Fidalgo Antonio Manual Semiotica 2005

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  • Antnio FidalgoAnabela Gradim

    Manual de Semitica

    UBI PORTUGALwww.ubi.pt2004/2005

  • ndiceI Prolegmena 7

    1 Semitica e comunicao 91.1 Sinais e signos. Aproximao aos

    conceitos de signo e de semitica. . . . . . . . . 91.1.1 Os sinais chamados sinais . . . . . . . . 91.1.2 As palavras como sinais. . . . . . . . . . 121.1.3 Tudo pode ser sinal. . . . . . . . . . . . 141.1.4 Sinais e signos e a sua cincia. . . . . . . 15

    1.2 A semitica e os modelos decomunicao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

    1.3 Tipos e classificaes de signos . . . . . . . . . . 201.3.1 Tipos de signos . . . . . . . . . . . . . . 201.3.2 Princpios de classificao e taxinomia. . 21

    2 Histria da semitica 252.1 Os Antigos: gregos e os esticos. Galeno. . . . . 252.2 Os Medievais: Agostinho, Bacon, Hispano, Fon-

    seca e Joao de S. Toms . . . . . . . . . . . . . . 312.3 Os Modernos: Locke, Condillac, Lambert, Kant,

    e Humboldt . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48

    II Sistemtica 59

    3 A semiose e a diviso da semitica 61

  • 4 Semitica Geral

    4 As propriedades sintcticas do signo 654.1 Signos simples e signos complexos . . . . . . . . 654.2 Os elementos sgnicos ou as unidades mnimas.

    Para uma teoria dos elementos. . . . . . . . . . . 674.3 Sistema e estrutura. Relaes sintagmticas e pa-

    radigmticas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 724.4 A combinao dos signos. Regras de formao e

    de transformao. . . . . . . . . . . . . . . . . . 774.5 A sintctica, a gramtica e a lgica . . . . . . . 79

    5 As propriedades semnticas dos signos 815.1 O problema da significao. Sentido e referncia 815.2 Concepes duais e concepes tridicas dos signos. 865.3 As noes de verdade e objectividade . . . . . . 915.4 Os mltiplos nveis de significao. Denotao e

    conotao. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 935.5 Os cdigos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

    6 As propriedades pragmticas do signo 996.1 A natureza pragmtica do signo. A noo de in-

    terpretante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 996.2 Sistema e uso. Lngua e fala. Competncia e

    performance. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1036.3 Contextos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1056.4 O signo como aco. . . . . . . . . . . . . . . . 1066.5 Enunciao ou a lgica da comunicao . . . . . 109

    6.5.1 Enunciao . . . . . . . . . . . . . . . . 1096.5.2 A dupla estrutura da fala . . . . . . . . . 1116.5.3 Modos de comunicao . . . . . . . . . 1126.5.4 O fundamento racional da fora ilocucional116

    III Complementos 119

    7 Mtodos e anlises 1217.1 O mtodo pragmatista . . . . . . . . . . . . . . 121

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  • NDICE 5

    7.2 As anlises de Roland Barthes . . . . . . . . . . 1257.3 O quadrado semitico de Greimas . . . . . . . . 126

    8 Os campos da semitica 1318.1 A comunicao no verbal . . . . . . . . . . . . 1318.2 A zoosemitica . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1328.3 A semitica e as artes . . . . . . . . . . . . . . 135

    IV Suplementos 139

    9 A semitica de Peirce 1419.1 Trades e Semitica . . . . . . . . . . . . . . . . 145

    9.1.1 O funcionamento tridico do signo pei-rceano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146

    9.1.2 As categorias e os diversos tipos de signo 155

    10 Da semitica e seu objecto 16710.1 Introduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16710.2 A histria e os confins da semitica . . . . . . . 16910.3 A polissemia e a crise do signo . . . . . . . . . 18110.4 A natureza relacional do signo . . . . . . . . . . 18510.5 Sintctica e operatividade dos signos . . . . . . . 18910.6 Que semitica para os cursos de comunicao? . 193

    11 A economia e a eficcia dos signos 19711.1 Introduo ao tema . . . . . . . . . . . . . . . . 19711.2 A operacionalidade algbrica do zero . . . . . . . 19911.3 Os signos medida. As linguagens especializadas 20111.4 Os cdigos e a economia dos signos . . . . . . . 20411.5 Os cdigos e a informao. A teoria matemtica

    da comunicao . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20811.6 Os signos em aco. . . . . . . . . . . . . . . . . 21111.7 O slogan . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21211.8 Concluso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 214

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  • Parte I

    Prolegmena

  • Captulo 1

    Semitica e comunicao

    1.1 Sinais e signos. Aproximao aosconceitos de signo e de semitica.

    1.1.1 Os sinais chamados sinaisEm portugus d-se o nome de sinal a coisas assaz diferentes.Temos os sinais da pele, os sinais de trnsito, o sinal da cruz, osinal de pagamento. Uma pergunta que se pode fazer o quetm de comum para poderem ter o mesmo nome. Com efeito, omesmo nome dado a coisas diferentes normalmente significa queessas coisas tm algo em comum. Se chamamos pessoa tanto aum beb do sexo feminino como a um homem velho porqueconsideramos que tm algo de comum, nomeadamente o ser pes-soa. Que as coisas atrs chamadas sinais so diferentes umas dasoutras no sofre contestao. Os sinais da pele so naturais, ossinais de trnsito so artefactos, o sinal da cruz no uma coisaque exista por si, um gesto que s existe quando se faz, e o sinalde pagamento algo, que pode ser muita coisa, normalmente di-nheiro, que se entrega a algum como garantia de que se lhe h-depagar o resto. Que h ento de comum a estas coisas para teremo mesmo nome? A resposta deve ser buscada na anlise de cadauma delas.

  • 10 Semitica Geral

    Os sinais da pele so manchas de maior ou menor dimenso,normalmente escuras, que certas pessoas tm na pele. assim quedizemos que certa pessoa tem um sinal na cara e que outra temum sinal na mo. Essas manchas so sinais porque distinguem aspessoas que as tm. As pessoas ficam de certa forma marcadaspor essas manchas, ficam por assim dizer assinaladas. Os sinaisso marcas caractersticas dessas pessoas. A partir daqui, fcilde ver que outros elementos caractersticos tambm podem serdesignados como sinais. Um nariz muito comprido pode servirde sinal a uma pessoa, tal como qualquer outro elemento fsicoque a distinga das outras.

    Daqui pode-se j tirar um sentido de sinal, a saber, o de umamarca distintiva. sinal tudo aquilo que pode servir para iden-tificar uma coisa, no sentido de a distinguir das demais. E o quepode servir de sinal podem ser coisas muito diversas. No caso deuma pessoa, tanto pode ser um sinal da pele, como uma cicatriz,a cor dos olhos, a altura, a gordura, a falta de cabelo, ou outroelemento qualquer que distinga essa pessoa.

    Os sinais de trnsito so diferentes. No so marcas de nada,no caracterizam um objecto. No primeiro caso, os sinais tmde estar associados a algo que caracterizem, de que sejam sinais;no tm enquanto sinais uma existncia autnoma. Os sinais detrnsito, ao contrrio, no se associam a outros objectos, estoisolados. Nisto se diferenciam os sinais de trnsito dos marcos deestrada. Estes esto associados estrada, marcam ou assinalam oseu percurso ao longo do terreno. Por sua vez, os sinais de trn-sito s indirectamente assinalam a estrada. A sua funo primeira outra, a de regulamentarem o trnsito das estradas. O sinal destop, por exemplo, um sinal de que os condutores devem obriga-toriamente parar por momentos ali. Dizemos tambm que signi-fica paragem obrigatria. Os sinais de trnsito tm um significadoe isso que os distingue dos primeiros sinais, os distintivos. Estes,os sinais da pele, limitam-se a assinalar, mas nada significam, aopasso que os segundos significam, mas no assinalam ou ento so fazem indirectamente. Os sinais indicativos podem ser muito

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  • Semitica e comunicao 11

    diferentes entre si, mas a sua funo a mesma: assinalar. Os si-nais de trnsito tm significados diferentes consoante a sua forma(configurao geomtrica, cor e elementos que o compem); hsinais de limite de velocidade, de sentido nico, de prioridade, deaviso, etc. A pergunta que se coloca sobre a provenincia dosignificado e a que se responde com o cdigo da estrada. o c-digo que estabelece que este sinal significa isto e aquele significaaquilo. O significado no automtico, no um dado imediato aquem olha para o sinal. Os sinais cujo significado determinadopor um cdigo exigem uma aprendizagem do seu significado.

    Como os sinais de trnsito h muitos outros sinais. Temos osgales das fardas militares que significam o posto do portador nahierarquia militar, temos as insgnias do poder, a coroa e o ce-ptro do rei, a tiara do Papa, a mitra e o anel do bispo, as fardasdos polcias, mas tambm uma bengala de cego, os sinais indica-tivos das casas de banho, os sinais de proibio de fumar, etc.etc. O que caracteriza todos estes objectos enquanto sinais oserem artefactos com a finalidade de significarem. Dito de ou-tra maneira, h subjacente a todos eles uma inteno significativa.Conhecer esses objectos como sinais conhecer o seu significado.De contrrio perdem toda a dimenso de sinal. Os sinais deste tipomais importantes so os sinais lingusticos, mas destes falaremos frente.

    O sinal da cruz distingue-se dos sinais anteriores simplesmenteporque consiste num gesto e no um objecto, mas tem como elesum significado. Como o sinal da cruz temos os gestos do polciasinaleiro, o gesto de pedir boleia, alm de outros, cujo significadoest previamente determinado.

    O sinal de pagamento assinala tanto a inteno de compracomo o objecto a comprar e significa o compromisso do com-prador a posteriormente pagar o montante em falta. Embora este-jamos perante uma situao sgnica mais complexa que a dos si-nais de trnsito, no fundo o mesmo processo. Tambm aquih uma inteno significativa subjacente e um cdigo que regula-menta este sinal.

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  • 12 Semitica Geral

    Feita a anlise dos sinais chamados sinais, diferentes entre si,verifica-se que o que h de comum a todos eles o serem coisas(objectos, gestos, aces) em funo de outras coisas, que repre-sentam ou caracterizam. No pode haver sinais sem um de frente; ao serem sinais so sempre sinais de algo. isso que so-bressai na definio clssica de sinal: aliquid stat pro aliquo, algoque est por algo. Este estar por muito vasto, pode significarmuita coisa: representar, caracterizar, fazer as vezes de, indicar,etc. O mais importante aqui sublinhar a natureza relacional dosinal, o ser sempre sinal de alguma coisa.

