FICHA TÉCNICA · médico diz, «O seu filho. Aqui está o seu filho». ... espreitando o velho...

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FICHA TÉCNICA Título original: e Versions of Us Autora: Laura Barne Copyright © Laura Barne 2015 Todos os direitos reservados Edição original publicada na Grã-Bretanha em 2015 por Weidenfeld & Nicolson, uma chancela de e Orion Publishing Group Ltd Tradução © Brilho das Letras, Lisboa, 2016 Tradução: Ana Cunha Capa: Vera Espinha/ Editorial Presença Imagens da capa: © Shuerstock Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. Depósito legal n. o 405 899/16 1. a edição, Lisboa, abril, 2016 Jacarandá é uma chancela da Brilho das Letras Reservados direitos exclusivos para Portugal e não-exclusivos para os restantes países de expressão portuguesa (exceto Brasil) à Brilho das Letras Uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 eluz de Baixo 2730-132 Barcarena [email protected] www.jacaranda.pt facebook.com/jacarandaeditora Esta é uma obra de ficção. Todas as personagens são fictícias e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência. Excertos p. 9 — Reprodução de excerto de e Amateur Marriage autorizada por HSG Agency, agente da autora. Copyright © 2004 Anne Tyler Modaressi. p. 9 — Reprodução de excerto de «is is Us» autorizada por Mark Knopfler. p. 244 — Reprodução de excerto de atro artetos de T. S. Eliot autorizada por Relógio D’Água Editores. p. 371 — «Hearts and Bones». Letra e música de Paul Simon. Copyright © 1983 Paul Simon (BMI). Todos os direitos reservados.

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F ICHA TÉCNICA

Título original: The Versions of UsAutora: Laura Barnett

Copyright © Laura Barnett 2015

Todos os direitos reservados

Edição original publicada na Grã-Bretanha em 2015 por Weidenfeld & Nicolson, uma

chancela de The Orion Publishing Group Ltd

Tradução © Brilho das Letras, Lisboa, 2016

Tradução: Ana Cunha

Capa: Vera Espinha/Editorial Presença

Imagens da capa: © Shutterstock

Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.Depósito legal n.o 405 899/16

1.a edição, Lisboa, abril, 2016

Jacarandá é uma chancela da Brilho das Letras

Reservados direitos exclusivos para Portugale não-exclusivos para os restantes países de expressão portuguesa (exceto Brasil) àBrilho das LetrasUma empresa Editorial PresençaEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 [email protected]/jacarandaeditora

Esta é uma obra de ficção. Todas as personagens são fictícias e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência.

Excertos

p. 9 — Reprodução de excerto de The Amateur Marriage autorizada por HSG Agency, agente da autora. Copyright © 2004 Anne Tyler Modaressi.

p. 9 — Reprodução de excerto de «This is Us» autorizada por Mark Knopfler.

p. 244 — Reprodução de excerto de Quatro Quartetos de T. S. Eliot autorizada por Relógio D’Água Editores.

p. 371 — «Hearts and Bones». Letra e música de Paul Simon. Copyright © 1983 Paul Simon (BMI). Todos os direitos reservados.

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1938

É assim que começa.

Uma mulher parada no cais de uma estação, mala na mão direita, na esquerda um lenço amarelo, com o qual vai enxugando levemente o rosto. A pele azulada à volta dos olhos está molhada, e o fumo do carvão irrita-lhe a garganta.

Não está lá ninguém para lhe acenar quando partir — ela proi-biu-lhes que viessem, embora a mãe chorasse, tal como ela o faz agora — e, ainda assim, põe-se em bicos de pés para espreitar por cima do vaivém de chapéus e peles de raposa. Talvez Anton, can-sado das lágrimas da mãe, cedesse, a tivesse carregado na ca deira de rodas pelos compridos lances de escadas abaixo, lhe tivesse coberto as mãos com mitenes. Mas não há sinal de Anton, nem da mamã. A estação está apinhada de desconhecidos.

Miriam entra para o comboio, fica parada, olhos a piscar na luz fraca do corredor. Um homem com bigode preto e uma caixa de violino olha-a, do rosto à enorme cúpula da barriga.

— Onde está o teu marido? — pergunta ele.— Em Inglaterra. — O homem aprecia-a, com a cabeça envie-

sada, como um pássaro. Inclina-se então para a frente, agarra-lhe na mala com a mão livre. Miriam abre a boca para reclamar, mas ele já vai mais à frente.

— Há um lugar vago no meu compartimento.Durante toda a longa jornada para ocidente, conversam. Ele ofe-

rece-lhe arenque e pickles de um saco húmido de papel, e Miriam aceita, embora abomine arenque, porque já passa quase um dia da

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última vez que comeu. Nunca diz que não há marido nenhum em Inglaterra, mas ele sabe. Quando o comboio estremece e para junto à fronteira, e os guardas mandam desembarcar todos os passageiros, Jakob mantém-na junto a si, enquanto ficam ali parados a tremer, a neve derretida a amolecer as solas pouco grossas dos sapatos dela.

