição de álcali ou a perda de fluido ácido, levando a uma elevação do pH, deve em princípio provocar uma resposta hipoventilatória, com elevação da pCO2 e retorno do pH a valores menos alcalinos.
Na Figura 12.7 está representado um exemplo de compensação respiratória de uma queda de pH por excesso de ácido fixo. Numa primeira etapa (marcada na Figura com o número 1), ocorreu uma queda do pH e da [HCO3
-] ao longo da curva de dissociação de bicarbonato. Observe que, nessa nova situação, a linha de tamponamento do CO2 deslocou-se, permancendo no entanto paralela à original. Qualquer variação da pCO2, agora, deverá necessariamente alterar o pH e a [HCO3
-
] ao longo dessa nova linha. Foi exatamente o que ocorreu na etapa 2: a hiperventilação compensatória levou a uma elevação do pH em relação ao normal, obedecendo à nova linha de tamponamento do CO2 (devido ao mecanismo de tamponamento do CO2 pelos tampões fixos, a [HCO3
-] reduziu-se um pouco mais). É fácil constatar que as respostas química e ventilatória a uma sobrecarga
ácida ou alcalina não volátil, embora eficientes num primeiro momento, são fisiologicamente inadequadas a longo prazo. O tamponamento químico só pode ocorrer à custa do consumo do estoque de tampões do organismo, o qual deve ser de alguma forma restaurado para poder dar conta de futuros distúrbios. A resposta
Figura 12.7 – Efeito de um excesso de ácido fixo (etapa 1) e de sua compensação por uma hiperventilação (etapa 2)
7.0
7.1
7.2
7.3
7.4
7.5
7.6
7.7
7.8
0 10 20 30 40 50
pH
ACIDOSEMETABÓLICA
COMPENSADA
ALCALOSE METABÓLICA
COMPENSADA
ALCALOSE MISTA
ACIDOSE MISTA
ACIDOSE RESPIRATÓRIA COMPENSADA
ALCALOSE RESPIRATÓRIA COMPENSADA
1
2
HCO3, mmol/L
ventilatória é também insatisfatória, na medida em que interfere com a função básica dos pulmões, que é a de promover uma adequada troca gasosa nos alvéolos. Isso é particularmente verdadeiro quando consideramos uma sobrecarga alcalina. Nesse caso, a resposta pulmonar adequada seria uma redução da ventilação alveolar, com elevação resultante da pCO2. Alguma hipoventilação realmente ocorre nesses casos. É impossível no entanto aos pulmões reduzir a ventilação alveolar sem também baixar a pressão parcial de oxigênio (pO2). Esa hipóxia vai também agir sobre o centro respiratório, limitando a hipoventilação. Por essa razão, é impossível a elevação compensatória da pCO2 a níveis superiores a 55 mmHg, o que limita bastante a compensação respiratória de um excesso de base fixa.
Essas importantes limitações das duas primeiras linhas de defesa do pH do meio interno tornam absolutamente necessário que uma sobrecarga ácida seja em última instância compensada pela geração de tampão novo, a fim de repor o que foi inicialmente consumido (e vice-versa, recolher o excesso de tampão no caso de uma sobrecarga alcalina). O rim é o único órgão capaz de desempenhar essa função, gerando um excesso de íons HCO3
- que facilmente se disseminam pelo meio interno e recompõem os estoques de tampão do organismo, no caso de uma sobrecarga ácida, ou deixando de produzir HCO3
-, no caso de uma sobrecarga alcalina.
E) PAPEL DOS RINS NA EXCREÇÃO DE ÁCIDOS FIXOS A capacidade dos rins de gerar bicarbonato não atende apenas a eventuais sobrecargas, exógenas ou endógenas, mas de todo modo anômalas, de ácidos ou álcalis não voláteis. Na verdade, se o rim não fosse capaz de compensar continuamente a sobrecarga ácida de 50 mmol imposta diariamente pelo metabolismo, gerando um novo íon bicarbonato para cada íon consumido, o organismo rapidamente acumularia quantidades enormes de ácido, estabelecendo-se uma queda catastrófica no pH intra e extracelular. É exatamente o que acontece por exemplo na insuficiência renal aguda e na insuficiência renal crônica terminal, nas quais a produção renal de bicarbonato é reduzida a níveis muito baixos. (ver capítulos 14 e 15). Para entender adequadamente o papel dos rins nesse processo é necessário examinar em detalhe os mecanismos de secreção de ácido pelos diversos segmentos do néfron ou, em outras palavras, os mecanismos de acidificação urinária.
E1) MECANISMOS DE ACIDIFICAÇÃO URINÁRIA
1) Túbulo Proximal
Todos os segmentos do néfron contribuem para a geração de íons bicarbonato necessários à manutenção do equilíbrio ácido-básico. A contribuição de cada segmento é no entanto extremamente variável tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo. Sabe-se que no túbulo proximal há um pequeno decréscimo no pH do fluido urinário (de 7.4, pH do plasma, até cerca de 6.8 no final da porção
contorneada). Já a acidificação final da urina (no sentido de redução do pH aos níveis tipicamente encontrados na urina final, de 5.5 ou menos) ocorre nos segmentos mais distais do néfron, em especial no túbulo coletor. Essas observações podem sugerir, em uma análise superficial, que o grosso da acidificação urinária ocorre nas porções terminais do néfron. Essa impressão é no entanto inteiramente equivocada. Se voltarmos a examinar com atenção a curva de titulação do HCO3 à pCO2 de 40mmHg, verificaremos que a redução do pH de 7,4 para 6.8 corresponde a uma redução da concentração de HCO3
- de 24 para cerca de 8 mmol/L. Essa deve ser portanto a concentração de HCO3
- ao final do túbulo
proximal. Levando-se em conta além disso que ocorre nesse segmento a reabsorção da maior parte do fluido filtrado nos glomérulos, fica fácil constatar que 85% ou mais do bicarbonato filtrado são ali reabsorvidos. O túbulo proximal aparece assim como o segmento onde ocorre não uma "ligeira acidificação" mas a reabsorção em massa da grande maioria dos íons HCO3
- filtrados no glomérulo. Considerando que cerca de 5000 mmols de HCO3
- são filtrados diariamente (25
mmol/L × 180 L/dia) pode-se ter uma idéia da magnitude do trabalho de reabsorção de bicarbonato realizado pelos túbulos proximais. Fica também
Figura 12.8 – Representação esquemática da redução do pH do fluido tubular ao longo do néfron
4
5
6
7
PROXIMAL
DISTAL/COLETOR
pH intraluminal
evidente que, mesmo em termos quantitativos, a participação dos rins não é assim tão minoritária em comparação com a dos pulmões. O que acontece aos tampões fixos no túbulo proximal? Para responder a essa questão, é necessário considerar a concentração e o pK dos tampões fixos (principalmente fosfatos, mas compreendendo também sulfatos, uratos e outros ânions de ácidos orgânicos) normalmente presentes no filtrado glomerular. Mesmo tomados em conjunto, esses tampões não chegam a totalizar 5 mmol/L, uma fração dos 24 mmol/L presentes no início do túbulo proximal. Além disso, o pK desses tampões é sempre inferior a 6,8, o que indica que, na maior parte do túbulo proximal, o pH do fluido luminal supera em muito o pK desses sistemas. De acordo com o gráfico da Figura 12.2, os tampões fixos no túbulo proximal estão
muito longe de seu faixa ótima de trabalho, que fica, como vimos, nas imediações de seu pK. Dessa forma, os tampões fixos presentes no filtrado glomerular absorvem uma quantidade irrisória de prótons ao longo do túbulo proximal. Lembrando o conceito de titulação mencionado acima, podemos dizer que praticamente não ocorre no túbulo proximal a titulação dos tampões fixos. O mecanismo básico de acidificação no túbulo proximal, como nos demais segmentos do néfron é a secreção de H+ para o lume tubular (Figura 12.9). Essa secreção ocorre em sua maior parte através da permuta Na+/H+ na membrana luminal, através de um trocador específico. Trata-se aqui de um mecanismo de transporte ativo secundário, uma vez que o gradiente eletroquímico de Na+ necessário ao seu funcionamento provém da atividade da Na+/K+-ATPase da membrana basolateral. Graças à elevada concentração do íon HCO3
- no lume do túbulo proximal, especialmente em suas porções iniciais, a secreção maciça de H+ nesse segmento resulta na rápida formação de ácido carbônico. Sendo o túbulo proximal particularmente rico em anidrase carbônica, o ácido carbônico ali gerado é rapidamente desidratado. O CO2 resultante dessa reação difunde para o interior da célula, onde é reidratado e de novo dissociado em H+ e HCO3
-. Este último deixa a célula através da membrana basolateral, em grande parte através de um
Figura 12.9 – Representação esquemática dos mecanismos celulares de transporte de prótons e bicarbonato no túbulo proximal
H+
+
HCO3-
A.C.
H2O+
CO2
H++ HCO3-
A.C.
H2O +
CO2
Na+
HCO3-
ATP
Na+
K+
Na+
Na+
LUME CÉLULA INTERSTÍCIO
processo de cotransporte com o Na+, enquanto o H+ é de novo secretado. O resultado final desse processo é a adição de 1 íon HCO3
- ao meio interno, equivalente à reabsorção de um íon HCO3
- da luz tubular. Deve ficar ficar claro que a resultante de todo esse processo é rigorosamente zero: a cada íon HCO3
- filtrado corresponde exatamente um íon HCO3
-reabsorvido. 2) Alça de Henle
Os segmentos finos da alça de Henle, pobres em ATP, transportam apenas quantidades limitadas de H+, contribuindo pouco para a acidificação do fluido tubular. No entanto, esses segmentos acabam participando indiretamente desse processo através da alcalinização progressiva do fluido luminal. Isso ocorre graças à progressiva concentração do HCO3
- intraluminal conforme o filtrado se vai aproximando da papila renal (paralelamente à concentração da maioria dos demais solutos ali presentes, em conseqüência do efeito de contracorrente), enquanto a pCO2 permanece inalterada devido à rápida difusão desse gás. Essa alcalinização é importante no processo de difusão da amônia para o túbulo coletor, como veremos adiante.
Na porção espessa ascendente da alça de Henle, segmento de grande capacidade transportadora, são absorvidos cerca de 50-70% do HCO3
- que escapa à reabsorção proximal (ou seja, 7.5 a 10.5% da carga filtrada de bicarbonato). Em sua maior parte, esse bicarbonato é transportado, tal como no túbulo proximal, após reagir com o H+ secretado em permuta por Na+. Esse movimento de H+ é, também aqui, favorecido pelo gradiente de Na+ gerado a partir da atividade da Na+/K+ basolateral.
Em resumo, o processo de acidificação do fluido tubular na alça espessa de Henle consiste basicamente no reclamo da maior parte do bicarbonato que escapou à absorção proximal. Como neste último, a titulação de tampões fixos é diminuta.
3) Túbulos Distal e Coletor Tal como o túbulo proximal e a porção espessa da alça de Henle, os segmentos mais distais do néfron (túbulos distal e coletor) são capazes de secretar quantidades apreciáveis de H+ em direção ao lume tubular. Há no entanto uma série de diferenças essenciais entre os segmentos iniciais e finais do néfron com relação ao transporte de H+, esquematizadas na Figura 12.10: 1) Enquanto as
células dos túbulos proximais e da alça de Henle são relativamente homogêneas, há nos segmentos mais distais do néfron pelo menos dois tipos bem distintos de células: as células principais, responsáveis pelo transporte de Na+ e K+, e as células intercaladas, especializadas no transporte de H+ e HCO3
-. 2) Ao contrário do túbulo proximal e da porção espessa da alça de Henle, onde a secreção de H+ é predominantemente um processo de transporte ativo secundário, a extrusão de H+ por parte das células intercaladas é um processo ativo que utiliza ATPases especiais (H+-ATPase e, em menor escala, H+/K+-ATPase) situadas na membrana luminal. 3) A anidrase carbônica, presente em grande quantidade na borda em escova e no interior das células do túbulo proximal, é mais escassa nos túbulos distal e coletor, aparecendo apenas no interior das células intercaladas. 4) A saída de bicarbonato através da membrana basolateral, que no túbulo proximal se dá por cotransporte com sódio, nas células intercaladas ocorre principalmente por contratransporte com cloreto. A concentração luminal de bicarbonato, absorvido intensamente no túbulo proximal e na porção espessa da alça de Henle, é muito baixa nas porções finais do néfron. Portanto, os íons H+ secretados para o lume, não sendo tamponados pelo HCO3
-, fazem cair rapidamente o pH luminal, dada a grande capacidade dessas células de gerar gradientes de H+, de 500 vezes ou mais em relação ao interstício. É agora possível, portanto, a atuação dos tampões fixos, cujo pK está, como vimos, bem abaixo do pH do meio interno. Esses tampões absorvem o H+ secretado pelas células intercaladas, impedindo que o pH caia a níveis muito baixos (dificilmente o pH urinário cai abaixo de 5, correspondente a
H+
+
A-
HA
H++ HCO3-
A.C.
H2O +
CO2
HCO3-
ATP
Na+
K+ Cl -
Cl -
LUME CÉLULA INTERSTÍCIO
Figura 12.10 – Representação esquemática dos mecanismos celulares de acidificação nas porções distais do néfron
um gradiente de 500 vezes em relação à concentração hidrogeniônica do meio interno) Em outras palavras, a secreção de ácido nos segmentos finais do néfron é tamponada pelos tampões fixos intraluminais. Essa ação é extremamente importante: se não existissem os tampões urinários, o pH luminal nos segmentos finais do néfron cairia rapidamente a níveis muito baixos, o que funcionaria como um obstáculo à secreção de ácido, uma vez que há um limite para o gradiente de H+ que as células intercaladas podem manter. A quantidade de ácido ligado aos tampões urinários representa uma parcela substancial do ácido fixo excretado pelos rins. Podemos medir essa quantidade adicionando quantidades conhecidas de base fixa à urina até trazer o pH urinário de volta a 7,4, ou seja, titulando a urina com base forte. Por essa razão, essa parcela do ácido excretado pelos rins é denominada acidez titulável.
Apesar das diferenças observadas entre os túbulos distal e coletor, esses segmentos compartilham com o túbulo proximal uma importante característica: no interior das células intercaladas, tal como nas células do túbulo proximal, ocorre decomposição do ácido carbônico (somente assim é possível gerar um íon H+ para ser secretado). O HCO3
- resultante desse processo acaba difundindo através da membrana basolateral, principalmente em troca por HCO3
-, rumo à circulação. Dessa forma, a secreção tubular de cada íon H+ faz-se acompanhar da adição de 1 íon HCO3
- ao meio interno. Enquanto no túbulo proximal essa propriedade é utilizada para a recuperação do HCO3
- filtrado, nos túbulos distal e coletor a secreção luminal de H+ vai acabar regenerando parte do HCO3
- consumido para neutralizar o ácido metabólico. 4) Secreção de amônia
Apesar de sua eficiência, os tampões urinários são insuficientes para absorver todo o ácido que os segmentos finais do néfron necessitam secretar para manter o organismo em balanço. Por essa razão, o rim necessita lançar mão de outro mecanismo para conseguir lançar à urina uma quantidade adicional de H+. Esse mecanismo consiste na secreção tubular de amônia (NH3). A amônia funciona como um tampão, juntamente com o seu íon, amônio, NH4
+ de modo análogo ao do sistema HCO3
-/CO2. Também aqui temos a hidratação de um gás não iônico e bastante difusível e a dissociação iônica do produto dessa hidratação. Esquematicamente podemos escrever: NH3 + H20 NH4OH NH4
+ + OH- (9) H+ + OH- H20 (10) NH3+H+ NH4
+ (11)
Para efeito de simplicidade, podemos representar o fenômeno apenas pela equação 11, tudo se passando como se a amônia funcionasse como um aceptor de prótons, ou seja, uma base do ponto de vista físico-químico. Esse sistema também pode ser descrito pela equação de Henderson-Hasselbalch:
pH=pK + log (NH3/NH4+) (12)
Figura 12.11 – Representação esquemática da secreção e transporte de amônia ao longo do néfron
O pK desse sistema é aproximadamente 9,2, o que significa que, no pH normal do meio interno, quase 2 unidades de pH mais baixo do que o pK da amônia, o sistema já está predominantemente em sua forma iônica, ou ácida (NH4
+). Na verdade, aplicando-se a equação acima, verificamos que existem nessa condição 63 íons amônio para cada molécula de NH3. Em um pH de 6.4, semelhante ao encontrado no túbulo distal, essa proporção sobe para 630:1, enquanto num pH típico de túbulo coletor final, 5.4, essa proporção seria de 6300:1. Essa enorme desproporção em favor da forma ionizada da amônia tem profundas implicações na eficácia do processo de acidificação renal, conforme veremos mais adiante. A amônia é produzida em sua maior parte no túbulo proximal, essencialmente a partir da glutamina, alcançando o lume tubular por um processo de difusão não iônica. Encontrando ali um pH mais ácido, da ordem de 6.8 (Figura 12.11), assume predominantemente a forma de NH4
+, permanecendo na luz tubular por ser esse íon pouco difusível através da parede do néfron. É interessante
N H3
N H3 + H+
N H4+
N H3
H+
N H4+
observar que uma parcela da secreção de amônia pode ocorrer através do permutador Na+/H+, num processo em que o NH4
+ assume o lugar do íon H+, favorecido pela relativa acidez (pH 7,2-7,4) do interior das células. Arrastado para as alças de Henle longas, onde ocorre alcalinização progressiva devido à concentração de HCO3
- que ali ocorre, o íon NH4+ volta a dissociar-se, gerando o
gás amônio (NH3), o qual difunde facilmente para regiões onde sua concentração, ou pressão parcial, seja mais baixa. É exatamente o que ocorre no túbulo coletor, onde a atividade das células intercaladas gera, como vimos, um pH tipicamente inferior a 6. Nessas condições, a pNH3 local será muito baixa, uma vez que uma proporção esmagadora do sistema estará sob a forma ácida, não dissociada. Ocorre então uma difusão contínua de NH3 do interstício papilar para o túbulo coletor, servindo para tamponar uma parcela considerável dos íons H+ ali lançados. Uma parcela desse fluxo de amônia se dá pela reabsorção de NH4
+ no ramo ascendente espesso da alça de Henle através do cotransportador Na+/K+/2Cl-. Nesse processo, o íon NH4
+ substitui o íon K+. Note-se que, independente da via percorrida pela amônia/amônio, o sistema funcionará tanto melhor quanto mais ácido for o fluido que percorre o duto coletor medular interno. 5) Composição Do Ácido Urinário Vemos assim que a secreção de ácido para os túbulos renais, e em última análise para a urina final, pode ser dividida em três componentes: a) reabsorção de HCO3
-, esmagadoramente majoritária em termos numéricos, mas pouco visível em termos Excreção ácido= (acidez titulável)+(excreção de NH4
+)-(excreção de HCO3
-) (13) de acidificação do fluido luminal; b) acidez titulável, c) excreção de amônia. Em termos numéricos, a excreção de amônia é equivalente ou até ligeiramente superior à de acidez titulável. É evidente que qualquer perda de HCO3
- deve ser deduzida dessa excreção global de ácido. É óbvio também que a excreção total resultante de ácido deve compensar exatamente a produção endógena, somada a qualquer sobrecarga exógena. Quando por qualquer razão ocorre produção excessiva de ácido, os rins tendem a aumentar a produção de acidez titulável e de amônia até atingir um novo balanço. Essa adaptação é mais eficiente após alguns dias, permitindo ao rim dobrar ou triplicar sua capacidade de excretar ácidos. É importante lembrar, no entanto, que a capacidade renal de aumentar a acidez titulável é limitada pela disponibilidade de tampões fixos no fluido tubular. Como em condições normais esses tampões já se encontram próximos à sua capacidade máxima de absorver prótons (observar de novo o gráfico à Fig. 12.2), a margem de aumento da acidez titulável é pequena. Isso nos conduz à importante conclusão de que a adaptação renal a uma sobrecarga ácida crônica se faz principalmente pelo
aumento da secreção tubular de amônia. Deve-se notar, no entanto, que a
capacidade renal de aumentar a síntese de amônia, embora considerável (pode aumentar 3 vezes ou mais em relação ao normal), não é infinita: quando superada, o acúmulo de ácido é inevitável. Podem-se demonstrar adaptações renais semelhantes mas de sentido contrário em situações de sobrecarga alcalina ou perda de ácidos, caso em que os túbulos renais aumentam a eliminação urinária de bicarbonato e reduzem a acidificação urinária.
E - PRINCIPAIS DISTÚRBIOS DO EQUILÍBRIO ÁCIDO-BÁSICO 1) Acidose Metabólica O acúmulo de ácidos fixos no organismo, usualmente caracterizado por uma diminuição do pH do meio interno e por baixas concentrações de bicarbonato plasmático, constitui o quadro que denominamos acidose metabólica, embora nem sempre o ácido fixo acumulado nesses casos seja de origem metabólica. Esse conceito contrapõe-se ao de acidose respiratória, que iremos detalhar mais adiante. a) Causas de acidose metabólica
Podemos agrupar as causas de acidose metabólica em três grandes categorias: a) produção excessiva de ácido pelo organismo; b) perda fecal ou urinária de bases fixas e c) limitação da excreção de ácidos por lesão ou deficiência funcional do parênquima renal. a1) Produção excessiva de ácidos fixos A maior parte dos casos de acidose metabólica observados na prática clínica é causada pela produção excessiva de produtos corriqueiros do metabolismo, tais como o ácido láctico e os corpos cetônicos. As acidoses metabólicas podem também ser causadas por intoxicação com uma série de compostos, incluindo produtos químicos, como o etilenoglicol e o metanol, e medicamentos, como a aspirina. Vamos considerar com um pouco mais de detalhe apenas as duas causas mais importantes de acidose metabólica por excesso de produção de ácidos fixos, a acidose láctica e a cetoacidose. A acidose láctica, que representa talvez o tipo mais comum de acidose metabólica, caracteriza-se por um acúmulo de ácido láctico, um dos produtos do metabolismo anaeróbico dos carboidratos. O ácido láctico é formado através da redução do ácido pirúvico, por sua vez um dos produtos finais do processo de glicólise. Em condições normais, o metabolismo de carboidratos é essencialmente aeróbico, sendo a quase totalidade do ácido pirúvico transformada em ácido
acético, o qual se combina à coenzima A, gerando acetil coenzima A, a qual é por sua vez oxidada no ciclo de Krebs. A pequena quantidade de ácido láctico formada nessas condições é facilmente metabolizada no fígado, no rim e em outros tecidos, não chegando a gerar uma carga ácida importante. Mesmo em condições de anaerobiose relativa, como ocorre no tecido muscular durante exercício físico extenuante, o excesso de ácido láctico é eliminado sem maiores problemas. Há certas condições, no entanto, em que a produção de ácido láctico pode estar tremendamente aumentada, excedendo a capacidade metabólica do fígado e dos outros tecidos. É o que ocorre nos estados de choque circulatório, em que a perfusão sangüínea de vários órgãos está drasticamente diminuída, levando-os a trabalhar em condições de anaerobiose. Se a perfusão hepática e renal também estiver diminuída, o que é comum nesses casos, a eliminação de ácido láctico será limitada, contribuindo para um acúmulo ainda maior desse metabólito. Mais raramente, a acidose láctica pode decorrer de doenças hepáticas ou ainda de deficiências enzimáticas de origem hereditária, que podem levar a uma produção excessiva de ácido láctico ou limitar sua metabolização. A cetoacidose representa outro quadro bastante comum de desequilíbrio ácido-básico. Consiste no acúmulo no organismo dos chamados corpos cetônicos. Esses compostos são produzidos a partir da condensação de duas moléculas de acetil coenzima A, originárias da oxidação de carboidratos e, principalmente, ácidos graxos, formando-se assim o ácido acetoacético. A partir desse primeiro composto formam-se ainda o ácido beta-hidroxibutírico e, em menor grau, a acetona. Normalmente, o papel dos ácidos acetoacético e beta-hidroxibutírico como geradores de ácidos fixos é desprezível, uma vez que são produzidos em pequenas quantidades, rapidamente metabolizadas nos tecidos. Há duas situações, no entanto, em que a produção desses compostos pode tornar-se exagerada. Uma delas é representada pelo jejum prolongado. Para obter energia nessas circunstâncias, o organismo utiliza como combustível os ácidos graxos, cuja oxidação leva em última análise à formação de ácido acético. Se este último não for totalmente utilizado no ciclo de Krebs, poderá haver acúmulo de corpos cetônicos e acidose metabólica. Mais comum é a produção exagerada de corpos cetônicos em pacientes com diabetes mellitus insulino-dependente. Quando a deficiência de insulina desses pacientes é muito grande, a utilização de glicose como combustível fica limitada, havendo em consequência um aumento acentuado na oxidação de ácidos graxos. A produção de acetil coenzima-A excede a capacidade dos tecidos em utilizá-lo, ocorrendo então acúmulo de corpos cetônicos e acidose. a2) - Perda de bases fixas
A acidose metabólica pode ser causada pela perda de álcali pelo organismo, a qual equivale, do ponto de vista de equilíbrio ácido-base, ao acúmulo de ácido fixo, já que o desaparecimento de uma molécula "básica" (em geral bicarbonato) sempre deixa para trás um próton "órfão", ou seja, não-tamponado. Poderiam ser enquadradas nesse caso, por exemplo, certos tipos de acidose tubular renal caracterizadas por intensa bicarbonatúria. Outro exemplo é a acidose metabólica que pode acompanhar as diarréias severas. O fluido intestinal é rico em bicarbonato, especialmente no íleo e cólon, em virtude do processo de reabsorção de NaCl que ocorre nesses segmentos. Esse bicarbonato é normalmente reabsorvido, não havendo perda resultante de base para o organismo. Os processos diarreicos, por levar a um aumento acentuado do fluxo intestinal e alterar a flora bacteriana intestinal, podem facilitar a perda fecal de bicarbonato e, conseqüentemente, a uma acidose metabólica. a3) -Deficiência funcional renal A acidose metabólica pode também ocorrer por eliminação insuficiente de ácidos fixos. É o que ocorre em certas acidoses tubulares renais (incapacidade funcional dos túbulos, em geral congênita, de excretar prótons em ritmo adequado) e nas insuficiências renais, agudas ou crônicas. Nesses casos, a produção metabólica de ácido está em níveis normais, mas sua eliminação está comprometida pela deficiência funcional dos rins e/ou por destruição de seu parênquima, ilustrando mais uma vez a importância vital dos rins na defesa do organismo contra sobrecargas ácidas. O impacto das insuficiências renais aguda e crônica sobre o equilíbrio ácido-básico é estudado em maior detalhe nos capítulos 14 e 15, respectivamente. b) Compensação respiratória da acidose metabólica Conforme discutido acima, a instalação de uma acidose metabólica
7.0
7.1
7.2
7.3
7.4
7.5
7.6
7.7
7.8
0 10 20 30 40 50
pH
HC
ACIDOSEMETABÓLICA
COMPENSADA
ALCALOSE METABÓLICA
COMPENSADA
ALCALOSE MISTA
ACIDOSE MISTA
ACIDOSE RESPIRATÓRIA COMPENSADA
ALCALOSE RESPIRATÓRIA COMPENSADA
HCO3, mmol/L
1
2
Figura 12.12 – Efeito da instalação de uma acidose metabólica (etapa 1) e de sua compensação por uma hiperventilação (etapa 2)
desencadeia dois processos fisiológicos de compensação: o primeiro é a titulação meramente química do bicarbonato e dos tampões fixos, a qual atenua bastante, embora não impeça, a queda do pH do meio interno. A segunda linha de defesa, conforme também já discutido, é representada pela compensação respiratória. O centro respiratório é sensível a alterações no pH sangüíneo, variando adequadamente o volume respiratório e consequentemente a ventilação alveolar. No caso de uma acidose, a ventilação alveolar aumenta e a pCO2 cai, aumentando o quociente [HCO3
-]/pCO2 e elevando o pH, de acordo com a equação de Henderson-Hasselbalch. A hiperventilação atenua, mas não reverte totalmente, a queda do pH sanguíneo que resulta de uma acidose metabólica. O efeito de uma acidose metabólica e de sua compensação respiratória sobre o diagrama pH-bicarbonato pode ser observado examinando a Figura 12.12: Numa acidose metabólica “pura”, o quadrado vermelho representando o status do paciente (determinado em cada ponto pelo pH e pela [HCO3
-]) desloca-se ao longo da curva de dissociação de bicarbonato (primeira etapa na Figura 12.12). Tal acidose jamais é observada na prática, uma vez que sempre ocorre alguma compensação respiratória. No caso, a hiperventilação resultante deslocou o quadrado vermelho ao longo da nova linha de tamponamento do CO2 (segunda etapa na Figura 12.12). A área em que se situa agora o quadrado vermelho é a da acidose metabólica compensada. Essa região é delimitada pela curva de dissociação de bicarbonato à pCO2 de 40 mmHg e pela linha horizontal correspondente ao pH 7,4. O simples exame desse diagrama pH-bicarbonato permite portanto o diagnóstico instantâneo do tipo de perturbação do equilíbrio ácido-base que está ocorrendo. A compensação respiratória, no entanto, nunca é completa, ou seja, o quadrado vermelho jamais chega à linha horizontal, ou mesmo próximo a ela. Se isso ocorrer, é provável que estejamos diante de um distúrbio respiratório associado. c) Efeito da acidose metabólica sobre a composição eletrolítica do plasma Além da queda no pH e na concentração plasmática de HCO3
-, a acidose metabólica pode estar associada a profundas alterações na composição iônica do meio interno. A mais notória e mais ameaçadora dessas alterações é a hiperpotassemia (ver Capítulo 8). A concentração de potássio tende a aumentar nas acidoses metabólicas agudas devido a uma série de fatores que não estão ainda esclarecidos. É possível que a acidose iniba a atividade da Na+,K+-ATPase celular, promovendo a saída de K+ do espaço intra para o meio extracelular. Outra maneira
pela qual o pH ácido pode promover a saída de K da célula é aumentando a permeabilidade das membranas celulares ao íon. Nas células principais do túbulo distal final e do túbulo coletor, a acidose aguda diminui a concentração intracelular de K+, reduzindo a secreção do íon. No entanto, muitos pontos permanecem obscuros: por exemplo, enquanto as acidoses metabólicas hiperclorêmicas elevam intensamente a potassemia, as metabólicas orgânicas (como a acidose láctica) e as respiratórias (ver adiante) provocam hipercalemias bem mais modestas.