    1.1.2 As palavras como sinais.Que uma palavra possa ser um sinal parece claro. Para designaresses casos at existe um termo prprio, o termo de senha. Noh dvida que certas palavras ditas em determinadas ocasies, sosinais no sentido apurado atrs. Essas palavras so consideradaspalavras-chave e o seu significado estabelecido por um cdigo.Mais difcil conceber que todas as palavras, enquanto palavras,sejam sinais. Com efeito, quando dizemos alguma coisa no nosparece que sejam ditadas por qualquer cdigo ou que as nossaspalavras esto por outra coisa que no elas prprias. Isso podeocorrer no sentido metafrico, mas no no sentido corrente emque se usa a linguagem. De tal maneira no visvel a afini-dade entre as palavras e os signos, que os gregos apesar de teremestudado a lngua e de terem pensado sobre os signos nunca re-lacionaram as duas coisas, nunca conceberam as palavras comosinais entre outros sinais. Porque uma coisa dizer que uma pa-lavra pode servir de sinal e outra dizer que, por ser palavra, umsigno. Nos casos em que uma palavra serve de sinal, h algo deartificial por detrs, h uma combinao ou cdigo que determinao significado dela enquanto sinal. Ora, primeira vista, a lnguaaparece-nos como algo natural ao homem, parece no ter qual-quer cdigo subjacente. A descoberta de um cdigo subjacente aum sinal pressupe um certo distanciamento face a esse sinal, ora

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  • Semitica e comunicao 13

    face s palavras esse distanciamento no existe. Estamos mergu-lhados na linguagem; e mesmo quando pensamos nela e sobre elareflectimos, fazemo-lo ainda dentro da linguagem e atravs dela.Daqui que seja to difcil perceber as palavras como sinais.

    A conscincia clara de que as palavras so sinais surge-nos nocontacto com as lnguas estrangeiras. a que nos damos conta deque as palavras so sons articulados com determinado significado,e de que os mesmos sons podem ter diferentes significados con-soante as lnguas (vejam-se os exemplos de padre e perro emportugus e em espanhol). Foi em confronto com as lnguas br-baras que os esticos compreenderam que as palavras so tambmsinais convencionais.

    Mas a inteleco de que as palavras so sinais representa comoque uma revoluo da nossa concepo de sinais, e at mais, danossa concepo de cincia, de saber, de linguagem, e mesmo doprprio mundo. uma a noo de sinal alarga-se a tudo o que expresso, comunicao e pensamento. Porque se poderamosimaginar um mundo sem sinais, entendidos no sentido restrito deartefactos cuja funo assinalar, em contrapartida no podemosimaginar um mundo humano sem linguagem. A noo de sinal,englobando as palavras, uma noo que vai raiz do ser hu-mano, da sua capacidade de pensar, expressar-se e comunicar.Por outro lado, percebemos que o mundo humano, o mundo dalinguagem e da cultura, um mundo constitudo de sinais e porsinais.

    Um outro aspecto muito importante da incluso das palavrasno conjunto dos sinais o tremendo impulso que isso significapara o estudo dos sinais. Desde logo porque o enormssimo cor-pus de estudos sobre a lngua, acumulado desde os primrdios daantiguidade clssica, passou tambm a fazer parte dos estudos so-bre os sinais. Mas tambm e sobretudo porque a lngua constituium sistema de signos que, estando presente, em todas as activi-dades humanas, extraordinariamente complexo e completo. Alngua no apenas mais um sistema de sinais entre outros si-stemas, ela o sistema de sinais por excelncia, o sistema a que

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  • 14 Semitica Geral

    necessariamente recorremos no s para analisar os outros siste-mas, mas tambm para o analisar a ele mesmo. De tal modo relevante o sistema da lngua que muitas vezes o seu estudo, a lin-gustica, parece identificar-se com o estudo dos sinais em geral,a semitica, ou mesmo suplant-lo, em termos de esta ser apenasum complemento, como que a aplicao das anlises lingusticasaos outros sistemas de sinais. Esta tendncia sobretudo patentenas correntes semiticas que tiveram a sua origem precisamentena lingustica (Saussure, Escola de Paris).

    1.1.3 Tudo pode ser sinal.A acepo das palavras como sinais representa um considervelalargamento do universo dos sinais. Contudo, mesmo assim, ouniverso dos sinais ainda maior. que a definio de sinal algoque est por algo para algum estabelece o sinal como algo for-mal, donde tudo aquilo que, no importa o qu, est por uma outracoisa , por isso mesmo, um sinal. Assim, ser sinal tudo aquilopelo qual algum se d conta de uma outra coisa.

    De novo, com a considerao da lngua fez-se um extraordin-rio alargamento do universo dos sinais, mas esse universo ficariarestringido aos sinais que tm por base um cdigo estabelecido.Com o alargamento possibilitado pela natureza formal da relaosgnica, em que para que algo seja sinal basta que algum atravsdele se d conta de uma outra coisa, o universo dos sinais passa aser idntico ao universo das coisas.

    O mtodo de Sherlock Holmes, o clebre detective dos livrosde Sir Arthur Conan Doyle, mostra-nos como tudo pode ser umsinal. As coisas mais dspares, e vista desarmada mais inve-rosmeis, podem constituir excelentes pistas para chegar ao cri-minoso. O que Sherlock Holmes faz estabelecer relaes entrecoisas que, primeira vista, nada tm a ver umas com as outras.Ora no momento em que se estabelece uma relao entre A e B,A deixa de ser um objecto isolado para devir um sinal de B.

    O carcter semitico do mtodo de Sherlock Holmes foi expo-

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  • Semitica e comunicao 15

    sto por Thomas Sebeok e Umberto Eco que apuraram uma grandeafinidade entre o mtodo do detective e o mtodo abdutivo deCharles Peirce, um dos fundadores da semitica contempornea.1

    1.1.4 Sinais e signos e a sua cincia.Os compndios e os manuais de semitica falam em signos epouco em sinais. A razo de ser que signo hoje um termotcnico e sinal um termo mais vasto, menos preciso. Se, no en-tanto, utilizei at aqui o termo sinal foi porque procurei mostrarem que medida a investigao semitica surge de fenmenos comque lidamos no dia a dia. Por outro lado, signo um termo eru-dito, provindo directamente do latim, que no sofreu os percalosde uma utilizao intensiva como o termo sinal e que por issono foi enriquecido com termos dele derivados e que representamum contributo assaz importante ao estudo semitico. Vejam-seos termos sinaleiro, sinalizao, sinalizar, assinalar, sinalizado eassinalado.

    O termo signo imps-se na semitica, pelo que daqui em dianteo passarei a utilizar em vez de sinal. Por outro lado, o termo si-nal tem vindo a ganhar dentro da semitica um outro sentido queno o tradicional em portugus. Esse sentido tcnico o de umestmulo elctrico ou magntico que passa por um canal fsico.2

    De qualquer modo, partindo da anlise dos sinais que em por-tugus se chamam sinais entrmos num vasto campo de estudoa que se d o nome de semitica. Nenhuma cincia nasce feita,antes se desenvolve a partir de uma interrogao inicial sobre ocomo e o porqu de determinados fenmenos, e com a semitica

    1Umberto Eco and Thomas A. Sebeok, (eds.), The Sign of three: Dufin,Holmes, Peirce, Indiana University Press, Bloomington, 1983

    2A signal is a pertinent unit of a system that may be an expression system

    ordered to a content, but could also be a physical system without any semioticpurpose; as such is studied by information theory in the stricter sense of theterm. A signal can be a stimulus that does not mean anything but causes orelicits something. Umberto Eco, A Theory of Semiotics, Indiana UniversityPress, Bloomington, 1979.

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  • 16 Semitica Geral

    ocorre o mesmo. A anlise feita sobre os sinais serviu para abriro campo em que se constri a cincia da semitica.

    1.2 A semitica e os modelos decomunicao

    O lugar da semitica dentro das cincias da comunicao dependedo que se entende por comunicao. A comunicao hoje umvastssimo campo de investigao, das engenharias sociologiae psicologia, pelo que as perspectivas em que se estuda podemvariar significativamente. certo que toda a comunicao se fazatravs de sinais e que esse facto constitui o bastante para estudaros sinais, sobre o que so, que tipos de sinais existem, como fu-ncionam, que assinalam, com que significado, como significam,de que modo so utilizados. Contudo, o estudo dos sinais tantopode ocupar um lugar central como um lugar perifrico no estudoda comunicao. Tal como na arquitectura em que o estudo dosmateriais, embora indispensvel, no faz propriamente parte daarquitectura, assim tambm em determinadas abordagens da co-municao o estudo dos sinais no faz parte dos estudos de comu-nicao em sentido restrito. Daqui que seja fundamental conside-rar, ainda que brevemente, os principais sentidos de comunicao.

    Nos estudos de comunicao distinguem-se duas grandes cor-rentes de investigao, uma que entende a comunicao sobretudocomo um fluxo de informao, e outra que entende a comunicaocomo uma produo e troca de sentido.3. A primeira corrente a escola processual da comunicao e a segunda a escola se-mitica.

    A ideia de que a comunicao uma transmisso de mensa-gens surge na obra pioneira de Shannon e Weaver, A Teoria Ma-temtica da Informao de 1949. O modelo de comunicao queapresentam assaz conhecido: uma fonte que passa a informao

    3Sigo a distino e a caracterizao das duas correntes que John Fiske de-senvolve em Introduo ao Estudo da Comunicao

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  • Semitica e comunicao 17

    a um transmissor que a coloca num canal (mais ou menos sujeitoa rudo) que a leva a um receptor que a passa a um destinatrio. um modelo linear de comunicao, simples, mas extraordinaria-mente eficiente na deteco e resoluo dos problemas tcnicosda comunicao. Contudo, Shannon e Weaver reivindicam que oseu modelo no se limita aos problemas tcnicos da comunicao,mas tambm se aplica aos problemas semnticos e aos problemaspragmticos da comunicao. Efectivamente, distinguem trs n-veis no processo comunicativo: o nvel tcnico, relativo ao rigorda transmisso dos sinais; o nvel semntico, relativo precisocom que os signos transmitidos convm ao significado desejado;e o nvel da eficcia, relativo eficcia com que o significado damensagem afecta da maneira desejada a conduta do destinatrio.

    Elaborado durante a Segunda Guerra Mundial nos laborat-rios da Bell Company, o modelo comunicacional de Shannon eWeaver assumidamente uma extenso de um modelo de enge-nharia de telecomunicaes. A teoria matemtica da comunicaovisa a preciso e a eficincia do fluxo informativo. A partir desseobjectivo primeiro, desenvolveu conceitos cruciais para os estu-dos de comunicao, nomeadamente conceitos to importantescomo quantidade de informao, quantidade mnima de infor-mao (o clebre bit), redundncia, rudo, transmissor, receptor,canal.

    Consideremos um exemplo muito simples de modo a anali-sarmos os diferentes nveis de comunicao, segundo a distinode Shannon e Weaver, e o papel que a semitica desempenha ne-les. No painel de instrumentos de um automvel encontra-se ummostrador indicativo do estado do depsito de gasolina, que vaida indicao de vazio a cheio. Os problemas tcnicos dizem re-speito medio do combustvel no reservatrio, atravs de bias,ou por outros meios, e a transmisso fsica, mecnica ou electr-nica, dessas medies para o painel do carro, para um mostradorde agulha, analgico, ou ento para um mostrador digital. Parececlaro que a este nvel tcnico no se levantam questes de tipo se-

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  • 18 Semitica Geral

    mitico. O que aqui est em jogo so relaes de tipo causa/efeitoe no de tipo sgnico.