— Sua esposa? — pergunta o guarda a Jakob, ao agarrar nos papéis dela.

Jakob faz que sim. Seis meses mais tarde, num dia límpido, luminoso, em Margate, o bebé a dormir nos braços rechonchudos, almofadados, da esposa do rabino, é nisso que Miriam se torna.

*

Também começa aqui.

Outra mulher parada num jardim, entre rosas, a massajar o fun-do das costas. Veste uma comprida bata azul de pintor, do ma rido. Ele está agora a pintar lá dentro, no momento em que ela leva a outra mão à enorme cúpula da barriga.

Houve um movimento, uma agitação, mas passou. No chão aos pés dela, está um cestinho chato de jardinagem, meio cheio de flo-res cortadas. Ela inspira fundo, inalando o cheiro a maçãs verdes da erva cortada — já andou às tesouradas ao relvado, pela fresca da manhã, com a tesoura de podar. Tem de se manter ocupada; tem horror a ficar parada, a permitir que o vazio se desenrole sobre ela como um lençol. É tão macio, tão reconfortante. Receia adormecer debaixo dele, e que o bebé adormeça com ela.

Vivian dobra-se para apanhar o cesto. Ao fazê-lo, sente algo romper e rasgar. Tropeça, solta um grito. Lewis não a ouve: ele põe música a tocar enquanto trabalha. Chopin, sobretudo, Wagner às vezes, quando as cores lhe dão para tons mais sombrios. Está caída no chão, o cesto de pernas para o ar ao pé dela, rosas espalhadas nas lajes do chão, vermelhas e cor-de-rosa, as péta-las esmaga das e a amarelecer, emanando o seu perfume enjoativo. A dor vem outra vez e Vivian arqueja; então lembra-se da vizinha, a Sr.ª Dawes, e chama por ela.

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Num instante, já a Sr.ª Dawes agarra os ombros de Vivian com as suas mãos capazes, levantando-a para o banco junto à porta, à sombra. Manda o rapaz do merceeiro, que está parado ao portão da entrada, com a boca entreaberta como um peixe, lançado em corrida para buscar o médico, enquanto ela sobe a correr ao piso de cima, indo dar com o Sr. Taylor — um homenzinho tão esquisito, com a sua pança e nariz arrebitado de gnomo: não é nada como ela pensava que um pintor seria. Mas é amoroso. Encantador.

Vivian não sabe de nada, a não ser das ondas de dor, da súbita frescura dos lençóis da cama encostados à pele, da elasticidade dos minutos e horas, que se esticam ilimitadamente até que o médico diz, «O seu filho. Aqui está o seu filho». E então ela olha para baixo e vê-o, reconhece-o, a piscar-lhe os olhos com a mirada sabida de um velho.

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Primeira Parte

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PRIMEIRA VERSÃO

FuroCambridge, outubro de 1958

Mais tarde, Eva pensará, se não tivesse sido aquele prego enfer-rujado, o Jim e eu jamais nos teríamos conhecido.

Este pensamento surgir-lhe-á na mente, completamente for-mado, com uma força que lhe tirará a respiração. Ficará deitada e quieta, a observar a luz a deslizar à volta das cortinas, conside-rando o ângulo exato do pneu na relva sulcada; o prego em si, velho e torto; o cãozito, o focinho a irromper da berma, sem atentar no ruído de engrenagem e de pneus. Ela tinha guinado para não o atingir, e o pneu acertara no prego enferrujado. Não teria sido mais fácil — mais provável — não acontecer nenhuma destas coisas?

Mas isso será mais tarde, quando a sua vida antes de Jim já se tiver tornado sem sons, sumida de cores, como se mal tivesse sido vida. Agora, no momento do impacto, só há um vago som de rutura, e um exalar abafado de ar.

— Raios — pragueja Eva. Carrega nos pedais, mas o pneu dian-teiro está trémulo como um cavalo nervoso. Trava, desmonta, ajoelha-se para fazer o diagnóstico. O cãozito hesita penitente a alguma distância, ladra como que a desculpar-se, precipitando-se então atrás do dono — que, entretanto, já vai bem mais adiante, uma figura de gabardine bege a afastar-se.

Ali está o prego, encravado por cima de uma rasgadela den-teada, de três centímetros no mínimo. Eva carrega no rebordo do rasgão e o ar emerge, num expirar roufenho. O pneu já está quase vazio: terá de empurrar a bicicleta até Newnham College, e já vai atrasada para a supervisão. O Professor Farley presumirá que ela

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não escreveu o ensaio sobre Quatro quartetos, quando de facto a fez passar duas noites inteiras de pé — encontra-se agora na pasta dela, passado a limpo, cinco páginas excluindo notas de rodapé. Sente-se algo orgulhosa dele, ansiava lê-lo em voz alta, espreitando o velho Farley pelo canto do olho, inclinado para a frente, a cris par  o sobrolho como faz quando algo lhe interessa verdadeiramente.

