Filosofia Do Direito

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Filosofia

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Prof. Adriano Ferreira

Introduo Filosofia do Direito

Prof. Adriano Ferreira

Sumrio01. Pensamento Mtico02. Nascimento da Filosofia Condies Histricas03. A Filosofia: Surgimento04. A Filosofia: Caracteres Gerais e Diferenciaes05. A Razo06. A Busca da Completude do Direito Grego07. Sofistas08. Pr-Socrticos09. Scrates: A Busca do Conhecimento10. Scrates: tica e Julgamento11. Plato: Verdade e tica12. Plato: A Cidade e as Leis13. Aristteles: Filosofia, Cincia e Prxis14. Aristteles: Justia Universal e Particular15. Helenismo: Introduo; Ceticismo16. Helenismo: Epicurismo17. Helenismo: Estoicismo18. Roma: Ccero19. Rompimento Judaico Cristo20. Filosofia Patrstica e Santo Agostinho21. Filosofia Medieval e So Toms de Aquino22. A Filosofia Moderna Transio e Marcos23. Do Capitalismo Filosofia Poltica Moderna24. Hobbes, Locke e Rousseau25. Kant: Conhecimento, Ao e Direito26. Hegel: Lgica e Direito

01. Pensamento Mtico

A Filosofia um modo de pensar especfico, que supera, em determinado momento histrico, um outro modo de pensar, at ento hegemnico.

Esse modo de pensar superado pela Filosofia chama-se Mito. Em termos genricos, consiste numa narrativa sobre a origem de alguma coisa. Assim, as histrias que explicavam a origem do mundo, dos seres vivos, do bem e do mal, das guerras etc., eram mitos. Porm, havia algo de comum a todas essas histrias: sempre explicavam as coisas ou acontecimentos terrenos a partir de deuses ou seres sobrenaturais (ou seja, fora da natureza, fora do mundo). Os mitos eram histrias narradas por pessoas especficas, escolhidas pelos deuses para transmiti-las aos humanos, e esclarec-los a respeito da existncia de tudo.

Normalmente, tais explicaes davam-se de trs modos bsicos:

1. Encontrando pai e me de tudo: as histrias mticas podem ser genealogias, ou seja, literalmente, a busca de um discurso que explique a origem das coisas ou dos acontecimentos a partir dos deuses.

Um exemplo de explicao mtica: uma pessoa tornou-se apaixonada por outra porque foi ferida pela flecha de um deus, Eros (ou Cupido). Este deus, por sua vez, filho de Penria (deusa faminta, miservel e sedenta) e Poros (deus da astcia, da busca de estratagemas para resolver os problemas).

Desse modo, pessoa apaixonada, ferida por Eros, torna-se faminta e sedenta de amor. Busca diversos estratagemas para ser amado e satisfeito, oscilando entre a tristeza e o desamparo, por um lado, e a alegria e a vivacidade, por outro.

Veja: o comportamento da pessoa apaixonada est satisfatoriamente explicado, graas filiao desse comportamento aos deuses que o causam. Uma pessoa apaixonada fica do modo que a caracteriza porque foi ferida por um deus e carregar consigo as caractersticas desse deus, filho de outros deuses.

2. Outra forma de narrar dos mitos justificando as coisas e os acontecimentos no pela filiao, mas por conflitos e alianas envolvendo os deuses, que interferem na vida terrena. Uma briga entre os deuses pode resultar no apoio ou na imposio de dificuldades aos atos de determinados mortais, conforme esses mortais gozem da simpatia ou da antipatia daqueles envolvidos na briga.

Precisamos destacar que, para as civilizaes marcadas pelo pensamento mtico, haveria duas temporalidades distintas: o tempo fraco, tpico dos acontecimentos banais, que no duram, so efmeros; e o tempo forte, marcado por acontecimentos extraordinrios, capazes de durar, de permanecer ao longo da histria. Para tais sociedades, os atos meramente humanos so incapazes de extrapolar os limites da temporalidade fraca e de atingir a temporalidade forte, perdurando. Tudo aquilo o que feito apenas pelos humanos durar pouco e se extinguir, como a vida humana se extingue.

Por outro lado, em determinadas situaes, os atos humanos podem contar com o apoio dos deuses. Esse apoio capaz de elevar o ato da temporalidade fraca para a temporalidade forte, dando a ele ou a seus frutos a possibilidade de permanecer na histria. Por isso, quando os seres humanos pretendem construir coisas grandiosas, pedem, sempre, o apoio dos deuses.

Um exemplo disso a Guerra de Troia. Especificamente no tempo fraco, seria um acontecimento banal, incapaz de perdurar: um conflito envolvendo gregos e troianos, que logo seria resolvido. Contudo, a partir do momento que sua existncia extrapolou os limites do razovel (chegando a 10 anos!), a mitologia passou a explic-lo como um ato tocado pelos deuses.

Especificamente, a Guerra de Troia passa a ser justificada no como um mero conflito decorrente de interesses comerciais opostos, mas como um conflito surge aps uma controvrsia entre trs deusas do Olimpo. Essas deusas se dividem, apoiando gregos ou troianos e levando consigo o apoio de outros deuses. Agora, o fato de uma Guerra entre humanos ter durado tanto tempo e se transformado em um acontecimento inesquecvel pode ser explicado por ter envolvido, em ltima instncia, um conflito supra-humano, entre deuses. A temporalidade da Guerra de Troia tornou-se forte.

3. Alm dos modos descritos acima, os mitos podem explicar os acontecimentos terrenos justificando-os como recompensas ou castigos impostos pelos deuses aos mortais.Coisas excepcionalmente boas ou ruins que acontecem a determinada pessoa so justificadas como uma recompensa ou um castigo decorrente da satisfao ou da insatisfao dos deuses para com seus comportamentos.

Quando uma pessoa padece de males extremos, investiga sua vida pretrita para tentar encontrar algum comportamento que tenha desagradado algum deus. Quando encontra ou pensa encontrar esse comportamento, tentar corrigi-lo oferecendo algo para compensar sua falha. Muitas vezes far o sacrifcio de um animal e at, em casos mais graves, de um ente querido.

No mesmo sentido, mas de modo preventivo, aquele que embarca em uma jornada longa ou perigosa, buscar agradar alguns deuses, por meio das oferendas e dos sacrifcios, a fim de obter seus apoios e tornar-se exitoso. A falta dessas medidas preventivas soar como perigosa e eventual prenncio de malogro da iniciativa.

O pensamento mtico, portanto, recorrendo a um desses trs procedimentos bsicos, torna-se capaz de explicar, de um modo satisfatrio para determinadas civilizaes, os principais fatos e acontecimentos da vida das pessoas. De um modo mais geral, a prpria existncia do mundo (Cosmogonia) pode ser facilmente compreendida pelas pessoas.

02. Nascimento da Filosofia Condies Histricas

A sociedade grega, no final do Sculo VII e incio do Sculo VI a.C., passa por algumas transformaes que criam as condies necessrias para o surgimento da Filosofia.

Essas condies modificam as relaes do homem grego com seu mundo e com o conhecimento, conferindo-lhe instrumentos tericos que possibilitam a superao do pensamento mtico. So elas:

1. Viagens martimas levam os gregos aos extremos do mundo Antigo, chegando a regies nas quais deveriam habitar deuses e seres extraordinrios. Todavia, os navegantes constatam que essas regies eram habitadas apenas por seres naturais.

Tal circunstncia promove um desencantamento do mundo, trazendo dvidas para as explicaes mitolgicas de um modo geral. A partir de ento, os gregos passam a exigir outras explicaes para a origem do mundo e para a existncia das coisas.

2. Invenes como o alfabeto, o calendrio e a moeda representam o mundo a partir de abstraes, permitindo aos gregos desenvolver noes racionais a respeito de temas antes concretos ou presos s explicaes sobrenaturais.

O alfabeto traz consigo uma relao diferenciada com a linguagem, que pode ser reduzida abstratamente a um conjunto de sons que, somados, possibilitam a comunicao. Com isso, as palavras no so mais encaradas como intrinsecamente vinculadas s coisas, mas apenas como sua arbitrria expresso.

O calendrio, por sua vez, revela uma noo diferenciada do tempo, como algo que passa e pode ser medido, desvinculado do devir cclico da natureza, que traz consigo o constante recomear. O tempo torna-se um conceito puro, cujo evoluir pode ser registrado e medido.

A moeda, por fim, revela o desenvolvimento de outra noo abstrata, o valor econmico. Com sua disseminao, os gregos podem recorrer a um conceito abstrato capaz de medir coisas concretas diferentes, comparando-as e trocando-as.

Todas essas invenes, em ltima instncia, funcionam de um mesmo modo: incorporam noes abstratas a coisas concretas ou levam as coisas concretas s noes abstratas. Ora, tal mecanismo ensina os gregos a fazer abstraes, afastando-se das caractersticas aparentes dos objetos, chegando a ideias racionais e sem recorrer aos deuses. Isso fundamental, pois esse processo corresponde ao pensar do filsofo.

3. Surgimento da vida urbana e do dinamismo comercial das cidades leva a um questionamento s explicaes imobilistas dos mitos, tpicas de sociedades tambm pouco dinmicas, marcadas pela vida rural. No campo, o tempo passa conforme os ciclos naturais, as estaes do ano se repetem e a vida transcorre sempre do mesmo modo; nas cidades, o tempo natural perde seu sentido, o ritmo do ano passa a ser ditado pelo comrcio e a vida agitada pela vida social intensa. A Razo mostra-se mais adequada a esse dinamismo.

4. Inveno da Poltica traz consequncias marcantes para a sociedade grega e soma-se aos fatores que negam fora aos mitos. A Poltica, em suma, consiste na organizao da vida comum, que se passava nas cidades (Plis). Essa organizao materializava-se nas leis (normas). Os gregos, a partir dessa atividade de organizar suas cidades por meio de leis, passam a conceber o mundo como uma estrutura que possui regras. Justamente uma das funes do filsofo descobrir as leis que estruturam o mundo.

Alm disso, a poltica traz consigo um modo de funcionar que pressupe o uso pblico da palavra. O discurso mtico um discurso que no pode ser questionado pelo homem comum, derivado de pessoas escolhidas pelos deuses e marcado pelo segredo. Ao contrrio, o discurso poltico deve ser questionado, pode ser elaborado por qualquer pessoa e busca abolir os segredos.

Assim, os gregos habituam-se, aos poucos, a um discurso que pode, inclusive, ser ensinado aos jovens, levando a um ideal de educao voltado ao uso da palavra.

Somados os fatores acima, constata-se que havia, no mundo grego do perodo, um ambiente extremamente favorvel para o surgimento da filosofia. Trata-se de um modo de pensar que parte de um mundo desencantado, requer a capacidade de se fazer abstraes, discute a mobilidade e a imobilidade do ser e necessita do discurso livre e racional para se materializar.

03. A Filosofia: Surgimento

Na passagem do Sculo VII para o VI a.C., a sociedade grega passa por algumas transformaes histricas que levam crise do pensamento mtico.