    O nvel semntico no fluxo de informao em causa situa-sena leitura do mostrador. Se a agulha est, por exemplo, encostada esquerda, isso significa que o tanque est vazio, e se estiverencostada direita isso significa que est cheio. O mostrador podeainda apresentar nmeros da esquerda para a direita, indo do zeroat, digamos, 70, indicando os litros que se encontram no dep-sito. Neste caso h um significado que preciso conhecer. Umapessoa que nunca tivesse conduzido um carro e que no fizesseideia de como um carro funciona no seria capaz de entender osignificado da agulha ou dos nmeros do mostrador.

    bom de ver que ao nvel semntico se levantam questes denatureza semitica. A prpria compreenso do mostrador j elasemitica na medida em que este se toma como um signo: o mo-strador remete para algo que ele no , nomeadamente o estado dodepsito. E depois as variaes da agulha no mostrador suscitamtambm questes semiticas relativas aos significados diferentesque lhes correspondem. Pode fazer-se a redundncia semnticada informao juntando, por exemplo, cones de um tanque vazio,mdio e cheio, aos nmeros indicativos da quantidade de litrosexistentes no depsito.

    O nvel de eficcia da informao dada pelo mostrador prende-se com a conduta do condutor do veculo relativamente distnciaque o veculo pode andar com a quantidade de combustvel in-dicada e necessidade de meter mais combustvel. A cor verme-lha no fundo do mostrador e a luz de aviso de que o combustvelse encontra na reserva assume claramente uma dimenso pragm-tica, como que urgindo que o condutor se dirija a uma bomba degasolina.

    No obstante as questes semiticas que se levantam aos n-veis semntico e de eficcia no modelo de Shannon e Weaver,elas no so de primordial importncia. que as mensagens e osseus significados esto partida determinados e a tarefa da co-municao transmitir essas mensagens, lev-las de A para B.

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  • Semitica e comunicao 19

    As questes no se colocam sobre a formao das mensagens,da sua estrutura interna, da sua adequao ao que significam, dasua relevncia, mas sim sobre a sua transmisso, partindo-se dopressuposto de que as mensagens esto j determinadas no seusignificado. Qualquer conotao que a mensagem possa ter sersempre entendida como rudo.

    O modelo semitico de comunicao aquele em que a nfase colocada na criao dos significados e na formao das men-sagens a transmitir. Para que haja comunicao preciso criaruma mensagem a partir de signos, mensagem que induzir o in-terlocutor a elaborar outra mensagem e assim sucessivamente. Asquestes cruciais nesta abordagem so de cariz semitico. Que ti-pos de signos se utilizam para criar mensagens, quais as regras deformao, que cdigos tm os interlocutores de partilhar entre sipara que a comunicao seja possvel, quais as denotaes e quaisas conotaes dos signos utilizados, que tipo de uso se lhes d. Omodelo semitico de comunicao no linear, no se centra nospassos que a mensagem percorre desde a fonte at ao destinat-rio. A comunicao no tomada como um fluxo, antes como umsistema estruturado de signos e cdigos.4

    O modelo semitico considera inseparveis o contedo e oprocesso de comunicao. Contedo e processo condicionam-sereciprocamente, pelo que o estudo da comunicao passa peloestudo das relaes sgnicas, dos signos utilizados, dos cdigosem vigor, das culturas em que os signos se criam, vivem e actuam.Quer isto dizer que o significado da mensagem no se encontrainstitudo na mensagem, como que seu contedo, e independentede qualquer contexto, mas que algo que subsiste numa relao

    4So these models will differ from the ones just discussed, in that they are

    not linear, they do not contain arrows indicating the flow of the message. Theyare structural models, and any arrows indicate relationships between elementsin this creation of meaning. These models do not assume a series of steps orstages through which a message passes: rather they concentrate on analysing astructured set of relationships which enable a message to signify something.John Fiske, ibidem, pp. 42-43.

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  • 20 Semitica Geral

    estrutural entre o produtor, a mensagem, o referente, o interlocu-tor e o contexto.

    1.3 Tipos e classificaes de signos

    1.3.1 Tipos de signosA unificao de campo operada por qualquer cincia no podedeixar de considerar a diversidade do objecto de estudo. Umaprimeira abordagem dos signos dever desde logo realar a suadiversidade. H muitos e diversos tipos de signos e qualquer defi-nio de signo dever ter em conta no s a polissemia do termosigno, mas sobretudo a diversidade dos prprios signos. Mesmoa definio mais geral de signo como algo que est por algo paraalgum reclama que se especifique melhor essa relao de estarpor para. Da que seja extremamente importante apontar, aindaque no exaustivamente, diversos tipos de signos, sobretudo osmais importantes.

    1. Sinais so signos que desencadeiam mecnica ou conve-ncionalmente uma aco por parte do receptor. Os sinaisde rdio e de televiso, por exemplo, provocam nos respec-tivos receptores determinados efeitos. Mas tambm h umaaplicao convencional dos sinais, como nos casos de daro sinal de partida, fazer-lhe sinal para vir, dar o sinalde ataque. Este tipo de signos utilizado em mquinas, e utilizado por homens e animais.

    2. Sintomas so signos compulsivos, no arbitrrios, em que osignificante est associado ao significado por um lao natu-ral. Um sndroma uma configurao de sintomas. Assim,a febre um sintoma de doena, tal como a geada nocturna um sintoma de que a temperatura atmosfrica desceu atzero graus centgrados.

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  • Semitica e comunicao 21

    3. cones so signos em que existe uma semelhana topol-gica entre o significante e o significado. Uma pintura, umafotografia so cones na medida em que possuem uma se-melhana com o objecto pintado ou fotografado. Subtiposde cones so as imagens, os diagramas e as metforas. Osdiagramas, como os planos de uma casa, tm uma corre-spondncia topolgica com o seu objecto. As metforastm uma semelhana estrutural, de modo que possvel fa-zer uma transposio de propriedades do significante parao significado.

    4. ndices so signos em que o significante contguo ao si-gnificado. Um tipo importante de ndices so os decticos,as expresses que referem demonstrativamente, como esteaqui, esse a, aquele ali. Os nmeros nas fardas dossoldados so ndices, assim como um relgio tambm umndice do tempo.

    5. Smbolos so signos em que, no havendo uma relao desemelhana ou de contiguidade, h uma relao convencio-nal entre representante e representado. Os emblemas, asinsgnias, os estigmas so smbolos. A relao simblica intensional, isto , o simbolizado uma classe de objectosdefinida por propriedades idnticas.

    6. Os nomes so signos convencionais que designam uma classeextensional de objectos. Enquanto os signos que designamintensionalmente o fazem mediante uma propriedade co-mum do objecto, os indivduos que se chamam Joaquimapenas tm em comum o nome. Aqui no h um atributointensional que os caracterize.

    1.3.2 Princpios de classificao e taxinomia.Classificar signos, e, dada a natureza relacional do signo, isso si-gnifica classificar as relaes sgnicas nos seus diferentes aspec-

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  • 22 Semitica Geral

    tos, um trabalho exigente que os semiticos frequentemente evi-tam. Contudo, uma vez apurada a diversidade dos signos, impre-scindvel proceder sua classificao ou, pelo menos, delinear osprincpios classificatrios. Tal delineamento induz a uma melhorcompreenso da natureza das relaes sgnicas e constitui umaexcelente pedra de toque s definies de signo. Tratar os signostodos por igual um procedimento arriscado, por ignorar difere-nas e, por isso mesmo, entregar arbitrariedade a demarcao docampo semitico. O af classificatrio de Charles S. Peirce deveser entendido como uma busca de rigor na anlise dos processossemisicos.

    Umberto Eco compendia e expe sistematicamente as diversasclassificaes de signos.5 A exposio modelar e vale a pensasegui-la.

    1. Os signos diferenciam-se pela fonte. Os signos que pro-vm do espao sideral so diferentes dos signos emitidospor animais, que por sua vez so diferentes dos signos hu-manos.

    2. Os signos diferenciam-se pelas inferncias a que do azo.Esta diferenciao engloba a distino tradicional entre si-gnos artificiais e signos naturais, em que os primeiros soemitidos conscientemente, com a inteno de comunicar, eos segundos provm de uma fonte natural. Por vezes, estesltimos, designados de indcios, no so considerados si-gnos (Buyssens). O motivo invocado para esta excluso de que os signos artificiais significam, ao passo que natu-rais envolvem uma inferncia. Eco inclui na categoria designos os signos naturais e para isso recorre definio dosesticos, de que o signo uma proposio constituda poruma conexo vlida e reveladora do consequente.A diferena entre associao (signos artificiais) e inferncia(signos naturais) pode ser subsumida nas diferentes formas

    5Umberto Eco, O Signo, Presena, Lisboa, 1990, pp. 31-67.

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  • Semitica e comunicao 23

    de inferncia, assumindo a associao sgnica bastas vezeso carcter da abduo peirceana.

    3. Os signos diferenciam-se pelo grau de especificidade s-gnica. H signos cuja nica funo significar, como nocaso das palavras, e outros que s cumulativamente signi-ficam, como no caso dos objectos de uso (automvel, ve-stido, etc.). A noo bartheana de funo-signo uma dasclassificaes mais importantes na semitica recente. Todaa proxmica aproveita dos signos indirectos.

    4. Os signos diferenciam-se pela inteno e grau de consci-ncia do seu emissor. H signos que so emitidos propo-sitada e intencionalmente, com o fito de comunicar, e hsignos emitidos espontaneamente, que revelam involunta-riamente qualidades e disposies. Os primeiros so cha-mados signos comunicativos e os segundos expressivos. Apsicanlise faz uma utilizao sistemtica destes ltimos.

    5. Os signos diferenciam-se pelo canal fsico e pelo aparelhoreceptor humano. Consoante os diferentes sentidos, olfacto,tacto, gosto, vista, ouvido, assim h diferentes tipos de si-gnos.

    6. Os signos diferenciam-se pela relao ao seu significado.Os signos podem ser unvocos, equvocos, plurvocos, va-gos.

    7. Os signos diferenciam-se pela replicabilidade do significante.H signos intrnsecos, que usam como significado uma partedo seu referente. o caso das moedas de ouro, que signi-ficam o seu valor de troca, mas que tambm significam oseu prprio peso em ouro. O oposto so as palavras, pura-mente extrnsecas, sem valor prprio e que podem ser mul-tiplicadas ao infinito. Os signos distinguem-se assim porserem rplicas diferentes, umas que apenas significam algo

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  • 24 Semitica Geral

    exterior, e outras que significam tambm algo que lhes prprio e nico.

    8. Os signos diferenciam-se pelo tipo de relao pressupostacom o referente. Temos aqui a conhecida distino pei-rceana entre ndices, cones e smbolos, e atrs tratados.

    9. Os signos diferenciam-se pelo comportamento que estipu-lam no destinatrio. Esta classificao deve-se sobretudo aCharles Morris e sua acepo behaviorista da semitica.Morris faz a distino entre signos identificadores, designa-dores, apreciadores, prescritores e formadores. Os signosidentificadores so similares aos ndices de Peirce, os de-signadores so os signos que significam as caractersticasde uma situao espcio-temporal. Os apreciadores signi-ficam algo dotado de um estado preferencial em relao aocomportamento a ter. Os prescritores comandam um com-portamento e, finalmente, os formadores so os signos que,aparentemente privados de significado, servem para conec-tores aos signos complexos. Tradicionalmente so conheci-dos por sincategoremticos.