— Scheiße — pragueja Eva: numa situação desta gravidade, só o alemão parece apropriado.

— Está tudo bem?Ela continua ajoelhada, a bicicleta pesadamente apoiada do seu

lado. Examina o prego, pondera se faria mais bem que mal em arrancá-lo. Não olha para cima.

— Perfeitamente, obrigada. É só um furo.O passante, quem quer que seja, fica calado. Ela supõe que con-

tinuou a andar, mas então a sombra — a silhueta de um homem, sem chapéu, a meter a mão no bolso do casaco — começa a movi-mentar-se pela erva na sua direção.

— Deixa-me ajudar, anda. Tenho aqui um kit para remen-dar furos.

Ela olha então para cima. O sol está a mergulhar por trás de uma fileira de árvores — ainda só passaram umas semanas do período de Michaelmas e já os dias se encurtam — e a luz está por trás dele, a escurecer-lhe o rosto. A sombra dele, agora ligada a pés metidos em coçados sapatos castanhos de atacador, parece excessivamente alta, embora o homem aparente estatura média. Cabelo castanho-pálido, a precisar de ser cortado; um livro de capa mole da Penguin na mão livre. Eva consegue apenas discernir o título na lombada, Admirável Mundo Novo, e lembra-se, assim de repente, de uma tarde — um domingo invernoso; a mãe a fazer Vanillekipferl na cozinha, o som do violino do pai a subir no ar da sala de música — em que se perdeu por completo na estranha, assustadora, visão do futuro de Huxley.

Ela deita a bicicleta cuidadosamente de lado, põe-se de pé.— És muito simpático, mas receio que não faço qualquer ideia

de como isso se usa. É sempre o rapaz da portaria quem me remenda os pneus.

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— Pois claro. — O tom de voz é ligeiro, mas ele franze o sobro-lho, vasculhando no outro bolso. — Sou capaz de me ter precipi-tado a oferecer. Não faço qualquer ideia de onde está. Lamento imenso. Habitualmente trago-o comigo.

— Mesmo quando não andas de bicicleta?— Sim. — É mais rapaz que homem: cerca da idade dela, e estu-

dante; tem um cachecol de Clare College (riscas pretas e amarelas de abelha) enrolado, solto, à volta do pescoço. Os rapazes da vila não falam como ele, e seguramente que não andam com cópias do Admirável Mundo Novo. — Homem prevenido e tal. E habitual-mente ando. De bicicleta, quero eu dizer.

Ele sorri, e Eva repara que os seus olhos são de um azul muito escuro, quase violeta, e emoldurados por pestanas mais compri-das do que as dela. Numa mulher, chamavam-lhe um belo efeito. Num  homem, é um pouco desconcertante; ela sente dificuldade em fitá-lo nos olhos.

— Então, és alemã?— Não — responde ela, ríspida de mais; ele desvia o olhar,

embaraçado.— Oh. Desculpa. Ouvi-te a praguejar. Scheiße.— Falas alemão?— Nem por isso. Mas sei dizer «merda» em dez línguas.Eva ri-se: não devia ter reagido tão bruscamente.— Os meus pais são austríacos.— Ach so.— Afinal falas alemão!— Nein, mein Liebling. Só um bocadinho.Os olhos dele fixam-se nos dela e Eva é tomada pela curiosa

sensação de que já se conhecem, embora o nome dele seja uma incógnita.

— Estudas Inglês? Quem é que te meteu a ler o Huxley? Pensava que não deixavam ninguém ler qualquer coisa mais moderna que o Tom Jones.

Ele baixa os olhos para o livro, abana a cabeça.— Oh, não, Huxley é só por gozo. Estudo Direito. Ainda assim,

estamos autorizados a ler romances, sabes.

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— Claro. — Sorri. Não podia, então, tê-lo visto lá por Newnham; talvez os tivessem apresentado em alguma festa. David conhece tanta gente: como era o nome daquele amigo dele, com quem Penelope dançou no baile de Caius College no fim do ano aca-démico, antes de começar a andar com Gerald? Esse tinha olhos azuis vivos, mas sem dúvida que não eram exatamente como estes. — A tua cara não me é estranha. Já nos conhecemos?

O homem torna a apreciá-la, a cabeça inclinada de lado. É  pálido, com um ar muito inglês, uma mão-cheia de sardas espalhadas no nariz. Eva aposta que se adensam e juntam umas às outras ao primeiro vislumbre de sol, e que ele odeia isso, que amaldiçoa a sua frágil pele do Norte.

— Não sei. Tenho a impressão de que sim, mas de certeza que me lembraria do teu nome.