A acidose pode também elevar a concentração de cálcio livre (ionizado) no plasma, embora essa alteração seja em grande parte neutralizada pela ação do sistema de regulação do cálcio, que acaba aumentando a excreção renal desse íon. A acidose metabólica pode influenciar também a concentração de ânions, já que a [HCO3
-], que é um ânion, é profundamente alterada nessas condições. Em princípio, a queda na concentração de HCO3
- deve ser compensada por um aumento na concentração de Cl-, caso contrário estaríamos quebrando a eletroneutralidade do meio interno. Em outras palavras, as acidoses metabólicas tendem a ser hiperclorêmicas. Com freqüência, no entanto, a concentração de Cl- mantém-se constante durante uma acidose metabólica. É necessário aqui introduzir o conceito de anion gap, que poderia ser traduzido por "hiato aniônico" (o termo anion gap é no entanto amplamente utilizado e será mantido neste texto). Em condições normais, a soma das concentrações plasmáticas dos cátions sódio e potássio é superior à da soma dos ânions cloreto e bicarbonato (esses íons são dosados rotineiramente em pacientes com distúrbios hidroeletrolíticos). Essa diferença indica a existência no plasma de uma certa quantidade de outros ânions, (não dosados como Cl- ou HCO3
-), já que a eletroneutralidade deve ser necessariamente mantida. Essa diferença corresponde ao o que denominamos anion gap. Podemos então escrever: Anion gap = ([Na+] + [K+]) - ([Cl-] + [HCO3
-]) (10) Considerando os valores normais para as concentrações plasmáticas desses íons (em mmol/L): [Na+]=140, [K+]=4, [Cl-]= 100, [HCO3
-]=24, teremos:
Anion gap = (140+4)-(100+24)=20 mmol/L
Normalmente, os ânions que constituem o anion gap correspondem, aproximadamente, aos tampões existentes no espaço extracelular (albumina plasmática, fosfatos). Voltemos agora à acidose metabólica. Se a concentração de Cl- mantém-se constante mesmo em face de uma queda na concentração de HCO3
-, o anion gap necessariamente deve aumentar, ou não teríamos manutenção da eletroneutralidade. Isso quer dizer que aumentou a concentração de algum ânion ou ânions que não o cloreto. Não é provável que os fosfatos ou a albumina plasmática, cujas concentrações não sofrem variações abruptas, sejam responsáveis
por esse aumento. É forçoso concluir portanto que o aumento do anion gap nesses casos é devido a algum ânion cuja concentração no meio interno é baixa ou nula em condições normais. É o que acontece por exemplo na acidose láctica: o próprio lactato, cuja concentração no espaço extracelular aumenta acentuadamente (é essa na verdade a causa do distúrbio), é o responsável pelo aumento do anion gap. Também nas fases avançadas da insuficiência renal crônica ocorre uma acidose com anion gap aumentado. Nesse caso o aumento do anion gap é devido à retenção de ânions como sulfato, fosfato e urato, cuja concentração plasmática eleva-se consideravelmente. Já nas acidoses causadas por diarréias não ocorre retenção de qualquer íon anômalo. Portanto, o anion gap altera-se muito pouco (há uma pequena queda devido à titulação de tampões fixos) e a concentração de cloreto aumenta praticamente na mesma medida em que cai a de bicarbonato (acidose hiperclorêmica). Esses conceitos são bastante úteis no diagnóstico e terapêutica desses distúrbios e também para a compreensão de sua fisiopatologia. Na tabela abaixo, representando um caso hipotético, estão descritos de modo esquemático alguns achados típicamente encontrados em pacientes com acidose hiperclorêmica (por uma diarréia, por exemplo), em que o anion gap não está aumentado:
pH PCO2 [HCO3-] [Cl-] Anion gap [Na+] [K+]
Normal 7,40 40 24 100 20 140 4.0 Acidose metabólica 7,32 29 14 111 19 140 4.6
Na tabela abaixo temos um exemplo semelhante de acidose metabólica, na qual entretanto o anion gap está consideravelmente aumentado (por exemplo, acidose láctica):
pH PCO2 [HCO3-] [Cl-] Anion gap [Na+] [K+]
Normal 7,40 40 24 100 20 140 4.0 Acidose metabólica 7,32 29 14 100 30 140 4.6
2) Alcalose metabólica A definição de alcalose metabólica é inteiramente análoga à de acidose metabólica, invertendo-se o sentido das principais variações. Definimos assim alcalose metabólica como um processo que causa o desenvolvimento de um excesso de álcali no organismo, de modo a elevar o pH e a concentração de bicarbonato no meio interno. Há no entanto algumas diferenças importantes entre acidose e alcalose metabólicas. Em primeiro lugar, a frequência das alcaloses
metabólicas é bem menor do que a das acidoses. Em segundo, os mecanismos que atuam nas alcaloses metabólicas são completamente distintos daqueles envolvidos na instalação e manutenção das acidoses metabólicas. Algumas das principais causas de alcalose metabólica são: 1) Perda prolongada de ácido gástrico através de vômitos; 2) Hipopotassemias; 3) Hiperaldosteronismo. a) Causas a1) Vômitos A mucosa do estômago secreta cerca de 100 mEq/dia de íons H+ para a luz gástrica, ao mesmo tempo em que lança uma quantidade idêntica de HCO3
- no meio interno (sob esse aspecto, a mucosa gástrica age de modo análogo ao dos túbulos renais, que secretam ácido para a luz tubular e devolvem HCO3
- à circulação). Normalmente, esses prótons acabam sendo reabsorvidos e retornam ao meio interno, combinando-se novamente com os íons HCO3
- gerados pela mucosa gástrica e não contribuindo para o balanço ácido final do organismo. A situação muda no entanto se houver perda prolongada de fluido gástrico por vômitos freqüentes (hiperemese), como ocorre nas gastroenterites agudas, obstruções digestivas, úlceras pépticas e outras afecções. Nesses casos, a perda de fluido ácido leva a um excesso de íons HCO3
- (que deixam de ser tamponados pelo ácido gástrico reabsorvido) estabelecendo-se em consequência um estado de alcalose metabólica. Os rins deveriam em princípio dar conta dessa situação diminuindo a reabsorção de HCO3
- no túbulo proximal e limitando a secreção de ácido nos segmentos mais distais do néfron. Duas complicações das hiperemeses podem no entanto limitar a operação desse processo de compensação renal: 1) a contração do volume extracelular que também ocorre nesses casos, devido à perda concomitante de NaCl. Para conservar volume, os túbulos proximais reabsorvem mais sódio e, em consequência, mais HCO3
-, dificultando assim a instalação de uma bicarbonatúria. 2) a hipopotassemia também observada nesses casos, já que, além dos íons Na+, Cl- e H+, o fluido gástrico perdido contém também quantidades consideráveis de K+. A hipopotassemia é um fator importante na geração e manutenção das alcaloses metabólicas (ver adiante). a2) Hipopotassemias Conforme discutimos acima, a concentração de potássio no meio interno pode influenciar profundamente o equilíbrio ácido-base, já que a difusão de íons H+ para o interior da célula força à saída concomitante de íons K+ para manter a eletroneutralidade. Na acidose metabólica esse mecanismo pode levar à hiperpotassemia. Inversamente, ocorre no organismo depletado de potássio
(ingestão deficiente, vômitos, uso intempestivo de diuréticos, etc.) a passagem de H+ do espaço extracelular para o interior das células, levando a uma alcalose metabólica. Ao mesmo tempo, e pela mesma razão, ocorre uma certa acidificação intracelular, inclusive nas células tubulares, provocando uma secreção exagerada de H+ e conseqüente reabsorção exagerada de bicarbonato. Esse quadro pode ser ainda agravado pela ativação da H+/K+-ATPase existente no néfron distal. Em condições de depleção de potássio, esse sistema passa a dar prioridade à reabsorção desse cátion, mesmo às expensas de uma secreção forçada de prótons, contribuindo assim para a perpetuação da alcalose metabólica. a3) Hiperaldosteronismo A aldosterona, um hormônio produzido pelas glândulas supra-renais, desempenha um papel de destaque na reabsorção de sódio no túbulo coletor cortical. Exatamente por esse motivo, a aldosterona estimula também a secreção de H+ nesse segmento, uma vez que o estímulo ao transporte de Na+ através da membrana luminal acentua a diferença de potencial entre o lume tubular e o interstício (com o lume negativo), favorecendo assim o transporte de cargas positivas como o H+. Além disso, a aldosterona estimula o transporte ativo de H+ da célula para o lume tubular, aumentando a atividade da H+-ATPase existente na membrana luminal desse segmento do néfron. b) Compensação respiratória da alcalose metabólica De modo análogo ao que ocorre na acidose metabólica, a alcalose metabólica desencadeia um processo de compensação respiratória que se utiliza da peculiar relação entre o CO2 e o HCO3
-. Com o aumento do pH sangüíneo, o centro respiratório diminui a ventilação alveolar, promovendo retenção de CO2 e aumento da pCO2 sangüínea e atenuando os efeitos da alcalose metabólica. A pCO2 pode elevar-se a 50 mmHg ou mais. Há uma enorme limitação à eficácia da
Figura 12.13 – Efeito da instalação de uma alcalose metabólica (etapa 1) e de sua compensação por uma hipoventilação (etapa 2)
7.0
7.1
7.2
7.3
7.4
7.5
7.6
7.7
7.8
0 10 20 30 40 50
pH
HCO3, mmol/L
ACIDOSEMETABÓLICA
COMPENSADA
ALCALOSE METABÓLICA COMPENSADA
ALCALOSE MISTA
ACIDOSE MISTA
ACIDOSE RESPIRATÓRIA COMPENSADA
ALCALOSE RESPIRATÓRIA COMPENSADA
1
2
compensação respiratória nesses casos. Essa limitação é representada pelo desenvolvimento de hipóxia, inevitável quando a ventilação alveolar cai em demasia. Quando isso ocorre, a baixa pO2 passa a exercer no centro respiratório uma influência contrária à da acidemia, impedindo que a ventilação alveolar continue a cair. Por essa razão, a pCO2 dificilmente se eleva acima de 55 mmHg para compensar uma alcalose metabólica. Quando isso chega a acontecer, o mais provável é que se esteja desenvolvendo simultaneamente alguma complicação respiratória. O comportamento de uma alcalose metabólica em termos de diagrama pH-bicarbonato está representado na Figura 12.13. Na alcalose metabólica “pura”, o quadrado vermelho desloca-se ao longo da curva de dissociação de bicarbonato, agora em direção aos pHs mais elevados. Tal como na Figura 12.12, a inevitável compensação respiratória ocorre ao longo da nova linha de tamponamento do CO2, limitada, conforme discutido acima, pelo desenvolvimento simultâneo de hipóxia. A área para onde se desloca o quadrado vermelho após essa compensação é a da alcalose metabólica compensada, delimitada pela curva de dissociação do bicarbonato à pCO2 de 40 mmHg e pela linha horizontal correspondente ao pH 7,4. c) Efeito da alcalose metabólica sobre a composição eletrolítica do plasma Novamente em analogia com as acidoses metabólicas, e de acordo com os mecanismos descritos acima, as alcaloses metabólicas podem levar a uma hipopotassemia, que no entanto não costuma ser das mais severas. Conforme seria de se esperar tendo em vista o que foi discutido em relação às acidoses metabólicas, a concentração plasmática de Cl- está quase sempre diminuída, uma vez que a de HCO3
- está aumentada. O anion gap desses pacientes pode sofrer um ligeiro aumento, novamente devido à titulação de tampões fixos. Descreve-se na tabela abaixo um caso hipotético de alcalose metabólica, com as alterações eletrolíticas e respiratórias correspondentes:
pH PCO2 [HCO3-] [Cl-] Anion gap [Na+] [K+]
Normal 7,40 40 24 101 20 140 4.5 Alcalose metabólica 7,49 49 36 86 22 140 3,3
3) Acidose respiratória Os distúrbios do equilíbrio ácido-base podem ser primariamente causados por uma alteração da função respiratória e, consequentemente, da concentração de ácido volátil no organismo. Na acidose respiratória, a ventilação alveolar é
inadequadamente baixa (insuficiência ventilatória), levando à acidose por retenção de CO2. a) Causas de acidose respiratória As causas de acidose respiratória dividem-se em três grupos principais: a1) Afecções severas do parênquima pulmonar: é o que ocorre na doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e no edema pulmonar agudo. Nesses casos, a superfície alveolar disponível para as trocas gasosas está drasticamente reduzida, levando não apenas à hipóxia como também à retenção de CO2. a2) Restrição mecânica à ventilação: nesses casos, a capacidade normal de expansão pulmonar está comprometida, limitando a quantidade de ar que chega aos alvéolos. Essa limitação pode resultar de uma restrição mecânica, como nas grandes efusões pleurais e nos traumas severos à caixa torácica ou por comprometimento funcional dos músculos responsáveis pelos movimentos respiratórios, tal como ocorre em doenças neuro-musculares como a miastenia gravis e o tétano. a3) Deficiência do centro respiratório: o que se observa aqui é uma deficiência primária do estímulo central à ventilação. Isso ocorre nos casos de em que o centro respiratório está alterado anatomicamente, como nos traumas de crânio ou nos tumores do sistema nervoso central, ou farmacologicamente, nas intoxicações por drogas que deprimem o sistema nervoso central (anestésicos e psicofármacos). b) Compensação metabólica e renal da acidose respiratória Assim como as alterações metabólicas evocam mecanismos respiratórios de compensação, os de origem respiratória levam à ativação das linhas metabólicas de defesa do equilíbrio ácido-base. A primeira delas é novamente represntada pela ação dos tampões fixos. Quando a pCO2 aumenta, a reação de hidratação do CO2 é deslocada
CO2+H2O ----------> H2CO3 ----------> H+ + HCO3- (11)
H+ + A- ----------> HA+ (12)
CO2 + H20 + A- ------------------------------------> HA+HCO3- (13)
para a direita, gerando um fluxo contínuo de íons H+, que faz cair o pH. Num primeiro momento (fase aguda da acidose respiratória), a concentração de HCO3
- permanece praticamente constante (lembre-se de que a concentração de HCO3
- é da ordem de mmol/L, enquanto a de H+ está na faixa de nmol/L). Com o tempo, os íons H+ vão sendo tamponados, principalmente pelas cargas negativas da hemoglobina e da albumina plasmática (representadas por A- nas equações acima). A cada íon H+ que é tamponado, um íon HCO3
- é acrescentado ao meio interno. Conforme representado na figura, tudo se passa como se os íons A- reagissem com o CO2 gerando a forma indissociada do tampão (HA) e íons HCO3
-. Esse processo continua até que o pH e as concentrações de HA, A- e HCO3- entrem em novo equilíbrio. Na maior parte dos casos, a quantidade de HCO3
- gerada nesses processos agudos não excede 3-4 mmol/L, mesmo com grandes elevações da PCO2.
Se a elevação da PCO2 persistir por mais de um dia, entrará em cena um sistema de proteção bem mais poderoso: a geração de HCO3
- pelos rins, que pode levar a concentração desse íon ao dobro do normal em 4 ou 5 dias (fase crônica da acidose respiratória). Com isso, a reação descrita na equação 13 é deslocada de volta para a esquerda e os tampões HA dissociam-se, restituindo ao meio os íons A- que haviam sido titulados anteriormente. Essa resposta renal reflete um aumento na secreção tubular de H+, especialmente através da produção de amônia. Além disso, aumenta a reabsorção proximal de HCO3
-, contribuindo para a manutenção de níveis altos desse íon. Ao que tudo indica, todo esse processo de adaptação renal é em grande parte mediado pelo aumento da pCO2, presumivelmente porque esse aumento facilita a geração intracelular de H+. É importante lembrar que, mesmo trabalhando no limite de sua capacidade, os rins nunca conseguem compensar inteiramente o distúrbio inicial. As alterações impostas ao diagrama pH-bicarbonato por uma acidose respiratória aguda são mostradas na Figura 12.14. Nessa fase, o quadrado
7,0
7,1
7,2
7,3
7,4
7,5
7,6
7,7
7,8
0 10 20 30 40 50
pH
HCO3, mmol/L
ACIDOSEMETABÓLICA
COMPENSADA
ALCALOSE METABÓLICA
COMPENSADA
ALCALOSE MISTA
ACIDOSE MISTA
ACIDOSE RESPIRATÓRIA COMPENSADA
ALCALOSE RESPIRATÓRIA COMPENSADA
Figura 12.14 – Efeito de uma acidose respiratória aguda sobre o diagrama pH-bicarbonato
vermelho desloca-se ao longo da linha de tamponamento de CO2, em direção aos pHs mais ácidos. Devido à inclinação dessa linha, esse movimento é acompanhado de um aumento na concentração de bicarbonato, o qual se explica pelos mecanismos descritos nas Equações 11 a 13. É importante notar que a curva de dissociação do HCO3
- desloca-se acompanhando o quadrado vermelho (ou seja, muda a isóbara de CO
2). Na fase crônica, representada na Figura 12.15, o
quadrado vermelho desloca- se ao longo da nova isóbara, rumo a pHs menos ácidos. Esse movimento reflete a ação renal, que gera HCO
3
- novo a fim de compensar o excesso de ácido volátil provocado pela insuficiência ventilatória. A área onde se fixa o quadrado vermelho quando o processo se completa é a da acidose respiratória compensada, novamente delimitada pela curva de dissociação do bicarbonato à pCO2 de 40 mmHg e pela linha horizontal correspondente ao pH 7,4. c) Efeito da acidose respiratória sobre a composição eletrolítica do plasma A acidose respiratória leva a uma queda na concentração plasmática de cloreto, aproximadamente simétrica em relação ao aumento da concentração de HCO3
-. Nas primeiras horas após o início do quadro (fase aguda da alcalose respiratória), o anion gap sofre também uma ligeira queda, motivada pela titulação dos tampões fixos (representados por A- na figura anterior). Com o início do processo de compensação renal (fase crônica da acidose respiratória) a [HCO3
-]
7,0
7,1
7,2
7,3
7,4
7,5
7,6
7,7
7,8
0 10 20 30 40 50
pH
HCO3, mmol/L
ACIDOSEMETABÓLICA
COMPENSADA
ALCALOSE METABÓLICA
COMPENSADA
ALCALOSE MISTA
ACIDOSE MISTA
ACIDOSE RESPIRATÓRIA COMPENSADA
ALCALOSE RESPIRATÓRIA COMPENSADA
aguda
crônica
Figura 12.15 – Efeito sobre o diagrama pH-bicarbonato de uma acidose respiratória crônica, já com compensação renal
tende a subir ainda mais, deslocando a reação descrita na equação 13 para a esquerda e liberando íons A-. Com isso, o anion gap volta nessa fase a seu valor habitual. Curiosamente, a concentração plasmática de K+ altera-se muito pouco, em contraste com o observado nas acidoses metabólicas. As razões para essa discrepância são desconhecidas. Descrevem-se na tabela abaixo as alterações eletrolíticas e respiratórias que poderiam ser encontradas em duas situações hipotéticas de acidose respiratória, uma aguda e outra crônica, esta última já com o processo de compensação renal plenamente estabelecido:
pH PCO2 [HCO3-] [Cl-] Anion gap [Na+] [K+]
Normal 7.40 40 24 100 20 140 4 Acid. respirat. (aguda) 7.21 70 27 100 17 140 4,2
Acid. respirat. (crônica) 7.35 70 38 87 19 140 4,2 3) Alcalose respiratória: Quando o distúrbio inicial consiste em uma hiperventilação, temos um processo inverso com relação ao que acabamos de descrever, com queda na PCO2 e a instalação de uma alcalose respiratória. a) Causas principais
Há três grupos principais de causas de alcalose respiratória:
a1) Queda na tensão de O2 (hipóxia): A hipóxia constitui um poderoso estímulo para o centro respiratório, levando à hiperventilação compensatória. Uma série de afecções do parênquima pulmonar podem causar hipóxia devido a uma inadequação entre a perfusão e a ventilação pulmonares (ou seja, uma parte do parênquima pulmonar deixa de efetuar a ventilação alveolar, mas continua recebendo perfusão sangüínea). A hiperventilação resultante é ineficaz no sentido de reverter a hipóxia, mas leva a uma queda na pCO2 e portanto a uma alcalose respiratória. São causas comuns dessa anomalia as pneumonias, as embolias pulmonares e a fibrose pulmonar. As anemias severas e a exposição a grandes altitudes são também causas possíveis de hiperventilação secundária a hipóxia. a2) Ansiedade excessiva. Nesses casos, a estimulação cortical anômala sobre o centro respiratório predomina sobre os estímulos fisiológicos (pO2 e pH), levando a uma hiperventilação.
a3) Alterações do sistema nervoso central. O estímulo anômalo à hiperventilação pode originar-se no próprio centro respiratório, cuja funcionamento pode estar alterado por uma lesão anatômica (tumores, infecções, trauma), por efeito farmacológico (intoxicação por salicilatos), por infecções generalizadas ou por febre alta. b) Compensação renal e metabólica da alcalose respiratória Quando a pCO2 diminui persistentemente, a reação de hidratação do CO2 é CO
2 + H2O <---------- H2CO3 <---------- H+ + HCO3
- (14) H+ + Na+ + A- <-----------------------------HA+ Na+ (15) CO
2 + H20 + A- <--------------------------------HA+HCO3
- (16) deslocada para a esquerda. Com isso, a [H+] cai, fazendo aumentar o pH.Como na acidose respiratória, a concentração de HCO3
- não sofre alteração apreciável num primeiro momento. Aos poucos, no entanto, a queda na [H+] leva à dissociação dos tampões hemoglobina e albumina (representados por HA nas equações 14-16), gerando íons H+. A cada íon H+ assim acrescentado ao meio, um íon HCO3
- é neutralizado, resultando na formação de CO2 e H2O. Conforme representado nas equações 14-16, o processo como um todo equivale a uma reação entre os tampões HA (albumina, hemoglobina) e o íon HCO3
-, gerando CO2, H2O e íons A-. Temos em conseqüência uma queda na [HCO3
-] do meio interno (a qual dificilmente ultrapassa 4-5 mmol/L) e uma elevação praticamente simétrica do anion gap. Esse
7,0
7,1
7,2
7,3
7,4
7,5
7,6
7,7
7,8
0 10 20 30 40 50
pH
HCO3, mmol/L
ACIDOSEMETABÓLICA
COMPENSADA
ALCALOSE METABÓLICA
COMPENSADA
ALCALOSE MISTA
ACIDOSE MISTA
ACIDOSE RESPIRATÓRIA COMPENSADA
ALCALOSE RESPIRATÓRIA COMPENSADA agudacrônica
Figura 12.16 – Efeito de uma alcalose respiratória aguda sobre o diagrama pH-bicarbonato
efeito está representado na Figura 12.16, na qual o quadrado vermelho percorre a linha de tamponamento de CO2 em direção a pHs mais alcalinos. Se o processo persiste por mais de um dia, os rins entram em ação excretando HCO3
- (bicarbonatúria) e limitando a secreção de H+, podendo reduzir em poucos dias a [HCO3
-] plasmática a 15 mEq/l ou menos.. Essa queda na [HCO3-] desloca a reação
representada pela equação 16 de volta para a direita, levando a uma recomposição dos tampões albumina e hemoglobina. O quadrado vermelho fixa-se agora na área correspondente à alcalose respiratória compensada (Figura 12.17). Tal como nos demais distúrbios do equilíbrio ácido-base, a perturbação inicial nunca é totalmente corrigida, mesmo após a compensação renal. c) Efeito da alcalose respiratória sobre a composição eletrolítica do plasma A alcalose respiratória leva a uma elevação na [Cl-] plasmática, aproximadamente simétrica em relação à queda na concentração de HCO3
-. Conforme discutido acima, o anion gap aumenta nas primeiras horas após a instalação da alcalose respiratória (fase aguda). Com o evoluir da compensação renal (fase crônica da alcalose respiratória), a queda na [HCO3
-] leva à neutralização dos íons A- e à redução do anion gap. Não ocorrem alterações consistentes de outros íons nas alcaloses respiratórias. Na tabela abaixo estão descritas as alterações respiratórias e eletrolíticas que poderiam ser encontradas em dois casos hipotéticos de alcalose respiratória, o primeiro agudo e o segundo crônico.