    10. Os signos diferenciam-se pelas funes do discurso. A clas-sificao mais conhecida neste mbito a de Jakobson quedistingue seis funes da linguagem e que por conseguinteest na base de seis tipos diferentes de signo. So essasfunes a referencial, em que o signo se refere a qualquercoisa, a emotiva, em que o signo pretende suscitar um re-sposta emotiva, ftica, em que o signo visa manter a con-tinuidade da comunicao, a imperativa, em que o signotransmite uma injuno, a metalingustica, em que os si-gnos servem para designar outros signos e, finalmente, aesttica, em os signos se usam para suscitar a ateno sobreo modo como so usados, fora do falar comum.

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  • Captulo 2

    Histria da semitica

    2.1 Os Antigos: gregos e os esticos. Ga-leno.

    Apesar da semitica ser ainda uma muito jovem cincia, a refle-xo sobre o signo e a significao to antiga quanto o pensa-mento filosfico. Testemunho dessas investigaes o dilogoplatnico Crtilo, que tem precisamente por subttulo Sobre ajusteza natural dos nomes,1 assunto que Scrates, Hermgenese Crtilo trataro de investigar. A questo que a se coloca aostrs personagens muito simples: as palavras nomeiam as coisasmerc de um acordo natural com os entes, ou, pelo contrrio, aatribuio dos nomes apenas fruto de uma conveno arbitrria?

    Hermgenes e Crtilo discutem cerca da justeza e exactidodos nomes, Crtilo defendendo que estes existem em conformi-dade com a natureza das coisas; Hermgenes que so resultadode imposio convencional. Scrates, chamado em pleno debate,vai tentar aclarar a questo. Hermgenes quem expe primeira-mente a sua tese, que Scrates comea metodicamente a destruir,obrigando-o a reconhecer que h discursos verdadeiros e falsos,que nomeiam com verdade e com falsidade, e que se tal sucede

    1Plato, Cratyle, 1998, Flammarion, Paris, p. 65.

  • 26 Semitica Geral

    com os discursos, ter tambm de suceder com as suas mais pe-quenas partes, as palavras. Hermgenes bem argumenta com adiversidade das lnguas, constatando que os gregos das diversascidades nomeiam de formas diferentes, o mesmo sucedendo comos brbaros, e que portanto o nome atribudo coisa num determi-nado momento o seu nome verdadeiro; mas Scrates habilmenteleva-o a concordar que as coisas e as aces possuem uma certarealidade independente do homem e uma identidade consigo pr-prias. Ora enunciar uma espcie de acto, e portanto pode serpraticado de acordo com a sua natureza prpria, independente-mente de quem nomeia, ou no.

    A tese da convencionalidade dos nomes fica praticamente de-sfeita. Estabelecidas pelo legislador, as palavras so formadasde olhos postos nos objectos, fixando em sons e em slabas onome adequado de cada objecto e sendo tal trabalho supervisio-nado pelo dialctico. Scrates d razo a Crtilo de que h umarelao natural entre os nomes e as coisas que nomeiam e de ques quem presta ateno a essa relao pode dar o nome a umacoisa. Hermgenes porm no est satisfeito; na verdade sente-seconfuso e pede a Scrates alguns exemplos de tais nomes naturaisaos objectos, o que o leva a uma incurso sobre a etimologia dediversas palavras, e tambm sobre o significado de certos sons ouletras, para concluir que todos se adequam naturalmente coisarepresentada.

    Scrates tratar depois de destruir a posio de Crtilo. Porum lado, sendo a formao dos nomes uma arte, de admitir aexistncia de artistas mais ou menos hbeis, e portanto de nomesmais ou menos justos; por outro, como o nome imitao de umobjecto, no o prprio objecto, a possibilidade de erro ao nomear muito real. Depois, o mesmo tipo de anlise etimolgica queserviu para rebater Hermgenes utilizada por Scrates para mo-strar que muitos nomes tm letras que no possuem semelhanacom a coisa representada, e que aqui, no estabelecimento da si-gnificao, intervm necessariamente uma certa conveno. Oraa virtude dos nomes ensinar e instruir, mas aquele que se guia

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  • Histria da semitica 27

    pelos nomes para conhecer as coisas expe-se a grandes riscos,precisamente porque a sua total semelhana com as coisas nofoi demonstrada; portanto a nica via para o conhecimento exa-minar as coisas por si mesmas, no pelos seus nomes. Emboraesboando incipientemente aqui a teoria das ideias, Scrates noexpe propriamente uma doutrina, e no chega sequer a demo-ver Crtilo da sua posio. O papel do nome na cognoscibilidadedos entes vai ser tratado na VII Carta, um pequeno texto ondePlato confessa as razes do seu desencanto pela vida poltica, eexplica o que o levou a no mais tentar intervir activamente nela,dedicando-se em vez disso filosofia. A passagem em questo um violento manifesto contra a escrita, fundamentada com ar-gumentos gnosiolgicos. H quatro instrumentos por meio dosquais se pode conhecer tudo o que existe: o nome, a definio,a imagem, e o prprio conhecimento; em quinto lugar Plato co-loca a coisa em si. O conhecimento procede por graus, do nomepara a coisa em si; e para ilustrar o funcionamento deste processo,Plato dar o clebre exemplo do crculo.2

    De qualquer forma o importante aqui a reter a posio deextrema fragilidade e subalternidade conferida linguagem. Ne-nhum homem que no tenha de algum modo atingido o quartograu do saber pode reclamar-se do conhecimento da coisa em si.Por tudo isto, o homem so no tentar exprimir os seus conheci-

    2Crculo ( eis uma coisa expressa, cujo nome o mesmo que acabo de

    pronunciar. Em segundo lugar, a sua definio composta de nomes e verbos:o que tem as extremidades a uma distncia perfeitamente igual do centro. Tal a definio do que se chama redondo, circunferncia, crculo. Em terceirolugar o desenho que se traa e que se apaga, a forma que se molda no torno eque se acaba. Mas o crculo em si, com o qual se relacionam todas estas re-presentaes, no prova nada de semelhante, pois outra coisa completamentediversa. Em quarto lugar, a cincia, a inteligncia, a verdadeira opinio, relati-vas a estes objectos, constituem uma classe nica e no residem nem em sonspronunciados, nem em figuras materiais, mas sim nas almas. evidente quese distinguem, quer do crculo real, quer dos trs modos que referi. Destes ele-mentos a inteligncia que, por afinidade e semelhana, mais se aproxima doquinto elemento; os outros afastam-se mais. Plato, Cartas, Lisboa: EditorialEstampa, 1980, pp. 74-75.

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  • 28 Semitica Geral

    mentos atravs desse instrumento to frgil que a linguagem,e menos ainda nessa forma indelvel que a escrita. que onome no algo que pertena s coisas com permanncia, antesestas podem ser denominadas pelos homens ad libitum. Este ar-gumento serve igualmente para a definio, que composta denomes e de verbos, pois nada tem de suficientemente slido.3

    Todas estas formas de conhecimento e dela os nomes so asmais humildes so de molde a enredar o homem de perplexi-dade em perplexidade; e muita da confuso que observamos nopensamento dos filsofos pode ser resultado da obscuridade de-stes quatro elementos.4

    Eles so, todavia, a nica forma de aceder ao conhecimento, ePlato admite que depois de um longo esforo de ascese a verdadepode, resplandecente, revelar-se ao homem.5

    Aristteles no Peri hermeneias resolve o problema que ocu-para Plato no Crtilo, definindo o nome como som vocal quepossui uma significao convencional, sem referncia ao tempo edo qual nenhuma parte possui significao quando tomada sepa-radamente.6

    Para alm de ser clarssimo que o universo da significao ul-trapassa o das palavras, tese to segura acerca da convencionali-dade radica na teoria aristotlica da linguagem, exposta tambmno Peri hermeneias.7

    O signo lingustico, uma categoria restrita no universo mais3ibidem, p. 76.4ibidem, p. 76.5ibidem, p. 77.6Aristteles, 1946, De linterprtation, trad. de Tricot, J., Bibliothque des

    Textes Philosophiques, Librairie Philosophique Jean Vrin, Paris, p. 80.7Atente-se na seguinte definio aristotlica sobre a natureza do nome:

    Les sons mis par la voix sont les symboles des tats de lme, et les motscrits les symboles des mots mis par la voix. Et de mme que lcriture nestpas la mme chez tous les hommes, les mots parls ne sont pas non plus lesmmes, bien que les tats de lme dont ces expressions sont les signes imm-diats soient identiques chez tous, comme sont identiques aussi les choses dontces tats sont les images. Aristteles, De linterprtation, Paris: LibrairiePhilosophique Jean Vrin , 1946, p. 78.

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  • Histria da semitica 29

    vasto das coisas que significam, smbolo dos estados de alma,estados esses que por sua vez so imagens das coisas. Estas l-timas, so iguais a si prprias, da mesma forma que os estadosde alma de que as palavras so signos so, tambm, idnticos emtodos os homens. S a palavra, escrita ou vocalizada, objecto devariaes face aos outros dois plos fixos da significao.

    Este esboo de uma teoria da linguagem levanta mais proble-mas que aqueles que resolve. De facto, apenas esclarece qual anatureza da significao, convencional, no explicando qual a re-lao entre as coisas e os estados de alma, nem como so taisentidades psquicas idnticas para todos os homens. O valor dasua teoria da linguagem, mais do que constituir um produto aca-bado, que j equaciona a relao a trs termos signos - referentes- interpretantes ou significados, e este tringulo, ainda que cominfindveis variaes terminolgicas, que continuar a alimentara reflexo semitica at aos nossos dias.

    Mas aos esticos que cabe, sem margem para dvidas, omrito de terem criado a teoria da significao mais elaborada daantiguidade. Consideram signo o objecto que pe em relao trsentidades: um significante ou som, um significado ou lekton, que uma entidade imaterial, e o objecto que uma realidade exte-rior referida pelo signo. O lekton , segundo Todorov, no umconceito, mas a capacidade de um significante evocar um objecto.Por isso os brbaros ouvem o som e vem o homem, mas igno-ram o lekton, ou seja, o prprio factor de esse som evocar esseobjecto. O lekton a capacidade do primeiro elemento designar oterceiro.8

    Os esticos distinguem ainda os lekta completos, as propo-sies, dos incompletos, as palavras. Alm do signo directo, tere-mos smbolos, ou signos indirectos quando um lekton evoca outrolekton, e estes tanto podem ser lingusticos (relao entre duasproposies) como no lingusticos (sucesso de dois aconteci-mentos).

    No sculo II Galeno vai originar uma outra tradio no estudo8Tzvetan Todorov, Teorias do Smbolo, Edies 70, Lisboa, 1979, p. 19.

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  • 30 Semitica Geral

    dos sinais ou sintomas, a da semitica mdica, disciplina aindahoje em uso nalguns currculos universitrios, sob o nome de se-miologia clnica. Mdico famoso em Prgamo, e mais tarde emRoma, constitui a fonte mais importante para conhecer as esco-las mdicas da antiguidade, pois embora afirmando no perte-ncer a nenhuma, apre senta com notvel clareza nos seus tratadoso estado dos debates entre empricos, dogmticos e met-dicos. Sendo difcil situ-lo numa das escolas, certo que aceitacomo sua a diviso da medicina em trs grandes ramos: a semi-tica, a teraputica e a higiene. arte do mdico so fundamentaisas operaes semiticas, que actuam por observao e rememo-rao, porque o signo deve ser interpretado por aquele que podeatribuir-lhe significado.9

    A semitica pois, de todas as competncias que tocam aomdico, a primeira e mais fundamental, porque dela depende apassagem aos outros ramos e saberes da medicina.