— Eva. Edelstein.— Bem. — Sorri de novo. — Definitivamente que me lembrava

disso. Sou o Jim Taylor. Ando no segundo ano, em Clare College. Andas em Newnham?

— No segundo ano — assente ela, com a cabeça. — E estou pres-tes a meter-me em sarilhos a sério por faltar a uma supervisão, só porque um idiota qualquer deixou um prego aqui caído.

— Eu também era para estar agora numa supervisão. Mas para ser franco, estava a pensar não ir.

Eva observa-o, avaliando; não tem grande paciência para estu-dantes daqueles — homens, sobretudo, e ainda por cima daqueles com a educação mais cara — que encaram os cursos com desprezo preguiçoso, enfatuado. Não o tomara por um desses.

— É coisa que tenhas por hábito fazer?— Nem por isso — ele encolhe os ombros. — Não me es-

tava a  sentir bem. Mas de repente começo a sentir-me imensa-mente melhor.

Ficam em silêncio por um momento, cada um deles a sentir que se devia mexer e ir embora, mas sem propriamente querer. No caminho, uma rapariga de canadiana azul-marinho passa por eles à pressa, deita-lhes uma olhadela rápida. Então, ao reconhe-cer Eva, olha de novo. É aquela rapariga de Girton College que

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contracenou como Emília com David, na peça do ADC em que ele fez de Iago. Andava fintada em David: qualquer palerma bem via. Mas Eva agora não quer pensar em David.

— Bem — começa Eva. — Acho que é melhor regressar. Ver se o miúdo da portaria me arranja a bicicleta.

— Ou podias-me deixar a mim arranjá-la. Estamos muito mais perto de Clare que de Newnham. Vou à procura do kit, remendo-te o pneu, e então deixas-me convidar-te para beber alguma coisa.

Eva observa-lhe o rosto, e ocorre-lhe, com uma certeza que não pode explicar — nem sequer quereria tentar —, que é este o momento: o momento depois do qual nada tornará a ser exa-tamente o mesmo. Podia — devia — dizer que não, virar costas, empurrar a bicicleta pelas ruas ao fim da tarde até aos portões de Newnham, deixar o rapaz da portaria vir, corando, em seu socorro, dar-lhe uma pequena gorjeta. Mas não é isso que faz. Em vez disso, vira a bicicleta na direção oposta e caminha ao lado deste rapaz, deste Jim, as sombras gémeas a mordiscarem-lhes os calcanhares, fundindo-se e sobrepondo-se por cima da erva alta.

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SEGUNDA VERSÃO

PierrôCambridge, outubro 1958

No camarim, ela conta a David:— Ia atropelando um cão com a bicicleta.

David semicerra os olhos ao espelho, na direção dela; está a aplicar uma espessa camada de base branca na cara.

— Quando?— A caminho da aula do Farley. — Esquisito, lembrar-se disso

agora. Tinha-se assustado: o cãozito branco na berma do caminho não se afastara enquanto Eva se aproximava, saracoteando-se direito a ela, abanando o coto da cauda. Ela estava pronta para se  desviar, mas no derradeiríssimo momento — a meros centímetros da roda da frente — o cão debandara de repente, com um ganido amedrontado.

Eva tinha parado, aturdida.— Olhe lá, veja por onde vai, sim? — bradou-lhe alguém. Ela

virou-se, viu um homem de gabardine bege a uns metros de dis-tância, a olhá-la furiosamente.

— Lamento imenso — retorquiu ela, se bem que quisesse real-mente dizer, Você devia era trazer o raio do cão pela trela.

— Estás bem? — Aproximava-se outro homem da direção opos-ta: era mais um rapaz, cerca da idade dela, um cachecol do seu college enrolado, solto, por cima do casaco de tweed.

— Perfeitamente, obrigada — respondeu ela, empertigadamente. Os olhos deles cruzaram-se brevemente quando ela montou de novo na bicicleta — os dele de um azul incomummente escuro, emoldura-dos por pestanas compridas, mais de rapariga — e, por um segundo, Eva teve a certeza de que o conhecia, tanta que abriu a boca para

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formular um cumprimento. Mas então, com a mesma rapidez, duvi-dou de si própria, não disse nada, e pedalou em frente. Mal chegou à sala do Professor Farley e começou a ler em voz alta o seu ensaio sobre Quatro quartetos, aquilo tudo sumiu-se-lhe da ideia.

— Oh, Eva — comenta David, agora. — Metes-te mesmo nas situações mais absurdas.

— Meto? — franze ela o sobrolho, sentindo a distância entre a sua versão de si própria e a dele: desorganizada, enternecedo-ramente estouvada. — Não foi culpa minha. O estúpido do cão veio a correr direito a mim.

Mas ele não está a ouvir: fita concentradamente o seu reflexo, aplicando a maquilhagem na direção do pescoço. O efeito é simul-taneamente apalhaçado e melancólico, como um daqueles Pier-rôs franceses.