Alguns gregos, oriundos de colnias localizadas no Mar Egeu e suas adjacncias, comeam, ento, a buscar novas formas de pensamento que expliquem a origem do mundo sem o recurso aos Deuses. Essa busca pressupe a constatao de que o discurso pode levar verdade, no mais considerada um privilgio secreto e misterioso, revelada apenas aos sacerdotes, mas sim algo pblico, suscetvel de ser descoberta, ensinada e transmitida a todos.

No sculo V a.C., Pitgoras de Samos inventa a palavra que designar, at hoje, a postura adotada por essas pessoas: Filosofia. Literalmente, significa a amizade (filo) pela sabedoria (sofia), indicando que a sabedoria completa e plena no propriedade de qualquer ser humano, mas que todos podem e devem am-la e desej-la.

O filsofo deseja, assim, incessantemente, encontrar a sabedoria. Sabe que nunca a possuir integralmente, mas sempre precisar busc-la. Aquele que se considera seu possuidor e deixa de procur-la, dela comea a se afastar. Perde o desejo e deixa de ser um filsofo.

04. A Filosofia: Caracteres Gerais e Diferenciaes

O novo modo de pensar que surge entre os gregos, chamado Filosofia, funciona a partir de alguns mecanismos peculiares. O filsofo pensa, naquele momento, seguindo um mesmo roteiro bsico.

A busca pela verdade deve problematizar toda a qualquer explicao preestabelecida, questionando-as. As explicaes mticas, aceitas por fora da tradio, precisam ser submetidas a uma reavaliao, pois no satisfazem mais os novos critrios que norteiam o pensamento. As aparncias nem sempre revelam a realidade fundamental de alguma coisa, e aquelas explicaes que se limitam a encontrar essas aparncias tambm precisam ser descartadas.

O novo procedimento filosfico, de busca incessante, elege a Razo como critrio para se chegar verdade, negando importncia a outros critrios que se pretendam superiores a ela. Assim, por exemplo, o j citado pensamento mtico desconsiderado, por submeter a razo s narrativas envolvendo seres sobrenaturais.

O grande desafio do filsofo encontrar explicaes que se bastem na prpria razo, sendo satisfatria sem a necessidade de recorrer a fundamentos sobrenaturais ou irracionais. Para venc-lo, deve constantemente demonstrar e fundamentar (racionalmente) suas afirmaes, apresentando argumentos e submetendo-as s dvidas e s discusses.

O bom filsofo consegue formular teorias cujos argumentos racionais podem ser submetidos a severas discusses, que questionam sua estrutura e seu fundamento, sem perderem sua fora de convencimento.

Alm disso, o discurso filosfico opera com dois mecanismos tpicos: a generalizao e a diferenciao. O filsofo deve ser capaz de vencer a iluso causada pelas aparncias e encontrar, racionalmente, o que h de comum entre objetos ou fenmenos (que parecem diferentes entre si), catalogando-os em um nico grupo geral. Ou ainda deve ser capaz de fazer o oposto, mostrando que a semelhana entre alguns objetos ou fenmenos apenas aparente e demonstrando as caractersticas prprias de cada um deles.

Convm constatar que a Filosofia diferencia-se do Mito sob alguns aspectos.

Inicialmente, a explicao mtica volta origem das coisas e dos fenmenos, encontrando, nessa origem, uma narrativa que recorre aos deuses. J a explicao filosfica, por sua vez, no se limita a buscar a origem dos fenmenos, embora tambm se preocupe com isso. A Filosofia busca a explicao sobre tudo, em todos os tempos, durante todo o tempo.

Ainda podemos diferenci-los alegando que o Mito explica a origem, conforme dito, recorrendo aos seres divinos. Todas as coisas derivam de atos que envolvem deuses. J a Filosofia limita-se a explicar as coisas e os fenmenos a partir de elementos naturais e de seus movimentos, sem o recurso ao sobrenatural (que estaria fora da natureza e, portanto, seria inexplicvel racionalmente).

Um exemplo de explicao filosfica a tentativa de reduzir todos os objetos aos quatro elementos naturais (gua-mido, ar-frio, fogo-calor, terra-seco) e seus movimentos de combinaes e repulsas. Os seres so reduzidos a tais elementos e suas caractersticas explicadas pelo predomnio de um deles ou por suas combinaes.

Por fim, convm acrescentar que a explicao mtica no racional, ou seja, no se preocupa com a eliminao de contradies ou com o esclarecimento do incompreendido. Trata-se de um discurso movido pela autoridade de quem o revela, cercado de mistrios e sem a necessidade de um encadeamento lgico.

A explicao filosfica no aceita tais irracionalidades. Seu discurso precisa ser coerente, no podendo justificar-se na autoridade de quem o profere, mas precisando submeter-se, reiteradamente, prova das discusses pblicas. As contradies precisam ser eliminadas, assim como o incompreendido torna-se inaceitvel e precisa ser esclarecido.

Podemos constatar, dadas as colocaes anteriores, que a Filosofia um modo de pensar que possui caractersticas prprias e diferenciadoras, delimitando-se como um mecanismo de pensamento novo e inovador no momento em que surge.

05. A Razo

O principal instrumento de que se vale o filsofo para estruturar seu pensamento e para medir o grau de veracidade de sua tese a Razo.

Duas palavras da cultura antiga, ratio, de origem latina, e logos, de origem grega, do o significado original para nossa palavra razo: ao mesmo tempo, significam pensar e falar, de um modo organizado e proporcional, construindo um discurso claro e compreensvel para outros. Podemos considerar que razo designava, assim, ao mesmo tempo, o encontro, no plano do pensamento, com a ideia fundamental sobre alguma coisa e a transformao dessa ideia em um discurso, em uma fala que pudesse ser comunicada de modo compreensvel a outras pessoas.

Tambm podemos considerar que a palavra designa o prprio mecanismo de descobrir o princpio de organizao de alguma coisa, ideal ou concreta, de tal sorte que essa coisa, depois de vista como organizada racionalmente, pode ser mais facilmente compreendida pelas pessoas. Assim, a Razo consiste no princpio ltimo de organizao da realidade, que, se descoberto pelo filsofo, revelar a ele a verdadeira estrutura do ser, compreensvel e comunicvel.

Nesse movimento de busca da verdade, a Razo precisa vencer alguns obstculos, que desviam o filsofo de seu encontro. Um grande obstculo a aparncia ou a iluso que, trazida pelos costumes, pelos preconceitos, pelo imediatismo das pessoas, revela apenas uma falsa organizao do ser e impede o acesso sua estrutura mais profunda e verdadeira, tambm chamada de sua essncia.

Outros obstculos so as paixes, foras cegas, caticas, desordenadas e contraditrias, que afastam o filsofo da postura prudente e controlada que deve nortear o pensamento. Tambm a religio se ope Razo enquanto critrio da verdade. A postura religiosa valoriza a autoridade de quem produz o discurso, derivando-a de uma revelao divina. Isso inaceitvel sob o ponto de vista racional, pois a verdade deve ser buscada pelo filsofo, tornando-se fruto de seu trabalho intelectual, sendo muito mais transpirao do que inspirao.

Da religio deriva tambm a crena de que a verdade pode derivar de um xtase mstico, de uma relao direta entre o ser divino e seu profeta, sem passar pelo intelecto da pessoa iluminada. Tal estado quase o oposto da postura racional, pois traz uma sensao de encontro com a verdade no comunicvel, que somente pode ocorrer naquele que entrou em contato com os deuses.

O filsofo luta contra os obstculos acima, movimentando seu pensamento em busca da verdade, que consiste, conforme afirmado, no encontro com o princpio de organizao ou de constituio das coisas e dos fenmenos. Ou seja, no encontro da Razo, do logos de cada coisa.

06. A Busca da Completude do Direito Grego

Com o fim das fundamentaes mticas para explicar os fenmenos, os gregos deparam-se com o problema de encontrar fundamentos racionais (lgicos) que os expliquem. Trata-se de um verdadeiro desafio: explicar ou justificar todas as coisas sem recorrer ao sobrenatural ou ao divino.

No mesmo momento histrico, as cidades gregas comeam a ser estruturadas a partir de normas laicas e positivas. At ento, concebia-se que toda a ordem do universo e da Plis derivava de situaes mticas. Com a crise na crena nos mitos, as normas tornam-se frutos das discusses polticas e no de atos de revelao religiosa.

As normas, assim, passam a ser consideradas laicas, pois no so criadas pelos deuses, mas pelos humanos. Elas so positivas, ou seja, postas ou criadas por um ato de vontade coletiva, por uma deciso poltica dos cidados.

Trata-se de um rompimento significativo, sobretudo para a histria do Direito. A partir de ento, falar de direito falar de algo criado pelos seres humanos para os seres humanos. As normas correspondem a um momento poltico, materializando a vontade coletiva da cidade grega.

Surge, porm, o desafio descrito inicialmente: se as normas so criadas apenas por seres humanos e no pelos deuses, como podem ser justificadas? Em outras palavras, em sendo os seres humanos meros mortais, so falveis, podem errar. Como saber se as normas laicas e positivas so boas ou justas? Haveria um critrio para medir a qualidade de uma norma? Podemos considerar que a filosofia do direito comece com a busca a tais respostas, com a necessidade de superar o desafio de fundamentar o prprio direito sem recorrer aos deuses.

Esse o impasse que vive Creonte, na tragdia Antgona: no consegue encontrar um fundamento para suas decises mais forte do que os mitos, aos quais ele se recusa a submeter-se. Antgona, que pode simbolizar o ideal aristocrtico decadente, refuta a possibilidade de uma norma laica e positiva ser mais forte do que uma norma derivada dos deuses. Mas o momento da pea no mais permite o predomnio mtico, levando ao fim trgico dos personagens.

A superao ao desafio de fundamentar as normas envolve o encontro de respostas que situem o direito em um contexto mais amplo, colocando-o em harmonia com as regras do universo (kosmos) e da natureza (physis), demonstrando a completude da vida. Haveria a necessidade de se demonstrar, racionalmente, que a Plis encontra-se em um espao dentro da natureza e do universo e que as leis que regem a cidade esto em sintonia com as leis que regem esse ambiente.

Alm disso, tambm devemos considerar que, dentro da Plis, o direito apenas uma faceta da existncia completa do homem grego. H uma complementaridade trazida pelas facetas poltica e tica da existncia. Em linhas gerais, politicamente os gregos criam a norma (o direito) e estabelecem os espaos ticos de cada cidado.

A busca da completude do direito grego a busca da fundamentao racional de suas normas. Demonstrando-se que a norma est em harmonia com o universo e a natureza, por um lado, e com a poltica e a tica, por outro, resolve-se a questo de se saber se ela boa ou no, justa ou injusta.

Uma grande dificuldade sempre enfrentada pelos filsofos envolve a questo de situar a Plis em relao natureza. Ser que as normas criadas na cidade devem simplesmente reproduzir, em um tom humano, o teor das normas pr-existentes na natureza? Ou uma norma humana pode radicalmente transformar as normas naturais, como o homem transforma a natureza para produzir a cultura?

As diversas respostas a essa ltima questo revelam a constante preocupao dos filsofos de fundamentar o direito e a liberdade humana sem desprezar sua primordial condio natural. Em suma, com a crise do mito, os filsofos precisam justificar o direito. Essa justificativa espera situ-lo, sempre que possvel, de um modo harmnico na totalidade da existncia fsica e moral.