7,0
7,1
7,2
7,3
7,4
7,5
7,6
7,7
7,8
0 10 20 30 40 50
pH
HCO3, mmol/L
ACIDOSEMETABÓLICA
COMPENSADA
ALCALOSE METABÓLICA
COMPENSADA
ALCALOSE MISTA
ACIDOSE MISTA
ACIDOSE RESPIRATÓRIA COMPENSADA
ALCALOSE RESPIRATÓRIA COMPENSADA
aguda
crônica
Figura 12.17 – Efeito sobre o diagrama pH-bicarbonato de uma alcalose respiratória crônica, já na fase de compensação renal
pH PCO2 [HCO3
-] [Cl-] Anion gap [Na+] [K+] Normal 7.40 40 24 100 20 140 4
Alcal. respirat. (aguda) 7.63 20 20 100 24 140 4 Alcal. respirat. (crônica) 7.50 20 15 107 22 140 4
4) Distúrbios mistos do equilíbrio ácido-base Quando ocorre uma alteração simultânea na produção e/ou eliminação de ácidos fixos e voláteis, estamos diante de um distúrbio misto do equiliíbrio ácido-
base. Esses casos ocorrem em geral em pacientes em estado grave, nos quais podem coexistir alterações respiratórias e metabólicas severas. O quadro será ainda mais grave se os dois distúrbios, o respiratório e o metabólico, ocorrerem no mesmo sentido, isto é, se houver ao mesmo tempo excesso ou escassez de ácido fixo e volátil, como por exemplo em um paciente com doença pulmonar obstrutiva crônica (acidose metabólica por hipoventilação) e choque circulatório (acidose metabólica). Nos diagramas pH-bicarbonato ilustrados acima, esses distúrbios estão localizados nas porções centrais superior e inferior, conforme assinalado. É possível também a ocorrência de uma combinação de distúrbios de sinais opostos, como uma acidose metabólica e uma alcalose respiratória não apenas compensatória (por exemplo, choque circulatório com acidose láctica em um paciente com hiperventilação devido a uma pneumonia extensa). Nesses casos, podemos chegar a situações aparentemente estranhas, como o achado de um pH sangüíneo normal em um paciente com uma bicarbonatemia e uma pCO2 baixíssimas. Na verdade, os dois distúrbios cancelam-se mutuamente quanto a seus efeitos sobre o pH, mas seus demais efeitos somam-se, agravando ainda mais o estado do paciente.
EXERCÍCIOS
1) Acione inicialmente o programa “Titulação com ácido forte”: Temos
aqui uma solução de um tampão fixo, sendo as seguintes suas condições iniciais: concentração de tampão: 20 mmol/L; pK do tampão: 7; pH da solução: >14 (conforme indicada pela seta vermelha à direita da curva em amarelo, que representa a curva de dissociação do tampão). Observe ainda que a equação que representa a reação de dissociação do tampão (H+ + A-
⇔ HA) está inteiramente deslocada para a esquerda, indicando que o tampão está totalmente dissociado. Esse deslocamento aparece também no gráfico intitulado “SAL vs. ÄCIDO”, no qual a barra vermelha, que representa a forma dissociada (sal) do tampão (A-), é a única presente.
2) Adicione ácido forte ao sistema usando a barra deslizante correspondente
(a quantidade de ácido adicionada aparece no gráfico situado mais à direita na tela). Observe que o ponto vermelho percorre a curva de titulação do tampão de cima para baixo, à medida que o pH vai caindo. Ao mesmo tempo, a equação que representa a dissociação do tampão desloca-se cada vez mais para a direita, enquanto a proporção entre a forma dissociada (A-) e não dissociada (HA) do tampão vai caindo cada vez mais. Observe que, quando o ponto vermelho atinge o centro da curva amarela, a proporção A-/HA é exatamente 1:1, ou seja, o tampão encontra-se dissociado em precisos 50%. O pH correspondente a esse ponto é de 7, ou seja, idêntico ao pK do tampão. Esse é o ponto onde a curva se encontra em um grau máximo de horizontalização. É portanto nesse ponto que a eficiência do tampão é máxima (ou seja, onde é menor a queda do pH para uma mesma quantidade de ácido adicionada). Conforme adicionamos ainda mais ácido, o círculo vermelho vai percorrendo a curva amarela rumo a pHs cada vez mais baixos, até desaparecer, indicando uma queda abrupta do pH (ou seja, o tampão esgotou-se). O indicador de pH muda de cor quando o pH cai abaixo de 4. Observe o gráfico à direita: a quantidade de ácido que pôde ser adicionada até esgotamento do tampão foi de 20 mmol/L, idêntica à concentração total do tampão. Esse processo é análogo ao que ocorre no interior dos túbulos renais, especialmente a partir do túbulo distal: as células tubulares secretam ácido para a luz, titulando os tampões ali presentes.
3) Retorne à situação padrão acionando o botão correspondente. Reduza
agora a concentração do tampão movendo a respectiva barra vertical. A porção horizontalizada da curva amarela vai-se estreitando, até desaparecer totalmente quando a concentração do tampão é reduzida a
zero. Fixe agora a concentração de tampão em um valor intermediário (por exemplo, 10 mmol/L) e repita a operaçã de adicionar ácido ao sistema, como no ítem 1. Observe que a movimentação do círculo vermelho e a evolução da proporção A-/HA é semelhante à observada anteriormente. No entanto, a quantidade de ácido que o sistema consegue armazenar antes de se esgotar é menor, equivalendo à concentração total de tampão.
4) Retorne novamente à situação padrão. Varie agora o pK do tampão. Observe que a curva amarela desloca-se verticalmente de modo correspondente, de modo a que o pH correspondente ao centro de sua porção horizontalizada seja sempre idêntico ao pK do tampão. Adicione ácido: tudo se passa como no ítem 1, exceto pelo deslocamento vertical da curva amarela. Isso significa que cada tampão tem um pH ótimo de trabalho, correspondente a seu pK. Há tampões que funcionam melhor no pH do sangue’: sua finalidade é a de impedir variações bruscas do pH. Outros funcionam melhor no pH urinário, normalmente muito mais baizo. Sua função ali é a de armazenar ácido a ser secretado, sem que o pH urinário caia a valores muito baixos.
5) Saia do programa e acione “Titulação com base forte”: Temos aqui uma
situação semelhante à do programa “Titulação com ácido forte” (concentração de tampão fixo= 20 mmol/L; pK do tampão = 7), mas o pH inicial da solução: é < 3 (conforme indicado pela seta vermelha à esquerda da curva de dissociação do tampão). A equação que representa a reação de dissociação do tampão (H+ + A- ⇔ HA) está inteiramente deslocada para a direita, indicando que o tampão está totalmente na sua forma associada. Esse deslocamento aparece também no gráfico intitulado “SAL vs. ÄCIDO”, no qual a barra branca, que representa a forma associada (ácida) do tampão (HA-), é a única presente
6) Adicione base forte ao sistema usando a barra deslizante correspondente
(a quantidade de base adicionada aparece no gráfico situado mais à direita na tela). Observe que agora o ponto vermelho percorre a curva de titulação do tampão de baixo para cima, à medida que o pH vai subindo Como no exercício anterior, observe o comportamento da equação de dissociação e da proporção A-/HA, notando que o sentido do movimento é inverso em relação àquele observado no exercício 2.
7) Acione “Curva de dissociação de bicarbonato”. Neste sistema
tampão, o sal é representado pelo bicarbonato, e o ácido pelo CO2
dissolvido no sistema, cuja concentração é diretamente proporcional à pCO2. Esta, por sua vez, é mantida constante através de um dispositivo especial. Observe que, nesse sistema, idêntico ao espaço extracelular humano em termos das concentrações de HCO3
- e CO2, a relação HCO3-
/CO2 (equivalente à relação A-/HA no caso dos tampão fixo) é extremamente elevada, ou seja, predomina amplamente o componente sal. O pH do organismo humano é de 7,4. Como o pK do sistema HCO3
-
/CO2 é de 6,1, somente a um pH de 6,1 as concentrações de HCO3- e de
CO2 dissolvido seriam equivalentes. Os dois gráficos que aparecem na tela (pH vs. [HCO3
-]) descrevem a mesma função: a curva de dissociação
de bicarbonato, novamente representada em amarelo. Essa curva equivale à curva de dissociação de tampões fixos estudada nos exercícios anteriores. Essa curva também apresenta uma quase verticalização junto à origem, ou seja, quando a concentração de bases fixas no sistema é muito baixa. No entanto, a porção quase vertical que deveria aparecer em concentrações mais altas de base, como nos exercícios anteriores, está ausente. Isso ocorre porque a concentração da fase ácida desse sistema, o CO2, é mantida constante (da mesma forma que, no organismo, a pCO2 é mantida constante pela ventilação alveolar). O gráfico maior representa a curva de dissociação de HCO3
- na faixa usualmente observada em humanos, em condições fisiológicas ou não.
1) Varie a quantidade de ácido fixo ou base fixa adicionada ao sistema. Observe que a reação de dissociação do HCO3
- sofre desvio à esquerda, enquanto a concentração de HCO3
- cai, quando acrescentamos ácido ao sistema (ou seja, quando reduzimos a quantidade de base fixa), indicando consumo de HCO3
-. Quando se acrescenta base fixa ao sistema, a reação desloca-se para a direita devido ao consumo de H+, provocando a geração de HCO3
- a partir do CO2. O círculo vermelho desloca-se ao longo da curva de dissociação de HCO3
-. 2) Varie a pCO2 do sistema. Observe que a curva de dissociação
de HCO3- desloca-se como um todo para baixo quando a pCO2
aumenta e para cima quando a pCO2 diminui. Cada uma dessas curvas é uma isóbara correspondente àquela pCO2 em particular. A adição de ácido fixo ou base fixa faz o círculo vermelho mover-se ao longo de cada uma dessas isóbaras.
Acione “Curva de tamponamento de CO2”: Esta tela contém os mesmos
elementos qua a anterior, mas há duas diferenças: a) o foco principal recai sobre o efeito da variação da pCO2sobre o pH e a [HCO3
-]; b) coexistem agora dois sistemas tampão: CO2/ HCO3
- e tampões fixos (A-/HA).
1. Observe que, inicialmente, o programa assume um valor zero
para a concentração de tampões fixos (“não bicarbonato”). Varie a pCO2 do sistema, observando a variação do pH e da [HCO3
-]. Observe que o círculo vermelho movimenta-se ao longo de uma linha perfeitamente vertical: uma variação da pCO2 provoca uma variação inversa do pH, sem alteração perceptível da [HCO3
-]. Isso ocorre devido ao deslocamento para a direita da reação de dissociação do HCO3
-, conforme mostra a equação no alto da tela. A [HCO3
-], expressa em mmol/L, não se altera, porque a quantidade de HCO3
- gerada por essa reação, expressa em nmol/L é desprezível (no entanto, seu efeito em relação ao pH, também expresso em nmol/L, é bastante significativo).
2. Aumente agora a concentração de tampões fixos para 20 mmol/L, da mesma ordem de grandeza que aquela existente no espaço extracelular. Observe que a linha descrevendo a variação do pH em relação ao HCO3
- inclina-se para a esquerda. Isso quer dizer que, nessas condições, uma elevação da pCO2, além de fazer baixar o pH, também elevará em uns poucos mmol/L a [HCO3
-]. Isso ocorre porque os tampões fixos (A-
/HA) presentes na solução neutralizam parte da acidez gerada pelo CO2 através da reação CO2+ A- + H2O ⇔ HCO3
- + HA, gerando um íon HCO3
- para cada A- consumido. Observe ainda que, quanto maior a concentração de tampão fixo presente no sistema, maior a inclinação da reta e portanto maior a quantidade de HCO3
- gerada. 3. Varie a pCO2 mantendo em 20 mmol/L a concentração de
tampões fixos. Observe novamente o deslocamento da isóbara. O acréscimo de ácido ou base fixa ao sistema fará o círculo vermelho deslocar-se ao longo da nova isóbara.
Acione “Acidificação urinária” Este programa permite variar apenas a produção/ingestão diária de ácido bem como o segmento do néfron que desejamos observar. Inicie suas observações mantendo a produção de ácido no nível basal proposto (54 mEq/dia) e estudando o que acontece no glomérulo (ou seja, no filtrado glomerular, cuja composição em termos de pH e [HCO3
-] é idêntica à do plasma), assinalando o círculo correspondente. Observe bem os valores basais, indicados pelo disco vermelho presente em todos os gráficos. Verifique que o valor do pH é de 7.4, enquanto a concentração de HCO3 é de 24 mEq/l, valor correspondente a uma pCO2 de 40 mmHg (o programa assume uma pCO2 constante). Preste ainda atenção ao fato de que, nesse pH, os tampões fixos presentes no fluido tubular encontram-se quase
totalmente sob a forma não dissociada, uma vez que seu pK médio é próximo a 6 e portanto distante do pH do meio interno. É evidente ainda que não existe “acidez titulável” ou produção de NH4, fenômenos que se irão manifestar apenas nos túbulos. Finalmente, uma observação importante: para uma ampla faixa de variação, a excreção de ácido iguala-se à ingestão, indicando que o rim é capaz de manter em níveis apropriados o balanço ácido.
1 - Passe para o túbulo proximal clicando sobre o respectivo círculo. Observe como,
em todas as curvas, os discos vermelhos deslocam-se simultaneamente para o ponto correspondente. Verifique as seguintes alterações: a) todos os discos vermelhos seguem a linha pontilhada azul, a qual representa a condição normal; b) o pH cai relativamente pouco no final do túbulo proximal, atingindo cerca de 6.8 no final desse segmento; c) apesar disso, apenas 10% da carga filtrada de HCO3 ali permanecem, indicando um intenso processo de reabsorção proximal de HCO3. Esse paradoxo é apenas aparente, sendo fácil entender o que acontece observando a curva de dissociação de HCO3. Para uma variação de pH de 7.4 a 6.8, a concentração de HCO3 reduz-se de 24 a 5 mEq/l, ilustrando a extrema eficiência tamponante do sistema CO2/HCO3; d) Os tampões fixos presentes no fluido tubular modificam-se muito pouco, ainda em conseqência de seu baixo pK. Gera-se portanto muito pouca acidez titulável nesse segmento. e) ocorre geração de NH4. Na verdade, a maior parte do NH4 gerado no rim é produzida no túbulo proximal..
2 - Passe para a alça fina (AF). Verifique que a situação não se modifica muito em
relação àquela observada no final do túbulo proximal. Há no entanto uma importante diferença: a quantidade de NH4 presente ao final desse segmento é menor do que a observada ao fim do túbulo proximal. A razão para isso é que ocorre conversão de NH4 a NH3 na papila renal (devido à concentração de HCO3 pelo sistema de contracorrente). Sendo a NH3 um gás extremamente difusível, ela abandona a alça fina e chega ao duto coletor, onde retorna à forma iônica. Esse movimento é importante para permitir a excreção renal de quantidades adequadas de amônia.
3 - Vá à alça espessa (AE). Nesse segmento, ocorre nova queda do pH e reabsorção
da maior parte do HCO3 restante (sempre ao longo da linha azul). Veja que, devido à forma da curva de dissociação de HCO3, torna-se necessária uma queda progressivamente maior do pH para reabsorver quantidades cada vez menores desse íon. Verifique ainda que ocorre geração adicional de acidez titulável nesse segmento, enquanto a produção de NH4 é pouco significativa.
4 - Ao final do túbulo distal (Dist), verifique a geração de acidez titulável em
quantidade apreciável, com a titulação da maior parte dos tampões urinários.
Com isso, reabsorve-se ainda mais HCO3. O pH do fluido urinário cai a valores próximos de 6. Ocorre produção adicional de amônia.
5 - Finalmente, vá ao final do túbulo coletor, ou seja à urina final. Ocorre aqui a
acidificação final do fluido urinário, titulando-se quase todo o tampão disponível. O pH cai a valores inferiores a 6. A quantidade de HCO3 que chega à urina é insignificante. Há adição de uma quantidade considerável de NH4 ao fluido tubular, em boa parte devido à difusão de NH3 desde a papila, conforme descrito acima. Observe ainda que aparecem dois novos gráficos. O primeiro representa o balanço de ácido fixo que, como vimos, é zero em condições normais. O segundo indica que a excreção de ácido fixo pelo rim consiste essencialmente na eliminação de quantidades aproximadamente iguais de ácido titulável e de NH4 (a pequena quantidade de HCO3 que é excretada deve ser subtraída desse total).
6 - Aumente agora a taxa de produção de ácido fixo pelo organismo. Note que a
excreção de ácido urinário acompanha exatamente a produção, fazendo com que o balanço de ácido fixo seja zero. Essa adaptação consiste essencialmente em um aumento na excreção de amônio, uma vez que a acidez titulável sobe muito pouco (por que?). A partir de um certo ponto, no entanto, o rim não mais consegue compensar a produção de ácido fixo. O balanço de ácido torna-se então positivo e o indivíduo entra em acidose metabólica, conforme indicado pela queda no pH sangüíneo. Reduza agora a produção de ácido (o que equivale à perda de ácido pelo organismo). O rim novamente se adapta, reduzindo a excreção tubular de ácido. A partir de um certo ponto, estabelece-se um balanço negativo de ácido. O indivíduo entra em alcalose metabólica, o que se reflete em uma elevação do pH sangüíneo. Nessas condições, pode ocorrer excreção de bicarbonato, conforme indicado pela coluna vermelha no gráfico situado à direita e no meio
Acione “Acidoses e alcaloses”.
1 - Simule uma acidose metabólica, variando a produção de ácido fixo. Observe que é possível aumentar de modo idêntico a produção renal de HCO3, de tal forma a manter o balanço de ácido. No entanto, a produção de HCO3 tem um limite, acima do qual não mais consegue acompanhar a produção de ácido. Observe o que acontece nessas circunstâncias (ou seja, quando a produção supera a excreção) com o pH e com as concentrações de HCO3
-, Cl- e com o “anion gap”. No gráfico maior, observe a posição do círculo vermelho, que representa o status ácido-base do paciente. Observe ainda o que acontece com a relação sal/ácido dos tampões não-bicarbonato. Discuta e procure explicar cada uma dessas variações. Simule agora uma compensação respiratória para o distúrbio metabólico. Repita as observações anteriores nessa nova condição. Para onde vai
o círculo vermelho? Note que é possível obter o mesmo efeito diminuindo a produção renal de bicarbonato e mantendo normal a produção de ácido.
2 - Simule uma acidose metabólica do mesmo modo que no ítem anterior, mas com
um ânion anômalo (p. ex° lactato) acompanhando o H+, assinalando para isso o círculo correspondente (Essa opção só está disponível no caso de uma acidose metabólica por aumento da produção de ácido fixo). Observe novamente o que acontece ao pH e às concentrações de HCO3-, Cl, “anion gap”e à relação sal/ácido dos tampões não-bicarbonato. Observe também a posição do círculo vermelho. Discuta e procure explicar cada uma dessas variações.
3 - Simule uma alcalose metabólica através de uma sobrecarga de base fixa,
diminuindo para isso abaixo de 50 o valor da produção de ácido fixo (o que em termos de equilíbrio ácido-base equivale a uma sobrecarga de base fixa). Observe novamente o que acontece ao pH, às concentrações de HCO3-, Cl-, “anion gap”, à relação sal/ácido dos tampões não-bicarbonato e à posição do círculo vermelho. Discuta e procure explicar cada uma dessas variações. Simule agora uma compensação respiratória para o distúrbio metabólico. Repita as observações anteriores nessa nova condição.
4 - Simule agora uma acidose respiratória através de um aumento da pCO2. Observe
novamente o que acontece ao pH e às concentrações de HCO3-, Cl e “anion gap”, à relação sal/ácido dos tampões não-bicarbonato e à posição do círculo vermelho. Discuta e procure explicar cada uma dessas variações. Simule agora uma compensação renal para o distúrbio respiratório. Repita as observações anteriores nessa nova condição.
5 - Simule uma alcalose respiratória através de uma queda na pCO2. Observe
novamente o que acontece ao pH e às concentrações de HCO3-, Cl-, “anion gap”, à relação sal/ácido dos tampões não-bicarbonato e à posição do círculo vermelho. Discuta e procure explicar cada uma dessas variações. Simule agora uma compensação renal para o distúrbio respiratório, diminuindo a quantidade de HCO3 gerado pelo rim. Repita as observações anteriores nessa nova condição.
6 - Procure chegar a um distúrbio misto do equilíbrio ácido-base. É possível uma
situação na qual dois distúrbios distintos coexistam sem que o pH sangüíneo se altere?
1
CAPITULO 13 - DISTÚRBIOS DO CÁLCIO E DO FÓSFORO Luciene Machado dos Reis e Vanda Jorgetti
13.1 INTRODUÇÃO
As primeiras formas de vida desenvolveram-se nos mares, onde eram elevadas
as concentrações de potássio e magnésio, e baixas as de sódio e cálcio. Essa
composição iônica é observada até hoje no meio intracelular da maioria dos seres
vivos, refletindo provavelmente uma herança daquelas formas primitivas de vida.
Com o tempo, alterações geológicas modificaram a composição dos mares
aumentando a concentração de sódio e cálcio. Os organismos primitivos adaptaram-se
a essa mudança, desenvolvendo bombas e canais iônicos nas suas membranas
celulares, permitindo manter a assimetria da concentração de cátions mono e
divalentes entre o meio interno e externo. O aparecimento dessas bombas e canais
pode ser considerado um marco fundamental na manutenção da homeostase celular.
A passagem da vida do meio aquático para o terrestre criou uma dependência
desses seres com relação aos minerais do meio ambiente. A regulação dessa
dependência passou a se fazer através de órgãos como o intestino, os rins e o osso,
bem como de hormônios, como o paratormônio (PTH) e a Vitamina D [1,25(OH)2D3].
13.2 Papel fisiológico do cálcio
O cálcio é o 50 elemento mais comum no universo, o principal mineral do
esqueleto e um dos cátions mais abundantes no organismo, representando cerca de 2%
2
do peso corporal, ou seja de 1000 a 1500 g no indivíduo adulto. Aproximadamente
99% do cálcio corporal encontra-se no esqueleto, principalmente sob a forma de
cristais de hidroxiapatita [Ca10(PO4)6(OH)2]. O restante (1%) encontra-se nos dentes,
tecidos moles e no fluido extracelular. Cerca de 1% do cálcio ósseo é livremente
intercambiável com o cálcio do fluido extracelular.
O cálcio presente no espaço extracelular tem papel essencial na mineralização
de ossos e dentes, onde se apresenta sob a forma de precipitados insolúveis com os
ânions fosfato e carbonato, num total de aproximadamente 1 kg. O cálcio extracelular
ccorresponde a um ínfima parcela do que está presente no esqueleto solúvel. No
entanto, essa pequena parcela tem uma importância imensa: além de ser essencial a
processos fisiológicos tais como a coagulação sangüínea, o cálcio solúvel extracelular
influencia profundamente a eletrofisiologia de células excitáveis, tais como os
miócitos e as células musculares lisas. Por essa razão, variações na concentração de
cálcio no espaço extracelular podem levar a arritmias cardíacas graves, o que torna
obrigatória a manutenção dessa concentração dentro de limites bastante estreitos –
essa é, como veremos, a principal função do paratormônio.