— Olha, falta aqui um bocado — diz ela, inclinando-se para a frente, apagando-lhe maquilhagem do queixo com a mão.

— Não mexas — diz ele, rispidamente, e ela tira a mão.— Katz. — Gerald Smith está à porta, vestido, tal como David,

num comprido robe branco, a cara irregularmente mascarrada de branco. — Vamos ao aquecimento. Oh, olá, Eva. Importavas-te de ir chamar a Pen? Ela está lá fora.

Ela faz-lhe que sim. A David, diz:— Vejo-te depois, então. Montes de merda.Ele agarra-lhe no braço, quando ela se vira para ir embora,

puxa-a para si.— Desculpa — sussurra ele. — São só nervos.— Eu sei. Não fiques nervoso. Vais ser genial.Ele é genial, como sempre, pensa Eva com alívio, meia hora

mais tarde. Está sentada nos lugares da casa, a segurar a mão da sua amiga Penelope. Durante as primeiras cenas, estão tensas, mal conseguem olhar o palco: olham antes para o público, medindo-lhe as reações, acompanhando as linhas que ensaiaram tantas vezes.

David, como Édipo, tem um longo discurso ao fim de quinze minutos, que lhe demorou uma eternidade a decorar. Na noite pas-sada, depois do ensaio geral, Eva ficou sentada com ele quase até à meia-noite, no camarim vazio, a treinar as falas, vezes repetidas,

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não obstante só ter escrito metade do ensaio, e ser forçada a passar a noite em claro para o concluir. Esta noite, mal suporta ouvir, mas a voz de David é clara, resoluta. Ela observa dois homens na primeira fila a inclinarem-se para a frente, arrebatados.

Posteriormente, reúnem-se no bar, a beber vinho branco morno. Eva e Penelope — alta, de lábios escarlate e corpo bem torneado; as suas primeiras palavras para Eva, sussurradas por cima da mesa encerada no jantar do dia da matrícula, foram, «Quanto a ti, não sei, mas eu mataria por fumar um cigarro» — estão ao pé de Susan Fletcher, que o encenador, Harry Janus, trocou recentemente por uma atriz mais velha que conheceu num espetáculo em Londres.

— Tem vinte e cinco anos — queixa-se Susan. Está sensível e um pouco chorosa, a observar Harry por entre olhos semicerrados. — Procurei a fotografia dela na Spotlight, há uma cópia na biblio-teca, sabem. É absolutamente deslumbrante. Como é que hei de competir com uma coisa dessas?

Eva e Penelope trocam um relancear discreto; a sua lealdade deveria estar do lado de Susan, claro, mas é inevitável sentirem que ela é do género que vibra com dramas daqueles.

— Então não compitas e pronto — sugere Eva. — Retira-te do jogo. Arranja outro.

— Para ti é fácil falar — queixa-se Susan, pestanejando. — O Da-vid está apanhadinho.

Eva acompanha o olhar de Susan até à outra ponta do bar, onde David está a falar com um homem mais velho de colete e  cha-péu — não é estudante, e não tem o ar caduco de um professor: algum agente londrino, talvez. Olha para David como um homem que esperava encontrar uma moedita e afinal achou uma nota novinha em folha. E porque não? David já está outra vez à paisana, tem o colarinho do casaco desportivo composto à maneira, a cara limpa: alto, luminoso, magnífico.

Durante o primeiro ano de Eva, o nome «David Katz» viajara através dos corredores e salas comuns de Newnham, habitual-mente proferido num sussurro excitado. Anda em King’s College, sabes. É o Rock Hudson escarrado e cuspido. Levou a Helen Johnson para tomar aperitivos. Quando finalmente se conheceram  — ela

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fazia de Hérmia, ele de Lisandro, num contacto inicial com o palco que confirmou a suspeita de Eva em como nunca daria para atriz —, Eva tivera a noção de que ele a observava, à espera dos corares habituais, do riso coquete. Mas ela não se rira; tinha-o achado muito cheio de ares, convencido. E, contudo, David não parecera reparar; no pub Eagle, depois da leitura da peça, tinha--lhe perguntado sobre a família, sobre a sua vida, com um grau de interesse que Eva começou a pensar que talvez fosse genuíno. «Queres ser escritora? Que coisa perfeitamente maravilhosa.» Tinha-lhe citado cenas inteiras da comédia da rádio Hancock’s Half Hour, com precisão excecional, até ela não conseguir deixar de rir. Uns dias mais tarde, após os ensaios, David sugerira levá-la a tomar um copo, e Eva, num súbito acesso de entusiasmo, aceitara.