07. Sofistas

Um dos primeiros grupos de pensadores na Grcia Antiga foi chamado de sofistas. Seus pensamentos eram diversificados, mas, essencialmente, convergiam para a superao da fundamentao mtica do universo e das sociedades humanas.

Muitos sofistas dominavam, entre outras tcnicas, a arte da palavra ou do discurso. Estudavam os mecanismos de argumentao e convencimento utilizados nas discusses e cobravam para ensin-los. Alguns afirmam que foram os primeiros professores particulares da histria.

Pensando no contexto da democracia ateniense, a importncia dos sofistas cresce significativamente. interessante ter em mente que a base da poltica de Atenas era a participao dos cidados na Assembleia em igualdade de condies (isegoria), ou seja, todos tinham o mesmo direito de falar em pblico. Se o peso inicial da palavra era o mesmo, destacar-se-ia aquele cidado que pudesse fazer o melhor discurso.

Pois bem, os sofistas, entre outras coisas, ensinavam tcnicas para se fazerem discursos convincentes. Da muitos cidados passarem a procur-los, pagando altas somas, para educarem seus filhos, na expectativa de que se tornassem timos oradores e, por consequncia, atenienses memorveis.

Mas, se eram procurados e cobravam caro por seus ensinamentos, estavam tambm sujeitos a crticas. Por um lado, os cidados tradicionais, dotados de um pensamento aristocrtico (governo dos melhores), questionavam os ensinamentos sofsticos. Segundo eles, os sofistas ensinavam a persuadir, mas no ensinavam as virtudes cvicas, que dependiam de outros fatores, como a estirpe e o carter. Assim, os jovens educados pelos sofistas seriam timos oradores, mas no necessariamente teriam os outros requisitos indispensveis para serem bons cidados.

Por outro lado, os sofistas eram criticados pelos filsofos adeptos de Scrates (socrticos). O foco da crtica estava no fato de a maioria dos sofistas no acreditarem na existncia de uma verdade universal (alethia), mas apenas de uma verdade relativa derivada do debate e do convencimento (doxa).

Independentemente das crticas, o papel dos sofistas dos mais relevantes na formao da cultura democrtica ateniense. Seja atuando enquanto professores, seja participando de infindveis discusses pblicas, eles disseminam entre os jovens e os cidados uma grande paixo pelo debate e pelo questionamento, incentivando o uso da palavra e da argumentao. Tal ambiente culmina nas discusses realizadas na Assembleia, moldando democraticamente a cidade de Atenas.

Tambm devemos ressaltar que os sofistas problematizam a completude do mundo grego. No acreditam, no geral, que seja possvel encontrar um fundamento na natureza (physis) para a existncia humana na cidade (Plis), sob a gide das normas (nomos). Enquanto o desafio dos filsofos era demonstrar que as normas criadas pelos gregos derivavam harmonicamente do universo e da natureza, os sofistas negavam tal derivao.

Dois grandes grupos de sofistas podem ser apontados. Os sofistas naturalistas no acreditavam que as normas humanas pudessem corresponder s normas naturais, por incapacidade dos homens. J os sofistas convencionalistas, por sua vez, no acreditavam que as normas humanas tivessem que corresponder s normas naturais, sendo autnomas e construindo uma realidade prpria.

Infelizmente, durante sculos, os sofistas foram considerados pensadores menores e desprezados por uma tradio socrtica que sequer os nomeia como filsofos. H um movimento no sentido de reabilitarmos seus pensamentos e os problemas que trouxeram busca da verdade que no recorre aos mitos.

08. Pr-Socrticos

Os filsofos pr-socrticos no viveram necessariamente antes de Scrates. Muitos deles foram contemporneos a ele, ou viveram posteriormente. Todavia, ao contrrio dos filsofos socrticos, no colocaram o ser humano como tema central de suas reflexes.

Podemos, assim, agrupar tais filsofos sob o ponto de vista das questes que seus pensamentos enfrentam: so questes universais, preocupadas com os temas gerais que explicam a existncia de todos os objetos, como, por exemplo, a qualidade essencial do SER. Os filsofos pr-socrticos, assim, discutem a essncia do cosmos (universo) e da phsis (natureza).

Anaximandro de Mileto, nesse sentido, afirma que existe algo nico que d origem e causa o desaparecimento de todas as coisas. Podemos chamar esse algo de uma fora ou uma energia, que d um curso para o desenvolvimento dos seres na natureza.

Devemos notar uma caracterstica do pensamento pr-socrtico, que, de certa forma, tambm se conserva no pensamento socrtico: a busca da completude. A mesma fora de Anaximandro movimenta o universo, a natureza e a cidade.

Entre os pr-socrticos, torna-se clebre a divergncia entre Herclito e Parmnides, cada um dos quais afirmando que o Ser, em essncia, poderia ser explicado a partir de uma constatao oposta feita pelo outro.

Herclito de feso considera o Ser, em sua essncia universal, como o constante movimento, a eterna mudana. Usando como exemplo os rios, cujo fluxo contnuo aparece sob a forma de uma imobilidade, afirma que todas as coisas, no obstante uma possvel aparncia de imobilidade, so, em verdade, mveis.

Um pensador que deseje chegar verdade, assim, deve negar a iluso causada pela aparncia e constatar a mobilidade essencial de tudo. A chama de uma vela, noutro exemplo, parece imvel; sua essncia, porm, um processo contnuo de combusto, um movimento, portanto.

Parmnides de Eleia, por sua vez, defende a tese oposta. Considerado por muitos o criador da lgica tradicional, desenvolve seu pensamento a partir de um raciocnio inflexvel: o ser ; o no ser no .

Partindo dessa constatao, jamais admite a hiptese de que algo que seja, deixe de ser, tornando-se o que no era (o no ser). Tambm refuta a ideia de que algo que no transforme-se naquilo o que no seja (algo que era uma coisa se torne outra, que no era). O ser, portanto, sempre ser; e o no ser, nunca ser.

Seu pensamento considera que todas as coisas, em sua essncia, so imveis e imutveis. O movimento e a mutabilidade consistem em formas aparentes do SER, que devem ser negadas pela razo, na busca da essncia que explica o fenmeno.

Tornam-se famosas as aporias criadas por Zeno de Eleia, que demonstram, defendendo a posio de Parmnides, a impossibilidade lgica do movimento.

Conforme uma dessas aporias, um objeto em um ponto A jamais atinge um ponto B, pois para faz-lo precisa percorrer infinitas metades entre os pontos, sendo necessrio um tempo infinito para percorr-las. Ou seja, o movimento do objeto de A para B uma iluso. Outra aporia consiste em afirmar que uma flecha atirada contra o alvo, se focada em cada instante de seu aparente movimento, ser vista como estando em repouso. Ora, o movimento a soma desses instantes, sendo que em cada instante o espao percorrido zero, resultando num movimento final igual a zero. A chegada da flecha ao alvo tambm ilusria.

Para finalizar, devemos destacar novamente o carter das preocupaes dos filsofos pr-socrticos: o Ser em suas manifestaes universais. So discusses abstratas que buscam os fundamentos ltimos da completude.

09. Scrates: A Busca do Conhecimento

Scrates considerado o fundador de uma nova tradio na filosofia ocidental, no por acaso chamada de tradio socrtica. A partir dele, a filosofia deixa de preocupar-se com questes mais amplas, como o fundamento universal do SER e caracteres gerais da natureza, para focar o ser humano, ainda que situado na cidade (Plis), como seu grande tema.

Duas frases ilustram o esprito filosfico de Scrates:

1. Conhece-te a ti mesmo tal frase, inscrita no templo de Apolo Delfo, foi tomada como uma misso por Scrates. Ele considerava fundamental que todos, inclusive ele, antes de tudo, conhecessem a verdadeira essncia de si. S conhecendo suas limitaes e suas potencialidades as pessoas poderiam pensar e, consequentemente, viver felizes. Seu papel, assim, torna-se ajudar as pessoas a encontrarem o auto-conhecimento;

2. Sei que nada sei Scrates constantemente afirmava que s possua uma nica certeza: que nada mais sabia. Em consequncia, ele nunca se apresentou como uma encarnao divina da verdade, nem mesmo como seu porta-voz. Ao contrrio: consciente de sua ignorncia, sempre buscava o conhecimento; consciente de suas limitaes, sabia que nunca alcanaria todo o conhecimento.

A vida de Scrates mudou radicalmente quando recebeu uma revelao do Orculo de Delfos, afirmando que ele era o mais sbio dos homens. Isso o espantou: como ele, que somente sabia que nada sabia, seria o mais sbio dos homens?

Seu espanto transformou-se em obsesso, e ele passou a procurar, em praa pblica, aqueles cidados atenienses que eram considerados sbios. Convidava-os para uma conversa, formulando perguntas a fim de verificar se realmente possuam o conhecimento que alegavam ter. O resultado de suas investigaes confirmou o orculo: todas as pessoas com quem conversara mostraram-se falsos sbios, pois no conseguiam sustentar racionalmente suas convices, fatalmente caindo em contradies.

Assim, Scrates compreende que era, de fato, o mais sbio dos homens, ainda que possuindo um nico conhecimento certo e seguro, qual seja, o de que nada mais sabia. E conclui que o verdadeiro sbio parte do reconhecimento da prpria ignorncia, condio para empreender-se a busca da verdade.

Para ele, o conhecimento no um estado da alma, ou um objeto que se possui, mas um processo, uma busca constante. A verdade plena existe, mas muito maior do que qualquer humano. O sbio aproxima-se dessa verdade ao constatar que cada nova verdade parcial descoberta suscita um vasto e infinito campo de dvidas, que levam a outras verdades parciais, resultando numa busca ininterrupta.

preciso deixar claro que Scrates, durante sua vida, sempre buscou diferenciar-se de outro grupo de pensadores, os Sofistas. Primeiro, conforme mencionado acima, ele acredita na existncia de uma verdade plena; os Sofistas, por sua vez, acreditavam apenas nas verdades derivadas do consenso discursivo (se as pessoas concordarem quanto a algo, esse algo torna-se uma verdade). Alm disso, Scrates no vende seus ensinamentos nem apresenta respostas s perguntas de seus discpulos. Ao contrrio, seu papel formular perguntas, instigar as dvidas, abalar as certezas. Os Sofistas eram considerados professores, pois ensinavam respostas e certezas a seus alunos, teis nos momentos de discusso.

Scrates considera-se apenas um parteiro das almas, uma pessoa que auxiliava outras a terem ideias. Sua convico era a de que todas as pessoas podiam ter ideias, pois possuam uma capacidade inata para tanto. Seu papel no seria o de transmitir suas ideias s pessoas, mas de ensin-las a terem suas prprias. Da sua postura de parteiro: as ideias esto na alma das pessoas e ele apenas mostrar o caminho para que elas venham ao mundo.