A concentração intracelular de cálcio é muito baixa, sendo quatro ordens de
magnitude inferior à extracelular. Há no entanto uma quantidade muito maior de
cálcio em compartimentos intracelulares, onde o íon é estocado para atender às
necessidades específicas das células (por exemplo, contração, no caso da célula
mescular lisa). Uma terceira parcela do cálcio intracelular localiza-se no próprio
plasmalema, cuja integridade estrutural ajuda a manter. A distribuição, localização e
principais funções do cálcio no organismo estão descritas na tabela 13.1.
3
Tabela 13.1- Distribuição, localização e principais funções do cálcio no organismo
Compartimento Forma Localização quantidade (g) Funções intracelular
solúvel citoplasma, núcleo 0,02 g potencial de ação,
contração, motilidade, regulação metabólica, função citoesquelética, divisão celular, secreção
insolúvel
plasmalema, retículo endoplasmático
9 g integridade estrutural e estoque
extracelular solúvel fluído extracelular 1 g potencial de membrana
exocitose e contração muscular coagulação sanguínea
insolúvel ossos e dentes 1000g proteção locomoção ingestão de nutrientes estoque mineral
Adaptado de Brown E M In: The Parathyroids: basic and clinical concepts. New York: Raven Press, p 16 , 1994.
Homeostase do Cálcio
Os níveis séricos de cálcio são controlados por meio de uma resposta integrada de
hormônios reguladores: o paratormônio (PTH), a vitamina D [1,25(OH2D3 ] e a
calcitonina. A meta principal dos mecanismos reguladores do cálcio é a manutenção
dos níveis séricos desse íon dentro de uma faixa bastante estreita que vai de 8.8 a 10,5
mg/dl, já que fora dela é grande, como vimos, o risco de desenvolver arritmias
cardíacas. Em pH e temperatura normais, aproximadamente 50% do cálcio sérico
encontra-se na forma ionizada, que é a fração fisiologicamente ativa e importante no
transporte e transmissão de sinais celulares. Outros 40% do cálcio sérico estão ligados
às proteínas plasmáticas, sendo 36% ligados à albumina.. Dessa forma, alterações na
concentração de albumina influenciam a concentração do cálcio sérico. Sabe-se que
1g de albumina liga 0,8 mg/dl de cálcio e essa relação é utilizada para corrigir os
valores de cálcio sérico, quando a concentração da albumina está alterada. Os 10%
4
restantes do cálcio sérico formam complexos com outras substâncias, especialmente
citrato e fósforo. Tanto a fração iônica como a complexada são ultrafiltradas pelo rim,
enquanto a fração ligada às proteínas é retida nos glomérulos.
Em um adulto normal, existe um intercâmbio lento mas contínuo de cálcio
entre o seu principal reservatório, o esqueleto, e o meio extracelular. Além disso, há
um balanço constante entre a absorção intestinal de cálcio e sua excreção pelos rins.
Essas relações, representadas de forma esquemática na na figura 13.1, serão analisadas
em maior profundidade nas seções que se seguem.
Fig.13.1 Representação esquemática do fluxo de cálcio num adulto normal em balanço.
Absorção intestinal de cálcio
As quantidades de cálcio absorvidas pelo intestino delgado são determinadas
pela disponibilidade desse mineral na dieta e pela capacidade de transporte do próprio
intestino. Há duas modalidades de transporte intestinal de cálcio: 1) a absorção
paracelular, que é passiva e não saturável, dependendo unicamente de suas
CÁLCIOEXTRACELULAR
(900 mg)
Filtração10.000 mg/dia
Absorção9.825 mg/dia
Urina175 mg/dia
Ingestão de cálcio1000 mg/dia
300 mg/dia
125mg/dia
Fezes825 mg/dia
500 mg/dia
500 mg/dia
OSSO(1 Kg)
INTESTINO
5
concentrações na luz intestinal. 2) a absorção transcelular, que é ativa e saturável, na
qual a 1,25(OH)2D3 desempenha papel importante.
A ingestão diária de cálcio é de aproximadamente 1 g, dos quais cerca de 300
mg são absorvidos pelo intestino. Cerca de 125 mg de cálcio são secretadas de volta à
luz intestinal. No íleo, o mecanismo é predominantemente passivo, enquanto a
absorção ativa ocorre principalmente no duodeno e jejuno. O transporte ativo é
regulado pelos metabólitos da Vitamina D, principalmente a 1,25(OH)2D3. Para que
esse transporte ocorra, há a participação de canais de cálcio e proteínas
transportadoras, como as calbindinas e calmodulinas encontradas no epitélio
duodenal. Na figura 13.2 estão esquematizados os mecanismos de transporte de cálcio
através do epitélio intestinal.
Fig. 13.2 Mecanismos de transporte de cálcio através do epitélio intestinal. O transporte passivo se dá pela via paracelular. O transporte ativo ocorre por extrusão através de uma ATPase cálcio-dependente existente na membrana basolateral. Graças ao gradiente eletroquímico favorável assim gerado, o cálcio atravessa a membrana luminal através de canais específicos. Uma vez no interior da célula, o cálcio liga-se a uma proteína, a calbindina, o que facilita sua movimentação.
Os moduladores sistêmicos envolvidos na absorção intestinal de cálcio e os
fatores intraluminais que podem intervir na sua absorção estão descritos na tabela 13.2
e 13.3, respectivamente.
6
Tabela 13.2 - Moduladores sistêmicos da absorção de cálcio
AUMENTAM DIMINUEM Vitamina D Idade
ingestão diminuída de cálcio ingestão elevada de cálcio ingestão elevada de sódio ingestão diminuída de sódio
PTH glicocorticóides ingestão diminuída de fosfato ingestão elevada fosfato
hormônio de crescimento hormônio tireoideano estrógeno acidose metabólica gravidez diuréticos (tiazídicos) lactação depleção de Vitamina D
diuréticos (furosemidas) Adaptado de Breslau NA, In: Favus MJ (ed.) Primer on the Metabolic Bone Diseases
and Disorders of Mineral Metabolism, 3rd ed. Raven Press, New York, p 43,1996.
Tabela 13.3 - Fatores intraluminais que afetam a absorção intestinal de cálcio
AUMENTA DIMINUI Lisina Ácidos graxos de cadeia longa
Arginina Fosfatos Penicilina Oxalatos
Cloranfenicol Fitatos Lactose Tetraciclina
Fibras Adaptado de Breslau NA, In: Favus MJ (ed.) Primer on the Metabolic Bone
Diseases and Disorders of Mineral Metabolism, 3rd ed. Raven Press, New York, p 45,1996.
Excreção Renal de cálcio
O órgão que regula a excreção do cálcio é o rim. A quantidade de cálcio
excretado na urina equivale à diferença entre absorção e secreção intestinais, o que
permite manter um adulto normal rigorosamente em balanço de cálcio (é evidente que
uma criança, em crescimento normal, apresenta-se em balanço positivo de cálcio, que
se acumula no esqueleto, membranas, etc.).
Em um adulto normal, com um RFG de 120 ml/min (174 litros por dia) e
cálcio sérico filtrável (iônico + complexado) de 5.8 mg/100 ml (58 mg/L), a carga
filtrada de cálcio é de 58 mg/L x 174 L/dia ≅ 10.000 mg de cálcio/dia. Cerca de 98%
7
desse total são reabsorvidos, ou seja, a fração de excreção de cálcio é de 2%. O perfil
de reabsorção de cálcio no néfron é semelhante ao do sódio (ver Capítulo 5).
Aproximadamente 70% do cálcio filtrado são reabsorvidos no túbulo proximal, 20%
na alça de Henle, 5% a 10% no túbulo distal e menos de 5% no túbulo coletor. No
túbulo proximal, a maior parte da absorção se dá pela via paracelular (difusão
passiva), enquanto uma pequena quantidade é transportada pela via transcelular.
Embora o mecanismo de transporte do cálcio pela via transcelular não esteja
totalmente esclarecido, acredita-se que o cálcio penetre na célula tubular através de
canais específicos e saia com a ajuda de trocadores Na+ - Ca2+, e/ou através de bombas
de Ca2+ (Figura 13.3).
Fig. 13.3 Representação esquemática de uma célula de túbulo renal mostrando a reabsorção de cálcio através das vias paracelular e transcelular. (Adaptado de Breslau, NA In: Favus MJ (ed) Primer on the Metabolic Bone
Diseases and Disorders of Mineral Metabolism, 3rd ed. Raven Press, New York, 49-57, 1996).
No túbulo distal, a absorção de cálcio parece ocorrer por mecanismos análogos
mas independentes de sódio. O PTH influencia bastante esse processo, possivelmente
por ativação dos canais da membrana luminal, permitindo que o cálcio penetre nas
células e saia através da membrana basolateral por co-transporte com sódio e/ou por
bombeamento ativo.
8
13.3 Papel fisiológico do fósforo
Há num organismo humano adulto cerca de 600g de fósforo, (1% do peso
corporal), dos quais 85% são encontrados no esqueleto e 15% no fluído extracelular,
sob a forma de fosfato inorgânico, e nos tecidos moles, na forma de ésteres de fosfato.
Embora o fósforo participe de inúmeras reações bioquímicas envolvidas na geração e
transferência de energia, sua concentração intracelular é baixa (1x10-4 M),
localizando-se principalmente nas mitocôndrias.
Na tabela 13.4 estão descritas a distribuição, localização e principais funções
do fósforo no organismo.
Tabela 13. 4 - Principais funções do fósforo no organismo Compartimento Localização Funções Intracelular
mitocôndrias (grandes quantidades) citoplasma (baixas quantidades)
conservação e transferência de energia; transporte; fosfolipídeos; transmissão de impulso nervoso; glicólise; sinalizador transducional; cofator enzimático (NAPD, fosfoinositídeos, etc...)
extracelular
no fluido extracelular: soro (ionizado), ligado à proteínas e complexado (sódio, cálcio e magnésio) no esqueleto
manutenção da mineralização óssea
Em condições normais a concentração sérica de fósforo vai de 3,0 a 4,5 mg/dl,
podendo variar com a idade, o sexo, a dieta e o pH, além de apresentar um ritmo
nictemeral, com valores mais baixos pela manhã, uma elevação à tarde e um pico à
noite. A representação esquemática da cinética do fósforo em um adulto normal em
situação de balanço encontra-se na Figura 13.4.
9
Fig. 13.4 Representação esquemática do fluxo do fósforo num adulto normal com balanço mineral neutro. As setas abertas representam o fluxo mineral em sentido unidirecional e as setas sólidas indicam o valor final desse fluxo.
Absorção intestinal de fósforo
Fig. 13.5 Esquema da absorção intestinal do fósforo (P) (do lúmen para o sangue) e secreção (do sangue para o lúmen), através do epitélio intestinal. As setas sólidas indicam a via transcelular e as pontilhadas indicam a via paracelular. A 1,25(OH)2D3 estimula o influxo de Na acoplado ao P em pequenas vesículas da membrana. A saída da célula ocorre a favor de um gradiente eletroquímico, .
FÓSFORO EXTRACELULAR
(550 mg)
Filtração7.000 mg/dia
Absorção 6.100 mg/dia
Urina 900 mg/dia
Ingestão de fósforo 1.400 mg/dia
1.100 mg/dia
200 mg/dia
Fezes 500 mg/dia
350 mg/dia
350 mg/dia
OSSO(1 Kg)
INTESTINO
10
A ingestão diária de fósforo é habitualmente de 800 a 1400 mg, dos quais 60% são
absorvidos. A absorção ocorre ao longo de todo o intestino delgado, sendo no entanto
maior no jejuno, menor no duodeno e mínima no íleo. O transporte de fósforo nas
células intestinais envolve 2 componentes (Figura 13.5):
1) difusional, que é passivo e se dá através da via paracelular. A porcentagem de
fósforo absorvido no intestino é relativamente independente de sua ingestão, porque a
absorção ocorre primariamente por um processo difusional. A absorção passiva de
fósforo se dá quando sua concentração luminal excede 47 mg/L, o que geralmente
ocorre após as refeições.
2) ativo (transcelular). A absorção de fósforo através dessa via depende na verdade do
gradiente de sódio entre o lume e o interior da célula (co-transporte Na-P),
constituindo-se portanto em um transporte ativo secundário. A energia para esse
processo deriva da ação da Na/K ATPase situada na membrana basolateral, a qual
retira sódio do interior da célula, mantendo baixa a concentração citosólica do íon. Os
metabólitos da vitamina D, principalmente a 1,25(OH)2D3, elevam a absorção
intestinal de fósforo estimulando o cotransporte Na/P.
Excreção renal de Fósforo
Em um adulto normal, com RFG de 120 ml/min (174 L/dia) e concentração
sérica de fósforo de 4.0 mg/dl (40 mg/L), a carga filtrada de fósforo é de 40mg/L x
174 L/dia ≅ 7000 mg/dia. Cerca de 88% do fósforo filtrado são reabsorvido pelos
túbulos. Os 12% excretados na urina, embora constituam uma parcela minoritária da
carga filtrada, são essenciais à excreção de ácidos fixos sob a forma de acidez titulável
(ver Capítulo 12). A maior parte dessa absorção (60 a 70% da carga filtrada) ocorre no
11
túbulo proximal, sendo o restante (10 a 20% da carga filtrada) absorvido nos
segmentos distais do néfron.
O fósforo entra na célula através da membrana luminal, por cotransporte com o
sódio. A energia necessária para manter o gradiente de sódio provém da atividade da
Na+, K+-ATPase presente na membrana basolateral (Figura 13.6).
Fig. 13.6 Esquema do transporte transcelular do fósforo na célula do túbulo proximal.
À medida que sobe a concentração plasmática de fósforo e portanto sua carga
filtrada, a respectiva taxa de absorção tubular também se eleva. O mecanismo de
absorção é no entanto rapidamente saturado, o que faz com que a carga excretada de
fósforo aumente em proporção à carga filtrada. A concentração plasmática na qual
ocorre a absorção tubular máxima de fósforo (Tm de fósforo) é pouco superior à
concentração plasmática de fósforo em jejum, indicando que a regulação renal de
fósforo ocorre dentro de um limite muito estreito.
12
O transporte renal de fósforo também é regulado por vários fatores hormonais,
mas o principal hormônio envolvido nessa regulação é o PTH. No túbulo próximal, o
hormônio atua inibindo o cotransporte Na/P, diminuindo assim a reabsorção do
fósforo e aumentando a fosfatúria. Graças a esse efeito, o PTH reduz a concentração
plasmática de fósforo, o que ajuda a elevar os níveis de cálcio (ver adiante).
13
13.4 REGULAÇÃO DA CONCENTRAÇÃO DE CÁLCIO NO MEIO INTERNO: MECANISMOS DE AÇÃO DO PARATORMÔNIO, VITAMINA D E CALCITONINA
13.4.1 PARATORMÔNIO
Embora as doenças das paratireóides acompanhem a humanidade desde as
antigas civilizações (há descrição de alterações ósseas características do
hiperparatireoidismo em múmia egípcia), foi somente no século XIX que se iniciou o
estudo sistemático dessas glândulas, com Owen, na Inglaterra e Sandström, na Suécia.
As paratireóides são geralmente em número de quatro e seu peso total varia entre 120
a 145 mg. Essas glândulas sintetizam o paratormônio (PTH) a partir de dois
precursores: o pré-proparatormônio, um polipeptídeo contendo 115 aminoácidos, e o
proparatormônio, com 90 aminoácidos. Este último fica armazenado no complexo de
Golgi e quando clivado, origina o PTH propriamente dito, com 84 aminoácidos e peso
molecular de 9.500 Daltons.
O PTH regula os níveis séricos de cálcio e fósforo, modulando a atividade de
determinadas células do tecido ósseo e renal. No tecido ósseo, aumenta a liberação de
cálcio e de fósforo (reabsorção óssea). No rim, aumenta a absorção tubular de cálcio e
inibe a de fósforo, além de estimular a síntese de 1,25 dihidroxivitamina D
[1,25(OH)2D3], que por sua vez aumenta a absorção intestinal de cálcio e fósforo.
O principal fator regulador da secreção do PTH pelas paratireóides são os
níveis sangüíneos de cálcio. A secreção do hormônio varia inversamente com a
concentração sérica de cálcio.
A relação entre cálcio e o PTH é inversa e sigmoidal. Portanto, pequenas
alterações de cálcio sérico produzem grandes variações na secreção de PTH,
especialmente dentro da faixa fisiológica.
14
A curva cálcio-PTH é obtida através de uma equação conhecida como “fórmula dos
quatro parâmetros”, cuja representação gráfica é dada na Fig. 13.7:
[PTH] = {(A - D)/ [1+([Ca++]/C)B]} + D, onde:
A = PTH máximo. É a concentração máxima de PTH obtida pela indução de
hipocalcemia. Corresponde, portanto, à capacidade secretora máxima das
paratireóides.
D = PTH. É a concentração mínima de PTH obtida após provocar uma
hipercalcemia. Valores maiores de cálcio não são capazes de inibir ainda mais a
secreção de PTH. Representa, portanto, a capacidade secretora mínima da glândula.
Por maior que seja a concentração de cálcio, sempre haverá uma secreção residual,
irreprimível, de PTH.
C = valor médio da concentração de PTH (“set point”, ou ponto de ajuste).
Corresponde à concentração de cálcio à qual a concentração de PTH é igual à metade
de seu valor máximo (portanto, C = A/2).
B = Declividade (“slope”) da curva cálcio-PTH no ponto de ajuste. Trata-se de
uma medida da sensibildade da secreção de PTH a variações da calcemia. Depreende-
se do exame da Fig. 13.7 que essa sensibilidade é normalmente bastante alta, uma vez
que pequenas variações da calcemia levam a grandes alterações na concentação de
PTH.
Fig. 13.7 Curva cálcio-PTH. A = PTH máximo; B = “slope”; C = “set point”; D = PTHmínimo.
15
É esse mecanismo assim sensível o que permite manter constante a
concentração plasmática de cálcio mesmo diante de situações que alteram bastante os
fluxos de cálcio no organismo, tais como flutuações na dieta, alterações no
metabolismo ósseo e disfunção renal.
13.4.1.1 Mecanismos de ação do PTH nos tecidos alvo
O efeito biológico central do PTH é o aumento na concentração sérica de
cálcio. Para obter esse resultado, o PTH age principalmente em dois órgãos alvo : 1) o
osso, que constitui um reservatório de cálcio de onde se podem retirar enormes
quantidades do íon. 2) o rim, onde o PTH aumenta a absorção de cálcio e a excreção
de fósforo. O PTH exerce também influência indireta sobre o intestino, aumentando a
produção de vitamina D e absorção intestinal de cálcio (ver adiante).
No tecido ósseo, o PTH aumenta o número e a atividade dos osteoclastos,
células responsáveis pela reabsorção óssea, um dos mecanismos fisiológicos de
retirada de cálcio do tecido ósseo. Essa ação não se dá diretamente, pois os
osteoclastos não expressam receptores para o PTH e não reagem ao hormônio quando
isolados. Os osteoblastos, responsáveis pela formação óssea, são as células que
realmente respondem ao PTH, produzindo fatores capazes de estimular os osteoclastos
e dessa forma promover a reabsorção óssea.
No rim, o PTH aumenta a absorção tubular de cálcio. Esse efeito ocorre no
túbulo distal, onde o PTH estimula a reabsorção de cálcio através da inserção de
canais específicos na membrana luminal e da abertura de canais de cloro basolaterais,
que hiperpolarizam a célula, aumentando a negatividade intracelular e promovendo
portanto o influxo do cálcio. O transporte de cálcio no interior das células tubulares é
16
facilitado por proteínas como a calbindina, cuja síntese é estimulada pela
1,25(OH)2D3, a qual, por sua vez, é também estimulada pelo PTH.
Além dessa ação sobre o cálcio, o PTH aumenta a excreção urinária de fósforo.
Esse efeito ajuda indiretamente a elevar a concentração plasmática de cálcio devido à
interação entre os dois íons. Em solução aquosa, as concentrações de cálcio e fósforo
variam inversamente, de modo a manter constante o seu produto, denominado produto
de solubilidade. Essa particularidade adquire importância na insuficiência renal
crônica, na qual pode ocorrer retenção de fósforo e elevação de seus níveis séricos
(ver Capítulo 15). Para aumentar a excreção urinária de fósforo, o PTH atua no túbulo
proximal (pars recta), inibindo o cotransporte luminal de sódio e fósforo.
17
13.4.2 VITAMINA D
A vitamina D é uma molécula universalmente presente nos seres vivos.
Provavelmente é um dos primeiros esteróides que apareceram ao longo da evolução,
antes mesmo dos esteróides supra-renais e sexuais. Acredita-se que ela exista na
natureza há pelo menos 500 ou 700 milhões de anos. Pode ser encontrada no plâncton
marinho, em animais muito primitivos, como a alga azul, e em praticamente todo o
reino vegetal e animal. Provavelmente sua existência decorre de uma ação específica
da radiação solar. Acredita-se que essa molécula desempenhou um papel fundamental
na seleção que isolou as várias etnias humanas cuja pele era mais ou menos
pigmentada, e também que sua presença ou ausência condicionou a sobrevida ou o
declínio de certas populações, como as colônias fundadas na Groenlândia por povos
vindos do norte da Europa.
A vitamina D foi descoberta em 1919. Em 1932 determinou-se a estrutura
química da vitamina D2 (de origem vegetal) e 4 anos mais tarde a da vitamina D3 ou
calciferol, de origem animal. Em 1971, identificou-se o 25 hidroxicolecalciferol
(25OHD3) e, em 1976, o 1,25 dihidroxicolecalciferol [1,25(OH)2D3], considerado o
metabólito ativo da vitamina D, responsável, entre outras funções, pela absorção
intestinal de cálcio e fósforo.
As principais fontes de vitamina D são a alimentação e a síntese na pele. A
pele é o órgão responsável pela produção de vitamina D3. Durante exposição à luz
solar, o 7- dihidroxicolesterol (precursor do colesterol), absorve radiação solar e se
transforma na pré vitamina D3. Uma vez formada, essa pré vitamina sofre uma
isomerização e se transforma na vitamina D3, que penetra na circulação e se liga a
uma proteína transportadora específica.
18
Vários fatores podem alterar a produção cutânea de vitamina D3, entre eles a
melanina. Assim, indivíduos da raça negra necessitam de uma maior exposição à luz
solar do que indivíduos brancos para sintetizar a mesma quantidade de vitamina D3. O
envelhecimento também diminui a produção de vitamina D3 devido à menor
concentração do 7-dihidroxicolesterol. Comparada a indivíduos jovens, uma pessoa de
70 anos produz uma quantidade 30% menor de vitamina D3 quando exposta à mesma
intensidade de radiação solar.
Outros fatores, como a latitude geográfica, época do ano e duração do dia
afetam a produção cutânea da vitamina D3. Sabe-se que indivíduos que habitam acima
da latitude de 420 N produzem pouca vitamina D3 entre os meses de Novembro e
Fevereiro. Para crianças e adultos jovens, a quantidade de vitamina D3 produzida
durante a primavera e verão fornece estoques adequados, mesmo que reduzam sua
produção durante o inverno. Porém, em indivíduos idosos, a falta de síntese aliada à
menor quantidade do precursor da vitamina D3, pode exigir suplementação para evitar
carências.
Tanto a vitamina D2 quanto a vitamina D3 são transportadas para o fígado
através de proteínas específicas (DBP - D binding protein), onde sofrerão uma
hidroxilação no carbono 25 para se transformarem na 25 hidroxivitamina D
[25(OH)D3]. Essa reação ocorre nas células hepáticas, mediada pela enzima D-25-
hidroxilase (do grupo das enzimas citocromo P450). Essa enzima não é regulada e
dessa forma o aumento da ingestão de vitamina D e/ou da síntese cutânea acarreta um
aumento de produção da 25(OH)D3. A concentração sérica desse metabólito é
portanto um índice que permite avaliar se o indivíduo apresenta carência ou se está
intoxicado por vitamina D.
19
A 25(OH)D3 é um metabólito pouco ativo que é transportado para o rim, onde
sofre uma segunda hidroxilação. Essa hidroxilação ocorre nos túbulos proximais, sob
a influência da 1α hidroxilase (também do grupo das enzimas citocromo P450) e dará
origem ao metabólito ativo, a 1,25(OH)2D3. O rim é a principal fonte de 1,25(OH)2D3,
embora vários outros órgãos, como os ossos, a pele e a placenta, possam também
produzir esse metabólito. Seus níveis são extremamente baixos em indivíduos
anéfricos. Por essa razão, acredita-se que a produção de 1,25(OH)2D3 por outras
células que não as renais não esteja relacionada com a homeostase do cálcio
propriamente dita, mas com a regulação do crescimento celular.
Os níveis sangüíneos de PTH influenciam bastante a conversão de 25(OH)D3 a
1,25(OH)2D3, seja por ação direta, seja indiretamente através da alteração dos níveis
séricos de fósforo: hipofosfatemia e hiperfosforemia estão associados a um aumento e
a diminuição das concentrações de 1,25(OH)2D3 respectivamente. Outros hormônios,
como por exemplo o hormônio do crescimento e a prolactina, aumentam
indiretamente a produção renal de 1,25(OH)2D3. Indivíduos idosos podem perder em
parte sua capacidade de regular a produção renal de 1,25(OH)2D3, através do PTH. Tal
fato poderia explicar a diminuição da absorção de cálcio intestinal observada nesses
indivíduos e contribuir para o aparecimento de osteoporose.
13.4.2.1 Mecanismo de ação da vitamina D nos orgãos alvo
A 1,25(OH)2D3 é um hormônio lipossolúvel, cujo mecanismo de ação é
semelhante ao dos hormônios esteróides. Há duas vias possíveis para a ação da
1,25(OH)2D3: a genômica e a não genômica.