Passavam entretanto seis meses, tinha sido no período da Páscoa. Ela não tivera a certeza de que a relação sobrevivesse ao verão — ao mês de David com a família em Los Angeles (o pai dele era americano, tinha uma ligação qualquer bastante glamorosa a Hollywood), às duas semanas em que Eva andara a esgaravatar numa escavação arqueo-lógica perto de Harrogate (entediante de morte, mas houvera tempo para escrever nas longas horas do lusco-fusco entre jantar e dormir). Mas David escrevia frequen temente da América, até telefonou; então, quando regressou, veio a Highgate tomar chá, encantou os pais dela enquanto comiam Lebkuchen, levou-a para nadar nos lagos.

Eva começava a achar que David Katz tinha bem mais que se lhe dissesse, mais do que ela supusera a início. Agradava-lhe a inteligência dele, a sua erudição cultural: levou-a a ver Chicken Soup With Barley ao Royal Court, que ela achou perfeitamente extraordinário; David parecia saber pelo menos metade das falas. As origens partilhadas tornavam tudo mais fácil: a família do pai dele tinha emigrado da Polónia para os Estados Unidos, a da mãe da Alemanha para Londres, e agora habitavam uma imponente residência eduardina em Hampstead — uma mera caminhada pelo parque e chegava-se a casa dos pais dela.

E então, se Eva fosse verdadeiramente honesta, havia a ques-tão da aparência. Por si, não era minimamente vaidosa: herdara o interesse da mãe pelo estilo — um casaco bem talhado, uma sala

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decorada com bom gosto — mas tinham-na ensinado desde peque-na a valorizar a proeza intelectual acima da beleza física. E, con-tudo, Eva descobriu que lhe dava de facto gozo a maneira como a maioria dos olhos se virava para David quando ele en trava numa sala; a maneira como a presença dele numa festa tornava a noite subitamente mais animada, mais emocionante. No período de Michaelmas, já eram um casal — um casal enaltecido, até, no cír-culo de David, de atores e dramaturgos e encenadores princi-piantes — e Eva foi arrebatada pelo seu charme e confiança; pela maneira como os amigos dele a namoriscavam e pelas graçolas privadas e crença absoluta de que estavam destinados ao sucesso.

Talvez seja assim que o amor chega sempre, escreveu ela no seu caderno, neste deslizar impercetível da familiaridade para a intimi-dade. Eva não é, nem nos rasgos mais loucos de imaginação, expe-riente. O único namorado anterior, Benjamin Schwartz, conheceu-o num baile da escola masculina de Highgate; ele era tímido, tinha um olhar de mocho, e a convicção inabalável de que um dia des-cobriria uma cura para o cancro. Nunca tentou mais que beijá-la, pegar-lhe na mão; frequentemente, na companhia dele, Eva sentia o tédio subir por ela acima como um bocejo reprimido. David nunca é entediante. É todo ação e energia, num brilho de tecnicolor.

Agora, do outro lado do bar do ADC, dá por ela a olhar, sorri, diz silenciosamente: «Desculpa.»

— Vês? — diz Susan, ao reparar.Eva beberica o vinho, saboreando o empolgamento ilícito de

ser eleita, de ter ao seu alcance uma coisa tão doce, tão desejada.A primeira vez que visitou o quarto de David em King’s College

(estava um dia sufocante de junho; nessa noite era a última apresen-tação de Sonho de Uma Noite de Verão), ele tinha-a posicionado dian-te do espelho por cima do lavatório, como um manequim. Depois, pusera-se por trás dela, compusera-lhe o cabelo de maneira a cair em cachos por cima dos ombros, nus no vestido leve de algodão.

— Estás a ver como somos belos? — perguntou ele.Eva, observando o reflexo das duas cabeças pelos olhos dele,

sentiu subitamente que via, e, assim, disse simplesmente:— Sim.

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TERCEIRA VERSÃO

QuedaCambridge, outubro de 1958

Ele vê-a cair ao longe; lenta e deliberadamente, como que numa sequência de cenas em pausa. Um cãozito branco — um terrier —

a farejar a erva sulcada da berma, a levantar a cabeça para lançar um latido reprovador ao dono, um homem de gabardine bege, já um bom bocado mais adiante. A rapariga a aproximar-se de bicicleta — vem a pedalar depressa de mais, o cabelo escuro ondulando atrás dela como uma bandeira. Ele ouve-a clamar mais alto do que o tilintar agudo da campainha: «Mexe-te daí, sim, bóbi?» Contudo, o cão, atraído por alguma nova fonte de fascínio canino, mexe-se, não para fora do caminho, mas de encontro à trajetória limitada do pneu da frente.

A rapariga dá uma guinada; a bicicleta segue para dentro da erva alta, retorce-se e dá um pinote. Ela cai de lado, aterrando pesadamente, a perna esquerda torcida num ângulo desajeitado. Jim, agora a poucos metros apenas, ouve-a praguejar.