Justamente o que Scrates desenvolve e ensina seu mtodo (a palavra, originariamente, significa caminho) de busca da verdade. Esse mtodo consiste num dilogo entre Scrates e seu interlocutor, pelo qual mostrar a este o caminho que deve percorrer para descobrir a verdade de algo.

interessante notar que, ainda hoje, recorremos ao mtodo socrtico quando temos uma conversa sria com algum. Chamamos uma pessoa para uma conversa particular e tentamos mostrar a ela que suas opinies divergem da verdade e que seus atos precisam ser modificados.

Com relao a Scrates, talvez, a grande diferena est no fato de suas conversas serem, muitas vezes, em espaos pblicos de Atenas e no necessariamente em particular.

O mtodo socrtico inicia-se com a exortao, ou seja, o convite ao interlocutor para o dilogo. Uma vez que o convite aceito, comea a segunda fase, a indagao. Primeiro, durante a conversa, Scrates ironiza as opinies de seu interlocutor, ou seja, mostra, por meio de perguntas, que ele est iludido pelas aparncias e pelos preconceitos.

Caso a ironia seja bem-sucedida, Scrates desperta a dvida na alma de seu interlocutor e ele est preparado para, sozinho, pensar e chegar s ideias verdadeiras sobre algo. Esse ltimo momento a maiutica, ou, literalmente, o parto das ideias. Embora os caminhos tenham sido mostrados por Scrates, indispensvel que o interlocutor os percorra sozinho, aprendendo, por si, a duvidar de suas descobertas e a incessantemente parir novas ideias.

Podemos perceber, pelas palavras acima, que Scrates foi um filsofo admirvel. Sua atuao, ao contrrio daquela desenvolvida pelos sofistas ou pelos adeptos do mito, no traz respostas ou conhecimentos para as pessoas. De um modo mais profundo, tudo o que ele sempre pretendeu fazer foi transmitir o maior ensinamento que algum pode receber: a arte de pensar.

10. Scrates: tica e Julgamento

A postura de Scrates de ensinar as pessoas, antes de tudo, a pensar, torna-se mais bela se verificarmos que se soma sua concepo de tica.

A tica pode ser resumida como a busca do aperfeioamento do indivduo. Uma pessoa age eticamente quando seu ato pode lev-la a uma melhoria em seu carter.

Para Scrates, as pessoas agem de um modo correto, de um modo tico, porque sabem o que esto fazendo, porque efetivamente pensaram e entenderam o significado e as consequncias de seu ato. Para ele, se uma pessoa conhece o bem, por meio do pensamento, agir no sentido de concretiz-lo.

Por outro lado, as pessoas fazem coisas erradas, ou besteiras, como diramos hoje, porque no pensaram o suficiente antes de agir. O ser humano deveria controlar suas paixes, investigar os fatos sem se iludir com as aparncias ou os preconceitos, buscando conhec-los verdadeiramente.

Scrates considera, assim, haver uma relao direta entre o pensamento e a tica, sendo aquele pressuposto desta. Tambm poderamos concluir que a busca socrtica do conhecimento possibilita uma ao tica que leva, por consequncia, felicidade. Assim, pensar permite ao indivduo, em ltima instncia, ser feliz.

No obstante as inferncias sobre a tica feitas acima, sabemos que Scrates foi levado, em Atenas, a julgamento. Os cidados o acusaram de corromper a juventude e de cultivar novos deuses, violando a religio da cidade. Alguns dilogos escritos por Plato contam essa histria: Eutfron, Apologia, Crton e Fdon.

Scrates foi considerado culpado e condenado morte. Ele poderia ter proposto uma pena alternativa e, depois, poderia ter fugido. Escolheu, todavia, morrer. Preferiu cumprir a lei a desobedecer. Qual a razo disso?

Em sua vida, ele sempre deu exemplos de cumprimento s normas polticas de Atenas, mesmo quando isso poderia causar constrangimentos perante os demais cidados. Ao obedecer pena de morte, daria mais uma mostra de suas concepes cvicas, deixando para seus contemporneos o exemplo do respeito aos preceitos normativos, ainda quando injustos.

Por outro lado, podemos focar no seus contemporneos, mas os psteros. A interpretao seria outra: Scrates sempre duvidara da verdade consensual, derivada das discusses, em nome de uma verdade superior, somente acessvel ao pensamento racional. A deciso que o condenara foi fruto de um consenso entre os cidados atenienses, que o julgaram culpado.

Ele, todavia, considerava seus atos louvveis. Fizera toda uma gerao de jovens pensar. Ensinara o valor inestimvel da dvida eterna e constante. Questionara a autoridade dos falsos sbios. Ao aceitar a condenao morte, mostrava para as geraes futuras os perigos de uma verdade meramente consensual e, portanto, equivocada. Nem sempre a verdade da maioria corresponde verdade absoluta, que somente pode ser descoberta por quem se disponha a pensar.

Independentemente das interpretaes possveis, o comportamento de Scrates resulta em algo admirvel, seja enquanto lio para os demais atenienses, seja enquanto lio para nossa gerao do presente. Sua tica, que liga a razo ao bom comportamento, outra herana que nos enriquece. S o pensamento racional leva busca da verdade; s a busca da verdade permite a felicidade.

11. Plato: Verdade e tica

Plato foi o mais ilustre discpulo de Scrates. Graas a ele, inclusive, conhecemos o pensamento socrtico. Suas teorias levam adiante a misso do mestre, buscando a sabedoria de modo incessante e consolidando a crena de que a descoberta da verdade leva ao correta.

Devemos duas grandes obras a Plato: a Academia e os dilogos. Quanto primeira, o filsofo construiu uma escola que considerada o primeiro instituto de investigao filosfica do ocidente. Constituda por salas de aula, uma biblioteca e um auditrio, foi frequentada pelas principais personalidades gregas, como matemticos, astrnomos, polticos e filsofos (Aristteles estudou na Academia por vinte anos).

A Academia combatia outra escola, a Escola de Retrica, fundada pelo sofista Iscrates, que ensinava valores ticos e polticos. Seguindo a linha socrtica, os alunos da Academia aprendiam a pensar, a buscar a verdade e a autodeterminao tica e poltica.

Havia dois cursos: o curso bsico (exotrico, voltado para o pblico externo) e o curso avanado (esotrico, voltado para o pblico interno, composto por filsofos). Para facilitar a compreenso do primeiro curso, Plato escreveu os dilogos.

Por meio desses textos, portanto, Plato expe os conceitos bsicos da filosofia e revela muitas das ideias de seu mestre, Scrates. So muito bem escritos, constituindo-se no apenas documentos filosficos, mas tambm literrios. Porm, revelam to somente a face exotrica do autor, no permitindo o conhecimento dos contedos ministrados no curso esotrico. Ainda assim, perfazem uma herana de valor inestimvel.

Devemos destacar a postura platnica e de sua escola de combater aos sofistas e sua retrica. Conforme a perspectiva de Plato, a Retrica ensinaria aos jovens a arte do convencimento por meio da seduo e do prazer causados pelas palavras e pelos argumentos pr-elaborados. No teria a capacidade de convencer pela fora racional de suas teses, nica capaz de levar verdade. Assim, a retrica tornar-se-ia a arte do logro e do engano, afastando seus adeptos do conhecimento.

Chegamos, aqui, concepo platnica de verdade. Haveria dois planos ou mundos em nossa existncia: um plano superior, onde esto as ideias, e um plano inferior, onde est o real. Ns viveramos no plano da realidade, rodeados por coisas e fenmenos aparentes, aos quais podemos detectar por meio dos sentidos. Nesse plano, todavia, obtemos apenas um conhecimento deformado, ilusrio, que afasta da verdade. O consenso obtido pela retrica estaria preso a este plano, sendo, assim, indesejvel.

A verdade situar-se-ia no plano das ideias, sendo compreendida pelo intelecto, por meio de um processo, chamado de dialtica. Os seres humanos, portadores da capacidade intelectual, deveriam afastar-se da iluso trazida pelos sentidos e pelas opinies consensuais, compreendendo racionalmente a ideia e chegando, assim, verdade.

Em sendo Plato discpulo de Scrates, reafirma a tese de que o conhecimento verdadeiro leva ao Bem, pois faz com que as pessoas ajam de maneira correta. Em ltima instncia, os sbios tornam-se felizes, pois no se iludem e no agem de modo errado.

A concepo platnica de tica, todavia, torna-se um pouco mais refinada se considerarmos que pressupe a Teoria da Alma. Conforme essa teoria, nossa alma estaria dividida em trs partes, cada qual cuidando de determinadas funes do organismo:

1. Alma apetitiva esta parte da alma cuidaria da manuteno e da reproduo do corpo vivo. Situada na regio abdominal, causaria no ser as sensaes apetitivas de fome, de sede e de desejo sexual, por exemplo.

2. Alma colrica esta parte da alma cuidaria da segurana do corpo vivo. Situada na regio torxica, causaria, por seu turno, as sensaes de medo e de fria ou coragem.

3. Alma racional esta parte da alma, situada na cabea, corresponderia capacidade intelectual do ser, colocando-o em contato direto com o mundo das ideias e permitindo a descoberta da verdade.

Cada funo da alma, assim, corresponde a uma necessidade do ser humano. Enquanto as funes apetitiva e colrica cuidam de manter e proteger o corpo vivo, sendo, portanto, mortais, a funo racional imortal e permite ao ser abstrair-se do plano real. O nosso conceito atual de alma corresponderia a essa funo especfica.

A Teoria da Alma seria plena e harmnica se as partes de nossa alma atuassem em um sentido cooperativo. Mas no o que observa Plato. Haveria uma verdadeira disputa entre elas para controlar o corpo vivo, cada qual buscando sobrepor-se s demais.

impressionante o vigor da anlise platnica para detectarmos, inclusive, males do presente. Se numa pessoa prevalece a parte apetitiva da alma, ento sua vida estar pautada por apetites exagerados, como o desejo por comida, por bebida e/ou por sexo. Atualmente ainda podemos acrescentar o desejo insacivel pelo consumo de mercadorias e pela acumulao de riquezas.

Por outro lado, se numa pessoa prevalece a parte colrica da alma, notaremos um excesso de medo ou um excesso de coragem ou fria pautando seus atos. Tratar-se- de uma pessoa que no tem iniciativa por tudo temer, ou de uma pessoa extremamente impaciente e irritada, muito agressiva em seus atos.

O ideal, para Plato, seria que a parte racional da alma governasse as outras duas, impedindo que o indivduo agisse motivado por razes colricas ou apetitivas. O controle exercido pela razo sobre a funo apetitiva a moderao; j o controle exercido sobre a funo colrica a prudncia. Os homens, antes do mais, deveriam ser moderados e prudentes, permitindo parte racional investigar o mundo das ideias em busca do conhecimento e nortear a conduta.

Se vimos que Scrates considerava indispensvel o indivduo pensar antes de agir, buscando sempre conhecer seus atos, para ser uma pessoa tica, Plato traz contornos mais especficos para essa crena. S o indivduo moderado e prudente pode agir racionalmente, praticando o Bem e sendo feliz. Tambm de um modo socrtico, poderamos dizer que se trata da concretizao do conhece-te a ti mesmo, em termos mais especficos: identifica teus impulsos colricos e apetitivos e os controla com tua razo.