    Quanto disciplina propriamente dita, Galeno diz que encerraduas vertentes, o diagnstico dos fenmenos presentes e o pro-gnstico dos fenmenos futuros; e isto f-lo a semitica, arte to-talmente emprica, recorrendo observao e memria. Signospara o mdico so todos os sintomas de doena, que Galeno definecomo algo contra a natureza.10 H depois trs tipos de sintomas.Diagnsticos quando, a partir dos sintomas, se declara um estado;prognsticos quando, a partir de certos signos, o mdico prev oque se vai passar; e teraputicos quando a observao dos sinaisprovoca a rememorao de um tratamento.

    Galeno tem fundamentalmente uma preocupao semntica,j que inquire to s pela significao dos sintomas, mas esta

    9Mais la connaissance qui est dans lme, par laquelle le mdecin voit

    des signes, soigne et prend des precautions hyginiques. Galien, Esquisseempirique, Traits philosophiques & logiques, Paris: Flammarion, 1998, p.101.

    10". . . lune quelconque des choses contre nature comme une couleur, une

    tumeur, une inflammation, une dyspne, un refroidissement, une douleur, unetoux et dappeler affection ou maladie le concours de ces symptmes. ibi-dem, p. 104.

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  • Histria da semitica 31

    exige, como ele muito bem nota, tambm uma sintctica, por-que os mesmos sintomas acompanham vrias doenas, pelo queo bom diagnstico passa antes de mais por saber olhar formacomo tais sintomas se conjugam. Por isso sintctica confere umpapel to importante que s um total domnio dela permite passarcom sucesso dimenso semntica dos sintomas. A ordem dossintomas, comuns e particulares, interessa tanto ao diagnsticocomo ao prognstico, pois tambm neste ltimo caso um mesmosintoma verificado no incio ou termo de uma doena significarde formas diferentes.11

    De resto, o mesmo sucede na teraputica. Pela gramtica dossinais se pode decidir da adequabilidade de uma terapia, algunstratamentos, em geral eficazes, no convindo de forma alguma acrianas, velhos, ou pacientes muito debilitados.

    2.2 Os Medievais: Agostinho, Bacon, Hi-spano, Fonseca e Joao de S. Toms

    Santo Agostinho passar para a histria como o autor da maisbem conseguida sntese do saber do mundo antigo e, no campo dasemitica, como o impulsionador de uma tendncia o alegori-smo alicerce da mundividncia do homem medieval pelo menosat ao sculo XVII. certo que Agostinho exclusivamente mo-vido por um interesse religioso, mas este leva-o a tocar os maisdiversificados campos do saber humano, incluindo a filosofia dalinguagem, razes que levaram Todorov a defender, e com razo,ser ele o primeiro autor a apresentar uma verdadeira teoria semi-tica. Embora com afloraes em muitos outros escritos, as obras

    11- Si quelquun demande ce quun nez aigu, des yeux creux, des batements

    aux tempes signifient pour le futur, nous dirons que, sils adviennent dans lecas dune maladie fortement chronique signifient un dommage lger, mais silsadviennent au principe, ils signifient un danger de mort trs court terme.ibidem, p. 107.

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  • 32 Semitica Geral

    mais importantes para conhecer a sua teoria da linguagem so DeMagistro e De Doctrina Christiana.

    No dilogo De Magistro comea por estabelecer o estatutodo signo: as palavras so sinais das coisas; nem todos os sinaisso palavras; e no podem ser sinais coisas que nada significam.O problema, aqui em disputa, gnosiolgico: podem as realida-des ensinar-se por meio de sinais? Agostinho conclui que no.Em primeiro lugar, porque o sinal sempre inferior coisa signi-ficada (excepto em termos axiolgicos); depois, porque os sinaisso apreendidos pela considerao das realidades, e no o contr-rio. Com efeito, quando me dado um sinal, se ele me encontraignorante da coisa de que sinal, nada me pode ensinar; e se meencontrar sabedor, que aprendo eu por meio do sinal? ... Maisse aprende o sinal por meio da realidade conhecida do que a pr-pria realidade por um sinal dado... uma vez conhecida a realidademesma que se significa, que ns aprendemos a fora das palav-ras, isto , a significao escondida no som; bem ao contrrio depercebermos essa realidade por meio de tal significao.12

    No mestre, sendo um texto de cariz religioso e marcado poruma negatividade ou pessimismo semiolgico, vemos j surgir adimenso comunicativa dos processos de significao, que serretomada com maior flego em De Doctrina.

    Este, sem dvida o texto mais importante, um tratado dehermenutica que visa estabelecer regras para entender e inter-pretar as Sagradas Escrituras, e composto por quatro livros, dosquais o II exclusivamente dedicado aos signos. Santo Agostinhoacaba a fazer semitica por via das suas preocupaes teolgicas.Uma vez que toda a escritura um conjunto de signos escritos, de sumo interesse conhecer os signos que ajudem a aclarar o seusentido. Da que o factor de maior originalidade do tratado seja oenquadrar das questes hermenuticas no quadro epistemolgicomais vasto de uma teoria geral do signo.

    Logo de incio, a inverso da doutrina do De Magistro evi-12Agostinho de Hipona, De Magistro, in Opsculos Selectos de Filosofia

    Medieval, Braga: Faculdade de Filosofia, 1984, p. 67.

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  • Histria da semitica 33

    dente,13 os signos no so j vistos como instrumentos de utili-dade duvidosa, mas pelo contrrio meio por excelncia de apren-dizagem e expresso. Signo continua a ser tudo aquilo que si-gnifica, definindo-o Agostinho como qualquer realidade material(de outra forma no produziria espcies) capaz de apresentar umaoutra realidade distinta de si ao intelecto, estando o signo numarelao de substituio com a coisa significada.14

    Os signos dividem-se depois em naturais e convencionais. Na-turais so os que involuntariamente significam, assim como ofumo sinal de fogo, a pegada sinal do lobo; convencionais osque foram institudos pelo homem com o fim preciso de repre-sentar, e destes, os mais importantes so as palavras. Aqui, novadiviso. Os signos convencionais podem ainda ser prprios oumetafricos. Prprios so-no quando denotam as coisas para queforam institudos; metafricos ou translata quando as coisas quese denominam com o seu nome servem para significar uma outracoisa.15

    O signo convencional, aquele que interessa a Agostinho nombito do De Doctrina, depois objecto de uma segunda e nomenos importante definio: Os signos convencionais so os si-gnos que mutuamente trocam entre si os viventes para manifestar,na medida do possvel, as moes da alma, como as sensaes eos pensamentos.16 Todorov acentuou bem a diferena entre estasduas definies; ela que o leva a considerar Agostinho o au-tor do primeiro trabalho propriamente semitico, porque ambas

    13Omnis doctrina vel rerum est vel signorum, sed res per signa discuntur.

    Agostinho de Hipona, De doctrina cristiana, Biblioteca de Autores Cristianos,Madrid: La Editorial Catolica, 1969, p. 58.

    14Signum est enim res, praeter speciem quam ingerit sensibus, aliud aliquid

    ex se faciens in cogitationem venire. ibidem, p. 96.15ibidem, p. 110.16

    Data vero signa sunt, quae sibi quaeque viventia invicem dant ad demon-strandos, quantum possunt, motus animi sui, vel sensa, aut intellecta quaelibet.Nec ulla causa est nobis significandi, id est signi dandi, nisi ad depromendumet traiiciendum in alterius anumum id quod animo gerit is qui signum dat.ibidem, p. 98.

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  • 34 Semitica Geral

    so particularmente ricas. A primeira considera a relao entreos signos e os seus objectos, e portanto move-se no mbito dasignificao; a segunda acentua a relao entre locutor e auditor(relao essa que, num contexto diferente, j est presente no DeMagistro) mediada por signos, e portanto insere-se numa perspec-tiva comunicacional. A instncia sobre a dimenso comunicativa original: no existia nos textos dos Esticos, que constituamuma pura teoria da significao, e fora muito menos acentuadapor Aristteles, que falava, certo, de estados de esprito, por-tanto, dos locutores, mas que deixava completamente na sombraesse contexto de comunicao.17

    Outra constatao importante em De Doctrina que por maisvasto que seja o universo dos signos, estes cruzar-se-o inevita-velmente, mais cedo ou mais tarde, com a linguagem18 e esta,embora no explicitamente apontada, ser provavelmente uma dasrazes que o levam a admitir como signos privilegiados as pala-vras (verberato), de que so signo as letras (littera) e qualquerforma de escrita.

    De Doctrina um texto fundador, no s, como j o explici-tara Todorov, por insistir nas dimenses significativa e comunicacio-nal da semitica, mas tambm porque confere impulso decisivo aoalegorismo universal, forma que configura todo o saber medievale renascentista at meados do sculo XVII.

    Dois aspectos h a salientar na densa floresta de signos queo homem medievo habita. A pansemiotizao selvagem nosentido em que tudo fala, e os significados so atribudos deforma arbitrria recorrendo ao saber antigo e ao conhecimentoenciclopdico das coisas a regra que opera aqui que as coisasvisveis, por semelhana, revelam as invisveis; mas o estabeleci-mento dessas correlaes afigura-se sempre algo delirante. De-

    17ibid., p. 36.18

    sed innumerabilis multitudo signorum, quibus suas cogitationes hominesexerunt, in verbis constituta est. Nam illa signa omnia quorum genera brevi-ter attigi, potui verbis enuntiare; verba vero illis signis nulo modo possem.ibidem, p. 100

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  • Histria da semitica 35

    pois, tanto as atribuies de significado como as exegeses tm umfundamento teolgico: o mundo um conjunto de signos sabia-mente dispostos pela mo de Deus e o homem seu intrprete.

    Segundo Eco,19 a teoria dos quatro sentidos circulou durantetoda a Idade Mdia: literal, alegrico, moral e analgico. Todotexto possua, partida, estas quatro significaes, e foi esta teoriainterpretativa que alimentou o gosto medieval pelo supra-sentidoe a significao indirecta. A origem do alegorismo, diz, radicaem Clemente de Alexandria, que prope a complementaridade deleituras entre Novo e Velho Testamento, como forma de subtraireste ltimo desvalorizao a que os gnsticos o tinham votado.Orgenes aperfeioa depois estas teses e vai distinguir entre sen-tido literal, moral e mstico. A sua hermenutica tende a encararas personagens e acontecimentos do Velho Testamento como ti-pos, prefiguraes e antecipaes do Novo, inaugurando um tipode interpretao mstica em que h coisas e acontecimentos quepodem ser assumidos como signos ou ( e o caso da histria sa-grada ( podem ser sobrenaturalmente dispostos para que sejamlidos como signos.20

    Agostinho contribuiu decisivamente para esta promoo daproliferao de sentidos em De Doctrina, trabalho onde prope,como j vimos, uma hermenutica do texto bblico. Isto sucedepor duas razes: ao levantar o problema da traduo o Velho Te-stamento no foi escrito em latim mas hebraico, que ele no l Agostinho sugere, para dirimir obscuridades, tanto a comparaode vrias tradues como a ligao dos trechos em causa ao con-texto anterior ou posterior; alm disso, desconfia dos hebreus quepoderiam ter corrompido o texto original por dio verdade.

