Fases do PU

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MUNDO DO TRABALHO Revista Pegada vol. 12 n.2 81 dezembro/2011 AS FACES DO PLANEJAMENTO URBANO FACES OF URBAN PLANNING Dayana Aparecida Marques de Oliveira Cruz 1 [email protected] RESUMO As decisões ligadas ao planejamento urbano na cidade privilegiam determinadas classes sociais em detrimento de outras, intensificando ainda mais o caráter desigual da cidade. Todavia, o planejamento deve ter como objetivo essencial em sua elaboração, amenizar as desigualdades inerentes do próprio processo de produção do espaço urbano a fim de alcançar a justiça social. No entanto, o planejamento possui faces distintas, as quais dão origem a conflitos e disputas, e apontam novos caminhos para que ele - o planejamento seja posto em prática no intuito de minimizar as desigualdades existentes. PALAVRAS-CHAVE: Ideologia; utopia; planejamento urbano. ABSTRACT Decisions relating to urban planning in the city, privilege certain classes others, further intensifying the iniquity of the city. However, planning has different faces, which give rise to conflicts and disputes, and indicate new avenues for him the planning is put in place in order to minimize inequalities. KEY WORDS: Ideology, utopia, urban planning 1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCT/UNESP), campus de Presidente Prudente. Integrante do Grupo de Estudos em Desenvolvimento Regional e Infraestrutura (GEDRI) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

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As decisões ligadas ao planejamento urbano na cidade privilegiam determinadas classessociais em detrimento de outras, intensificando ainda mais o caráter desigual da cidade.Todavia, o planejamento deve ter como objetivo essencial em sua elaboração, amenizar asdesigualdades inerentes do próprio processo de produção do espaço urbano a fim dealcançar a justiça social

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  • MUNDO DO TRABALHO

    Revista Pegada vol. 12 n.2 81 dezembro/2011

    AS FACES DO PLANEJAMENTO URBANO

    FACES OF URBAN PLANNING

    Dayana Aparecida Marques de Oliveira Cruz1 [email protected]

    RESUMO As decises ligadas ao planejamento urbano na cidade privilegiam determinadas classes sociais em detrimento de outras, intensificando ainda mais o carter desigual da cidade. Todavia, o planejamento deve ter como objetivo essencial em sua elaborao, amenizar as desigualdades inerentes do prprio processo de produo do espao urbano a fim de alcanar a justia social. No entanto, o planejamento possui faces distintas, as quais do origem a conflitos e disputas, e apontam novos caminhos para que ele - o planejamento seja posto em prtica no intuito de minimizar as desigualdades existentes. PALAVRAS-CHAVE: Ideologia; utopia; planejamento urbano. ABSTRACT Decisions relating to urban planning in the city, privilege certain classes others, further intensifying the iniquity of the city. However, planning has different faces, which give rise to conflicts and disputes, and indicate new avenues for him the planning is put in place in order to minimize inequalities. KEY WORDS: Ideology, utopia, urban planning

    1 Mestranda pelo Programa de Ps-Graduao em Geografia da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (FCT/UNESP), campus de Presidente Prudente. Integrante do Grupo de Estudos em Desenvolvimento Regional e Infraestrutura (GEDRI) e bolsista da Fundao de Amparo Pesquisa do

    Estado de So Paulo (FAPESP).

  • MUNDO DO TRABALHO

    Revista Pegada vol. 12 n.2 82 dezembro/2011

    INTRODUO

    O planejamento um elemento fundamental para compreender a produo e

    organizao do espao urbano, pois ele expressa os interesses dos segmentos coexistentes

    na cidade e pode justificar ou no a ao deles. Tal contraditrio como as aes dos agentes

    sociais concretos (CORRA, 2005), o espao e a legislao tambm o so. A legislao a

    sntese das intenes e interesses latentes no discurso hegemnico, pois formulada

    contendo elementos que facilitam certas iniciativas, sobretudo aquelas ligadas ao mercado

    imobilirio referentes valorizao de localizaes selecionadas pelos que o representam.

    O planejamento apesar de ser uma possibilidade de alcance da justia social na

    cidade apresentado de forma a facilitar as aes que no contribuem com o alcance da

    mesma, possibilitando prticas divergentes de algumas determinaes presentes na redao

    das leis que o regem. Prova disso, a determinao presente no Estatuto da Cidade acerca

    do cumprimento da funo social da propriedade urbana, a qual no posta em prtica nas

    cidades brasileiras.