12. Plato: a Cidade e as Leis

No texto Repblica, Plato discorre sobre a organizao ideal das cidades. Sua anlise parte da constatao de que existem grupos de pessoas responsveis por funes similares quelas que vislumbra na alma humana. Haveria, pois, um paralelo entre as funes da alma e da cidade: funo apetitiva funo econmica; funo colrica funo militar; funo racional funo legislativa.

Do mesmo modo como na alma, as funes urbanas no estariam em harmonia. Haveria constante disputa entre elas, para controlar a cidade. A maioria da populao exerceria atividades econmicas apetitivas: artesos, comerciantes e agricultores. Outra parcela exerceria a funo militar, sendo composta pelos guerreiros, em menor nmero. Por fim, haveria uma classe de legisladores, responsveis pela feitura das leis.

Nas cidades reais, a funo legislativa conquistada pelos grupos econmicos ou militares, levando elaborao de leis com o predomnio dessas caractersticas. Segundo Plato, o ideal seria que os legisladores fossem filsofos e pudessem criar livremente as leis, que seriam prudentes e moderadas.

Sabendo que as normas trazem limites aos atos humanos no sentido da concretizao de valores, uma norma elaborada por um mercador ou uma norma elaborada por um guerreiro buscariam a concretizao de valores econmicos ou militares, moldando uma cidade que se oporia concretizao dos ideais ligados justia. Em outras palavras, quanto mais a cidade for construda em desacordo com os princpios ideais de justia e do Bem, mais difcil torna-se para cada cidado ser uma pessoa prudente e moderada, chegando verdadeiramente felicidade.

Uma cidade governada por filsofos ser regida por normas que limitam os fatos no sentido da concretizao da justia e do Bem. Viver em conformidade com tais normas significa viver de um modo prudente e moderado, levando as pessoas a um passo da felicidade.

A utopia platnica de uma cidade governada por filsofos leva a dois problemas:

1. As normas criadas pelos filsofos devem corresponder ao ideal de justia e do Bem. Por um lado, por uma necessidade concreta de trazer parmetros de conduta aos grupos econmicos e militares, essas normas devem ser escritas. Porm, ao escrever uma norma, o filsofo afastar-se-ia do ideal, que no pode ser escrito. Assim, por mais geral e abstrata que seja a norma do filsofo, nunca ser to geral e abstrata quanto a ideia.

Tendo-se em vista a insegurana que a ausncia de normas escritas causaria, Plato opta pela sua existncia. Se feitas por filsofos, ao menos, essas normas escritas atingiriam o grau mximo de abstrao e generalidade suscetvel de ser alcanado por elas. Isso, por outro lado, causa outro problema: ainda que menos gerais e abstratas do que as ideias, tais normas so, por vezes, distanciadas em excesso dos fatos concretos, no correspondendo, por vezes, s necessidades reais de uma cidade.

Se levado ao extremo o mpeto racional dos filsofos, todas as cidades terminariam por se reger pelas mesmas normas, dado o seu teor de proximidade das ideias, que so universais. Isso poderia levar a situaes particulares de injustia.

2. Outro problema verificado na utopia platnica ocorre na ausncia do pr-requisito para a elaborao de uma boa norma: o legislador ser um filsofo. Caso as normas sejam elaboradas por legisladores filsofos, aproximar-se-o o mximo possvel dos ideais e do Bem; se no forem feitas por filsofos, porm, sero injustas e prejudicaro a devida organizao da cidade.

Plato claro, neste momento, ao defender que uma norma feita por grupos econmicos e militares distancia-se do justo e no deve ser obedecida. Sua postura pode causar srios transtornos, trazendo perspectivas srias de desobedincia civil.

Os dois problemas ora apontados so, de certa forma, solucionados na ltima obra platnica, As leis. Podemos notar uma modificao no pensamento do filsofo, que passa a exigir, digamos, um grau menor de generalidade e abstrao para as normas.

Nesse texto, ele valoriza os costumes de cada cidade em particular. Embora tais costumes correspondam a hbitos reais e, portanto, distante das ideias, ele passa a reput-los importantes para a identificao de um justo no mais ideal, mas meramente adequado para a cidade em especfico. Esse justo poltico no se coloca em um grau de generalidade e abstrao somente acessvel a filsofos; agora, ao contrrio, est em um patamar que pode ser atingido por qualquer pessoa, bastando, para tanto, ser minimamente prudente e moderado.

Os problemas citados acima podem ser resolvidos. Por um lado, a forma escrita da lei mais do que suficiente para exprimir o justo poltico; por outro, as normas deixam de ser excessivamente gerais e abstratas para trazer justia aos problemas concretos da cidade.

Alm disso, o segundo problema superado pois as normas no precisam ser feitas exclusivamente por filsofos para atingir o justo poltico. Como afirmado, mesmo comerciantes, arteso, agricultores e militares, agindo com prudncia e moderao, podem fazer boas normas para suas cidades. Desaparece o fundamento para a desobedincia civil.

As reflexes acima revelam que Plato, longe de ser um filsofo cujo pensamento pode-se reduzir a um sistema completo e coerente, marcado pelas tenses. Seu pensamento tenso ao opor o real ao ideal e a norma a ambos. Tambm um pensamento que se modifica ao longo de seus dilogos, revelando um constante movimento em busca da verdade. H, em seu ltimo texto, a busca de um equilbrio j prprio de seu mais ilustre discpulo, Aristteles, o filsofo do justo-meio.

13. Aristteles: Filosofia, Cincia e Prxis

Aristteles afirmaria que todas as pessoas desejam, por natureza, saber. Quase literalmente, escreve: os homens comeam a filosofar movidos pelo espanto. Quando se depara ante uma dificuldade, o homem se espanta, se surpreende, e, afirma Marilena Chau, se enche de admirao, constatando sua ignorncia.

Ora, admirar significa contemplar. Contemplar deriva do grego theora, que tambm significa observar, examinar. Os seres humanos sentiriam prazer ao ver as coisas e esse prazer estaria na raiz do filosofar. Ao constatar sua ignorncia, as pessoas comeam a pensar e buscam o conhecimento apenas pelo prazer de encontr-lo. Assim, a filosofia livre, pois trata-se da busca do conhecimento pelo mero prazer de conhecer, que liberta da ignorncia.

Segundo Aristteles, o objeto de estudo da filosofia o Ser, que se diz de muitas maneiras. Ou seja, a filosofia deve estudar tudo o que , tudo o que existe, em todas as suas formas de manifestao. Um objeto bastante ambicioso, portanto: estudar TUDO.

Para conseguir satisfazer a essa ambio, o filsofo reflete sobre o papel das cincias, afirmando que elas investigam os princpios, as causas e as naturezas do Ser. Cada cincia, por seu turno, concentra-se na anlise de uma manifestao especfica do Ser, havendo, portanto, uma cincia para cada gnero de Ser.

As cincias teorticas, assim, investigam os princpios e as causas de seres e coisas que existem na natureza independentemente do ser humano. Tais coisas somente podem ser contempladas pelo homem, que busca conhec-las verdadeiramente.

So cincias teorticas:

1. Fsica: estuda os seres que se movimentam e se transformam por si, dividindo-se em biologia, cincia natural e psicologia;

2. Matemtica: estuda os seres imveis, separados da matria, que possuem apenas formas abstratas (superfcies, figuras, volumes), dividindo-se em aritmtica, geometria, msica, astronomia;

3. Filosofia Primeira: estuda os primeiros princpios de todos os seres, o ser universal.

As cincias produtivas, por sua vez, estudam a ao humana cuja finalidade a fabricao de algo (poesis), ou seja, cujo fim est na obra a ser fabricada. Cada coisa a ser fabricada possui seu paradigma ou sua tecnologia, ou seja, conjunto de procedimentos tcnicos que permite a correta produo de algo, conforme os modelos aceitos, que ser estudado por uma cincia. Dividem-se, pois, conforme os objetos a serem produzidos: agricultura, metalurgia, tecelagem, pintura, escultura, engenharia, medicina, poesia

As cincias prticas, por fim, estudam a ao humana que busca a concretizao de um bem valorativo, ou seja, cuja finalidade ltima no a produo de alguma coisa, mas a realizao de um valor, e cuja causa a escolha voluntria do ser humano.

Dividem-se conforme a abrangncia do bem buscado:

1. tica: estuda a ao humana cuja finalidade o bem individual, tornando-se virtuosa e permitindo a vida dentro da cidade;

2. Poltica: estuda a ao humana cuja finalidade o bem comum da cidade, permitindo sua organizao coletiva.

importante ressaltar que, embora no exista uma cincia especfica para estudar o direito, este surge como um dos frutos da ao poltica. O processo poltico, que leva construo do bem coletivo, muitas vezes resulta na elaborao de normas, as quais trazem os limites para a ao individual (tica). Portanto, o aspecto normativo do direito manifesta-se na interseco entre a poltica e a tica, derivando da primeira e limitando a segunda.

Nesse sentido, podemos vislumbrar a manifestao da ideia da completude, sob o ponto de vista interno Plis: a ao individual, se tica, ser jurdica e levar ao bem comum. O direito parte integrante da prxis, congregando o bem individual ao bem comum. Se, nesta postagem, refletimos, conforme o pensamento de Aristteles, sobre a filosofia, sua diviso em cincia e terminamos apresentando as cincias prticas, devemos, na sequncia, discuti-las um pouco mais, sobretudo destacando a vertente valorativa do direito, qual seja, a Justia.

14. Aristteles: Justia Universal e Particular

H, em Aristteles, uma complementaridade entre a poltica, o direito e a tica. Estudar uma dessas instncias, assim, exige a referncia s demais. Comecemos pela tica.

A tica , ao mesmo tempo, a conduta humana que busca o bem individual e a cincia que a estuda. O bem mximo a que as pessoas aspiram a felicidade, segundo Aristteles. Trata-se de um bem perfeito, pois buscado por si prprio, transformando outros bens em meios para se chegar felicidade.

Os seres humanos seriam compostos por duas foras: a vontade racional, que permite agir conforme o conhecimento, e a paixo (pthos), que impulsiona para a prtica de atos que causam prazer e evitam a dor. Como a paixo nem sempre conduz a prazeres duradouros ou verdadeiros, a misso da tica seria educar as pessoas para que ajam com a dose certa de paixo, que no impea a vontade racional de se manifestar.

Devemos notar que Aristteles no elimina a paixo da conduta humana, mas tenta transform-la, com a interveno da vontade racional, em virtude. A ao governada pela paixo leva a uma submisso a objetos exteriores a ns mesmos, transformando-se em passividade (veja que o radical pthos deu origem a passivo e patolgico). Uma ao sem paixo, contudo, no leva em considerao os objetos exteriores e no leva felicidade, pois feita sem desejo.

A ao tica, ou seja, virtuosa, deve ser governada pela vontade racional, que traz moderao para a paixo. A razo permite ao agente identificar quais atos levam dose desejvel de prazer passional sem desviar do fim ltimo da conduta, qual seja, o bem individual, que causa felicidade. Os homens devem, portanto, agir movidos por um desejo racional.