    Explica Eco: Agostinho diz que devemos pressentir o sen-tido figurado sempre que a Escritura, mesmo se diz coisas queliteralmente tm sentido, parece contradizer a verdade da f, oudos bons costumes. Madalena lava os ps a Cristo com unguen-

    19Eco, Umberto, 1986, A Epstola XIII e o Alegorismo Medieval, CruzeiroSemitico no 4.

    20ibidem.

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  • 36 Semitica Geral

    tos olorosos e enxuga-os com os seus cabelos. possvel que oRedentor se submeta a um ritual to pago e lascivo? Claro queno. Portanto a narrao representa algo de diferente. Mas deve-mos pressentir o segundo sentido tambm quando a Escritura seperde em superfluidade ou pe em jogo expresses literalmentepobres.21

    ltima regra, portanto: deve-se suspeitar de sentido segundotambm para as expresses semanticamente pobres, nomes pr-prios, nmeros e termos tcnicos, que esto, evidentemente, poroutra coisa e daqui surge o gosto pela hermenutica numerol-gica e a pesquisa etimolgica.

    Claro que tendo por base tais pontos de partida, muito rapi-damente a pansemiose metafsica extravasa os limites da exegesebblica e o prprio mundo passa a ser olhado como colectnea desmbolos portadores de um excesso de sentido que urge decifrar.A leitura simblica deixa de ser exercida apenas sobre a Bblia,e passa a ser aplicada directamente sobre o mundo que rodeia ohomem este mundo visto como uma imensa colectnea de sm-bolos abertos interpretao, em que as coisas visveis possuemsemelhana e analogia com as invisveis. O alegorismo univer-sal tpico da Idade Mdia no mais, portanto, do que uma visosemiotizada do universo, em que cada efeito tomado como si-nal da sua causa, e portanto como signo aberto exegese mstica.O alegorismo universal representa uma maneira fabulosa e aluci-nada de olhar para o universo, no por aquilo que aparece, mas poraquilo que poderia sugerir.22

    Consequncia mais visvel de tal mundividncia o modelognosiolgico medievo que parte do comentrio, da ruminao, datentativa de passar da parte ao todo, do visvel ao invisvel, temaa que Michel Foucault dedicou belas pginas.23

    O detalhado comentrio de Bocio (480-524) ao De Interpre-tatione aristotlico influenciou toda a Idade Mdia no que respeita

    21ibidem.22ibidem.23Foucault, Michel, As palavras e as coisas, Lisboa: Edies 70, 1966.

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  • Histria da semitica 37

    teoria dos sinais, mas aps Agostinho, o mais prximo que seesteve de criar uma semitica na Idade Mdia foram os trabalhosde lgica sobre a suppositio (que uma teoria da referncia) dossculos XII e XIII.24

    Desenvolve-se por esta altura uma srie de gramticas especu-lativas preocupadas com a referncia e a semntica, isto , o mo-dus significandi, a forma como o signo est por, e significa umaoutra coisa que no ele prprio.

    A Roger Bacon (1214-1293) atribui-se o primeiro tratado especi-ficamente dedicado aos signos, De Signis, onde elabora uma clas-sificao de todos os tipos de signo, e aparece pela primeira veza significao considerada no seu carcter extensional, dirigida ares extra animam.25

    O debate medieval sobre a suppositio e a significao passapor Abelardo, Alberto Magno, Guilherme de Shyreswood, DunsEscoto, Ockham, Joo Buridan e outros lgicos deste perodo.Mas passa tambm pelos escolsticos portugueses que do sculoXII ao Renascimento investigaram e com assinalvel sucesso rigorosamente os mesmos temas.

    Pedro Hispano (1220-1277, Papa Joo XXI) lgico e mdicode renome, ficou famoso com as Summulae Logicales, onde con-sidera as diferentes classes de signos, a significao e a suppo-sitio.26 Petrus Hispanus ficou muito justamente clebre por esteseu tratado de lgica onde esboa uma a teoria da significao

    24. BROWN, Stephen, Sign Conceptions in Logic in the Latin Middle Ages,

    in Semiotics, A Hand-Book on the Sign-Theoretic Foundations of Nature andCulture, vol. 1, 1997, Walter de Gruyter, New York, p. 1037; e ainda sobre asuppositio KNEALE, William & Martha, O Desenvolvimento da Lgica, 1972,Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa.

    25. DASCAL, Marcelo & DUTZ, Klaus, The Beginnings of Scientific Se-

    miotics, Semiotics, A Hand-Book on the Sign-Theoretic Foundations of Natureand Culture, vol. 1, 1997, Walter de Gruyter, New York, p. 750.

    26. Pedro divide a suppositio em discreta e communis; e esta em naturalis e

    accidentalis; a acidental, por sua vez, em simplex e personalis; esta ltima emdeterminata e confusa; e a confusa em necessitate signi e necessitate rei. Cf.KNEALE, William & Martha, O Desenvolvimento da Lgica, 1972, FundaoCalouste Gulbenkian, Lisboa, p. 268.

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  • 38 Semitica Geral

    e aborda a suppositio que foi o manual seguido na maioria dasescolas e universidades at ao sculo XVI, e de tal forma popu-lar que contou com 260 edies no perodo compreendido entre1474 e 1630.27 Signo verbal a definido como vox significativaad placitum, a qual ad voluntatem instituentis aliquid represen-tat, distinguindo-se assim da vox non-significativa que audituinihil representat, ut buba, e ainda dos signos naturais, como osgemidos ou o ladrar de um co. As unidades significativas podemdepois ser simples (nomes e verbos) ou compostas (orao e pro-posio). O significado a representao de uma coisa por meiode um som vocal convencional; de forma que o signo verbal re-sulta formado por um som vocal significante, e uma representaoou significado.

    A suposio constituda pelo facto de um termo estar no lu-gar de uma coisa, est acceptio termini substantivi pro aliquo. porque formado de vox e significatio que o signo pode referir-sea outra coisa sob um qualquer aspecto, supponere. Significar, funo da vox; estar por, funo do signo composto por vox esignificatio, distinguindo-se assim a significao da coisa signi-ficada.28

    Tambm Pedro da Fonseca, nas Instituies Dialcticas, seocupar da suppositio, e dos tipos e divises de signos, e ocuparalgumas pginas com o tema.29 Fonseca distingue trs gneros denomes e de verbos: construdos pela mente, pela voz, e pela esc-

    27. Segue-se de perto, nesta exposio, o trabalho de Augusto PONZIO,

    La semantica di Pietro Hispano, in Linguistica Medievale, Adriatica Editrice,1983, Bari.

    28- Differunt autem suppositio et significatio, quia significatio est per impo-

    sitionem vocis ad rem significandam, suppositio vero est accepio ipsius terminiiam significantis rem pro aliquo. Ut cum dicitur homo currit, iste terminushomo supponit pro Socrate vel pro Platone, et sic de aliis. Quare significatioprior est suppositione. Neque sunt eiusdem, quia significare est vocis, sup-ponere vero est termini iam quasi compositi ex voce et significatione. Ergosuppositio non est significatio, Ibidem, p. 134.

    29- FONSECA, Pedro, Instituies Dialcticas, trad. Joaquim Ferreira Go-

    mes, Instituto de Estudos Filosficos, 1964, Universidade de Coimbra.

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  • Histria da semitica 39

    rita; sendo os da voz signo dos que esto na mente; e os escritossigno dos que esto na voz. Tais signos podem ainda dividir-se emformais, isto , imagens das coisas significadas gravadas no inte-lecto; e instrumentais, ou seja, coisas que, postas frente daspotncias cognoscentes, conduzem ao conhecimento de outra.30Os sinais podem ainda ser naturalibus ou ex instituto, sendo osprimeiros os que, pela sua natureza, tm a propriedade de signi-ficar algo, como o riso sinal de alegria, e o gemido de dor; e ossegundos aqueles que significam por imposio, como as palav-ras, ou por um costume amiudemente repetido.

    Mas Joo de So Toms, nascido em Lisboa em 1589, quemlevar estas divises e classificaes ao mximo detalhe, sendoconsiderado por Deely31 o autor do primeiro tratado de semiticade que h notcia.

    O Tratado dos Signos,32 que ocupa perto de centena e meia depginas do Curso Filosfico, apresenta como inovao mais ra-dical o facto de pela primeira vez encarar a semitica como umaproblemtica autnoma da qual todos os outros tipos de conheci-mento dependem: as modelizaes do mundo dependem do usoadequado de signos formais, enquanto os domnios que se pren-dem com a intersubjectividade e com as formas de comunicaoesto dependentes dos signos instrumentais. Para Joo de So To-ms a semiose condio prvia interaco com o mundo e, jnum patamar superior de percepo, comunicao entre indiv-duos.

    Como "...in universum omnia instrumenta quibus ad cogno-scendum et loquendum utimur, signa sunt, ideo, ut logicus exacte

    30- Ibidem, p. 35

    31. Cf. DEELY, John, Tractatus De Signis The Semiotic of John Poin-

    sot, 1985, University of California Press, Berkeley; e Introduo Semitica,Histria e Doutrina, 1995, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa.

    32. Acompanho de perto nesta exposio a Introduo edio do Tractatus

    de Signis que publiquei em 2001. TOMS, Joo de So, Tratado dos Signos,2001, trad., introd. e notas de Anabela GRADIM, Imprensa Nacional Casa daMoeda, Lisboa.

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  • 40 Semitica Geral

    cognoscat instrumenta sua, oportet quod etiam cognoscat quidsit signum"constitui o cerne do programa de estudos que orientaa explorao do Tratado, a semitica tomada como cincia comcarcter propedutico relativamente a todas as outras. Consequen-temente, Joo de So Toms acaba por identificar, por via dossignos formais, toda a vida psquica com processos semisicos.

    Por outro lado, fruto da importncia que atribui semitica, notvel a extenso e o vigor da sua preocupao semiolgica,e esta tambm uma inovao radical inteiramente da lavra deJoo de So Toms. O Tratado dos Signos ocupa perto de centenae meia de pginas do Curso Filosfico, facto que s assume odevido relevo se se recordar que, pouco antes, Pedro da Fonseca,nas Instituies Dialcticas, dedica apenas perto de cinco pginasa analisar o signo e os problemas com ele atinentes.