Todos os tecidos responsivos à vitamina D contêm receptores nucleares (VDR-
vitamin D receptor) para a 1,25(OH)2D3. Através da via genômica, a 1,25(OH)2D3
20
estimula determinados genes a produzir RNAm e portanto promover a síntese da
proteína correspondente. Para chegar ao núcleo, a 1,25(OH)2D3 penetra na célula por
difusão simples através da membrana, já que é um hormônio lipossolúvel, e/ou por
ligação a receptores de membrana. A seguir, liga-se a um receptor presente no
citoplasma ou no núcleo celular. É esse complexo receptor-esteróide o que estimula o
gene e modifica sua expressão.
Ações não genômicas da 1,25(OH)2D3 se dão através de um receptor de
membrana com propriedades de ligação diferentes daquelas dos receptores nucleares e
citosólicos. Esse sistema de receptores de membrana para a 1,25(OH)2D3 é
responsável, por exemplo, pelo estímulo hormonal rápido da absorção intestinal de
cálcio, e que recebe o nome de transcaltaquia. Esse estímulo provavelmente envolve a
participação de canais de cálcio e de mensageiros intracelulares, como o AMPc, por
exemplo.
Nos rins, a ação da 1,25(OH)2D3 é controversa e atuaria diminuindo a
reabsorção tubular de fósforo.
No tecido ósseo, uma das funções da 1,25(OH)2D3 é a de induzir a
diferenciação dos osteoclastos, que proliferam e aumentam a reabsorção óssea. Sabe-
se que os osteoclastos não apresentam receptores para 1,25(OH)2D3. Sua ação é
portanto provavelmente indireta, ativando inicialmente os osteoblastos (células
envolvidas na formação óssea), os quais, através de fatores locais, ativam os
osteoclastos.
A 1,25(OH)2D3 atua também nas glândulas paratireóides através de receptores
específicos, diminuindo a secreção de PTH.
21
13.4.3 CALCITONINA
A calcitonina é um peptídeo com 32 aminoácidos, descoberta no início dos anos 60.
Trata-se de um hormônio sintetizado nas células parafoliculares ou células C da
tireóide. Nos peixes, anfíbios, répteis e pássaros a calcitonina é sintetizada pela
glândula branquial. Seu principal efeito biológico é o de reduzir os níveis plasmáticos
de cálcio. Esse hormônio provavelmente foi fundamental na transição dos animais do
ambiente de água doce para salgada, em virtude das altas concentrações de cálcio nos
oceanos. Esses animais apresentam concentrações muito elevadas de calcitonina nas
glândulas branquiais.
A calcitonina atua nos osteoclastos, diminuindo sua atividade e
consequentemente, a reabsorção óssea. Poucos minutos após sua administração,
observamos que essas células reduzem seu tamanho, e tal fato é acompanhado de um
aumento do cálcio citosólico e da produção de AMP cíclico. Acredita-se também que
esse hormônio inibe a atividade dos osteócitos e estimula os osteoblastos.
Esse hormônio atua através de receptores específicos recentemente
identificados que desencadeiam sinais intracelulares, que ativam as vias efetoras.
A calcitonina atua na glândula pituitária e no sistema nervoso central sendo
considerada também um neurotransmissor. O seu uso provoca analgesia e esse fato é
empregado na terapêutica clínica. Outros efeitos atribuídos a esse hormônio são o anti
inflamatório e anti hipertensivo.
A secreção de calcitonina está diretamente relacionada aos níveis séricos de
cálcio. Quando estes se elevam agudamente observamos um aumento proporcional de
sua secreção. Quando estamos diante de situações como hipercalcemia e hipocalcemia
prolongada, seus efeitos são conflitantes. Aparentemente, as células C da tireóide
22
sofrem exaustão diante de hipercalcemias prolongadas. Estudos têm demonstrado que
os níveis séricos de calcitonina são menores nas mulheres do que nos homens. O
mecanismo dessas diferenças não são conhecidos, mas provavelmente a calcitonina
sofre influência dos esteróides gonadais. Sabe-se também que recém-nascidos e
crianças apresentam níveis séricos de calcitonina muito mais elevados do que os
adultos, e que esses níveis declinam com o avançar da idade. O significado fisiológico
dessas variações não são conhecidos.
A calcitonina é degradada na própria tireóide, no fígado, rins e tecido ósseo. Sua vida
média no plasma é curta e a sua principal via de excreção é renal.
EXERCÍCIOS
I – Cálcio O cálcio é o principal mineral do esqueleto. Trata-se de um elemento fundamental para a mineralização óssea e integridade do esqueleto, além de participar da contração muscular, atuar no potencial de membrana, na coagulação sangüínea, na divisão celular, etc. Os níveis séricos de cálcio são mantidos dentro de limites estreitos, ou seja, 8.8 a 10.5 mg/dl. Em indivíduos normais há um balanço constante entre a absorção intestinal e a excreção renal de cálcio e um intercâmbio contínuo entre o esqueleto (principal reservatório) e o meio extracelular.
Abra o programa “Cálcio e fósforo”
1. Varie a ingestão de cálcio. Quando essa ingestão se reduz, observe que a
absorção intestinal também se reduz e o mesmo ocorre com a excreção renal.
Os níveis de cálcio sérico diminuem, o que vai estimular o PTH. Os níveis
aumentados de PTH promovem um aumento da excreção urinária de fósforo
com conseqüente diminuição do fósforo plasmático. Observamos ainda um
aumento na mobilização óssea de cálcio, visando restaurar os seus níveis
plasmáticos.
2. Agora aumente a ingestão de cálcio, e observe que tanto a absorção intestinal
como a excreção renal também aumentam. Os níveis séricos de PTH
diminuem, o que faz aumentar o fósforo sérico e sua excreção renal. Nessa
situação não observamos mobilização óssea.
23
II – Fósforo
A maior parte do fósforo presente no organismo encontra-se no esqueleto. Juntamente com o cálcio participa da mineralização óssea e mantém a integridade do esqueleto. No interior das células encontra-se principalmente nas mitocôndrias participando de reações envolvidas na geração de energia.
Os níveis séricos de fósforo não são mantidos dentro de uma faixa tão estreita como do cálcio, variando com a idade, a dieta, etc.
3. Varie a ingestão de fósforo, se ela se reduzir observe que a absorção
intestinal e a excreção renal também se reduzem e o fósforo plasmático
diminui. A seguir aumente a ingestão de fósforo e verifique que a absorção e a
excreção renal aumentam, bem como o fósforo plasmático.
III – Hiperparatiroidismo
O hiperparatiroidismo primário é uma doença relativamente freqüente, com uma incidência de 1 para 500 a 1 para 1000 indivíduos.
A doença é causada geralmente pela presença de um adenoma benigno, em cerca de 80% dos casos. Esse adenoma produz grande quantidade de PTH.
4. Acione a opção “hiperparatiroidismo”. O PTH plasmático aumenta, o que vai
promover mobilização óssea, e aumento do cálcio plasmático. O excesso de PTH aumenta a produção de 1,25 (OH2) D3 que por sua vez vai
aumentar a absorção intestinal de cálcio e de fósforo.
Apesar do PTH aumentar a reabsorção de cálcio no rim, a carga filtrada de
cálcio se eleva e observamos aumento da excreção renal.
O excesso de PTH aumenta a excreção de fósforo urinário, promovendo
diminuição do fósforo plasmático.
IV – Hipoparatiroidismo
O hipoparatiroidismo é uma alteração clínica secundária à perda de função das paratireóides. Trata-se de uma doença rara, cujas principais causas são: congênita ou secundária à cirurgias, principalmente das tireóides.
Acione a opção “Hipoparatiroidismo”.
A redução do PTH promove a diminuição do cálcio sérico e aumento do
fósforo plasmático aumento discreto da excreção de calcio e diminuição da excreção
de fósforo.
24
V – Acidose
O aumento da concentração de ions H+ no meio interno e, em particular, no tecido ósseo, aumenta a solubilidade dos sais de cálcio, especialmente a da hidroxiapatita. Devido a esse efeito, o osso descalcifica-se lentamente, levando a um quadro de osteomalácia. Trata-se de um fenômeno análogo à dissolução de calcáreo pela chuva ácida, ou ao “amolecimento” de ossos de frango deixados imersos durante dias em vinagre.
Varie o pH do meio interno movimentando a barra correspondente. Examine
inicialmente a opção “Agudo”. Na acidose metabólica aguda não se observam
grandes modificações no balanço de cálcio e fósforo. O tamponamento no tecido
ósseo se faz com trocas de ions H+ por ions Na
+ e K
+.. Assinale agora a opção
“Crônico”. Na acidose crônica esse tamponamento leva a um aumento da
reabsorção óssea com mobilização de cálcio e fósforo. O cálcio sérico e o PTH
geralmente estão normais, e o fósforo sérico pode elevar- se discretamente. Observe
também o aumento da excreção urinária de cálcio e fósforo.
CAPÍTULO 14: INSUFICIÊNCIA RENAL AGUDA
Luís Yu, Emmanuel Burdmann, Antônio Carlos Seguro, Cláudia Maria de Barros Helou e
Roberto Zatz
Introdução
Os rins são essenciais à homeostase, não apenas porque eliminam produtos
indesejáveis do metabolismo, como também por manter constantes o volume extracelular
(Capítulos 5 e 9), a concentração extracelular de potássio (Capítulo 8), a pressão osmótica
(Capítulos 4 e 11) e o equilíbrio ácido-base (Capítulo 12) do organismo, além de
desempenhar um papel fundamental na regulação da pressão arterial (Capítulo 10) e de
desempenhar funções endócrinas, como a produção de eritropoietina e da forma ativa da
vitamina D.
A importância dos rins torna-se evidente quando se observam as conseqüências da
perda de função renal. O indivíduo em insuficiência renal retém progressivamente os
produtos do metabolismo nitrogenado, como a uréia, acumula líquidos sob forma de edema,
perde a capacidade de diluir e concentrar a urina e torna-se incapaz de regular o equilíbrio
ácido–base ou de manter o balanço e os níveis plasmáticos de eletrólitos tais como sódio,
potássio, magnésio, cálcio e fósforo. Se a perda de função renal ocorrer lentamente devido
à perda progressiva de néfrons (nefropatias progressivas), os néfrons remanescentes podem
adaptar-se e manter a homeostase durante um longo período – o indivíduo desenvolve uma
insuficiência renal crônica (ver Capítulo 15). Se no entanto a perda de função renal ocorrer
de modo abrupto, o indivíduo terá desenvolvido uma insuficiência renal aguda (IRA). O
impacto da disfunção renal será imediato e potencialmente grave: o indivíduo desenvolve
rapidamente retenção de uréia e outros catabólitos, acidose metabólica, distúrbios
eletrolíticos, tais como hiperpotassemia e hiponatremia, retenção de volume, podendo
desenvolver por exemplo edema pulmonar. Quando a perda da função renal é muito grave,
o paciente não chega a sobreviver mais do que alguns dias na ausência de tratamento
intensivo. A IRA é portanto definida como uma perda significativa e abrupta da função
renal. Apesar de seu caráter potencialmente catastrófico, a IRA é em princípio reversível e
as chances de recuperação de um paciente sem alteração de outros órgãos são grandes. No
entanto, os mecanismos que conduzem à IRA são extremamente complexos, conforme
veremos ao longo deste capítulo.
A IRA passou a ser estudada de forma sistemática durante a Segunda Guerra
Mundial. Numa tentativa de subjugar a Inglaterra, os alemães bombardearam com grande
intensidade a cidade de Londres. Observou-se que muitos indivíduos previamente
saudáveis, que eram resgatados dos escombros e sobreviviam aos ferimentos iniciais,
desenvolviam importante diminuição do volume urinário (oligúria) e IRA. Autópsias
realizadas nestes pacientes encontraram necroses focais em segmentos dos túbulos renais,
em contraste com os glomérulos, cujo aspecto era normal. Denominou-se esse quadro, que
apresentava altíssima mortalidade, síndrome do esmagamento (“crush syndrome”). Durante
a Guerra da Coréia, a disponibilidade de métodos substitutivos de depuração renal (diálise)
em hospitais de campanha reduziu dramaticamente a mortalidade dos pacientes com IRA
para aproximadamente 50%. Na Guerra do Vietnã desenvolveram-se as técnicas de punção
venosa profunda (o “intracath”), permitindo a reposição endovenosa precoce de grandes
quantidades de fluidos nos soldados feridos em batalha, o que diminuiu significativamente
a incidência de IRA. No entanto, a mortalidade continuou praticamente inalterada apesar da
disponibilidade de diálise para os pacientes. Mais de cinqüenta anos se passaram e, a
despeito do enorme avanço tecnológico experimentado nas últimas décadas, a mortalidade
dos indivíduos com IRA permanece elevada, ao redor de 50%, podendo atingir valores de
até 80% ou mais em subgrupos específicos, como pacientes idosos oligúricos ou pacientes
com insuficiência múltipla de orgãos, internados em Unidades de Terapia Intensiva.
Calcula-se que até 5% dos pacientes internados em hospitais terciários desenvolvam
IRA. No Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a
incidência de IRA em pacientes internados no ano de 1993 foi de 0,79%. Essas
porcentagens variam muito em função das características dos pacientes e da população
estudada. Por outro lado, é evidente que a IRA pode acometer pacientes em todas as áreas
de atuação médica, fazendo com que médicos de praticamente todas as especialidades
tenham contato com essa patologia.
O perfil epidemiológico dos pacientes com IRA sofreu profundas alterações desde
os relatos pioneiros desenvolvidos durante a Segunda Guerra Mundial. Há nos pacientes
atuais um nítido predomínio de indivíduos mais idosos, com doenças crônicas prévias e
quadros clínicos graves, com insuficiências orgânicas múltiplas. Esse predomínio ajuda a
explicar por que a letalidade da IRA continua semelhante à observada durante a Segunda
Guerra, apesar dos recursos terapêuticos mais poderosos hoje disponíveis (ver adiante). Por
outro lado, um grande número de casos de IRA desenvolve-se durante internações
hospitalares, em decorrência de procedimentos potencialmente lesivos ao rim ou em
conseqüência do uso de medicamentos nefrotóxicos inexistentes há algumas décadas, como
vários imunussupressores, antiinflamatórios não-hormonais, aminoglicosídeos,
antifúngicos, antivirais, etc.
Classificação da IRA
A IRA é classificada em três grandes grupos, de acordo com os mecanismos
básicos que levam à disfunção renal: 1) IRA pré-renal. 2) IRA renal. 3) IRA pós renal. Uma
relação das causas mais importantes de IRA aparece na Tabela 14-1.
Tabela 14-1
Principais causas de IRA
I. Causas pré-renais:
1. Cardiovasculares: diminuição do débito cardíaco • agudas: Infarto agudo do miocárdio, trauma, arritmias, hipertensão maligna, tamponamento
pericárdico, doenças valvulares • crônicas: miocardiopatias (isquêmicas, hipertensivas), disfunções valvulares
2. Hipovolemia: • perdas gastrointestinais: vômitos, diarréia • perdas renais: nefropatias perdedoras de sal, uso de diuréticos, diurese osmótica
3. Diminuição da volemia arterial efetiva: • estados hipoalbuminêmicos: síndrome nefrótica, doença hepática avançada, desnutrição • causas físicas: peritonites, queimaduras, traumatismos • vasodilatação periférica: hipotensão arterial, choque, sepsis, síndrome hepatorenal
II. Causas renais:
1. Necrose tubular aguda (NTA) • isquêmica: hipovolemia, hipoperfusão renal • tóxica: aminoglicosídeos, antifúngicos (anfotericina B), drogas imunosupressoras (CsA, FK506),
antivirais (aciclovir), contrastes radiológicos, pigmentos (hemoglobina, mioglobina), metais pesados, peçonhas
2. Nefrites intersticiais: • drogas: penicilinas, cefalosporinas, rifampicina, sulfonamidas, diuréticos (furosemida, tiazídicos,
clortalidona ), anti-inflamatórios não-hormonais • infecções • infiltração: linfomas, leucemias, sarcoidose • imunológica: Sjoëgren, uveíte-nefrite intersticial
3. Doenças vasculares: • inflamatórias (vasculites): glomerulonefrite necrotizante pauci-imune, poliarterite nodosa,
granulomatose de Wegener, doença do soro • microangiopática: síndrome hemolítico-urêmica (SHU), púrpura trombocitopênica trombótica
(PTT), hipertensão maligna, esclerodermia
4. Glomerulopatias: • pós-infecciosa: Streptococcus, vírus, endocardite, abscessos abdominais, shunts • glomerulonefrite membranoproliferativa • GN rapidamente progressiva: lupus eritematoso sistêmico (LES), idiopática, Goodpasture,
poliarterite, granulomatose de Wegener, púrpura de Henoch-Schönlein, SHU, esclerodermia
III. Causas pós-renais:
1. Ureteral e pélvica: • obstrução intrínseca: coágulos, cálculos, infecções fúngica e bacteriana • obstrução extrínseca: tumores, fibrose retroperitoneal, ligadura inadvertida de ureteres
2. Vesical: • cálculos • coágulos • hipertrofia ou neoplasia prostática • carcinoma de bexiga • neuropatia
3. Uretral: • estreitamentos • fimose
Nos casos em que o rim está funcionalmente íntegro mas a perfusão sangüínea que a
ele chega está reduzida, a IRA é denominada pré-renal. Essa hipoperfusão renal é
geralmente causada por hipovolemia aguda, como por exemplo, em casos de desidratação
por perdas gastrointestinais (ver Capítulo 7) ou hemorragia grave. No entanto, pode
decorrer também de situações em que a volemia arterial efetiva está reduzida, como por
exemplo na insuficiência cardíaca congestiva grave, na cirrose hepática e na síndrome
nefrótica por “underfilling” (ver Capítulo 9). Esse quadro é essencialmente reversível se o
distúrbio volêmico for corrigido em tempo. No entanto, a manutenção prolongada dessa
hipoperfusão renal pode causar lesão e necrose de células tubulares, principalmente nos
segmentos renais localizados na medula externa (pars recta do túbulo proximal e porção
espessa da alça de Henle). Nesse caso, instala-se um quadro de IRA renal, caracterizado
principalmente por necrose tubular aguda (NTA), embora possam aparecer outras
alterações, à vezes sutis, como a condensação de cromatina nuclear, as lesões de cristas
mitocondriais e a vacuolização citoplasmática, freqüentemente visíveis apenas à
microscopia eletrônica. A IRA renal, também denominada intrínseca, parenquimatosa,
orgânica, ou estabelecida, constitui a modalidade mais comum de IRA. Cerca de 70-90%
dos casos de IRA renal decorrem de NTA, enquanto o restante é causado por vasculites,
glomerulopatias agudas e nefrites intersticiais. O quadro de IRA renal é freqüentemente
caracterizado por perda quase total da função renal, o que exige tratamento em ambiente
hospitalar, muitas vezes de natureza intensiva com uso de métodos dialíticos. Apesar de sua
gravidade, a IRA renal é potencialmente reversível, se tratada adequadamente. A alta
letalidade da IRA deve-se em grande parte ao fato de que esses pacientes freqüentemente
apresentam falência de outros órgãos e complicações graves como sangramentos e
infecções que podem evoluir para septicemias..
Na IRA pós-renal, o fluxo urinário é dificultado ou mesmo interrompido por
obstrução mecânica das vias urinárias, devido por exemplo à presença de cálculos ou
crescimento tumoral. Essa modalidade de IRA é potencialmente reversível caso seja
realizada a desobstrução precoce das vias urinárias. No entanto, a recuperação pode ser
mais difícil ou evoluir para NTA se a duração do processo obstrutivo tiver sido demasiado
longa (ver adiante).
FISIOPATOLOGIA DA IRA
IRA pré-renal
Embora a IRA pré-renal seja menos freqüente do que a IRA renal, o estudo dos
mecanismos envolvidos na sua gênese é extremamente importante por duas razões. Em
primeiro lugar, uma parcela substancial dos casos de IRA pré-renal acaba evoluindo para a
forma renal. Em segundo lugar, a IRA pré-renal é uma condição reversível se tratada em
tempo. Conforme mencionado acima, a IRA pré-renal é conseqüência de hipoperfusão
renal, associada à redução da volemia ou ao deslocamento de fluido para o território venoso
(diminuição da volemia arterial efetiva).
Para entender os mecanismos que levam à queda da função renal na IRA pré-renal é
importante considerar a lógica de funcionamento do rim e do sistema cardiovascular no que
diz respeito à regulação do volume vascular. Normalmente, os rins filtram por dia uma
enorme quantidade de plasma, equivalente a mais de 30 vezes o volume plasmático
(Capítulo 1). Para que essa tarefa seja cumprida, é necessário que 25% do débito cardíaco
sejam destinados aos rins, que representam apenas 5% da massa corpórea. Apesar das
enormes proporções dessa filtração e dessa perfusão sangüínea, os rins realizam um
delicado trabalho de ajuste fino da excreção de sódio, de modo a manter rigorosamente
constante o volume extracelular (Capítulos 5 e 9). Normalmente, esse ajuste envolve uma
parcela tão pequena da carga filtrada de sódio (inferior a 1%) que o túbulo coletor é
perfeitamente capaz de se desincumbir da tarefa, sem necessidade de intervenção dos
demais segmentos do néfron (Capítulo 5). Em outras palavras, a fração de excreção de
sódio (FENa%= carga excretada/carga filtrada×100, ver Capítulo 5) é muito baixa, inferior a
1%, em condições normais. Em condições de depleção de volume extracelular, muda a
lógica do funcionamento renal: a prioridade passa a ser a conservação de sódio a qualquer
custo. Todos os segmentos do néfron são envolvidos nesse esforço. A FENa% cai a quase
zero. O próprio ritmo de filtração glomerular (RFG) diminui, devido à queda do fluxo
plasmático e da pressão hidráulica glomerular. Essas alterações hemodinâmicas são
causadas por intensa vasoconstrição das arteríolas glomerulares, por sua vez mediada por
uma série de vasoconstritores, como a angiotensina II, as catecolaminas, a endotelina e o
0
5
10
15
20
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
RFG, ml/min
Pcr
eat,
mg/
100
ml
Figura 14.1 – Relação inversa entre a concentração plasmática de creatinina (Pcreat) e o RFG
próprio hormônio antidiurético (Capítulo 2). Sob tais condições, a taxa de creatinina
plasmática se eleva em proporção inversa à magnitude da queda do RFG segundo uma
função não linear (Fig. 14-1), enquanto a concentração sangüínea de uréia sofre aumento
desproporcional, devido à avida absorção de água e sódio no túbulo proximal (ver Capítulo
7). Se examinarmos a composição da urina nesta fase, observaremos um quadro altamente
descritivo da lógica de funcionamento renal: o fluxo urinário reduz-se a menos de 400
ml/dia e a concentração de sódio na urina torna-se muito baixa, assim como a FeNa%. A
concentração de potássio também se reduz, embora em proporção inferior à do sódio. Na
verdade, o quociente [Na]/[K], geralmente superior a 1 na urina (refletindo um consumo de
sódio maior do que o de potássio), inverte-se na IRA pré-renal. A concentração urinária de
potássio reduz-se menos que a de sódio, indicando a persistência da secreção desse íon no
túbulo coletor, possivelmente acelerada pela avidez com que aquele segmento está
absorvendo sódio (ver Capítulo 5). A osmolalidade urinária está alta, alcançando até cerca
de 3 vezes a osmolalidade do plasma, o que reflete as altas taxas circulantes de hormônio
antidiurético (ver Capítulos 4 e 11) e o correto funcionamento do sistema de contracorrente
medular (Capítulo 4). Portanto, o exame da urina na IRA pré-renal indica a preservação da
integridade renal: o rim está fazendo o que dele se espera, ou seja, busca tenazmente
conservar sódio e água. Um caso típico de IRA pré-renal, com seus achados laboratoriais
característicos, é mostrado na Tabela 14-2.
Tabela 14-2
Valores típicos de exames laboratoriais na IRA pré-renal
Concentração plasmática de creatinina: 3,5 mg/dL (normal 0,8 a 1,2) Concentração plasmática de uréia: 177 mg/dL (normal 25-45) Fluxo urinário = 310 ml/dia (normal 600 a 1.500) [Na+] urinária = 5 mmol/L (muito baixa) [K+] urinária = 32 mmol/L (baixa) Osmolalidade urinária = 720 mOsm/Kg (2,5 vezes mais alta que a do plasma)
Se a situação que levou à hipoperfusão renal se agravar, levando a hipotensão
arterial acentuada e a um estado de choque circulatório, passa a imperar outra lógica: a
prioridade agora é garantir a perfusão dos tecidos cerebral e miocárdico e com isso a
sobrevivência imediata do indivíduo, ainda que para isso seja necessário promover a
isquemia de outros territórios, como o próprio rim. A vasoconstrição renal se intensifica,
reduzindo a valores muito baixos o RFG e o fluxo sangüíneo renal. A absorção de água e
sódio se intensifica, reduzindo ainda mais o fluxo urinário (Fig. 14-2). É nesse momento
DISTAL
ALÇA FINADESCENDENTE
ALÇAESPESSA
COLETOR
ALÇA FINAASCENDENTE
PROXIMAL
RFG = 30 L/dia
Fig. 14-2 – Representação esquemática da filtração, absorção e excreção de água ao longo dos vários segmentos do néfron na IRA pré-renal. A largura da região em amarelo representa o fluxo de água remanescente no lume tubular. As linhas pontilhadas representam os valores normais. Na IRA pré-renal o RFG é baixo e a absorção tubular de água e sódio é quase completa. Ver também Fig. 5.1
que a vulnerabilidade do rim à isquemia e à hipóxia se manifestam, podendo determinar a
passagem, infelizmente muito comum, de IRA pré-renal à IRA renal.
A transição da IRA pré-renal à IRA renal.