As aes humanas, ao buscarem objetos diversos que podem levar felicidade, so movidas por paixes diferentes, que precisam ser moderadas pela vontade racional. Assim, cada conduta requer uma anlise prpria, a fim de identificarem-se as paixes que nela devem estar presentes em uma dose moderada.

Se o homem age com moderao, se deseja racionalmente as coisas, agir com virtude. A virtude a moderao de uma paixo, que estar presente no ato em sua justa medida. Ora, aqui chegamos primeira noo aristotlica de justia, a justia universal.

Trata-se de uma noo que o ser humano desenvolve, graas a sua vontade racional, e traz o equilbrio necessrio para alcanar a medida de paixo que deve existir em cada ato. A justia universal a virtude de todas as virtudes. Graas a ela, as pessoas atingem as demais virtudes.

Podemos, por exemplo, agir motivados pela busca do prazer que um objeto nos causa. Graas justia universal, podemos encontrar a justa medida de prazer que deve nortear nossa escolha, que far de ns pessoas temperantes. Se a vontade racional no impuser a justa medida busca do prazer, podemos agir de modo libertino, valorizando excessivamente essa paixo, ou de modo insensvel, eliminando o prazer de nossa conduta. Nessas duas situaes, nossa ao no ser virtuosa e no nos levar felicidade.

O mesmo raciocnio pode ser aplicado a outras paixes, cuja virtude est no equilbrio entre o excesso e a falta, conforme demonstra a tabela acima. Ser virtuoso, portanto, exige que as pessoas guiem suas decises pela vontade racional, a qual estabelece a justa medida (conforme a justia universal) de cada paixo.

Para que cada indivduo tenha a condio de agir racionalmente, encontrando a justia universal e moderando suas paixes, h a necessidade de que ele viva em um ambiente no qual possui todas as coisas que o mantm vivo. H a necessidade de que outra justia se concretize, a justia particular.

Se a justia, no seu sentido universal, a medida de todas as virtudes que derivam da paixo, existe uma outra noo de justia, em seu sentido particular, que , em si, uma virtude: a virtude da distribuio, a virtude de dar a cada um o seu. A justia particular consiste numa ao distributiva, na qual se descobre o que de cada um e se consuma tal distribuio, concretizando-a.

Essa justia, como veremos, requer a poltica e a norma, que determina o que de cada um. Convm destacar que, ao pensar assim, Aristteles consuma a completude no seu sentido amplo, inserindo a cidade no contexto da natureza e do universo. Para demonstrar isso, faamos uma reflexo.

Conforme Aristteles, a natureza a organizao (formal) de uma matria. Naturalmente as coisas esto organizadas dentro de propores que lhes so prprias e respeitam suas regras (normas) particulares. Assim, por exemplo, uma rvore composta por folhas, ramos, tronco e raiz, estruturados conforme uma regra proporcional (algumas razes, um tronco, alguns ramos e muitas folhas) que lhe d forma. Se essa regra no fosse respeitada, a rvore deixaria de ser uma rvore.

Quando os seres humanos se renem e criam regras para a distribuio de benefcios, honrarias e riquezas, esto dando forma cidade, organizando-a. O direito (conjunto das normas), nesse sentido, reproduz a estrutura da natureza ao estabelecer as propores que configuram tal cidade. A completude se d no pelo contedo das normas, mas pelo fato de, tal e qual na natureza, elas estabelecerem propores que organizam algo.

Pois voltemos justia particular. Ela se materializa, inicialmente, como justia distributiva, organizando a cidade. Sua finalidade consumar o ideal de dar a cada um o seu, distribuindo, para os cidados, os benefcios, as honrarias e as riquezas. Essa distribuio compara as pessoas e se consuma mediante propores que levam em considerao os mritos e as necessidades de ambas.

Se uma cidade pretende distribuir cargos pblicos a cidados, ir compar-los conforme os mritos que possuem para ocup-los e distribu-los queles mais meritosos. Por outro lado, caso sejam distribudos alimentos, o critrio de comparao passa a ser a necessidade: aquele que possuir maior necessidade receber mais alimentos. Em ambos os casos, a justia distributiva se concretiza.

Ora, como afirmado, a justia distributiva pressupe a poltica. Aristteles instaura paradigmas filosficos polticos que perduram at o presente. Afirma que o Estado justo deve buscar o bem comum e que os governantes devem ser pessoas virtuosas, jamais exercendo o governo em busca de bens particulares.

Nesse sentido, um governo de um, de alguns ou de todos, pode ser bom ou mau, conforme o carter desses governantes. Uma pessoa pode governar procurando o bem comum, numa realeza, ou corromper-se e afastar-se desse ideal, transformando-se em um tirano. O mesmo se aplica aristocracia, que pode corromper-se na oligarquia (governos de alguns) e no governo popular que pode corromper-se na democracia (governo de todos).

Para atingir o bem comum, a poltica deve enfrentar um grande problema: a distribuio dos bens na Plis, conforme os critrios da justia distributiva. Sua finalidade pode ser vista como a criao dos iguais, tratando desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Para tanto, estabelece os critrios, por meio de normas gerais, que trazem os parmetros de distribuio dos bens.

As desigualdades entre os cidados devem ser evitadas, pois causam revoltas e levam corrupo. Ao realizar a distribuio de bens, a poltica, gradativamente, as eliminam e, por consequncia, levam ao bem comum, criando as condies para que os cidados exeram sua vontade racional, moderem suas paixes e sejam felizes.

O fato de a cidade estabelecer a proporo para a distribuio de bens por meio de normas gerais no significa que isso ocorra sem falhas. Aqui surge a justia corretiva, cuja finalidade corrigir os desequilbrios persistentes mesmo aps a distribuio poltica dos bens.

Sua primeira vertente a justia comutativa, que norteia o processo de troca. Os cidados, que j foram politicamente igualados conforme os padres da justia distributiva, podem trocar entre si produtos que possuam em excesso por outros que faltem. Como esses cidados so iguais, a proporo da troca deve respeitar a equivalncia, sob pena de gerar uma desigualdade. Assim, o valor de um produto trocado deve ser equivalente ao do outro produto trocado, mantendo-os na igualdade e satisfazendo as necessidades de ambos.

Note-se que a proporo comutativa at hoje norteia as relaes contratuais de troca em nossa sociedade. Todavia, ao contrrio do que deveria ocorrer, a poltica contempornea no consegue promover a igualdade entre todos os membros da sociedade, de tal sorte que tal proporo termina, muitas vezes, por perpetuar uma situao social de desigualdade. Exigir que uma pessoa muito pobre d um produto de mesmo valor por outro de uma pessoa muito rica, numa relao contratual, perpetuar a desigualdade e no corrigi-la.

Pensando no direito, somente no sculo XIX alguns ramos surgem, trazendo novas propores para as relaes de troca, tendo-se em vista a desigualdade real entre os contratantes: direito do trabalho e direito do consumidor. Ainda assim, essas propores no so suficientes para abolir as desigualdades sociais.

Mas outra vertente de justia corretiva pode se fazer necessria: a justia judiciria. Em alguns casos, a igualdade criada pela poltica pode ser rompida pela ao voluntria ou culposa de algum. Ento, o Estado deve intervir, por meio de um julgamento que leve ao restabelecimento da igualdade, condenando o responsvel indenizao dos danos causados e, eventualmente, punindo-o.

Convm destacar que, novamente, o ponto de partida a igualdade. Primeiro a poltica torna os cidados iguais; depois ir punir aqueles que violarem as normas, pois essas pessoas abalam a igualdade criada. No faz sentido uma prtica punitiva como a adotada na sociedade contempornea, na qual impera a desigualdade. As pessoas mais miserveis j so punidas por nascerem em condio de inferioridade se comparadas a pessoas filhas de pais em situao financeira melhor, tendo menos oportunidades, como demonstram dados estatsticos, de se igualarem s outras. Dada a omisso estatal que no as igualou no nascimento, muitas dessas pessoas praticam atos que s poderiam ser considerados criminosos (como os crimes contra o patrimnio) se a sociedade fosse igual e so punidas novamente, agora pelo Estado, que, dessa vez, em se tratando de miserveis, no se omite.

A justia judiciria procura corrigir a injustia criada pelo ato culposo ou voluntrio do agente estabelecendo uma proporo entre o desequilbrio que o ato causa e o grau da punio que ser aplicada. Quanto maior o desequilbrio social resultante do ato, maior ser a punio ao autor. Mas esse raciocnio punitivo, insistimos, somente faz sentido em uma sociedade em que reine a igualdade. Seno, de justia judiciria transforma-se em injustia, camuflada ou no.

A concepo Aristotlica, assim, louvvel. O bem individual, tico, somente ser plenamente realizado em uma sociedade que, politicamente, concretize, por meio de normas gerais, a justia distributiva, tornando os cidados iguais. Tal condio permitir a felicidade de todos e levar ao bem comum. Eventuais desequilbrios podem ser corrigidos pela justia corretiva comutativa ou judiciria.

Mas o filsofo suscita uma questo: se o fim ltimo da justia distributiva , em concreto, dar a cada um o seu, consumando a igualdade material, ser que as normas gerais permitem ao Estado identificar critrios vlidos para os casos particulares? Como uma norma pode ser geral e resolver todos os problemas particulares de seu gnero ao mesmo tempo?

O problema srio e pode inviabilizar todo o projeto poltico aristotlico. Para resolv-lo, o filsofo prope ao funcionrio responsvel pela aplicao ou concretizao da norma geral o uso da equidade.

Precisamos tomar cuidado com o uso dessa palavra. Hoje, comum associarmos equidade ao julgamento realizado conforme o bom senso de um juiz, sem o recurso lei, pois h uma lacuna. Para Aristteles, no se trata de uma lacuna. Apenas a norma genrica demais e sua interpretao literal causaria ou perpetuaria uma desigualdade.

Assim, equidade, nesse sentido, transforma-se na adaptao, pelo membro do Estado, da norma geral ao caso particular, respeitando a proporo que estabelece e permitindo, efetivamente, dar a cada um o seu. Vejamos um exemplo banal: suponhamos uma norma que estabelea que cada cidado deve receber dez moedas de ouro, para suprimir as desigualdades. Pela equidade, o aplicador da norma deveria adapt-la a cada caso, distribuindo as dez moedas a quem no possui nenhuma, mas um nmero menor quele que possuir algumas.

Permeando o pensamento exposto surge uma virtude individual que no se liga s paixes, chamada prudncia. Trata-se da capacidade humana de avaliar as situaes de um modo global, encontrando um equilbrio que permita a felicidade total. A prudncia coloca o ser humano em contato com a justia universal e leva justa medida tica.

Ela ressurge agora, pois condio indispensvel para o uso da equidade. Somente as pessoas prudentes conseguem adaptar a norma geral ao caso concreto, encontrando uma medida individual que efetive a distribuio.

A justia termina, assim, em uma ao artesanal praticada por homens prudentes. Se a poltica d forma cidade, distribuindo os bens por meio de normas gerais, a equidade permite sua formatao individual, caso a caso, revelando o justo em cada um deles e evitando a m formao social decorrente da generalidade normativa.