— Scheiße.O terrier aguarda um momento, abanando a cauda desconsola-

damente, e então lança-se atrás do dono.— Caramba, estás bem?A rapariga não olha para cima. Agora, ao perto, vê que ela é

pequena, ligeira, cerca da idade dele. A cara está escondida por aquela cortina de cabelo.

— Não tenho a certeza.A voz dela é ofegante, sustida: o choque, claro. Jim sai do cami-

nho, dirige-se a ela.— É o tornozelo? Queres ver se te aguentas nele?

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Cá está a cara: magra, como o resto; de queixo estreito; olhos castanhos velozes, avaliadores. A pele é mais escura que a dele, ligeiramente morena: tê-la-ia julgado italiana ou espanhola; alemã, nunca. Ela faz que sim, encolhe-se ligeiramente de dor ao pôr-se de pé. A cabeça mal chega aos ombros dele. Não é bela, exata-mente, mas conhecida, de algum modo. É-lhe familiar. Embora não a conheça, de certeza. Pelo menos, por enquanto.

— Não está partido, então.— Partido, não. Dói um bocado. Mas suspeito de que não morrerei.Jim arrisca um sorriso que ela não retribui propriamente.— Foi uma queda e tanto. Bateste contra alguma coisa?— Não sei. — Tem a bochecha mascarrada de terra; Jim dá con-

sigo a lutar contra o súbito desejo de lha limpar com a ponta dos dedos. — Devo ter batido. Habitualmente sou bastante cuidadosa, sabes. O cão veio direito a mim.

Ele baixa os olhos para a bicicleta dela, abatida no meio do chão; a uns centímetros do pneu traseiro, está um grande calhau cinzento, que só se vê afastando a erva.

— Ali tens o culpado. Deves ter acertado nele com o pneu. Queres que veja? Trago aqui um kit para remendar pneus. — Pas -sa o livro de capa mole que traz consigo para a outra mão: Mrs. Dal loway; tinha-o encontrado na mesa de cabeceira da mãe enquanto fazia as malas para o período de Michaelmas e pediu--lho emprestado, pensando que talvez lhe fornecesse al guma revelação sobre o estado de alma dela; e mete a mão no bolso do casaco.

— É muito simpático da tua parte, mas a sério, de certeza que posso...

— É o mínimo que posso fazer. Não acredito que o dono nem sequer se virou. Não foi exatamente cavalheiresco, pois não?

Jim engole em seco, embaraçado com a insinuação: de que a reação dele, com certeza, o foi. Ele não é propriamente o herói do momento: nem sequer ali tem o kit para remendar pneus. Verifica no outro bolso. Então lembra-se: Veronica. Ao despir-se no quarto dela naquela manhã — nem sequer tinham esperado na entrada para ele tirar o casaco — pusera o conteúdo dos bolsos em cima do

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toucador dela. Mais tarde, pegara na carteira, nas chaves, numas moedas soltas. O kit ainda lá devia estar, entre os perfumes dela, os colares de massa, os anéis.

— Receio que se calhar falei cedo de mais. Não faço ideia onde o tenho. Lamento imenso. Habitualmente trago-o comigo.

— Mesmo quando não andas de bicicleta?— Sim. Homem prevenido e tal. E, habitualmente, ando. De

bicicleta, quero eu dizer.Ficam silenciosos por um momento. Ela levanta o tornozelo

esquerdo, rodando-o lentamente. O movimento é fluido, elegante: uma bailarina a praticar na barra.

— Dói-te? — Surpreende-o o quanto realmente quer saber.— Está um bocado dorido.— Talvez devesses ir ao médico.Ela abana a cabeça.— Tenho a certeza de que gelo e um gin sem água tónica resol-

vem o assunto.Ele observa-a, inseguro com o tom dela. Ela sorri.— Então és alemã?— Não. — Ele não esperava rispidez. Desvia o olhar.— Oh. Desculpa. Ouvi-te a praguejar. Scheiße.— Falas alemão?— Nem por isso. Mas sei dizer «merda» em dez línguas.Ela ri-se, revelando um conjunto de brilhantes dentes brancos.

Demasiado saudáveis, talvez, para terem sido criados com cerveja e chucrute.

— Os meus pais são austríacos.— Ach so.— Afinal falas alemão!— Nein, mein Liebling. Só um bocadinho.Observando o rosto dela, ocorre-lhe o quanto gostaria de a

desenhar. Consegue imaginá-los a ambos, com uma nitidez inco-mum: ela, enroscada num banco à janela, a ler um livro, a luz a atravessar-lhe o cabelo na perfeição. Ele a esboçar, o quarto branco e silencioso, à exceção do arranhar da grafite no papel.

— Também estudas Inglês?

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A pergunta dela trá-lo de volta à realidade. O Dr. Dawson na  sua sala de Old Court, os três parceiros de supervisão dele, com  as suas caras inexpressivas, balofas, e cabelo penteadinho, a  rabiscarem maquinalmente os «objetivos e a adequação da legislação da responsabilidade civil». Já vai atrasado, mas não se importa.