Como é possível a um tecido que recebe uma fatia tão generosa do débito cardíaco
ser tão vulnerável à hipóxia? Para responder a essa questão é necessário examinar de perto
a relação entre a oferta e a demanda de oxigênio nas diversas regiões em que se divide o
parênquima renal. É útil para isso a comparação com outros tecidos (Fig. 14-3). Enquanto
no miocárdio o consumo de oxigênio alcança 70% do aporte total, os rins consomem
apenas 10% do oxigênio que lhes chega. Isso ocorre porque a maior parte do fluxo
sangüíneo renal é destinada à região cortical, de modo a privilegiar o processo de filtração
glomerular, altamente dependente de fluxo (ver Capítulo 1). Conseqüentemente, os néfrons
corticais recebem um aporte de oxigênio muito superior às suas necessidades. Quando no
CÉREBRO MIOCÁRDIO RIM MEDULAREXTERNA
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
ml/m
in/1
00g
Fig. 14-3 –. O rim recebe uma quantidade de oxigênio muito superior à necessária, porém a região medular externa consome mais de 80% do aporte de oxigênio, superando cérebro e miocárdio. A porção azul da barra representa o consumo de oxigênio, enquanto a altura total da mesma representa o aporte total de oxigênio ao tecido.
entanto examinamos a relação entre a oferta e a demanda de oxigênio na região medular
externa do rim, o quadro é outro: 80% do aporte de oxigênio são ali consumidos. A razão
para que essa relação entre oferta e demanda de oxigênio seja assim precária é que, de um
lado, a medular externa abriga dois segmentos do néfron onde o transporte ativo de NaCl é
muito intenso: a pars recta do túbulo proximal e a porção espessa da alça de Henle. De
outro, a tensão de oxigênio nessa região tende a ser mais baixa do que na córtex. A razão
para isso é a disposição em contracorrente dos vasa recta (ver Capítulo 4). Esse arranjo em
“U” é extremamente útil para que os vasa recta ajudem a manter a hipertonicidade
medular. No entanto, esse mesmo arranjo faz com que a tensão de oxigênio se reduza
gradativamente em direção à ponta da papila: o oxigênio contido no ramo descendente do
vaso tende a difundir precocemente em direção ao ramo ascendente, cuja tensão de
oxigênio é mais baixa em razão do consumo ocorrido nas regiões mais profundas (Fig. 14-
4). Na região medular interna, as baixas tensões de oxigênio decorrentes desse movimento
Fig. 14-4 – A tensão de oxigênio decresce em direção à ponta da papila devido ao arranjo em contracorrente dos vasa recta
O2
não chegam a representar um problema, uma vez que é relativamente pequena a magnitude
do transporte iônico ali realizado pelas porções finais do túbulo coletor e pelas porções
finas das alças de Henle. Já na região medular externa, a relação oferta/demanda de
oxigênio torna-se crítica. Portanto, a região medular externa vive constantemente à beira
da hipóxia, sendo a primeira a ser afetada por um processo de isquemia renal grave. Essa
vulnerabilidade é ainda agravada pelo fato de que a isquemia renal decorrente de uma
hipovolemia não é homogênea: enquanto o fluxo sangüíneo diminui para 60% dos níveis
basais na córtex superficial, a redução é superior a 80% na região medular externa.
IRA renal
Enquanto o rim permanecer capaz de concentrar a urina e reduzir substancialmente
a excreção de sódio, a IRA pré-renal pode ainda ser revertida através da correção da
hipovolemia e do distúrbio primário, que geralmente consiste em perda gastrointestinal ou
hemorragia (ver adiante). Se no entanto a hipovolemia e a hipoperfusão renal persistirem, a
IRA pré-renal pode transformar-se em IRA renal.
É importante notar que, embora a maior parte dos casos de IRA renal tenha
passado por uma fase de IRA pré-renal, isso nem sempre é verdadeiro: uma parte dos
casos de IRA renal decorre de hipovolemias que se instalaram de modo extremamente
rápido, sem tempo para uma fase pré-renal. Outros casos originam-se de um efeito
tóxico sobre o rim, provocado por medicamentos, peçonhas ou pigmentos, conforme
veremos mais adiante.
Na IRA renal, algumas das características da IRA pré-renal persistem: as
concentrações plasmáticas de uréia e creatinina continuam altas e tendem a elevar-se ainda
mais. No entanto, a desproporção entre as concentrações de uréia e creatinina tende a
desaparecer, sugerindo que a intensa absorção proximal de uréia verificado na IRA pré-
renal não mais ocorre. Na maior parte dos casos, o fluxo urinário cai a valores muito
baixos, inferiores a 100 ml/dia. Denominamos esses casos IRA renal oligúrica, em
contraposição à IRA renal não oligúrica, que analisaremos logo adiante. Em qualquer dos
casos, o exame da composição da urina revela um quadro muito diferente do observado na
IRA pré-renal: a concentração de sódio é muito mais alta, da ordem de dezenas de mmol/L,
chegando a aproximar-se dos níveis normalmente encontrados no plasma. A concentração
urinária de potássio, em contraste, é varias vezes inferior à de sódio. A osmolalidade
urinária é muito próxima à do plasma. Todos esses achados laboratoriais encontram-se
exemplificados na Tabela 14-3.
Tabela 14-3
Valores típicos de exames laboratoriais na IRA renal oligúrica
Concentração plasmática de creatinina: 4,5 mg/dL (normal 0,8 a 1,2) Concentração plasmática de uréia: 127 mg/dL (normal 25-45) Fluxo urinário = 80 ml/dia (normal 600 a 1.500) [Na+] urinária = 80 mmol/L (alta) [K+] urinária = 12 mmol/L (baixa) Osmolalidade urinária = 303 mOsm/Kg (próxima à do plasma)
Esses resultados indicam que os néfrons deixaram de desempenhar adequadamente
suas funções: não estão ávidos por sódio, não parecem estar secretando potássio em
quantidade significativa, nem estão empenhados em concentrar a urina para reter água. Em
outras palavras, não parece estar havendo um processamento da pequena quantidade de
filtrado glomerular que ainda se forma. É importante notar que, na ausência de qualquer
absorção tubular, mesmo um RFG muito baixo, de por exemplo 5 ml/min, corresponderia a
uma poliúria de 5L/min×1440 min/dia = 7,2 L/dia. O baixíssimo fluxo urinário encontrado
nesses pacientes, inferior a 0,1 L/dia, indica que o escasso filtrado glomerular é de alguma
forma reclamado em sua quase totalidade, sem ser no entanto modificado substancialmente
(Fig. 14-5A). Essa disfunção tubular tem uma base anatômica definida: em vários pontos
do rim as células tubulares aparecem necrosadas ou ausentes, restando aos túbulos, em
certos segmentos, apenas a membrana basal.
Uma vez instalada, a IRA renal não mais pode ser revertida, mesmo que seja
corrigido o distúrbio que a originou. O RFG e o fluxo urinário permanecem muito baixos e
não respondem à administração de fluidos, a qual pode na administração excessiva
provocar até mesmo a morte do paciente por edema pulmonar. O paciente passa a
necessitar de assistência especializada em ambiente hospitalar, muitas vezes requerendo
diálise (ver adiante). Somente após a recuperação espontânea do tecido renal é que o
indivíduo poderá novamente regular de modo independente o balanço de água e eletrólitos.
Na IRA renal não oligúrica, a retenção de uréia e creatinina e a composição
urinária são semelhantes àquelas encontradas na IRA renal oligúrica (Tabela 14-4). A única
Fig. 14-5 – Representação esquemática da filtração, absorção e excreção de água ao longo dos vários segmentos do néfron na IRA renal. A largura da região em amarelo representa o fluxo de água remanescente no lume tubular. As linhas pontilhadas representam os valores normais. A).Na IRA renal oligúrica o RFG é baixo e quase todo o filtrado abandona a luz tubular antes de chegar ao final do néfron, em grande parte devido a retrovazamento. B) Na IRA renal não oligúrica, uma boa parte do filtrado chega ao fim do néfron devido à baixa taxa de absorção tubular. Mesmo sendo muito pequena, a magnitude do RFG garante um fluxo suficiente para causar poliúria
DISTAL
ALÇA FINADESCENDENTE
ALÇAESPESSA
COLETOR
ALÇA FINAASCENDENTE
PROXIMAL
CARGA FILTRADA = 17 L/dia
DISTAL
ALÇA FINADESCENDENTE
ALÇAESPESSA
COLETOR
ALÇA FINAASCENDENTE
PROXIMAL
CARGA FILTRADA = 2400 mEq/dia
Tabela 14-4
Valores típicos de exames laboratoriais na IRA renal não oligúrica
Concentração plasmática de creatinina: 4,1 mg/dL (normal 0,8 a 1,2) Concentração plasmática de uréia: 119 mg/dL (normal 25-45) Fluxo urinário = 1.800 ml/dia (normal 600 a 1.500) [Na+] urinária =90 mmol/L (alta) [K+] urinária = 6 mmol/L (baixa) Osmolalidade urinária =298 mOsm/Kg (próxima à do plasma)
4,5
diferença entre as duas modalidades reside no fluxo urinário: enquanto na forma não
oligúrica o fluxo urinário é usualmente inferior a 100 ml/dia, é comum na forma não
oligúrica a presença de débitos urinários elevados, às vezes superiores a 2 L/dia, indicando
que, nessa forma de IRA, a recuperação da pequena quantidade de filtrado que se forma é
apenas parcial (Fig. 14-5B). A distinção entre as duas formas de IRA é importante por duas
razões: em primeiro lugar, o prognóstico da IRA renal não oligúrica é melhor do que o da
forma oligúrica. Em segundo lugar, o controle do balanço hídrico é mais fácil na forma não
oligúrica do que na oligúrica, uma vez que é menor a tendência à retenção de volume.
Entretanto, apesar da poliúria, o RFG permanece baixo, podendo ocorrer tanto
hiperidratação quanto desidratação se o balanço hidríco não for adequadamente controlado.
Mecanismos de lesão anatômica e funcional na IRA renal
Por que a hipóxia prolongada do tecido renal provoca uma depressão tão persistente
do RFG e das funções tubulares, que se mantém mesmo depois de corrigido o distúrbio
inicial? A resposta a esta questão permanece incompleta. Sabe-se no entanto que uma série
de alterações vasculares contribuem para manter baixos o fluxo sangüíneo renal e o RFG.
Essas alterações levam a uma intensa vasoconstrição das arteríolas glomerulares, o que
promove hipoperfusão, bem como a uma redução do Kf glomerular (ver Capítulo 1),
diminuindo o RFG. Essa vasoconstrição pode ser mediada pela disfunção de diversos
compostos vasoativos (ver Capítulo 2). Entre estes incluem-se 1) excesso de
vasoconstritores, como a angiotensina II (produzida principalmente pelas células do
complexo justaglomerular); a endotelina (produzida principalmente por células
endoteliais), e o tromboxane B (produzido por plaquetas) e 2) deficiência de
vasodilatadores, como as prostaglandinas vasodilatadoras (PGE2 e prostaciclina),
importantes para a manutenção do fluxo sangüíneo renal em situações de vasoconstrição
intensa; o óxido nítrico (NO), que desempenha um papel importante na regulação do fluxo
sangüíneo renal em condições normais, mas que pode também exercer um efeito tóxico
direto sobre os túbulos renais em situações de hipóxia; e o fator natriurético atrial,
produzido pelos átrios, capaz de aumentar substancialmente o RFG. Apesar dessa riqueza
de mediadores, inexistem até o momento evidências conclusivas apontando para qualquer
um desses compostos em particular.
Embora possa estar envolvida na queda do RFG observada na IRA renal, a
produção exagerada de vasoconstritores não explica outras alterações observadas nessa
condição, como a necrose de células tubulares, além da óbvia disparidade entre as formas
oligúrica e a não oligúrica. Para compreender esses fenômenos, é necessário examinar os
efeitos deletérios da própria hipóxia sobre epitélios transportadores complexos como os que
constituem os túbulos renais. Esses epitélios são obrigados a consumir grandes quantidades
de ATP, utilizados como fonte de energia metabólica para a realização de transporte ativo.
A manutenção da integridade de estruturas epiteliais como o túbulo proximal e a porção
espessa da alça de Henle exige a síntese de moléculas especializadas, as integrinas, que
ajudam a manter as células firmemente ancoradas à matriz extracelular. A manutenção do
citoesqueleto, que também exige dispêndio de energia, é duplamente essencial ao
funcionamento dos epitélios transportadores: em primeiro lugar, as integrinas devem fixar-
se ao citoesqueleto para poder conectar com firmeza a célula à matriz extracelular. É
também por intermédio do citoesqueleto que as células aderem umas às outras através da
zonula ocludens. Em segundo lugar, a integridade do citoesqueleto permite que a célula
epitelial mantenha-se polarizada, ou seja, conserve uma assimetria entre a membrana
basolateral, onde se localiza a Na-K-ATPase, presente em todas as células transportadoras
do néfron, e a membrana apical, onde se localizam estruturas que facilitam a entrada de
sódio na célula (canais específicos, cotransportadores e contratransportadores) (ver
Capítulo 5). Além dessas funções específicas de epitélios transportadores, essas células
necessitam de ATP para a realização de tarefas de manutenção comuns a todos os tipos
celulares, tais como a manutenção de seu volume (tarefa ainda mais difícil quando as
células estão imersas em meio hipertônico como a medula renal), a extrusão de cálcio do
interior da célula, visando manter baixas concentrações desse íon no citosol, a biossíntese
de proteínas, etc.
Quando as células transportadoras renais são submetidas a hipóxia durante um
período prolongado, todas essas funções podem ser comprometidas. A polarização das
células pode ser perdida, o que a faz por exemplo inserir moléculas de Na-K-ATPase em
ambas as membranas. Com isso, a célula deixa de realizar transporte resultante de sódio e
água, tornando-se portanto não transportadora (Fig. 14-6). A perda de polaridade estende-se
também às integrinas, que passam a aparecer em ambas as membranas. A desorganização
do citoesqueleto impede a correta ligação das integrinas e portanto o ancoramento da célula
à matriz extracelular. Como a conexão intercelular também fica comprometida, as células
perdem sua fixação e desgarram-se do epitélio, invadindo a luz tubular (Fig. 14-7A). Como
as integrinas ainda estão localizadas ao longo da superfície das células, estas tendem a
aderir umas às outras, formando “cilindros” que entopem a luz tubular (Fig. 14-7B). A
deposição de restos celulares e de fragmentos de microvilosidades (“borda em escova”),
associada à presença de proteínas de origem tubular (Tamm-Horsfall) contribui para
aumentar ainda mais as dimensões desses “cilindros”. É provável que essa micro-obstrução
tubular reduza a zero o RFG do respectivo néfron, de modo análogo ao da obstrução das
vias urinárias. A repetição desse fenômeno em muitos outros néfrons deve contribuir para
reduzir ainda mais o RFG total. É importante lembrar que uma alteração desse porte não é
facilmente reversível, o que pode ajudar a entender a lentidão com que esses pacientes se
recuperam uma vez superada a condição de hipóxia.
As alterações descritas acima interferem profundamente com o funcionamento da
célula e do próprio néfron. No entanto, as células assim afetadas permanecem vivas e, se
não chegarem a se desgarrar das estruturas adjacentes, podem até mesmo se recuperar logo
após a reoxigenação do tecido. Outras células, no entanto, sofrem necrose e desintegram-se.
K+
Na+
Na+
K+ K+
ATP
Na+
ATP
SEM TRANSPORTE RESULTANTE DE SÓDIO
Fig. 14-6 – Células submetidas a hipóxia prolongada podem perder a polaridade, deixando de realizar transporte resultante de água, sódio e demais eletrólitos
Há várias razões para que as células tubulares sucumbam dessa maneira à hipóxia.
Conforme mencionado acima, a manutenção de baixas concentrações de cálcio no citosol
depende fortemente da disponibilidade de ATP. Na ausência deste, a concentração de cálcio
intracelular sobe rapidamente. Há várias evidências experimentais de que, em
concentrações inadequadamente altas, o cálcio exerce um efeito extremamente tóxico sobre
a célula, podendo levá-la à necrose ou, em outros casos, à apoptose, que é uma forma de
morte celular programada.
Paradoxalmente, a hipóxia pode exercer um efeito profundamente deletério sobre as
células no momento mesmo em que deixa de existir, ou seja, quando ocorre a reperfusão. A
razão para isso é complexa e requer um pouco de conhecimento do metabolismo do próprio
ATP. Enquanto perdura a hipóxia, o estoque de ATP da célula é rapidamente consumido,
gerando quantidades enormes de adenosina e de seu principal metabólito, a hipoxantina
Fiig. 14-7 – A) Células submetidas a hipóxia durante longos períodos têm alteração de seu citoesqueleto e enfraquecimento de suas ligaçõescom as estruturas vizinhas, desgarrando-se do epitélio e invadindo a luz tubular. B) Células desgarradas e restos de células destruídas formam “cilindros” que obstruem o túbulo e dificultam a filtração glomerular naquele néfron. As lacunas deixadas pelas células que se desprenderam permitem o retrovazamento de fluido em direção ao interstício
(Fig. 14-8). A metabolização da hipoxantina só pode ocorrer em condições aeróbicas.
Portanto, a hipoxantina acumula-se na célula até que a oxigenação da mesma seja
restabelecida. Quando isso finalmente acontece, todo esse estoque de hipoxantina é
rapidamente transformado em xantina e ácido úrico, que é o catabólito final. Essa reação
gera também o superóxido e a hidroxila (não confundir com o ânion hidroxila presente nas
bases fortes), radicais livres bastante citotóxicos. Em condições normais, esses compostos
são formados em quantidade pequena o suficiente para que a célula evite facilmente a
elevação de seus níveis através de enzimas que os removem. Nas condições especiais da
reperfusão, no entanto, o acúmulo de hipoxantina leva à formação de grandes quantidades
desses radicais livres que, embora existam durante um intervalo de tempo extremamente
curto, têm um efeito tóxico devastador. Outro radical livre que pode exercer um efeito
deletério na reperfusão é o óxido nítrico (NO), que é sintetizado pelas células renais e
Fig. 14-8 – Em condições de anaerobiose prolongada, o uso dos estoques de ATP resulta no acúmulo de hipoxantina no interior da célula. A metabolização da hipoxantina no momento da reperfusão gera quantidades muito grandes de superóxido (O2
-) e hidroxila (OH-), radicais livres extremamente citotóxicos, promovendo destruição celular
ATP
ADP
AMP
Adenosina
O2-
H2O + O2
Hipoxantina
H2O2
.OH
Xantina
Ácido úrico
SOD
CAT
HipoxantinaO2
-
H2O2
também por macrófagos e outros leucócitos (ver Capítulo 2). Normalmente, o NO exerce
um importante papel fisiológico devido a seu efeito efeito vasodilatador, que ajuda a
modular o efeito de vasoconstritores como a angiotensina II e as catecolaminas. Em
situações de hipóxia, no entanto, o NO pode exercer um efeito tóxico, especialmente em
presença de grandes quantidades de superóxido, com o qual se combina para gerar o ânion
peroxinitrito, mais tóxico do que qualquer de seus precursores.
O descolamento de células da membrana basal, ou seu aniquilamento puro e simples
por necrose ou apoptose, leva à formação de grandes lacunas no epitélio tubular.
Combinadas à micro-obstrução dos túbulos por células desgarradas e restos celulares, essas
aberturas facilitam a passagem direta de fluido para o interstício, ou retrovazamento (Fig.
14-7B). É evidente que esse movimento de fluido não constitui propriamente uma absorção
tubular, servindo apenas para promover edema intersticial, o que vai aumentar a pressão
hidrostática do interstício e levar à obstrução de outros túbulos, contribuindo para agravar o
processo. É evidente também que o retrovazamento ajuda a explicar por que o volume
urinário é tão baixo em uma parte dos pacientes (IRA oligúrica).
Conforme discutido acima, a perda de polaridade, além de interferir com a aderência
da célula às estruturas vizinhas, anula o transporte resultante de água e solutos,
transformando-a em uma célula não transportadora. As conseqüências dessa disfunção são
evidentes: a falta de absorção faz com que o fluido intratubular que chega à célula seja
pouco absorvido. A presença dessa disfunção em um número grande de células leva à
rejeição de uma parcela considerável do fluido filtrado. Os néfrons em que esse tipo de
lesão predomina contribuem à formação de urina com um fluido pouco alterado em relação
ao filtrado glomerular, ajudando a explicar as características da urina nos pacientes com
IRA renal oligúrica (Tabela 14-3). É razoável supor que, se esse distúrbio predominar em
um grande número de néfrons, a tendência do paciente será a de desenvolver uma forma
não oligúrica. Quando, ao contrário, o predomínio de néfrons com micro-obstrução e/ou
retrovazamento é quase total, o paciente tenderá a apresentar a forma oligúrica.
IRA renal de origem tóxica
Nem todos os casos de IRA são decorrentes de hipovolemia. Vários compostos
químicos podem causar uma queda abrupta do RFG promovendo diretamente uma
vasoconstrição renal, com conseqüente redução do fluxo sangüíneo renal. Outros
compostos promovem lesão do parênquima renal por uma agressão tóxica tubular direta,
causando destruição celular semelhante à causada por isquemia prolongada. Os agentes
capazes de causar IRA nefrotóxica podem ser divididos em três grandes grupos: 1)
medicamentos e outros agentes introduzidos no organismo devido à ação do médico, como
os contrastes iodados; 2) peçonhas, venenos de origem animal como os de serpentes,
escorpiões e aranhas. 3) pigmentos, como a hemoglobina e a mioglobina (ver Tabela 14-1).
Os mecanismos através dos quais cada um desses grupos de agentes provoca seus efeitos
tóxicos, sejam estes vasculares ou celulares, não foram ainda completamente estabelecidos.
Uma discussão detalhada sobre as hipóteses atualmente propostas para explicar esses
efeitos foge aos objetivos deste texto.
É importante notar que, independente do mecanismo de ação, o rim é
particularmente susceptível a agentes tóxicos, especialmente os de ação celular direta. Há
três razões básicas para essa vulnerabilidade. Em primeiro lugar, o rim recebe, conforme
mencionado no início deste capítulo, cerca de 25% do débito cardíaco, estando portanto
exposto mais rápida e diretamente a qualquer agente tóxico circulante. Em segundo lugar, o
rim concentra o filtrado glomerular – é uma de suas funções – aumentando portanto em
várias vezes o potencial tóxico de qualquer agente. Em terceiro lugar, as células da pars
recta do túbulo proximal possuem um sistema de transporte de solutos orgânicos, estando
portanto mais diretamente expostas a agentes tóxicos.
Outras causas de IRA renal
Além de poder ser causada por hipovolemia e por agentes tóxicos, a IRA renal pode
também representar, com menor freqüência, uma complicação de outras patologias renais.
É o caso das glomerulonefrites, que em suas formas mais graves chega a provocar necrose
tubular aguda, das glomerulonefrites rapidamente progressivas e das vasculites primárias
ou secundárias a doenças sistêmicas, como o lupus eritematoso. A IRA pode ser causada
também por lesões intersticiais de causa infecciosa ( pielonefrites) ou de fundo alérgico, e
por nefrites intersticiais agudas secundárias a drogas, a intoxicações químicas, a processos
alérgicos ou a infecções.
IRA pós renal
O mecanismo básico envolvido na gênese da IRA pós-renal é a obstrução das vias
urinárias. Para que a IRA se estabeleça nesses casos, é necessário que a obstrução atinja
ambos os ureteres, ou que se estabeleça em um indivíduo com rim único. A causa mais
freqüente de obstrução renal são os cálculos ureterais. Outras causas comuns são os
coágulos decorrentes de sangramento renal ou das vias urinárias, os tumores das própria
vias urinárias ou extrínsecos a elas, a fibrose retroperitoneal, as neoplasias da próstata e da
bexiga, os cálculos vesicais e os estreitamentos uretrais. (ver Capítulo 1). A obstrução ao
fluxo urinário acarreta elevação da pressão hidráulica da via urinária, que se transmite aos
túbulos e ao espaço de Bowman, levando em última análise à anulação da pressão efetiva
de ultrafiltração e à cessação do processo de filtração glomerular (ver Capítulo 1). Após 1
ou 2 dias de obstrução, outros mecanismos, como a produção local de vasoconstritores,
entram em ação, contribuindo para manter baixo o RFG. Nos casos de IRA pós-renal é
imperioso desfazer o mais rapidamente possível a obstrução do trato urinário, uma vez que
é possível reverter a queda do RFG. No entanto, se a obstrução persistir, pode haver lesão
do parênquima renal, com a instalação de necrose tubular aguda e/ou infecção renal e das
vias urinárias, que podem levar à perda do órgão. Essa complicação é mais freqüente em
casos de obstrução unilateral, especialmente quando os sintomas associados são pouco
intensos. Ao alívio da obstrução, segue-se uma fase de intensa diurese, denominada diurese
pós-obstrutiva, durante a qual o paciente pode até mesmo desenvolver desidratação iso ou
hipotônica (ver Capítulo 7).
Diagnóstico da IRA
O primeiro dado clínico a levantar a suspeita diagnóstica de IRA é evidentemente o
fluxo urinário. A diminuição do fluxo urinário a valores inferiores a 400 ml/dia é
considerada oligúria. Esse limite foi assim definido por corresponder ao volume mínimo
necessário à excreção diária de solutos como a uréia, o sódio e o potássio (ver Capítulo 11).
No entanto, aproximadamente 50% dos casos de IRA observados atualmente são da forma
não-oligúrica. Um dos fatores responsáveis por essa tendência é o crescimento do uso de
drogas nefrotóxicas. Além disso, os médicos tendem cada vez mais a intervir de modo
precoce e enérgico nesses casos, procurando restaurar o volume intravascular e utilizar
diuréticos precocemente. Assim, o achado de um volume urinário superior a 400 ml/dia não
exclui de modo algum o diagnóstico de IRA.