No poderamos finalizar a postagem sem destacar que, embora possamos fazer uma leitura profundamente crtica do pensamento de Aristteles, o filsofo nunca ultrapassou os limites de seu tempo histrico. Suas propostas no rompem a barreira que separava o grego do brbaro e o homem livre do escravo. A igualdade proposta por ele limita-se aos cidados: homens, nascidos na cidade, livres, maiores, proprietrios e chefes de famlia. A justia se concretiza entre tais pessoas.

15. Helenismo: Introduo; Ceticismo

Aps a consolidao da tradio socrtica, com filsofos de excepcional qualidade como Plato e Aristteles, seria natural supor que outras correntes filosficas subsequentes fossem desvalorizadas pelos estudiosos. Essa desvalorizao, contudo, esconde um perodo bastante rico e cujas escolas deixam influncias marcantes at o presente.

De um modo genrico, podemos designar por helenismo o perodo que se inicia com Alexandre Magno (ou depois de sua morte, em 323 a.C.) e termina com o fim da Repblica Romana, em 31 a.C.. Nesse perodo, a lngua e a cultura gregas tornam-se hegemnicas no mundo ocidental e nas terras conquistadas por Alexandre. Na filosofia, usa-se o termo para designar as trs correntes filosficas que se tornam predominantes: ceticismo, epicurismo e estoicismo. Embora sejam escolas bastante distintas entre si, h alguns traos comuns, segundo Marilena Chau:

1. Muito embora coloquem-se como adversrios de Plato e Aristteles, os filsofos do helenismo adotam a tripartio do estudo da filosofia proposta por Xencrates, filsofo socrtico que dirigiu a Academia platnica entre 339 e 314 a.C.:

a) Lgica: estudo do raciocnio, do discurso racional, do conhecimento;

b) Fsica: estudo da Natureza;

c) tica: estudo da natureza humana, da conduta e da vida feliz.

2. Enquanto Plato e Aristteles adotavam as normas criadas pela poltica como fundamento para a ao tica, levando completude entre a poltica, a tica e o direito, os filsofos epicuristas e estoicos defendem que a ao tica deve respeitar as normas naturais, rompendo a completude. Ambos transformam a natureza no fundamento da tica, exigindo o conhecimento da phsis para a descoberta da vida feliz, e afastando a poltica da conduta humana. Elaboram, assim, um naturalismo tico.

3. As filosofias helenistas (sobretudo epicurismo e estoicismo) so materialistas, ou seja, recusam-se a explicar os fenmenos naturais e ticos a partir de entidades imateriais ou incorporais. Todos os fenmenos devem ser explicados a partir das caractersticas da prpria natureza, no havendo um ksmos universal ou sobrenatural. A natureza torna-se o universo, sendo sua composio a explicao de tudo.

4. As filosofias tornam-se sistemas, ou seja, um conjunto coeso e coerente de saberes, havendo uma profunda articulao entre a fsica, a lgica e a tica. Dado o materialismo acima exposto, a compreenso da fsica (natureza) leva, necessariamente, aos aspectos fundamentais da lgica e explicita as normas que devem ser seguidas pelo indivduo em sua ao tica.

5. Seguindo o exemplo de Plato e Aristteles, formam-se escolas filosficas para disseminar os ensinamentos epicuristas e estoicos.

6. O filsofo torna-se uma figura serena, acima do turbilho dos acontecimentos cotidianos, um sbio que no se deixa abater pelo infortnio ou corromper pela boa fortuna. Seus ensinamentos tornam-se medicamentos que podem ensinar as pessoas a tambm serem serenas, promovendo uma terapia da alma e levando verdadeira felicidade.

7. As correntes filosficas so marcadas por um acontecimento histrico fundamental: o fim da Plis (cidade) livre e democrtica. At ento, a cidade, soberana e independente, era o referencial filosfico e existencial dos gregos. A condio de habitar em sua cidade natal e participar da vida coletiva era essencial para transformar o ser humano, de animal, em um ser superior e livre. Isso diferenciava, inclusive, os gregos dos brbaros. Com o desaparecimento da Plis, os filsofos adotam a natureza universal como paradigma, fundindo nela o ksmos e a antiga Plis, estabelecendo um novo conceito, a kosmpolis, ou o cosmopolitismo. A partir de ento, o fundamento para a diferenciao entre o grego e o brbaro desaparece e o ser humano pode ser considerado um cidado do mundo, surgindo as condies para a defesa da universalidade do gnero humano.

Talvez em virtude do clima geral de decepo, entre os gregos, decorrente da perda da liberdade, surge, com Pirro (n. 365 a.C.) e Tmon (n. 325 a.C.), um movimento que ser denominado de ceticismo. O ponto de partida dos cticos o da inexistncia de qualquer base slida para os seres humanos chegarem ao verdadeiro conhecimento ou f verdadeira.

Relativamente ao conhecimento verdadeiro, as pessoas podem chegar a ele por meio dos sentidos (empiricamente), pelo consenso das convenes ou pela razo. Todavia, afirmam os cticos, nenhum desses caminhos , efetivamente, seguro. Os sentidos so muito subjetivos, cada indivduo experimenta uma mesma sensao de modos bem diversos: o que para um quente, para outro frio; o que para um escuro, para outro claro. Isso inviabilizaria um conhecimento verdadeiro sobre a coisa analisada.

Os consensos, que derivam das discusses e das convenes, por seu turno, so muito inseguros e variveis. Um consenso obtido em determinado local sobre um assunto pode ser o oposto daquele obtido em outro local. Ainda podemos admitir que os participantes de uma discusso, algum tempo aps terem chegado a um consenso, mudem de opinio, causando maior insegurana. Assim, tambm no podemos tomar o consenso como suscetvel de levar ao verdadeiro conhecimento.

Quanto razo, ou lgos, tambm no considerada, pelos cticos, como um caminho infalvel que leva verdade, pois possuiria muitas limitaes e contradies. Haveria coisas inexplicveis racionalmente, por um lado. Haveria tambm situaes em que o raciocnio lgico se revelaria contraditrio ou insuficiente. Um exemplo a afirmao eu minto. A razo no conseguiria resolver o problema de afirmar se a pessoa mente ou diz a verdade relativamente prpria frase.

Constatando que o ctico no acredita que o ser humano possa chegar ao verdadeiro conhecimento, sua atitude se transforma em um questionamento incessante, para mostrar aos demais as parcialidades dos conhecimentos atingidos. O ponto final desse questionamento, ao contrrio do que pode parecer, justamente uma postura serena e de tranquilidade, assumindo as limitaes racionais e pacificando o esprito.

Dada a postura do ctico da dvida constante, fica difcil admitir que se forme, propriamente, uma escola para transmisso de seu pensamento. Devemos encarar o ceticismo como aquela atitude ctica que inspira novos filsofos, buscando curar o ser humano do dogmatismo e impedindo-o de fazer julgamentos precipitados.

Tendo-se em vista as caractersticas gerais das filosofias helenistas, ainda assim, possvel inserir o ceticismo como uma de suas correntes. Ainda hoje encontramos pessoas que afirmam assumir tal postura, mesmo que nem sempre com a profundidade de seus inspiradores mais remotos.

16. Helenismo: Epicurismo

Entre os filsofos helenistas, Epicuro (341-270 a.C.) talvez seja aquele cuja imagem seja a mais negativa. Seu pensamento rompe com os pressupostos tradicionais da filosofia clssica grega e, talvez por isso, tenha causado tanta ira em seus contemporneos e at em filsofos posteriores, como os cristos.

Entre outras coisas, Epicuro retoma o atomismo como fundamento de suas teorias fsicas, desenvolvendo a ideia de que tudo composto por tomos que se chocam. Afasta, com isso, a perspectiva de a natureza ser regida por uma razo superior ou pelos deuses, defendendo que o movimento dos tomos poderia explicar todos os fenmenos. Ainda, afirma que o verdadeiro conhecimento sensorial e defende que as aes devem ser norteadas pela busca do prazer.

Suas ideias foram disseminadas na Escola do Jardim, criada em sua residncia, em local afastado do centro de Atenas. Essa localizao fsica reflete a postura dos epicuristas: buscam o afastamento da vida pblica, esperando da cidade apenas a garantia da paz e da segurana, e isolam-se no jardim.

A filosofia epicurista rompe com a noo dos filsofos socrticos de que deveria haver uma identidade entre o indivduo e o cidado, sendo a poltica condio para transformar o animal no ser humano. Para Epicuro, ao contrrio, a poltica intil e o filsofo, que busca a felicidade, deve viver em isolamento. Assim, o indivduo no se preocupa com a poltica e no assume a condio de cidado para se tornar humano.

O ponto de partida para a compreenso do epicurismo sua fsica, ou seja, sua noo de natureza. Epicuro afirma que tudo composto de tomos, desde os objetos at os pensamentos. O tomo a menor partcula da natureza, sendo indivisvel, portanto. Sua estrutura slida e compacta, no havendo vazio dentro dele, mas apenas sua prpria matria. Por fim, o tomo, em si, eterno, nunca deixando de existir, apenas compondo ou deixando de compor as coisas que forma.

Os tomos cairiam eternamente no vazio, que infinito. Haveria uma espcie de chuva de tomos, caindo paralelamente, de modo contnuo, em um espaamento constante, sem qualquer choque entre eles. Como o universo vazio e nada interfere nessa queda, a tendncia que o tomo se conserve em sua rota, para sempre, sem perturbaes.

Todavia, os tomos possuiriam uma propriedade inexplicvel para ns: de modo espontneo, indeterminado e aleatrio, alguns desses tomos se desviam de seu curso e passam a se chocar com os outros, que tambm saem, com o choque, de rota, formando os corpos compostos.

importante ressaltar que a mudana de curso espontnea, ou seja, no motivada por uma fora motriz externa, seja racional, seja divina. Tambm indeterminada, pois no conseguimos explicar exatamente sua causa. E, ainda, aleatria, pois no podemos dizer quando ocorrer, mas apenas que pode ocorrer em algum momento (ou no).

Tais propriedades do desvio do tomo podem causar grande espanto ao filsofo de tradio socrtica, acostumado a encontrar uma razo que explique tudo, ou uma ideia superior realidade. Epicuro traz, para usarmos uma expresso corriqueira fsica contempornea, um princpio da incerteza como fundamento da formao da matria, admitindo uma limitao nossa capacidade racional.

Tendo-se em vista as caractersticas da natureza, podemos compreender a teoria do conhecimento de Epicuro. Primeiramente, ele considera que o fundamento do conhecimento a sensao. Se as coisas so compostas de tomos, nosso corpo sentiria o impacto de alguns desses tomos, entrando em contato com o prprio objeto, e desenhando sua imagem em nossa mente, permitindo o conhecimento da coisa.

Assim, a viso corresponderia ao impacto de tomos emanados por um objeto em nossos olhos, formando uma imagem do objeto, tambm composta por tomos, que ficaria guardada em nosso crebro, permitindo o conhecimento do objeto original. A repetio de algumas sensaes levaria formao de prenoes, ou desenhos padronizados dos objetos com os quais nos relacionamos mais comumente. Graas a essas prenoes poderamos pensar: mesmo sem ver os objetos, manipulamos os tomos que compem seus desenhos padronizados em nosso crebro, formando os raciocnios.