    Diante disso, admitimos a caracterizao de trs faces ao planejamento urbano: o

    planejamento ideolgico, o planejamento utpico e o planejamento que posto em prtica.

    Objetivamos com essas reflexes, discutir acerca das caractersticas gerais do

    planejamento realizado nas cidades brasileiras, a partir da reflexo terica, tendo por base

    autores que pesquisam acerca do planejamento urbano, e os que escreveram acerca dos

    conceitos de ideologia e utopia.

    A IMPORTNCIA DO PLANEJAMENTO URBANO E A JUSTIA SOCIAL

    O planejamento um dos elementos fundamentais para compreender a produo

    do espao urbano, pois ele expressa as aes e decises dos agentes produtores do mesmo,

    os quais se relacionam de forma contraditria e complexa. Na busca pela manuteno de

    seus interesses, produzem o espao de maneira desigual e contraditria, tal como a prpria

    sociedade capitalista em que os interesses individuais se sobressaem sobre o coletivo e o

    pblico, o que pode ser visto na prpria cidade, bem como nas leis que dela fazem parte,

  • MUNDO DO TRABALHO

    Revista Pegada vol. 12 n.2 83 dezembro/2011

    dentre as quais destacamos neste trabalho, o Plano Diretor e a Lei de Uso e Ocupao do

    Solo Urbano.

    Segundo SOUZA (2010) o planejamento remete ao futuro, significa tentar simular

    os desdobramentos de um processo, no intuito de precaver-se dos problemas e de

    aproveitar da melhor forma os benefcios, por isso importante distinguir planejamento e

    gesto2. Estas so ferramentas imprescindveis para a promoo do desenvolvimento scio-

    espacial, cuja expresso se d a partir da (...) melhoria de vida e um aumento da justia

    social (SOUZA, 2010, p. 75).

    Mas o que seria justia social? Segundo HARVEY (1980, p. 82), a justia social

    um princpio para resolver direitos conflitivos. O princpio da justia social, por isso,

    destina-se diviso dos benefcios e alocao de danos surgidos no processo do

    empreendimento conjunto do trabalho, para isso, o autor assegura que deve haver dois

    questionamentos: O que estamos distribuindo? Entre quem ou que estamos distribuindo

    renda? (p. 83).

    Para tanto, a anlise da justia social est dividida em duas partes, que

    compreendem o que a distribuio justa e estabelece um parmetro para que tal

    distribuio seja realizada. Em funo disso, so estabelecidos os seguintes critrios:

    desigualdade intrnseca; valorizao de servios em termos de oferta e demanda;

    necessidade; direitos herdados; mrito; contribuio ao bem comum; contribuio

    produtiva atual; esforos e sacrifcios. Todavia, apesar de todos esses critrios serem

    necessrios, a essncia da justia social segue respectivamente trs: necessidade;

    contribuio ao bem comum e mrito (HARVEY, 1980).

    Para alcanar a justia social necessria uma forma de organizao social, poltica

    e econmica apropriada. No territrio uma das possibilidades seria encontrar uma forma

    socialmente justa de determinar as fronteiras dos territrios e um modo justo de alocar os

    recursos para ele.

    A partir do exame dos princpios de justia social chega-se ao conceito de justia

    social territorial: a distribuio de renda deveria localizar dentro dos territrios a

    necessidade da populao e a mobilizao de recursos necessrios em diferentes esferas

    para suprir as necessidades dos territrios.

    2 Planejamento e gesto so complementares, porm distintos. O planejamento a preparao para a gesto futura (...) e a gesto a efetivao, ao menos em parte (...) das condies que o planejamento feito

    no passado ajudou a construir (SOUZA, 2010, p. 46). importante enfatizar, portanto, que gesto refere-se ao presente, tem haver com administrar uma situao com recursos disponveis, tendo em vista

    necessidades imediatas.

  • MUNDO DO TRABALHO

    Revista Pegada vol. 12 n.2 84 dezembro/2011

    No espao intra-urbano a justia social deve ser analisada tendo em vista as

    desigualdades de renda expressas na prpria paisagem urbana, cuja origem se d na diviso

    social do trabalho e que tem na renda um importante elemento de diferenciao, a qual

    possibilita aos citadinos o consumo de determinadas mercadorias, equipamentos e do

    prprio espao. A nosso ver, o conceito de justia social aplicado cidade vem no sentido

    de tentar contribuir com uma melhor distribuio de renda a partir da disposio mais

    equitativa dos meios de consumo coletivos, de forma a proporcionar maior acessibilidade

    aos citadinos, por meio de melhores condies de mobilidade atravs da reestruturao do

    sistema de transporte coletivo.