O parâmetro laboratorial mais utilizado para a definição de insuficiência renal (sem
no entanto distinguir entre insuficiência renal aguda ou crônica) é a medida da
concentração plasmática de creatinina (Pcreat). Esta substância é produzida pelos músculos
de forma constante, sendo eliminada principalmente por filtração glomerular. No entanto,
este é um método pouco sensível, pois a Pcreat só se elevará de forma inequívoca quando o
RFG for inferior a 50% do normal. Mais ainda, como a Pcreat depende da massa muscular,
pode apresentar níveis enganosamente baixos em indivíduos com massa muscular reduzida,
como idosos, pacientes desnutridos, crianças etc. Assim, níveis de creatinina plasmática
acima de 1,5 mg/dl praticamente confirmam o diagnóstico de insuficiência renal, mas
"níveis normais" de creatinina não excluem essa possibilidade.
Uma vez diagnosticada a insuficiência renal, é essencial definir se esta é crônica ou
aguda. Anamnese e exame físico cuidadosos são fundamentais para este diagnóstico. A
história clínica de insuficiência renal crônica (IRC) costuma ser pobre, devido à natureza
insidiosa do processo, oligossintomático até os seus estágios mais avançados. Essa
característica da IRC decorre da grande capacidade de adaptação dos néfrons
remanescentes à perda progressiva de massa renal (ver Capítulo 15). Por outro lado, a IRA
geralmente tem história de curta duração, com fator desencadeante definido e
sintomatologia exuberante. Um exame de grande valia é a ultrassonografia renal. Rins
pequenos e/ou com perda da delimitação córtico-medular são indicativos de IRC, enquanto
rins de tamanho normal com córtex preservada são fortemente sugestivos de IRA.
É de grande importância a detecção precoce da causa da IRA, para tratamento
rápido e eficiente das formas reversíveis, como a IRA pré-renal, a IRA pós-renal, as
glomerulites, as vasculites e as nefrites intersticiais. O diagnóstico diferencial entre IRA
pré-renal e NTA é particularmente relevante. Conforme discutido acima, na IRA pré-renal
os mecanismos de reabsorção de sódio e água estão altamente ativados, levando à excreção
de uma urina com baixa concentração de sódio e alta osmolalidade. Por outro lado, na NTA
o dano tubular impede a reabsorção de sódio e a concentração urinária, fazendo com que os
rins produzam uma urina com alta concentração de sódio e osmolalidade próxima à do
plasma. Um parâmetro extremamente útil para se discernir entre uma IRA pré-renal e uma
NTA é a fração de excreção de sódio (FENa%). A FENa% é calculada dividindo-se a carga
excretada de sódio (UNa × V) pela carga filtrada de sódio (PNa × RFG) e multiplicando-se o
resultado por 100 (a FENa% é expressa em porcentagem), onde UNa é a concentração
urinária de sódio, V é o fluxo urinário (em mL/min) e PNa é a concentração plasmática de
sódio. Na prática clínica, o RFG é medido calculando-se a taxa de depuração de creatinina.
Quando a FENa% é inferior a 1%, é alta a probabilidade de se tratar de uma IRA pré-renal,
enquanto uma FENa% superior a 3% sugere a presença de uma NTA. No entanto, na
maioria das vezes os valores do sódio urinário, da osmolalidade e da fração de excreção de
sódio situam-se numa "zona cinzenta", impossibilitando o diagnóstico conclusivo. Desta
forma, a melhor maneira de distinguir entre uma IRA pré-renal e uma NTA é a realização
de um teste terapêutico: corrige-se o débito cardíaco e/ou o volume intravascular
utilizando-se as medidas terapêuticas apropriadas: cardiotônicos e diuréticos no caso de
uma insuficiência cardíaca grave, reposição de volume em casos de hipovolemia por perdas
externas. Se essa correção resultar em uma rápida recuperação do fluxo urinário, impõe-se
o diagnóstico de IRA pré-renal. Por outro lado, se a oligúria e o baixo RFG persistirem
apesar da correção do débito cardíaco e do volume intravascular, é altamente provável
estarmos lidando com uma IRA renal. É importante notar que esse teste terapêutico deve
ser realizado com extremo cuidado, para evitar sobrecargas hídricas que coloquem em risco
os pacientes portadores de IRA renal estabelecida.
Manifestações clínicas da IRA
A queda abrupta da filtração glomerular faz com que várias substâncias tóxicas
normalmente eliminadas pelo rim, principalmente os catabólitos finais dos compostos
nitrogenados, como a uréia, passem a ser retidas. Essa retenção provoca disfunções em
vários órgãos e sistemas e origina o quadro clínico de uremia, que é a manifestação mais
dramática da insuficiência renal. Apesar do nome, sabe-se hoje que a uréia não é o principal
responsável pela síndrome urêmica, não havendo ainda consenso acerca de qual ou quais
são as principais toxinas causadoras desse quadro. Na IRA renal oligúrica, em que ocorre
lesão renal grave, os rins perdem, além de sua função de eliminar escórias, também a
capacidade de regular o balanço de água e sódio, o que provoca retenção de fluidos e o
desenvolvimento de hipertensão e edema, incluindo o edema agudo pulmonar, com
conseqüências obviamente graves e potencialmente mortais. Se o balanço positivo de água
predominar em relação ao de sódio, pode ocorrer hiponatremia e edema intracelular, com
graves conseqüências neurológicas (ver Capítulo 7).
A IRA compromete também a excreção de outros eletrólitos além do sódio. A alteração
eletrolítica potencialmente mais perigosa provocada pela IRA é a hipercalemia, que pode
causar arritmias graves e mesmo mortais (ver Capítulo 8). Quadros de acidose metabólica
com anion gap normal ou elevado são comuns (ver Capítulo 12). Finalmente, as funções
renais endócrinas também podem ser prejudicadas, o que pode gerar anemia e distúrbios do
metabolismo do cálcio. É freqüente a ocorrência de hipocalcemia, hiperfosfatemia e
hipermagnesemia, que usualmente não necessitam de correção. A Tabela 14-5 resume os
principais sinais e sintomas da IRA renal, agrupados com base nos órgãos e sistemas
acometidos.
O quadro clínico da NTA persiste durante 2 a 4 semanas, até que ocorra a recuperação
das estruturas renais comprometidas, com resolução das micro-obstruções tubulares e
regeneração dos túbulos necrosados. Usualmente, a recuperação da diurese precede a
normalização da filtração glomerular, o que possivelmente reflete o tempo necessário a que
se refaça completamente a anatomia dos túbulos e a polarização das células. Vale ressaltar
que essa regeneração nem sempre acontece: cerca de 1 a 5% dos pacientes com IRA jamais
recuperam a função renal, evoluindo para IRC terminal e tornando-se permanentemente
dependentes de diálise.
Tabela 14-5 Principais manifestações clínicas da IRA renal
Digestivo: inapetência, náuseas, vômitos incoercíveis, sangramento digestivo
Cárdio-respiratório: dispnéia, edema, hipertensão arterial, insuficiência cardíaca, edema
agudo de pulmão, arritmias, pericardite
Neurológico: sonolência, tremores, agitação, convulsão, coma
Hematológico: sangramentos, anemia
Imunológico: depressão imunológica, tendência a infecções
Nutricional: catabolismo aumentado, balanço nitrogenado negativo, perda de
massa muscular
Cutâneo: prurido
Tratamento e profilaxia da IRA
A conduta profilática mais importante para a prevenção da NTA é a otimização
rápida e adequada do volume intravascular e do débito cardíaco. Mesmo em quadros de
IRA renal já estabelecida, deve-se manter o doente convenientemente hidratado para evitar
agressão isquêmica adicional ao rim (obviamente o excesso de volume deve ser evitado
com rigor ainda maior). Drogas e substâncias nefrotóxicas devem ser utilizadas
judiciosamente, sempre com monitoração da função renal. Patologias específicas como
glomerulites, vasculites e nefrites intersticiais devem ser adequadamente tratadas.
Conforme discutido acima, quadros de obstrução renal devem ser resolvidos com a maior
rapidez possível.
Por outro lado, uma vez instalado o quadro de NTA, não existe conduta capaz de
revertê-lo. O tratamento desses pacientes baseia-se essencialmente em medidas de suporte,
essenciais para manter o paciente em boas condições clínicas enquanto se aguarda a
recuperação da função renal. Estas medidas incluem prevenção e tratamento da
hipervolemia (e também , quando necessário, da hipovolemia), a prevenção e o tratamento
da hiponatremia e da hipercalemia, a profilaxia de sangramentos digestivos, a nutrição
adequada e a prevenção de infecções. Alguns clínicos recomendam o uso de diuréticos de
alça, numa tentativa de trazer o fluxo urinário a níveis mais próximos dos fisiológicos.
Com isso, busca-se tornar mais fácil a manutenção do balanço hídrico do paciente, sem
necessidade de diálise. Outros argumentam que esse procedimento pode transformar a IRA
renal oligúrica em uma não oligúrica, melhorando assim o prognóstico da doença. Não se
estabeleceu até o momento se essa conduta tem realmente um impacto benéfico sobre o
prognóstico e a sobrevida desses pacientes.
Quando as conseqüências clínicas da IRA chegam a ameaçar a sobrevivência
imediata do paciente e não respondem ao tratamento convencional, não resta outra
alternativa a não ser o tratamento dialítico. São indicações clássicas de diálise as
manifestações características da síndrome urêmica, tais como a presença de vômitos
incoercíveis, sangramentos, pericardite ou confusão mental. Indica-se também a realização
de tratamento dialítico quando o paciente manifesta tendência, não responsiva a tratamento
clínico, à retenção de fluidos e ao desenvolvimento de hipervolemia e edema pulmonar.
Também a hipercalemia e a acidose persistentes exigem essa indicação. A tabela 14-6 lista
as indicações principais de diálise em IRA.
Tabela. 14-6 - INDICAÇÕES DE DIÁLISE NA IRA _________________________________________________________________ - Hiperpotassemia - Hipervolemia: edema periférico, derrames pleural e pericárdico, ascite,
hipertensão arterial e ICC - Uremia: sistema nervoso central (sonolência, tremores, coma e convulsões)
sistema cardiovascular (pericardite e tamponamento pericárdico), pulmões (congestão pulmonar e pleurite) aparelho digestivo (náuseas, vômitos e hemorragias digestivas)
Acidose metabólica Outras: hipo ou hipernatremia, hipo ou hipercalcemia, hiperuricemia,
hipermagnesemia, hemorragias devido a distúrbios plaquetários, insuficiência cardíaca congestiva refratária, hipotermia e intoxicação exógena
Nos últimos anos diversos métodos dialíticos tem-se tornado disponíveis para o
tratamento da IRA, conforme descrito na Tabela 14-7.
Tabela 14-7. Métodos dialíticos para o tratamento da IRA _______________________________________________________________________ Métodos intermitentes Métodos contínuos _________________________________________________________________ Diálise peritoneal (DP) intermitente DP ambulatorial contínua Hemodiálise intermitente Ultrafiltração contínua lenta Hemofiltração intermitente Hemofiltração A-V contínua
Hemofiltração V-V contínua Hemodiálise A-V contínua Hemodiálise V-V contínua Hemodiafiltração A-V contínua Hemodiafiltração V-V contínua
_______________________________________________________________________ A-V (arteriovenosa) ; V-V (veno-venosa)
A diálise consiste na depuração sangüínea através de membranas semi-permeáveis
naturais (peritôneo) ou extra-corpóreas (filtros de hemodiálise/hemofiltração), aplicada em
substituição à função renal. A diálise permite a remoção de substâncias tóxicas e de fluidos
(ultrafiltrado), a fim de manter o equilíbrio ácido-básico, eletrolítico e volêmico. A diálise
peritoneal (DP) é realizada através de cateteres introduzidos na cavidade peritoneal para
que esta seja irrigada com soluções salinas balanceadas contendo dextrose. A remoção das
toxinas e fluidos se faz por difusão (transporte de solutos através de membrana semi-
permeável a favor de um gradiente de concentração) e por convecção (transferência em
massa de solutos através da membrana semi-permeável, arrastados pelo fluxo de água). A
proporção entre esses dois componentes no procedimento dialítico varia conforme a
necessidade do paciente. Se a prioridade for a remoção de fluido (pacientes em
hipervolemia), o procedimento indicado pode ser a hemofiltração, que se baseia
exclusivamente no movimento de fluido. Se também houver necessidade de remoção de
solutos, a escolha poderá recair sobre a hemodiálise, na qual ocorre a remoção de fluido e
também de solutos. Já a hemodiafiltração utiliza membranas de alta permeabilidade, que
permitem a retirada rápida de fluido e também a remoção de moléculas maiores, como por
exemplo certos mediadores inflamatórios em casos de sepsis.
O procedimento dialítico pode ser artério-venoso (o fluxo extra-corpóreo inicia-se
em uma artéria e termina em uma veia) ou veno-venoso (com início e término em uma veia
central). Esta última via de acesso vascular é mais utilizada atualmente, através da
implantação de cateteres de dupla luz em veias centrais. Todos os procedimentos dialíticos
podem ser intermitentes ou contínuos, dependendo das necessidades dos pacientes, da
presença de patologias associadas, da disponibilidade de equipamentos e do treinamento
das equipes médicas e de enfermagem.
EXERCÍCIOS
Reveja a absorção de água, sódio e potássio no néfron na situação “normal”.
Observe a composição dos solutos urinários nessas condições, assim como as
concentrações urinárias de sódio e de potássio. Elas nos auxiliarão a distinguir entre os
tipos de IRA.
Reveja também os efeitos do furosemide e da administração de volume sobre os
parâmetros mencionados acima.
3-) Simule agora uma IRA pré-renal. O que acontece ao RFG? E às cargas
excretadas de sódio e potássio? E às concentrações urinárias de sódio e potássio? E à
composição de solutos da urina? O que acontece à osmolalidade urinária?Qual o efeito da
reposição de volume? Faz sentido administrar furosemide nessas circunstâncias? Por que?
Observe os comentários que aparecem no alto à direita. Eles vão aparecer outras vezes
4-) Repita os procedimentos acima após simular uma IRA renal. Observe o que
acontece às células tubulares nessas circunstâncias (clique em “ver célula”).
4-) Repita os procedimentos acima após simular uma IRA não oligúrica. Clique em
“ver célula” novamente para observar o que acontece às células tubulares
5-) Com base nessas observações: a) como se pode distinguir entre uma IRA pré-
renal e uma IRA renal? Qual o melhor tratamento para uma IRA pré-renal? O que fazer
quando se tem uma IRA renal? E uma IRA não-oligúrica?
CAPÍTULO 15: INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA
Roberto Zatz
Richard Bright foi o primeiro a descrever, em meados do século passado,
uma enfermidade letal que reunia vários elementos clínicos aparentemente desconexos. Os pacientes apresentavam edema e vários sinais que hoje sabemos associados à hipertensão arterial, tais como hipertrofia ventricular esquerda e hemorragias cerebrais. Mais importante, seus rins tinham freqüentemente um aspecto "contraído e granular", que a microscopia mais tarde demonstrou decorrer da substituição das complexas estruturas do parênquima renal por um tecido cicatricial amorfo. O desenvolvimento das técnicas histológicas e, mais tarde, de biópsia renal, permitiu demonstrar que a doença de Bright, como passou a ser conhecida, consistia na esclerose progressiva dos glomérulos, ou seja, a oclusão das alças capilares por um material hialino, com aderência ao folheto parietal da cápsula de Bowman e posterior fibrose não só do tufo glomerular mas também do restante do parênquima renal. Desde logo ficou claro que a história natural da insuficiência renal crônica, como se denominou mais tarde a doença de Bright, era a de um processo extremamente insidioso, que podia evoluir assintomaticamente durante anos, até atingir o estádio terminal descrito por Bright. Essa observação é um tanto surpreendente quando se considera a extrema importância dos rins para a sobrevivência do organismo. Além da óbvia função de eliminar os produtos indesejáveis do metabolismo, os rins são essenciais à própria homeostase: mantêm constantes o volume extracelular, a concentração de eletrólitos, o pH e a pressão osmótica do meio interno, além de desempenhar um papel decisivo no controle da pressão arterial e de influenciar outras funções importantes ao organismo, como a produção de eritrócitos e da forma ativa da vitamina D. A importância dos rins torna-se ainda mais evidente quando se observam as conseqüências de uma perda abrupta da função renal (insuficiência renal aguda), como ocorre por exemplo após um choque hemorrágico prolongado (ver Capítulo 14). Se não tratados, esses pacientes retêm uma quantidade enorme de excretas tais como a uréia, acumulam líquido sob forma de edema e desenvolvem acidose metabólica severa e hiperpotassemia, não chegando a sobreviver mais do que 3 ou 4 dias. Esses achados são inteiramente reproduzidos em animais de laboratório submetidos a nefrectomia bilateral. Como explicar então que nas doenças renais crônicas o indivíduo siga assintomático durante anos, enquanto seus rins vão sendo progressivamente destruídos? ADAPTAÇÃO FUNCIONAL DOS NÉFRONS REMANESCENTES: FUNÇÃO GLOMERULAR
Sabemos hoje que uma das explicações para a prolongada evolução da insuficiência renal crônica repousa sobre uma propriedade fundamental do parênquima renal: embora os rins sejam indispensáveis à sobrevivência do organismo, sua capacidade funcional é vastamente superior ao mínimo necessário a esse fim. Isso permite que seres humanos, cães e ratos possam manter-se vivos com 10% ou menos de sua função renal normal quando sua massa renal é drasticamente reduzida por processos mórbidos ou mesmo por retirada cirúrgica. A manutenção de níveis funcionais apropriados em face de uma redução considerável da massa renal deve-se ainda a uma outra propriedade básica do parênquima renal: os néfrons remanescentes são capazes de adaptar-se à nova condição biológica, multiplicando em várias vezes seu ritmo de trabalho. Isso fica bastante claro quando consideramos o comportamento do ritmo de filtração glomerular (RFG) em face de uma redução
% ABLAÇÃO
FP
N, n
l/min
0 25 50 75 100
0
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40
60
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100
Fig 15.1: Representação esquemática da elevação da taxa de filtração por néfron (FPN) em função da fração do parênquima renal retirado
cirurgicamente (% ablação)
(ablação) parcial da massa renal (Fig. 15.1). O exemplo mais óbvio dessa adaptação é o da uninefrectomia, freqüentemente necessária por exemplo em casos de tumores renais ou em doadores de rins para transplante entre vivos. O RFG desses indivíduos pode chegar a 80% do observado antes da uninfrectomia, indicando que a taxa de ultrafiltração dos néfrons remanescentes pode estar aumentada em 60%. No rato, que pode ser submetido a vários níveis de ablação da massa renal e no qual é possível medir diretamente a taxa de filtração glomerular, essa adaptação progressiva é ainda mais evidente. Enquanto o RFG por néfron é de cerca de 45 nl/min em ratos normais, observamos um aumento de cerca de 50% em ratos submetidos a uninefrectomia, chegando ao triplo do normal quando mais de 80% do parênquima renal são removidos, uma situação que mimetiza o que ocorre em pacientes com insuficiência renal crônica avançada. Conforme discutido no Capítulo 1, esse
Fig. 15.2: Representação esquemática da dinâmica glomerular em condições normais (linhas cinzentas) e após retirada de 85% do
parênquima renal (linhas negras)
aumento decorre de uma profunda alteração da dinâmica glomerular. Em ratos normais, a pressão efetiva de ultrafiltração (PEUF) é de aproximadamente 10 mmHg, para um gradiente hidráulico (∆P) de 40 mmHg e um fluxo plasmático glomerular inicial (QA) de 140 nl/min. Após ablação de mais de 80% do parênquima renal, o QA passa a 250 nl/min, enquanto o ∆P vai a mais de 50 mmHg, fazendo com que a PEUF ultrapasse 30 mmHg, ou 3 vezes o valor normal (Fig. 15-2). Apesar dessa flexibilidade, não é possível ao glomérulo elevar indefinidamente sua taxa de ultrafiltração: há um limite para o aumento do QA, já que as arteríolas glomerulares, especialmente a aferente, têm uma capacidade máxima de dilatação. Pela mesma razão, o ∆P não pode elevar-se de modo ilimitado. Em outras palavras, há um teto, correspondente a cerca de 3 vezes o valor normal, para o aumento adaptativo do RFG por néfron. ADAPTAÇÃO FUNCIONAL DOS NÉFRONS REMANESCENTES: FUNÇÃO TUBULAR
A resposta adaptativa dos túbulos à perda de massa renal é ainda mais intensa do que a que ocorre nos glomérulos. Existe uma importante razão para isso: enquanto a função do glomérulo é dar início à formação da urina através do processo de ultrafiltração, a dos túbulos é a de excretar na urina as quantidades exatas de catabólitos, água e eletrólitos necessárias à manutenção da homeostase. Qualquer desvio desse rígido balanço implica na retenção de excretas e no
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50
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0 .0 0 .2 0.4 0.6 0 .8 1 .0
D istân c ia
mm
Hg
acúmulo ou depleção de água, sódio, potássio e outros componentes essenciais do meio interno. Por essa razão, cada néfron remanescente deve adaptar-se de modo a, em conjunto com os demais, dar conta de cada um dos balanços que o organismo necessita manter. Vamos examinar nas seções seguintes as adaptações de que os néfrons lançam mão para manter alguns dos balanços mais importantes ao organismo.
Sódio Antes de examinarmos o manuseio tubular de sódio na insuficiência renal
crônica, vamos nos deter um pouco sobre o tipo de regulação que o organismo impõe a esse íon. O sódio deve ter sua concentração no meio interno mantida dentro de limites estreitos, não importando quanto desse íon ou de água sejam ingeridos. A razão para isso é simples: sendo o sódio o principal íon do compartimento extracelular, sua concentração governa diretamente a osmolalidade do meio interno, a qual deve permanecer dentro de uma faixa extremamente limitada (ver Capítulo 11). Desse modo, todas as providências utilizadas pelo organismo para regular o balanço de água e portanto a tonicidade do meio interno (sede, hormônio antidiurético) acabam por manter sob rigoroso controle a concentração extracelular de sódio. Somente em situações de extremo desarranjo desses sistemas de controle é que a concentração de sódio se altera (ver Capítulo 7). Para conseguir esse controle tão preciso, os túbulos absorvem, em condições normais, mais de 99% da carga filtrada de sódio. É fácil demonstrar isso através de um simples cálculo aritmético. Nas sociedades ocidentais, a taxa de ingestão de sódio situa-se mais freqüentemente dentro de uma faixa que vai de 100 a 200 mmol/dia. Para uma concentração plasmática de sódio de 150 mmol/L, a carga filtrada (RFG×concentração plasmática) é de aproximadamente 170 L/dia×140mmol/L ≅ 24.000 mmol/dia. Isso significa que nesse caso a fração de
excreção de sódio (FENa), ou seja, a porcentagem da carga filtrada de sódio que é rejeitada pelos túbulos e portanto excretada na urina (definida pela expressão FENa=carga excretada/carga filtrada×100), é de 150/24.000 = 0.6%. Se a ingestão de sódio variar, os rins ajustam esse pequeno porcentual de modo a manter o balanço de sódio, ou seja, de modo a sempre excretar uma quantidade do íon exatamente igual à ingerida. Se houver agora uma queda progressiva no RFG, haverá evidentemente uma redução da carga filtrada de sódio, enquanto a concentração plasmática do íon mantém-se constante pelas razões enumeradas acima. Como a ingestão diária média de sódio não varia ao longo do tempo, a excreção urinária de sódio tende a permanecer constante. Examinando novamente a expressão que define a fração de excreção de
A B
Fig. 15.3: Concentração plasmática (A) e fração de excreção (B) de sódio como função do RFG
sódio (carga excretada/(RFG×concentração plasmática), verificamos com facilidade que, sendo invariáveis a carga excretada e a concentração plasmática de sódio, teremos uma expressão da forma FENa=k/RFG, onde k é uma constante. Isso significa que a fração de excreção de uma substância cuja concentração plasmática é rigidamente controlada é uma função hiperbólica do RFG (Fig. 15.3), tornando-se assim cada vez maior à medida que o RFG vai declinando.
O rígido controle imposto à concentração de sódio contrasta com o comportamento de solutos não regulados. Tomemos como exemplo deste último caso a creatinina. Conforme discutido no Capítulo 1, a creatinina não é absorvida nem secretada nos túbulos. A taxa de excreção urinária de creatinina é portanto idêntica à sua carga filtrada, o que traz duas conseqüências: 1) a fração de excreção de creatinina é igual a 100%. 2) a excreção urinária de creatinina é inteiramente dependente do RFG. Se este cai, como ocorre na insuficiência renal crônica, a concentração plasmática de creatinina sobe na proporção inversa, sendo exatamente por essa razão utilizada para avaliar o RFG. No entanto, sua fração de excreção segue constante e igual a 100%. É fácil verificar que esse comportamento é exatamente o inverso daquele observado para solutos regulados como o sódio (Fig. 15.4).
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[Na+
] pl
asm
a, m
mol
/L
Fig. 15.4: Concentração plasmática (A) e fração de excreção (B) de creatinina como função do RFG
Em condições normais, cerca de 70% da carga filtrada de sódio são absorvidos
no túbulo proximal, 20% na alça de Henle e 7% no túbulo distal, de modo que apenas 3% da carga filtrada chegam aos túbulos coletores (ver Capítulo 5). Embora estes não sejam capazes de transportar grandes quantidades de água ou sódio, sua capacidade absortiva é em condições normais mais do que suficiente para garantir um ajuste fino da excreção de sódio, correspondente, como vimos, a menos de 1% da carga filtrada. Quando o RFG se reduz, no entanto, a FENa cresce inversamente (Fig. 15.3). Com uma redução de 80%, a FENa vai a 3%, excedendo a capacidade de transporte dos dutos coletores. Para manter o balanço de sódio torna-se necessário que as porções mais proximais do néfron passem a rejeitar uma proporção maior da carga filtrada de sódio. Isso requer no entanto que os rins “percebam” a necessidade de excretar mais sódio, o que somente é possível se houver uma certa expansão do volume extracelular. Conforme o processo avança e o RFG reduz-se ainda mais, aumenta a rejeição de sódio, o que evidentemente exige uma maior expansão do volume extracelular, levando à hipertensão arterial (ver Capítulo 10) e à formação de edema (Capítulo 9). Há necessidade de se introduzir aqui um conceito muito útil para a compreensão dos mecanismos de adaptação renal na insuficiência renal crônica: embora os rins consigam manter a homeostase mesmo com grandes reduções no número de néfrons, o organismo tem de pagar um preço para que isso ocorra. No caso do sódio, o balanço mantém-se à custa de uma expansão do volume extracelular, com todas as suas conseqüências. Esse mecanismo, conhecido por trade off (troca ou barganha, em inglês), está envolvido em vários outros processos de adaptação renal, como veremos adiante.