    A primeira preocupao do Tratado dos Signos, seguindo alisuma terminolgia j estabelecida na escolstica peninsular, taxo-nmica. Os tipos e qualidades de signos segundo Joo de SoToms so analisados no segundo artigo das Smulas, no incioda Ars Logicae. Signo definido como aquilo que representa potncia cognoscente alguma coisa diferente de si, frmula queencerra uma crtica explcita definio agostiniana de signo, aqual ao invocar uma forma (species) presente aos sentidos, se re-fere ao signo instrumental, mas no ao formal, que interior aocognoscente e portanto nada acrescenta aos sentidos. assim queno domnio da significao, aquele onde surgem os diversos tiposde signos, s se pode operar formalmente e instrumentalmente,porque significar tornar alguma coisa distinta de si presente aointelecto, e desta forma o acto de significar exclui a representao porque a uma coisa "significa-se"a si prpria.

    nesta crtica explcita de Agostinho que o projecto de Joose vir a assumir como uma proposta semiolgica suficientementeabrangente para ser considerada moderna, pois pela primeira vezse intenta fornecer uma explicao completa dos fenmenos se-miticos. Ao considerar estas duas e to distintas espcies de si-gnos o trabalho do Doutor Profundo contempla, simultaneamente,

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  • Histria da semitica 41

    a vertente da significao aquilo pelo qual o signo significaalgo, e a forma como nos permite estruturar a experincia hu-mana , e a da comunicao enquanto veculos que servema tornar o objectivo e o subjectivo intersubjectivo.33 Ao estabe-lecer que nem s aquilo que representa outro de forma sensvel signo, consegue-se unir na mesma ordem de fenmenos semi-ticos palavras e ideias, vestgios e conceitos, os quais servem, re-spectivamente, para comunicar e para estruturar uma imagem domundo.

    Joo de So Toms divide e classifica os diversos tipos de si-gnos, que se situam no domnio da significao, adoptando duasperspectivas distintas. Da perspectiva do sujeito cognoscente, en-quanto o signo encarado na sua relao ao intelecto que conhece,divide-se o signo em formal e instrumental. O signo formal constitudo pela apercepo, que interior ao cognoscente, no consciente e representa algo a partir de si. Tem portanto a capaci-dade de tornar presentes objectos diferentes de si sem primeiro terele prprio de ser objectificado. O signo instrumental o objectoou coisa que, exterior ao cognoscente, depois de conscientementeconhecido lhe representa algo distinto de si prprio.

    A segunda perspectiva adoptada por Joo de So Toms paraclassificar os signos o ponto de vista em que estes se relacionamao referente. Desta perspectiva, dividem-se os signos em naturais,convencionais e consuetudinrios. O signo natural o que pelasua prpria natureza significa alguma coisa distinta de si, e isto in-dependentemente de qualquer imposio humana, razo pela qualsignifica o mesmo junto de todos os homens. O signo conve-ncional o que significa por imposio e conveno humana, eassim no representa o mesmo junto de todos os homens, mas ssignifica para os que esto cientes da conveno. O signo con-suetudinrio o que representa em virtude de um costume muitas

    33. Recorde-se que Todorov considerava estas duas caractersticas a pedra

    de toque de um projecto semitico que se distinguisse do tratamento dado aotema pelos antigos.

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  • 42 Semitica Geral

    vezes repetido, mas que no foi objecto de uma imposio pblicaexplcita.

    Depois das definies introdutrias dadas nas Smulas, Joode So Toms passa a explicar em que consistem as relaes secun-dum esse / secundum dici, que utiliza para analisar os signos, co-nceitos estes que se filiam directamente na doutrina aristotlicasobre o tema. Contra os nominalistas e os que defendem ques existem relaes secundum dici, isto , relaes que so for-mas extrnsecas aplicadas s coisas como numa comparao, Joode So Toms vai sustentar que j Aristteles estabelecera a exi-stncia de relaes secundum esse, isto , relaes cujo carcterfundamental ser para outra coisa, no maneira de uma deno-minao extrnseca, mas enquanto trao essencial do seu prpriomodo de existir. assim que os termos cuja substncia a deserem ditos dependentes de outros ou a eles referenciveis so re-lativos secundum esse. Pelo contrrio, as relaes secundum diciso aquelas onde subsiste alguma coisa de relativamente indepen-dente absoluto entre os relacionados, e portanto a totali-dade do seu ser no ser para outro; ao passo que nas relaessecundum esse todo o seu ser consiste nesse ser para outro, comosucede por exemplo, no caso da semelhana ou da paternidade,pois toda a essncia de tais relaes se orienta para o termo, deforma que desaparecendo o termo, a prpria relao no subsi-ste; mas quando existe, possui realidade ontolgica autnoma eprpria, isto , independentemente de ser ou no conhecida.

    Para Joo de So Toms, a relao uma categoria que sedistingue das restantes formas. Em primeiro lugar, est mais de-pendente e requer com maior necessidade o fundamento, porque movimento de um sujeito em direco a um termo, enquantoas outras categorias retiram a sua entitatividade e existncia dosujeito. Depois, a relao no depende nem pode ser encontradanum sujeito da mesma forma que as outras categorias, mas de-pende essencialmente do fundamento que a coordena com umtermo e a faz existir "como uma espcie de entidade terceira".A relao transcendental ou secundum dici portanto uma forma

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  • Histria da semitica 43

    assimilada ao sujeito que o conota com algo extrnseco, ao passoque na ontolgica ou segundo o ser, a essncia da relao serrelao.

    Outra categoria importante a diferena entre relaes reaise de razo, e aqui chegado que Joo de So Toms lana fi-nalmente luz sobre o mecanismo, a lgica das relaes, que lhevai permitir dar conta de todos os tipos de signos que j enume-rou. A diviso entre relaes reais e de razo s encontrada nasrelaes segundo o ser, diz. As relaes segundo o ser podemento ser reais ou de razo, sendo que, no caso de uma relaosecundum esse real e finita nos encontramos perante uma relaocategorial.

    O signo, como bem se ilaciona da prpria definio, pertence ordem do relativo. Mas no s. Preenche, alm disso, todas ascondies para ser relativo secundum esse, e ao inseri-lo nestacategoria de seres cuja essncia orientarem-se para um termo,que Joo descobre uma forma satisfatria de explicar o seu esta-tuto ontolgico, sem comprometer as posies gnosiolgicas emetafsicas que, como bom tomista, perfilha. Se nos relativossecundum esse se podem dar tanto relaes reais como relaesde razo, ento as relaes segundo o ser so a estrutura ideal paraabranger tanto os signos naturais como os convencionais. Une-seassim numa mesma categoria as ordens opostas do que real e doque de razo, que precisamente a forma como, funcionando nasua vertente significativa e comunicativa, os signos se entrelaamcom o mundo.

    o facto de a ordem das relaes secundum esse unir em sitanto o que real como o que de razo, que vai permitir a ex-plicao cabal de todos os sistemas e tipos de signos, porque si-gnos h que constituem com os seus objectos relaes reais, casodos naturais; e outros relaes de razo, caso dos convencionais.Ora todos so relaes segundo o ser isto , a sua essncia serem para outra coisa.

    Estabelecido este mecanismo, j se pode afirmar que a relaodo signo natural ao objecto necessariamente real, e no de razo,

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  • 44 Semitica Geral

    porque fundada em algo real, proporo e conexo com a coisarepresentada assim se explica que a pegada do lobo representeantes o lobo que a ovelha embora depois ao representar po-tncia, objectificando-se, o signo estabelea com ela uma relaode razo.34 Esta dupla relao do signo, ao referente e ao inte-lecto que conhece, oferece razo para equvocos, diz Joo de SoToms, pois no poucos autores, ao verificarem que a apreensi-bilidade do signo uma relao de razo julgam que a prpriarazo do signo simplesmente uma relao de razo. Mas j naligao dos signos convencionais ao objecto, essa relao , semqualquer dificuldade, de razo, fundada na instituio pblicade uma conveno.

    No final do Livro I, no resumo e apanhado geral que se segue atodos os captulos, Joo de So Toms insiste fundamentalmentena importncia da definio de signo, nas condies requeridaspara que alguma coisa seja signo, e como distinguir entre um si-gno e outros manifestativos que no o so caso da imagem, daluz que manifesta as cores ou do objecto que se manifesta a si me-smo: que o signo sempre inferior ao que designa, porque nocaso de ser igual ou superior destruiria a essncia do signo. poresta razo que Deus no signo das criaturas, embora as repre-sente, e uma ovelha nunca signo de outra ovelha, embora possaser sua imagem. Assim, as condies necessrias para que algoseja signo so a existncia de uma relao para o objecto enquantoalgo que distinto de si e manifestvel potncia; ainda neces-srio que o signo se revista da natureza do representativo; devertambm ser mais conhecido que o objecto em relao ao sujeitoque o apreende; e ainda inferior, mais imperfeito, e distinto, quea coisa que significa.

    34. A realidade de tal relao tem fundas implicaes gnosiolgicas, j que

    nela reside a cognoscibilide dos entes. (. . . ) Para que alguma coisa em siprpria seja cognoscvel, no pode ser simples produto da razo; e que sejamais cognoscvel relativamente a outra coisa, tornando-a representada, tam-bm alguma coisa real no caso dos signos naturais. Logo, a relao do signo,nos signos naturais, real, afirma Joo de So Toms.

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  • Histria da semitica 45

    O Livro II, ou Quaestio XXI, trata no j da natureza do si-gno mas das suas divises. Temas fundamentais dos seis artigosque constituem a Quaestio so a adequabilidade da diviso de si-gno em formal e instrumental; se os conceitos, as espcies im-pressas e o prprio acto de conhecer pertencem categoria dossignos formais; se apropriada a diviso dos signos em naturais,convencionais e consuetudinrios; e se o signo consuetudinrio verdadeiramente um signo, ou pode reduzir-se categoria dosconvencionais.

    No Livro III, o ltimo do Tractatus, Joo de So Toms dedica-se, em quatro questes, a aclarar o estatuto das apercepes e co-nceitos. E o primeiro problema que o ocupa saber se as ape-rcepes de uma coisa presente (intuitiva) e ausente (abstractiva)so distintas. A apercepo intuitiva exige a presena real e fsicada coisa apercebida, no apenas a intencional, devendo o seu ob-jecto encontrar-se extra videntem. Assim, a forma mais comum eadequada de distinguir entre a apercepo intuitiva e abstractiva ,precisamente, a que considera o termo da cognio como ausenteou presente.

    A questo seguinte trata de apurar se pode existir nos sentidosexternos um conhecimento intuitivo de coisas fisicamente ausen-tes, ou seja, se pode ocorrer a uma apercepo abstractiva. Aresposta questo negativa: a apercepo intuitiva exige no sa presena objectiva (enquanto conhecida) do objecto, mas tam-bm a sua presena fsica. Por razes semelhantes, tambm nossentidos externos impossvel encontrar apercepes de coisasfisicamente ausentes.

    Saber se os conceitos reflexivos (aqueles pelos quais o ho-mem conhece que conhece o seu objecto o prprio acto co-gnitivo da potncia) e os conceitos directos (aqueles pelos quaisse conhece algum objecto, sem reflectir sobre o prprio acto deconhecer), se distinguem realmente e, caso a resposta seja afirma-tiva, qual a causa da diferena entre eles, o problema que aseguir ocupa Joo de So Toms. Sobre isto o dominicano defen-der que as potncias intelectivas, mas no as sensitivas, podem

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  • 46 Semitica Geral

    reflectir sobre elas prprias, pois como o intelecto diz respeitouniversalmente a todos os seres, tambm dir, forosamente, re-speito a si prprio.