Tal concepo explica, tambm, o conhecimento equivocado. Podemos ver um objeto, a uma certa distncia, de um modo desfocado, pois os tomos que chegam a nossos olhos chocam-se com inmeros outros que percorrem essa distncia. Ento, podemos completar a imagem com uma prenoo equivocada, fazendo um falso juzo do objeto.

Todos os corpos emanam tomos que se chocam com nosso corpo, causando sensaes que ficam arquivadas. Alm dessas sensaes, duas outras sensaes so causadas pelo choque: a dor e o prazer. Tais sensaes devem nortear nossa conduta. Aqui chegamos tica epicurista.

Para sermos felizes, devemos sempre buscar o prazer e fugir da dor causada pela perturbao de nosso corpo por tomos que se chocam a ele. O natural a queda isolada do tomo, sem choques, num curso infinito. Os seres humanos devem buscar o encontro de um estado de menor perturbao possvel e usufruir do prazer desse estado. Como se voltassem queda infinita e isolada do tomo.

Esse estado seria encontrado quando sentssemos um prazer verdadeiro, o qual decorreria de nossa harmonizao com a natureza. Se fssemos alm dos limites impostos pela natureza, poderamos experimentar uma iluso de prazer, que logo se transformaria em perturbao e dor. Portanto, a vida tica, que propicia a felicidade, deve transcorrer em consonncia com as regras impostas pela natureza.

Como saber se o corpo est respeitando os ditames naturais? Basta seguir a sensao de prazer verdadeiro, que no se converte em seu antpoda. Que prazer esse? Epicuro afirmaria: devemos buscar os prazeres naturais e necessrios, quais sejam, aqueles que derivam de sensaes causadas pela natureza e so necessrios e suficientes para a manuteno de nossa vida. Um exemplo o prazer alimentar: devemos comer moderadamente, usufruindo desse prazer, que perdura e no se transforma em dor.

Caso exageremos nos prazeres naturais, eles converter-se-iam em prazeres desnecessrios. Ainda que sintamos uma iluso de prazer num primeiro momento, logo, dado o exagero, samos de nosso curso natural e entramos novamente em choque com os tomos, sentindo coisas desagradveis. O exemplo da alimentao ainda vlido. Se comemos sem moderao, ou se comemos alimentos por demais variados, corremos o risco de experimentar sensaes desagradveis, pois vamos nos chocar com muitos tomos, fora de nosso curso natural.

H ainda um perigo maior: os prazeres no naturais (convencionais) e desnecessrios. So prazeres derivados de coisas criadas pelos homens, que nos afastam da natureza e no so necessrias para a nossa vida feliz. Derivam de consensos e opinies, como o prazer causado pelo luxo, pela glria, pelo poder.

Aqui destacamos esse ltimo prazer: o poder, que se liga poltica. Epicuro coloca a poltica no rol dos prazeres no naturais e desnecessrios, condenando-a como uma mazela que desvia o ser humano de sua harmonizao com a natureza.

A tica estabelece, assim, que devemos buscar satisfazer nossos prazeres, mas apenas aqueles naturais e necessrios, evitando a seduo causada pelos outros. Devemos, pois, exercer uma razo sempre vigilante, capaz de constantemente medir e limitar os prazeres que buscamos. Essa razo deriva de nossa capacidade de nos colocarmos em nosso curso natural, que a prudncia.

importante destacar que o curso natural do ser humano restabelecer sua queda isolada, sem choques ou perturbaes. Assim, viver eticamente viver conforme a natureza humana, evitando ser perturbado por outros e no perturbando o prximo. Chegamos, aqui, a um direito epicurista.

Se os seres humanos so naturalmente dispersos, no se relacionam. Se no h relacionamentos naturais entre as pessoas, fica difcil imaginar que exista um direito natural. Ou somente se pode imaginar um direito natural que negue a relao, determinando que no se pode prejudicar nem ser prejudicado.

O direito epicurista, dessa forma, consagra um paradigma essencial ao direito: o paradigma da segurana. O fim do direito a segurana das pessoas, garantindo que no sero vtimas de perturbaes e podero seguir em seu curso de isolamento e prazer.

De certa maneira, esse paradigma estar presente no modelo de Hobbes e no nosso ordenamento jurdico do presente. H a possibilidade de afirmarmos, inclusive, que o padro de funcionamento do direito contemporneo seja a busca da segurana de suas decises, podendo recorrer legalidade ou no para o conseguir. Os estados de exceo demonstrariam isso.

Epicuro cria uma filosofia, como visto, que rompe radicalmente com a perspectiva socrtica hegemnica. Seu rompimento se d nas trs instncias da filosofia: a fsica, por seu atomismo; a lgica, pelo seu empirismo; a tica, pelo seu naturismo apoltico. Tais rompimentos causam grande incmodo entre os filsofos durante sculos.

17. Helenismo: Estoicismo

Se a filosofia epicurista goza de uma reputao bastante negativa entre seus contemporneos e sucedneos, podemos considerar que a filosofia estoica, ao contrrio, sempre foi associada a adjetivos bons. Embora possuam alguns pontos em comum, ambas terminam por se opor em aspectos cruciais.

Zeno de Ccio (336-264 a.C.) considerado o fundador do estoicismo. Por no possuir cidadania ateniense, estava proibido de adquirir imveis na cidade. Assim, viu-se obrigado a criar sua escola em plena praa central, abaixo de um famoso prtico. Em grego, prtico Sto, da os seguidores de Zeno ficarem conhecidos como os estoicos.

Seus mais ilustres discpulos, Cleanto (n. 331 a.C.) e Crisipo (280-210 a.C.), consolidam a doutrina. O estoicismo sobrevive por sculos, penetrando no Imprio Romano e possuindo seguidores como Sneca, Epicteto e Marco Aurlio.

Talvez a razo para tal longevidade esteja no esprito dessa filosofia que, embora busque romper com a tradio socrtica, no o faz de modo to radical quanto o epicurismo. Primeiramente, porque valoriza o discurso e a razo (lgos), seguindo a perspectiva platnica e aristotlica. Depois, seu materialismo no atomstico e encontra, na natureza, uma razo divina e providencial que d um sentido a todas as coisas. Por fim, sua tica leva a uma postura solidria, capaz de ser absorvida, at mesmo, pela cultura crist.

Relativamente lgica, podemos afirmar que os estoicos eram filsofos, no sentido estrito da palavra: amam a sabedoria e buscam conhecer a razo de todas as coisas. Essa postura, como veremos, deriva de sua crena de que a razo est presente na matria, sendo capaz de dar um sentido natureza e tica. Descobrir a razo presente nas coisas significa identificar sua ordem natural e descobrir os limites da conduta humana.

Como adotam uma perspectiva materialista, no admitindo a existncia de foras ou princpios universais, fora da natureza, acreditam que o verdadeiro conhecimento atingido por meio da experincia, do contato do ser vivo com o mundo, que possui a essncia de si.

As pessoas nasceriam como um livro em branco, sem qualquer conhecimento inato. Conforme experimentam sensaes empricas, comeam a conhecer as coisas, cujas imagens ficam gravadas na alma. O pensamento seria a articulao dessas imagens.

Esse conhecimento emprico, portanto, seria verdadeiro, pois nada transcenderia a natureza, nem deus, que seria imanente. Assim, quando o ser humano sente as coisas naturais, entra em contato direto com deus, que se expressa racionalmente. Compreender a natureza, portanto, compreender deus e identificar o sentido da vida.

Haveria dois princpios que organizam o mundo: um passivo (a matria) e um ativo (a razo). A matria que compe os objetos inerte, no se move nem se transforma. Quando perpassada pelo princpio ativo, ganha movimento e passa a se transformar, pois organizada de modo racional para cumprir um destino.

Todos os corpos existentes possuiriam, em maior ou menor grau, um princpio ativo, uma razo que norteia seu porvir. Esse princpio como um fluido que penetra nos corpos, conectando tudo o que existe. chamado de simpatia e responsvel por dirigir as coisas a um destino prprio.

Como todos os seres esto interligados pela simpatia, nada existe autonomamente. Isso significa que a felicidade plena s ocorrer se houver a felicidade em cada um dos seres. Enquanto uma nica coisa se desviar do seu destino, todas as coisas sentiro esse abalo.

Essa imagem de uma simpatia universal entre todos os seres est presente em algumas filosofias orientais e bastante forte no imaginrio contemporneo. Um exemplo recente foi o filme Avatar, de qualidade artstica duvidosa, cujos seres da lua Pandora encontram-se interligados por uma fora universal, vivendo em plena harmonia com a natureza.

Da fsica chegamos tica estoica. Os seres humanos devem buscar a felicidade e esta deriva de uma vida que realize plenamente seu destino, levando harmonia com o mundo. Fazendo uma comparao, cada pessoa estaria num brao de um imenso rio, tendo um curso a seguir, cuja correnteza levaria exatamente a esse curso. Caberia s pessoas identificarem o sentido da correnteza e, ento, deixarem-se levar, felizes.

A ao humana torna-se tica, pois, no exato instante em que coincide com o destino do agente. Esse destino, conforme exposto, dado pelo princpio ativo que deu vida pessoa. Cada ser humano recebeu sua dose de simpatia porque tem um destino a cumprir; cabe a cada um descobrir a razo de sua vida e seguir esse caminho, que tambm leva felicidade.

Mas h um inimigo, velho conhecido dos socrticos: o pthos (a paixo). Na filosofia estoica, paixo qualquer movimento do ser humano em um sentido contrrio ao de seu destino natural (que sua razo). Viver conforme o destino verdadeiramente prazeroso; afastar-se de seu destino traz um prazer ilusrio, que logo se desfaz. A paixo esse afastamento e deve ser eliminada, pois desnecessria para a vida feliz. No basta, como prega Aristteles, moderar a paixo.

O sbio, que tico, vive apenas conforme a razo, ou seja, o sentido natural de sua vida. No possui paixes, nem orgulho ou ambies, mas sincero, piedoso, nobre e grande. A escolha tica uma escolha livre, no obstante cada ser humano nasa com um destino a cumprir. Pode-se escolher entre seguir um curso que corresponda ao destino ou no. O sbio, que identifica a razo de sua vida, sempre escolhe seguir o mesmo caminho de seu destino.

Ao mergulhar dentro de si para descobrir a razo de sua vida, o sbio termina por encontrar a simpatia e por descobrir-se membro de uma fora que interpenetra todas as pessoas. Descobre que sua felicidade depende da felicidade do mundo e nunca mais se torna indiferente dor ou ao sofrimento do outro, percebendo-os como sendo prprios. A ao estoica exige o altrusmo para ser plena.

O sbio descobre que composto por matria e pela fora que est unindo todas as pessoas. E descobre que todas as pessoas possuem esses mesmos dois elementos. Isso leva descoberta de que no h diferena entre o eu e o outro, sendo ambos iguais.

Tal constatao leva a um ideal de universalidade do ser humano, abolindo a tradicional oposio entre o grego e o brbaro. Para o estoico, qualquer pessoa, em qualquer local do mundo igual s demais. Nem mesmo o escravo e o homem livre