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at]
plas
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mg/
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ml
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RFG, ml/min
FE
crea
t %
Os mecanismos de que o rim precisa lançar mão para manter a homeostase do sódio acarretam uma complicação adicional: a redução da capacidade do organismo de fazer frente a extremos de ingestão de sódio. Um indivíduo normal é capaz de manter-se em balanço de sódio mesmo ingerindo quantidades do íon próximas a 1000 mmol/dia. Por outro lado, a ingestão de sódio desse mesmo indivíduo pode cair a 2 mmol/dia sem que ocorra depleção de sódio, já que o rim pode reduzir sua excreção a esse valor. Essa extrema flexibilidade é possível graças à capacidade que têm os túbulos de ajustar finamente sua FENa. Já na insuficiência renal crônica avançada essa faixa de variação apresenta-se bastante estreitada. Imaginemos novamente uma redução de 80% no RFG. Nesse caso, a carga filtrada de sódio é de apenas 4.800 mmol/dia. Mesmo com uma FENa alta, digamos, de 10%, é fisicamente impossível ao rim excretar nesse caso mais de 480 mmol/dia de sódio. Por outro lado, o alto fluxo intraluminal imposto aos túbulos pela elevada taxa de filtração por néfron torna impossível a reabsorção quase completa do sódio filtrado, necessária, como vimos, quando a ingestão do íon é baixa. Por essa razão, o paciente com insuficiência renal crônica pode depletar-se de sódio e entrar em um processo aparentemente paradoxal de desidratação e hipovolemia, especialmente quando tratado com diuréticos para diminuir a hipertensão e o edema.
POTÁSSIO Tanto quanto a de sódio, a concentração de potássio no meio interno
deve ser mantida dentro de limites estreitos, por razões que são discutidas no Capítulo 8. Um indivíduo normal é capaz de livrar-se facilmente de uma sobrecarga de potássio várias vezes superior à ingestão normal. Isso é possível porque os segmentos distais do néfron são capazes de secretar grandes quantidades de potássio, seja aumentando a atividade da Na+-K+-ATPase basolateral, seja reduzindo a recirculação de potássio através das paredes tubulares (ver Capítulo 8). Um indivíduo normal, ingerindo 100 mmol de potássio por dia, deve excretar 90 mmol/dia para manter o balanço (os 10 mmol/dia restantes são eliminados com as fezes). Como a carga filtrada de potássio é de 170 L/dia×4 mmol/L = 680 mmol/dia, a FEK é de 90/680 ≅ 13%. Se a taxa de ingestão triplicar, a FEK aproxima-se de 40%, e assim por diante.
Quando ocorre perda de massa renal, com redução do RFG, a ingestão de potássio não se altera. Sendo estritamente regulada, a concentração de potássio no meio interno mantém-se também constante. Se o RFG cair a 20% do normal, ou seja, a 34 L/dia, a carga filtrada, que conforme calculamos chega a 680 mmol/dia em condições normais, reduz-se a 136 mmol/dia. Como a carga excretada permanece a mesma, a FEK vai a 90/136 ≅ 66%. Se a ingestão de potássio triplicar, a FEK vai a 200%, indicando ser a secreção resultante de potássio duas vezes maior do que a carga filtrada. A FEK pode também superar os 100% se o RFG cair ainda
mais, mesmo que a ingestão de potássio permaneça inalterada. Na verdade, a FEK, como a FENA, varia inversamente com o RFG. Mediante essa adaptação do néfron distal, o rim geralmente consegue manter o balanço de potássio, até praticamente as etapas finais do processo. Essa adaptação tem no entanto um custo: como a massa renal está diminuída, a resposta renal a uma carga de potássio é bem mais lenta do que a normal. Por essa razão, há um pequeno surto de hiperpotassemia logo após as refeições. Para a maioria dos renais crônicos, isso não traz conseqüências clinicamente perceptíveis. Há no entanto uma subpopulação de pacientes com insuficiência renal crônica, especialmente diabéticos, que tendem a desenvolver hiperpotassemia em decorrência de uma produção insuficiente de aldosterona pelas adrenais. Para esses pacientes, mesmo uma ingestão normal de potássio pode elevar perigosamente os níveis plasmáticos desse íon. ÁGUA Um dos primeiros sinais clínicos das nefropatias progressivas é a diminuição da capacidade renal de concentrar a urina. Em condições normais, o sistema de contracorrente medular permite aos rins elevar a osmolalidade urinária até 1300 mOsm (ver Capítulo 11). Graças a isso, o organismo é capaz de economizar diariamente mais de 1,5 litros de água em condições de baixa ingestão e/ou perdas elevadas de água. Para que o sistema de concentração urinária funcione adequadamente, é imperioso que o fluxo intratubular seja mantido dentro de uma faixa relativamente estreita. Se esse fluxo for demasiadamente baixo, há tempo para que o gradiente córtico-medular se desfaça por simples difusão. Se demasiado alto, a medula é “lavada”, limitando assim o gradiente córtico medular. É exatamente isso o que acontece na insuficiência renal crônica. Com a perda progressiva de massa renal, os néfrons remanescentes são obrigados, como vimos, a aumentar sua taxa de filtração, aumentando assim o fluxo intratubular, para o que contribui ainda a elevada rejeição tubular de sódio, necessária à manutenção do balanço desse íon. Essa limitação é ainda agravada pela desorganização estrutural do parênquima renal, conseqüência da fibrose que caracteriza o processo, já que o sistema de contracorrente depende para o seu funcionamento de um arranjo anatômico preciso e altamente especializado (Capítulo 11). Em decorrência dessa incapacidade parcial ou total de concentrar a urina, o paciente com insuficiência renal crônica, ao contrário de um indivíduo normal, não tolera a privação prolongada de água. Por exemplo, para uma excreção de solutos de 600 miliosmol/dia (mais ou menos a média diária em nossa população) e uma concentração urinária máxima de 600 mOsm (comparada a 1,200 mOsm em indivíduos normais), o volume urinário mínimo obrigatório será de 600 miliosmol/dia/600mosmol/litro = 1 litro/dia. Se a ingestão hídrica for muito baixa, esse paciente pode desenvolver uma desidratação hipertônica. Esse quadro agrava-se, evidentemente, conforme o número de néfrons vai decrescendo e a capacidade
de concentração urinária vai se tornando ainda mais limitada. Voltamos novamente à questão do custo da adaptação à perda progressiva de néfrons: para manter o mesmo ritmo de excreção de solutos, o rim é obrigado a sacrificar progressivamente sua capacidade de limitar a excreção de água.
Além de não conseguir concentrar adequadamente a urina, o paciente com insuficiência renal crônica encontra também dificuldade em diluí-la. Essa segunda limitação decorre diretamente da redução do RFG. Conforme discutido no Capítulo 11, a capacidade de diluir a urina depende da quantidade de “água livre” (isto é, desprovida de solutos) que os rins são capazes de eliminar. Esta depende, por sua vez, do fluxo de fluido intratubular que chega aos segmentos diluidores do néfron, particularmente à porção espessa da alça de Henle. Em um indivíduo normal, o fluxo máximo dessa água “livre” excretada pelos rins corresponde a cerca de 15% do RFG, ou seja, 170 litros/dia × 0,15 ≅ 25,5 litros/dia. É essa enorme reserva funcional o que permite a indivíduos com alteração do centro da sede ou portadores de certos distúrbios psíquicos (as chamadas polidipsias
primárias) ingerir compulsivamente quantidades descomunais de água, de 20 litros por dia ou mais, sem desenvolver hipoosmolaridade do meio interno e intoxicação hídrica. À medida em que a doença progride e o RFG declina, esse fluxo máximo de “água livre” vai decaindo proporcionalmente, chegando a ≅ 2,5 litros/dia quando o RFG cai a 10% do normal. Esses pacientes correm portanto o risco de desenvolver intoxicação hídrica ingerindo quantidades relativamente baixas de água ou fluido hipotônico (por exemplo, cerveja ou refrigerante em uma festa).
Fica evidente assim a enorme limitação imposta aos pacientes com insuficiência renal crônica com relação à ingestão de água: enquanto um indivíduo normal pode variar sua ingestão hídrica diária entre 0 e 25 litros, o paciente renal crônico vê essa faixa estreitar-se mais e mais à medida em que a moléstia avança. No limite, ou seja quando o RFG tende a zero, essa faixa desaparece inteiramente e a necessidade de ingestão hídrica fica “travada” em cerca de 2 litros/dia. Esse quadro extremo não chega a ser observado na prática, uma vez que, bem antes disso, o paciente chega a um estado terminal de insuficiência renal, vindo a morrer se não receber terapia de substituição (diálise ou transplante). EQUILÍBRIO ÁCIDO-BASE Conforme discutido no Capítulo 12, a excreção renal de ácido fixo é composta de duas parcelas aproximadamente iguais: a acidez titulável, representada pelos prótons ligados aos tampões fixos urinários, especialmente os fosfatos, e a excreção de amônio (NH4
+), esta diretamente dependente da síntese
renal de amônia (NH3). Vimos também nesse capítulo que um aumento da produção de ácido fixo pelo organismo é compensado principalmente pelo aumento da síntese renal de NH3 e correspondente excreção de NH4
+, uma vez que a excreção de acidez titulável já está próxima ao máximo em condições normais.
Quando o número de néfrons diminui em decorrência de uma doença renal crônica, os néfrons remanescentes são evidentemente obrigados a excretar uma quantidade maior de prótons a fim de manter o balanço ácido do organismo. Para isso, cada néfron deve aumentar tanto a acidez titulável quanto a excreção de amônio. Seria impossível aos néfrons aumentar muito a acidez titulável em condições normais. No indivíduo com doença renal crônica, no entanto, a taxa de filtração glomerular por néfron está aumentada e, com isso, também a filtração de tampões fixos. Por essa razão, a excreção de acidez titulável por néfron aumenta em proporção à queda no RFG. Com isso, a excreção total de ácido titulável pelos rins tende a permanecer relativamente estável até fases avançadas da insuficiência renal crônica. A excreção de NH4
+ por néfron também aumenta na insuficiência renal crônica, de modo a manter inalterada a excreção renal total desse íon. Essa adaptação permite ao tecido renal remanescente manter por muito tempo, juntamente com a excreção de ácido titulável, o balanço de ácidos fixos. No entanto, há um limite, determinado pela capacidade de síntese dos túbulos, para a produção renal de amônia. Esse limite é atingido em estágios mais avançados do processo, quando o RFG cai abaixo de 20% do normal. Nessas condições, a produção de NH3 por néfron atinge um máximo, enquanto o número de néfrons continua a diminuir. Como resultado, a produção total de amônia pelos rins vai diminuindo progressivamente, em proporção à redução do número de néfrons. Os rins tornam-se assim incapazes de neutralizar totalmente os ácidos gerados pelo organismo, desenvolvendo-se como resultado um quadro progressivo de acidose metabólica. O ácido metabólico que se vai acumulando aos poucos em decorrência da insuficiência renal crônica é em parte neutralizado pelos carbonatos ósseos, um sistema tampão que atua muito pouco em condições normais, mas acaba sendo acionado quando a acidose torna-se persistente. Como os carbonatos formam precipitados com o cálcio, os quais contribuem para conferir ao tecido ósseo parte de suas propriedades físicas, essa reação de neutralização acaba desmineralizando o osso, contribuindo para o enfraquecimento do esqueleto, uma das conseqüências da insuficiência renal crônica a longo prazo (ver abaixo). CÁLCIO/FÓSFORO Embora os fosfatos sejam essenciais à manutenção de uma série de funções no organismo, como o metabolismo energético e a própria mineralização do esqueleto, inexiste um rígido sistema de controle de sua concentração plasmática, como no caso do sódio, potássio e cálcio. O fosfato é livremente filtrado no glomérulo e parcialmente absorvido no túbulo proximal, sendo portanto sua excreção urinária aproximadamente proporcional à sua carga filtrada (Capítulo 13). Por essa razão, a concentração plasmática de fosfatos, tal como a de creatinina, varia inversamente com o RFG. À medida que este vai declinando com
o progredir da insuficiência renal crônica, a concentração plasmática de fosfato tende a se elevar. Ocorre que, em solução aquosa, as concentrações de cálcio e fosfato variam reciprocamente de modo a manter constante o seu produto (denominado produto de solubilidade). Dessa maneira, a elevação dos níveis plasmáticos de fosfato acaba levando a uma queda na concentração plasmática de cálcio e conseqüentemente a uma produção exagerada de paratormônio (PTH). O aumento da concentração plasmática de PTH tende a trazer a concentração de cálcio de volta a seus níveis normais através de dois efeitos básicos: 1) aumentando a rejeição tubular de fosfato, elevando sua fração de excreção (Fig. 15.5) e reduzindo sua concentração plasmática e 2) mobilizando cálcio dos ossos, que constituem uma reserva natural desse íon. A longo prazo, vai ocorrer uma descalcificação óssea. Esse processo é ainda agravado pela retenção de ácidos fixos, os quais são parcialmente tamponados pelos carbonatos ósseos, conforme discutido acima, dando origem a um quadro distinto de desmineralização óssea conhecido como osteomalácia.
Enquanto o número de néfrons estiver apenas moderadamente reduzido (30 a 50% de redução), os rins conseguem regular sem maior dificuldade o metabolismo de cálcio e fósforo, mantendo normal a fosfatemia. No entanto, como no caso do potássio, podem ocorrer surtos de hiperfosfatemia pós prandial, na medida em que a resposta fosfatúrica renal é necessariamente mais lenta do que a normal, o que ajuda a manter elevados os níveis de PTH. Além disso, há evidências de que o transporte de grandes quantidades de fósforo através das células do túbulo proximal acaba por elevar a concentração de fósforo nessas células e que esse aumento inibe a 1-α-hidroxilase, que é a enzima responsável pela transformação da 25(OH)-D3 em 1,25 (OH)2-D3. Como este último constitui, conforme discutido no Capítulo 13, o metabólito realmente ativo da vitamina D, o resultado é uma redução da absorção intestinal de cálcio, com conseqüente tendência à hipocalcemia e estimulação do PTH, contribuindo para perpetuar o processo.
O hiperparatiroidismo assim instalado tende a se agravar à medida que mais e mais néfrons vão sendo destruídos, até que, nas etapas mais avançadas do processo, a fosfatemia tende a aumentar persistentemente e o hiperparatireoidismo se instala de forma definitiva. O resultado final dessas anomalias é o desenvolvimento de uma doença óssea complexa, denominada osteíte fibrosa
cística. Já o conjunto de alterações ósseas que ocorrem na insuficiência renal crônica, incluindo a osteomalácia consequente à acidose e a osteíte fibrosa cística, recebe o nome de osteodistrofia renal. Tomadas como um todo, as alterações ósseas observadas ao longo da evolução da insuficiência renal crônica representam o preço a se pagar para que os néfrons remanescentes excretem uma quantidade cada vez maior de fosfato, a fim de manter o balanço e os níveis circulantes desse íon e, principalmente, do cálcio.
Fig. 15.5: Representação esquemática do comportamento das concentrações plasmáticas de fosfato ([HPO4-]) e paratormônio ([PTH]) e da
fração de excreção urinária de fosfato (FEHPO4-), em função do RFG.
PROGRESSÃO DAS NEFROPATIAS CRÔNICAS: O PREÇO DA ADAPTAÇÃO? A série de mecanismos descritos acima permite que o organismo se adapte admiravelmente a reduções drásticas do número de néfrons. Infelizmente, embora essa situação possa perdurar durante vários anos, não é possível mantê-la indefinidamente. Com maior ou menor rapidez, a totalidade dos pacientes com insuficiência renal crônica progride inevitavelmente à fase terminal, quando passam a necessitar de terapêuticas como diálise crônica ou transplante renal. São várias as anomalias que podem levar à destruição progressiva do parênquima renal: a glomerulosclerose (oclusão das alças glomerulares por elementos da matriz extracelular), a proliferação celular, o espessamento da membrana basal, a formação de crescentes (proliferação celular e/ou fibrose que assume a forma de um crescente ou meia-lua à observação microscópica). Pode ocorrer ainda inflamação do interstício renal, levando secundariamente ao acometimento dos glomérulos. Pode ainda haver lesão vascular, como na hipertensão prolongada e nas vasculites, levando à isquemia do néfron.
O modo exato pelo qual essas lesões iniciam-se e progridem não está ainda estabelecido. Sabe-se que um dos mecanismos mais importantes de lesão renal é a agressão imunológica, ou seja, a deposição, nas paredes glomerulares, de elementos da resposta imune humoral, principalmente imunoglobulinas e componentes do sistema complemento. Em condições normais, a reação imunológica deflagra um processo inflamatório, cuja finalidade é dupla: além de erradicar microorganismos invasores, o processo inflamatório promove uma fibrose, essencial à cicatrização do tecido. Por razões ainda mal compreendidas, o glomérulo é freqüentemente alvo de reações imunológicas anômalas, ou seja, não
0
20
40
60
80
100
0 20 40 60 80 100 120
RFG, ml/min
Con
cent
raçõ
es
FEHPO4-
[PTH]
[HPO4-]
plasma
motivadas pela necessidade de eliminar antígenos estranhos ao organismo. Nesses casos, o processo inflamatório resultante nunca se esgota, levando à destruição progressiva do parênquima renal.
Embora os mecanismos imunológicos constituam uma causa comum de doença renal, as glomerulopatias progressivas freqüentemente se desenvolvem na ausência de disfunção imunológica. É o caso da glomeruloesclerose focal e
segmentar, que acomete inicialmente uns poucos glomérulos (caráter focal), levando à esclerose de alguns segmentos glomerulares (caráter segmentar), progredindo à insuficiência renal terminal na maioria das vezes. É também o caso da glomerulosclerose diabética, atualmente uma das causas mais importantes de insuficiência renal crônica em todo o mundo. Embora possuam caráter não imunológico, essas glomerulopatias compartilham com as imunológicas não apenas as características histológicas, mas também a natureza progressiva, sugerindo a existência de mecanismos comuns aos dois tipos de processo. O mecanismo não imunológico mais consistentemente implicado na patogênese das glomerulopatias progressivas é o da agressão mecânica às paredes glomerulares. Conforme discutido acima e no Capítulo 1, a elevação da taxa de filtração glomerular por néfron, a mais notória das adaptações à perda progressiva de massa renal, decorre de um aumento acentuado do QA e do ∆P. Diversas evidências experimentais sugerem que essas alterações, em especial a elevação de ∆P, acabam lesando os glomérulos remanescentes, contribuindo assim para a progressão da doença renal. Essa progressão representa portanto o preço a se pagar pela relativa preservação da função renal em face da redução do número de néfrons: a própria capacidade de adaptação dos néfrons remanescentes termina por levá-los à
∆P∆P
T=∆∆∆∆P•R
Fig. 15. 6 – Relação entre tensão da parede (T), ∆∆∆∆P e raio do capilar
destruição. Para entender como a elevação da pressão hidráulica glomerular pode promover uma glomerulopatia progressiva é necessário considerar o efeito mecânico imediato dessas anomalias (Fig. 15-6). A tensão mecânica T exercida sobre a parede de uma estrutura cilíndrica é diretamente proporcional à diferença de pressão hidráulica entre o interior do cilindro (∆∆∆∆P), e ao raio R do cilindro, representado por. De acordo com a formulação mais simples da Lei de Laplace,
temos então T = ∆P⋅R. Desse modo, a tensão T pode aumentar devido a uma elevação de ∆P. Um aumento de R (hipertrofia glomerular) exerce o mesmo efeito, especialmente em combinação com uma elevação de ∆P. De que modo um aumento crônico da tensão mecânica da parede glomerular poderia lesar o glomérulo tanto quanto uma disfunção imunológica? Dispomos hoje de uma série de evidências, morfológicas e bioquímicas, de que o aumento da tensão mecânica pode lesar as paredes glomerulares através de pelo menos três mecanismos: 1) Lesão de células endoteliais - microtrombose. Células endoteliais lesadas podem soltar-se da parede, denudando a membrana basal e causando ativação de plaquetas e formação de microtrombos. 2) Estiramento de
células endoteliais e mesangiais: Diversas evidências experimentais sugerem que o estiramento mecânico “irrita” as células endoteliais a as células mesangiais, um tipo de célula glomerular que possui algumas características de célula muscular. Ambos os tipos celulares são capazes de sintetizar, nessas circunstâncias, diversos mediadores inflamatórios, além de componentes da matriz extracelular. 3) Lesão de podócitos, que são as células mais externas do tufo glomerular. Essas células, altamente diferenciadas, têm reduzida capacidade de proliferação. Em conseqüência, podem ser incapazes de se acomodar ao aumento de tamanho do tufo glomerular (resultante da hipertensão e hipertrofia glomerulares), podendo sofrer ruptura ou até mesmo necrose localizada, descolando-se da membrana basal e promovendo um processo inflamatório. 4) Deposição mesangial de
macromoléculas - A hipertensão glomerular pode também levar a uma inflamação mesangial por fazer aumentar o transporte passivo de macromoléculas à área mesangial. 5) Agravamento da sobrecarga aos néfrons remanescentes. A perda de néfrons provoca uma sobrecarga hemodinâmica às unidades remanescentes, forçadas a suprir a ausência das que desapareceram. Como essa agressão leva à perda de mais néfrons, estabelece-se um ciclo vicioso, que perpetua o processo e determina sua progressão contínua até a completa destruição do parênquima renal. Esse processo pode inclusive vir a complicar as doenças renais de origem imunológica, que também reduzem o número de néfrons.
Além da agressão mecânica, a própria proteinúria, resultante da perda da função de barreira do glomérulo (ver Capítulo 3), pode representar um fator de lesão renal. A filtração de uma quantidade exagerada de proteínas força as células do túbulo proximal a aumentar tremendamente a sua taxa de absorção. Essa intensa atividade, que depende da formação de endossomas e da digestão intracelular da
proteína absorvida, pode levar à produção local de moléculas capazes de atrair ao espaço peritubular um grande número de células inflamatórias, como linfócitos e macrófagos. Dessa maneira, uma lesão da barreira glomerular pode estender-se ao interstício, resultando em atrofia tubular e facilitando a progressão da doença. A deposição de lípoproteínas no glomérulo, presumivelmente no interior de macrófagos, constitui também um mecanismo potencial de lesão glomerular, em analogia com o papel lesivo que lhe é atribuído na aterosclerose.
EXERCÍCIOS
INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA
Estes exercícios reúnem elementos de praticamente todos os capítulos anteriores. Por essa razão há um certo número de subprogramas a serem estudados, cada um enfocando um aspecto da IRC. No entanto, nenhum desses programas chega a ser excessivamente extenso. Utilize o conjunto de botões situado na parte inferior da tela para deslocar-se entre um subprograma e outro.
1 – Acione o subprograma “RFG”. Diminua o número de néfrons para 80%, 60%,
40%, 20% e 5% do normal. Em cada uma dessas condições (além da condição controle, correspondente a 100% do normal) anote os valores do RFG, FPN e creatinina sérica. Acione o botão "Exercícios RFG" e expresse graficamente cada um desses parâmetros como função do No. de néfrons, utilizando a tabela já existente na planilha. Observe ainda o gráfico Creatinina sérica vs. RFG, o qual aparece automaticamente e é bastante usado na prática clínica. Como você descreveria a variação de Pcreat com o RFG?
3 - Passe ao subprograma "Sódio e Potássio". Mantendo normal o No. de néfrons,
varie a ingestão de água e observe o comportamento do volume urinário e da absorção de água ao longo do néfron Repita o procedimento para o sódio e para o potássio. Observe a enorme diferença que aparece ao se selecionar “Global”vs. “por néfron”.
4 - Diminua o No de néfrons para 70%, 30% , 5% e 1%do normal, o que representa
uma progressão desde o rim normal até o estágio final da IRC. Em cada uma dessas condições, aumente a ingestão de sódio e observe o comportamento da excreção de sódio e do balanço de sódio (ingestão – excreção). Passe para
“Exercícios Na K” e expresse o balanço de Na em função do no. de néfrons e da taxa de ingestão de sódio, utilizando para isso a tabela pré-existente. Repita o procedimento para o potássio. É possível manter o balanço desses íons quando o no. de néfrons se reduz?
5 – Passe para “H2O”. Como na aula de distúrbios do metabolismo de água, varie a
ingestão de água, observando o comportamento do volume e osmolalidade urinários, bem como a concentração plasmática de ADH e a osmolalidade plasmática. Observe bem os limites para a ingestão de água, assim como as osmolalidades urinárias máxima e mínima. Reduza agora, como no ítem 4, o no. de néfrons para 70%, 30%, 5%e 1% do normal, observando o efeito dessa variação sobre a osmolalidade urinária máxima e a mínima. Vá à planilha "Exercícios H2O" e construa um gráfico, utilizando a tabela pré-existente, expressando as osmolalidades urinárias máxima e mínima em função da ingestão de água para cada uma das porcentagens de néfrons.
6 – Acione “Eq ácido-básico”. Observe o resultado de uma redução no no. de
néfrons sobre a excreção de ácido. Como varia a excreção de ácido titulável? E a de amônio? Interprete.
7 – Acione “Ca-P”. Varie o no. de néfrons. O que acontece a cada um dos
parâmetros representados conforme o no. de néfrons é reduzido? Por que? Reduza o no. de néfrons para 70%, 40% e 10% do normal e anote os respectivos valores da [PTH] sangüínea. Vá até “Exercícios Ca-P” e expresse esses valores como função do no. de néfrons, utilizando a tabela pré-existente