Ele baixa os olhos para o livro que tem na mão, abana a cabeça.— Direito, lamentavelmente.— Oh. Não conheço muitos homens que leiam Virginia Woolf

por divertimento.Ele ri-se.— Trago-o comigo só para me exibir. Acho que é uma boa

maneira de quebrar o gelo com belas estudantes de Inglês. Pelos vistos, «Adoro o Mrs. Dalloway, tu não?» cai que nem ginjas.

Ela está a rir-se com ele, e ele torna a olhá-la, desta vez mais demoradamente. Os olhos dela não são realmente castanhos: na íris, são quase pretos; na orla, estão mais perto do cinzento. Jim lembra-se de um tom exatamente assim num dos quadros do pai: uma mulher — Sonia, sabe ele agora que se chamava; era por isso que a mãe não o queria pendurado na parede — delineada sobre uma têmpera de céu inglês.

— Então, sim ou não?— Sim ou não, o quê?— Adoras o Mrs. Dalloway?— Oh, sem dúvida. — Um breve silêncio. Então: — Parece-

-me mesmo que te conheço. Pensei que te tivesse visto nal -guma  palestra.

— Não, a menos que te andes a infiltrar à socapa na sé rie fas-cinante do Watson acerca do Direito Romano. Como te chamas?

— Eva. Edelstein.— Bem. — Nome de cantora de ópera, de bailarina, não deste

nico de rapariga, cujo rosto Jim sabe que irá esboçar mais logo, esfumando os contornos: os ângulos aplainados das maçãs do rosto; as sombras de fuligem sob os olhos dela. — Tenho a certeza de que me lembraria desse nome. Sou o Jim Taylor. Segundo ano, Clare College. Diria que andas em... Newnham. Acertei?

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— Em cheio. Também no segundo ano. Estou prestes a meter--me em sarilhos a sério por faltar a uma supervisão sobre Eliot. E escrevi o ensaio.

— Então é dor a dobrar. Mas tenho a certeza de que não te cas-tigam, dadas as circunstâncias.

Ela aprecia-o, com a cabeça de lado; ele não consegue dizer se ela o acha interessante ou esquisito. Talvez esteja apenas intrigada por ele ainda ali estar.

— Também devia estar numa supervisão. Mas para ser franco, estava a pensar não ir.

— Tens por hábito fazer isso? — Aquele vestígio de rispidez regressou; ele quer explicar que não é um desses, dos que negligen-ciam os estudos por preguiça, ou lassidão, ou alguma presunção herdada de terem direito a fazê-lo. Quer contar-lhe qual é a sensa-ção de ser obrigado a seguir um curso que não foi ele a escolher. Mas não pode, claro. Diz apenas:

— Nem por isso. Não me estava a sentir bem. Mas de repente, estou a sentir-me imensamente melhor.

Por um momento, parece que não há mais nada a dizer. Jim já está a ver no que aquilo vai dar: ela vai levantar a bicicleta, virar--se para ir embora, empreender a lenta jornada de regresso. Jim está aturdido, incapaz de pensar numa única coisa para a manter aqui. Mas ela ainda não está a ir-se embora; está a olhar para além dele, para o caminho. Ele acompanha o olhar dela, vê uma rapa-riga de casaco azul-marinho a olhar para eles, apressando-se então a seguir caminho.

— Alguém que conheces?— Um pouco. — Qualquer coisa mudou nela; Jim consegue pres-

senti-lo. Está qualquer coisa a fechar-se. — É melhor ir andando. Vou encontrar-me com alguém mais logo.

Um homem. Claro que tinha de haver um homem. Um pânico lento sobe por ele acima; não vai, não pode, deixá-la ir embora. Estica a mão, toca-lhe no braço.

— Não vás. Anda comigo. Eu conheço ali um pub. Com gelo e gin em abundância.

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Deixa estar a mão no algodão rijo da manga dela. Ela não a sacode, torna a olhar para ele, com aqueles olhos vigilantes. Jim tem a certeza de que ela recusará e se irá embora. Mas então:

— Está bem. Porque não?Jim faz que sim com a cabeça, macaqueando uma descontração

que não sente. Está a pensar num pub em Barton Road; até empurra ele a maldita bicicleta até lá, se tiver de ser. Ajoelha-se, exami-na-a; não há estragos visíveis, a não ser uma arranhadela estreita, afilada, no guarda-lamas dianteiro.

— Não parece muito mau — alvitra ele. — Eu empurro-a por ti, se quiseres.

Eva abana a cabeça.— Obrigada. Mas eu consigo levá-la.E, então, afastam-se dali juntos, saindo das rotinas incumbidas

às suas tardes e entrando nas sombras que se adensam ao fim da tarde, naquele sítio indistinto, liminar, em que se vai por um cami-nho, e se perde outro.

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