    A distino entre conceito ultimado e no ultimado pode serencarada de dois pontos de vista. Em geral, diz-se ultimado umconceito que seja termo, isto , aquilo no qual cessa a cognio,onde esta subsiste e se mantm, e no ultimado o conceito atravsdo qual a cognio tende para um termo; adoptando uma perspec-tiva diversa a dos dialcticos e designando exactamente omesmo objecto, chama-se conceito ultimado quele que versa so-bre as coisas significadas (que so termo) e no ultimado ao quese debrua sobre as prprias expresses ou palavras significantes.

    De resto a diferena entre ultimado e no ultimado mera-mente formal, j que no nos encontramos perante uma distinoessencial entre os dois conceitos, mas uma diferena a que Joo deSo Toms chama "pressupositiva", uma vez que se toma no daprpria natureza dos conceitos, mas dos objectos acerca dos quaisversam, que, esses sim, so distintos, sendo um a coisa presentein re, e outro as palavras destinadas a exprimi-la.

    At aqui, as distines so bastante simples. As dificuldadescomeam a surgir quando se trata de apurar se um conceito noultimado da voz, ou seja, uma expresso lingustica, representaapenas a prpria expresso, ou se representa tanto a expressocomo o seu significado, significado esse que, temos de sup-lo, distinto da prpria coisa significada, caso em que estaramosperante um conceito ultimado.

    Em princpio, diz Joo de So Toms, a significao ter, dealgum modo, de ser envolvida no conceito no ultimado, porque"se a voz nuamente considerada como um certo som feito porum animal, evidente que pertence a um conceito ultimado, por-que deste modo considerada enquanto um tipo de coisa, isto ,do modo como a Filosofia trata aquele som". E este ser o pontode vista defendido pelo mestre lisbonense na derradeira questodo Tratado dos Signos, de que a significao est e representadano conceito no ultimado, embora o cognoscente no necessite

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  • Histria da semitica 47

    atingir a convencionalidade da significao, a relao de impo-sio, mas basta que lhe seja representado que tal significaoexiste. o que sucede no caso de um homem ouvindo uma ex-presso cujo significado no compreende, sabendo, todavia, quetal significado existe.

    So portanto os signos veculo nico e fundamental de con-duo do extramental alma, e da prpria alma se inteleccionara si inteleccionando. A investigao semitica de Joo de SoToms, ou inquirio da natureza e essncia dos signos constitui-se como um programa perfeitamente moderno e completo, dandoconta simultaneamente, e depois de estabelecer convenientementeo estatuto ontolgico dos signos, dos processos de comunicao,significao e constituio de uma imagem do mundo. Para talJoo ir estudar as relaes entre os signos e os seus intrpretes(relaes simultaneamente secundum dici e de razo); entre os si-gnos em geral e o que estes designam (relaes secundum esse); eainda entre os prprios signos entre si. Desta lgica das relaesque elabora, utilizando para o efeito proposies primitivas ousignos isolados, se pode partir para o estudo da Lgica propria-mente dita, que se debrua sobre as linguagens e os raciocnios,complexos sgnicos elaborados que obedecem s mesmas regrasque qualquer veculo sgnico encarado isoladamente.

    Em termos de concepo, o Tratado dos Signos destina-se aexplicitar e desvelar, utilizando esta lgica das relaes, a pecu-liaridade dos fenmenos perceptivos, a sua ligao com a estru-tura ontolgica do mundo, e a maneira como possvel traduzi-lae plasm-la em formas expressivas palpveis e, mais importanteainda, comunicveis a outrem.

    Toda a arquitectura do Tractatus se orienta assim numa tenta-tiva de, permanecendo fidelissimamente discpulo de So Toms,explicar e fundamentar, atravs de um mecanismo preciso e fu-ncional, a totalidade dos processos de significao. Joo concedeum estatuto claro a estes fenmenos, salvando o realismo e a co-gnoscibilidade dos entes. O Tractatus central a toda a Ars Lo-gicae devido precisamente a este seu papel fundador, pois trata

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  • 48 Semitica Geral

    de um tema anterior a todas as restantes operaes da lgica, quedele passaro a depender.

    2.3 Os Modernos: Locke, Condillac, Lam-bert, Kant, e Humboldt

    Sucede neste caso o mesmo que com Agostinho: embora tenhavivido em pleno sculo XVII, podemos considerar que Joo deSo Toms, que um medieval no estilo, esprito e convices,encerra o debate sobre o signo tal como foi admitido pela esco-lstica. A partir daqui, do final da Idade Mdia, menos rica atradio, e menos vivo o debate, que culminar em Locke, o au-tor que vir a cunhar o termo semitica, e que conduz a Peircee a Saussure e ao projecto que ambos tinham de a fundar comocincia.

    No perodo que medeia entre Dante e Humboldt no h nemuma disciplina nem uma direco de investigao filosfica a quese pudesse chamar filosofia da linguagem.35 Se h um pontounificador do trabalho dos modernos a crtica ao verbalismoescolstico e a desconstruo da pansemiose metafsica que desdeAgostinho percorre toda a Idade Mdia, e de que exemplo Fra-ncis Bacon (1561-1626).36 O que caracterizar ento a semiticaat ao sculo XVIII , alm da crtica ao escolasticismo, a tenta-tiva de construir sistemas semiticos artificiais, de que a Mathesis

    35. TRABANT, Jurgen, Sign Conceptions in the Philosophy of Language

    from the Renaissance to the Early 19th Century, in Semiotics, A Hand-Bookon the Sign-Theoretic Foundations of Nature and Culture, vol. II, 1998, Walterde Gruyter, New York, p. 1270-1279.

    36. The critique of the Renaissances all embracing conception of the uni-

    verse (and of language therein) as a network of natural analogical signs,whose deciphering is what science is all about, leads to suspicion towards se-miotic theories of scientific method, DASCAL, Marcelo & DUTZ, Klaus,The Beginnings of Scientific Semiotics, Semiotics, A Hand-Book on theSign-Theoretic Foundations of Nature and Culture, vol. 1, 1997, Walter deGruyter, New York, p. 753.

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  • Histria da semitica 49

    Universalis ou Ars Combinatoria, de Leibniz (1588-1679) serexpoente mximo.37

    A semitica, como termo e como cincia claramente enunciadaver finalmente a luz do dia com o trabalho de John Locke (1632-1704) e o seu Ensaio Sobre o Entendimento Humano,38 ondeprocede a uma diviso tripartida das cincias. O primeiro ramo a Fsica ou Filosofia Natural, e que se ocupa do conhecimentodas coisas materiais e espirituais, da sua constituio, proprieda-des e operaes.39 O segundo tipo de objectos que caem sob ombito do entendimento humano a procura daquelas regras emedidas das aces humanas que conduzem felicidade, ou seja,aquilo que o prprio homem deve fazer como agente racional edotado de vontade para alcanar (...) a felicidade a tica, quej no uma cincia especulativa interessada na verdade, mas ci-ncia prtica ocupada com a justia e ideais de conduta. Terceira eltima diviso das cincias: Semitica ou Lgica, entendida comodoutrina dos sinais, sendo os principais de entre eles as palavras.O tema da Semitica, para Locke, sero os sinais de que o homemfaz uso para compreender as coisas ou comunic-lo. manifestoque o intelecto no conhece nem opera com as coisas elas pr-prias, mas somente com a sua representao que ocorre por meiode sinais tambm a semitica lockiana encerra a dupla vertentegnosiolgica/de significao, e comunicacional.

    Dividem-se pois as cincias e todos os objectos que podemcair sob o entendimento humano em trs grandes provncias domundo intelectual, totalmente separadas e distintas umas das ou-tras em: coisas, quando so cognoscveis em si mesmas; aces,

    37. Leibnizs linguistic thought , in complete sympathy with the rich diver-

    sity of human languages, remains oriented to the unity behind the diversity, tothe possibility of the construction of an at least written universal scientificlanguage, of a characteristica universalis, idem, p. 1275.

    38. LOCKE, John, Ensaio Sobre o Entendimento Humano, vols. I e II, 1999,

    Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa.39

    . Idem, p. 999.

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  • 50 Semitica Geral

    enquanto dependem de ns em ordem felicidade; e o devido usodos sinais em ordem ao conhecimento.40

    Alm da cunhagem do termo semitica que no aparece nosantigos ou medievais e da precisa demarcao do mbito e esta-tuto da novel cincia -lhe concedida uma importncia e esta-tuto inteiramente novos, pois j no encarada como uma cinciaauxiliar, mas como uma das trs grandes provncias do entendi-mento humano , o projecto de Locke pouco mais acrescenta filosofia da linguagem.

    A gramtica de Port-Royal (1660) representa uma tentativade explicar os elementos comuns a todas as lnguas, mas move-se essencialmente no quadro da semitica traado por Aristtelesno De Interpretatione, ao qual a segunda parte dedicada, e noapresenta inovaes de monta no que histria da semitica dizrespeito.41

    O Novo Organon, de Johann Heinrich Lambert (1728-1777)divide os conhecimentos humanos em quatro disciplinas: Dia-noiologia, sobre as leis do pensamento ou lgica; Aletiologia, quese ocupa da verdade; Semitica, tratando da forma de constituir

    40. LOCKE, John, Ensaio Sobre o Entendimento Humano, vols. I e II, 1999,

    Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa, p. 1000.41

    . Cf. MORUJO, Alexandre Fradique, Lgica de Port-Royal, in Lo-gos, Enciclopdia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. IV, Verbo, Lisboa, p.336;TRABANT, Jurgen, Sign Conceptions in the Philosophy of Language fromthe Renaissance to the Early 19th Century, in Semiotics, A Hand-Book on theSign-Theoretic Foundations of Nature and Culture, vol. II, 1998, Walter deGruyter, New York, p. 1274 e ss.; e KNEALE, William & Martha, O Desen-volvimento da Lgica, 1972, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa. Trata-seessencialmente, como diz Trabant, de uma traditional aristotelian semiotictheory of language, which transfers the strict mind-body division to the divi-sion between word and idea, idem, p.1274.

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  • Histria da semitica 51

    uma linguagem cientfica;42 e Fenomenologia, que se ocupa daaparncia dos fenmenos.43

    A semitica, na concepo que dela Lambert tem, deveria ser,idealmente, organizada de forma axiomtica, pois este cria que acincia era uma espcie de linguagem bem formada e o pensa-mento um modo de manipular signos de acordo com as regras detal linguagem.44 H grandes semelhanas entre o projecto leibni-ziano e as descobertas de Lambert,45 sendo que este caracterizao signo como princpio do conhecimento, necessrio no apenaspara a comunicao entre os homens, mas tambm para o prpriopensamento, que especialmente nos assuntos mais abstractos a eledeve recorrer.46

    Figura central da semitica iluminista tienne de Condil-lac (1715-1780), que se interessou profundamente pela origem da

    42. Lambert caracteriza da seguinte forma a semitica: ...dottrina della

    designazione dei pensieri e delle cose, perci la terza e deve indicare qualiinflussi la lingua e gli altri segni esercitino sulla conoscenza della verit e comepossano essere resi utili allo scopo, LAMBERT, Semeiotica e Fenomenologia,ed. CIFFARDONE, Raffaele, Piccola Biblioteca Filosofica Laterzza, EditoriLaterzza, 1973, Roma, Bari, p. 6.

    43. FERREIRA, Manuel Carmo, Lambert, in Logos, Enciclopdia Luso-

    Brasileira de Filosofia, vol III, Editorial verbo, Lisboa, p.242.44