    O planejamento urbano tem muito a contribuir para o entendimento dessas

    questes, possui importante papel para o desenvolvimento scio-espacial, como dito

    anteriormente, em que a justia social um dos objetivos. No entanto, mister ressaltar

    que o planejamento (assim como a gesto) no neutro, a expresso da sociedade, cujas

    marcas das desigualdades so visveis perante o modo de produo vigente e, por isso

    carregado de ideologias e interesses. Interesses que os agentes produtores do espao lutam

    para assegur-los.

    AS FACES DO PLANEJAMENTO URBANO

    SANTOS (2003) afirma que o planejamento possibilitou a entrada rpida e brutal

    do capital internacionalizado nos pases subdesenvolvidos, colaborando com o

    agravamento ou exacerbao de disparidades sociais (p. 13), por isso o planejamento

    visto como um instrumento do capital. SANTOS (2003) aponta trs fases pelas quais

    passou o planejamento no mundo, na primeira fase o planejamento substituiu a

    colonizao; na segunda, dedicou-se ao desenvolvimento dos monoplios na forma

    transnacional; na terceira, o planejamento mostra-se em uma roupagem que d a iluso de

    propiciar a superao da pobreza, o que na verdade, gera uma nova forma de pobreza, a

    pobreza planejada.

    A experincia brasileira com o planejamento est diretamente vinculada

    estrutura poltica, econmica e social do pas; os planos urbansticos aparecem como

    tentativas de solucionar determinados problemas da sociedade e envolvem a ideologia

    dominante nas bases da sociedade hegemnica de cada perodo em questo.

  • MUNDO DO TRABALHO

    Revista Pegada vol. 12 n.2 85 dezembro/2011

    O que previsto em lei resultado e depende dos agentes produtores do espao

    urbano e de seus interesses para, de fato, ser implantado, alm disso, a prpria lei passvel

    de diferentes interpretaes e possui algumas brechas, o que facilita burl-la. Fato que

    explcito no estudo de FIX (2001) que, ao analisar a ao do Estado e os interesses do setor

    imobilirio nas edificaes ao longo do Rio Pinheiros, na cidade de So Paulo fala da

    construo do bairro Panamby, construdo a partir de um planejamento com um Plano

    Diretor prprio apenas para atender a classe alta.

    Para VILLAA (1999, p. 191), por estar atrelado aos interesses da classe

    dominante, o planejamento urbano no Brasil (...) apenas discurso, o planejamento uma

    fachada ideolgica, no legitimando ao concreta do Estado, mas, ao contrrio,

    procurando ocult-la. O autor justifica tal afirmao a partir da exposio dos perodos

    pelo qual o planejamento passou no pas, segundo ele, desde a ascenso dos planos de

    melhoramentos embelezamentos at a formulao de superplanos, a classe dominante

    fez sobressair seu discurso ideolgico reformulando-o para garantir seus interesses.

    Fazendo um paralelo entre as afirmaes de Villaa e a tipologia de SOUZA (2010),

    observamos que, mesmo com a mudana das fortes tendncias entre planejamento e

    regulatrio e perspectivas mercadfilas, um elemento permaneceu: a aliana entre

    representantes da iniciativa privada e Estado, muitas vezes, havendo dificuldade de

    diferenciao entre essas duas figuras.

    Para VILLAA (1999, p. 180), s pode ser considerado da esfera do

    planejamento urbano (...) apenas aquelas aes do Estado sobre o urbano que tenham

    sido objeto de algum plano (...). Mas, nesse sentido, cabe uma observao: se o

    planejamento no Brasil ideolgico os planos so, na maior parte das vezes, formas de

    esconder o planejamento que realmente se pratica, que aquele pensado a fim de fazer

    com que as decises e aes atuais garantam tambm para o futuro o status quo. Por isso,

    em nossa concepo essa forma extra-oficial de agir sobre o espao tambm planejada e,

    por isso considerada planejamento.

    Para avanar um pouco nessas questes nos atentaremos ao significado de

    ideologia.

    Para Marx, ideologia uma forma de falsa conscincia que corresponde aos

    interesses de classe, sendo: (...) o conjunto de idias especulativas e ilusrias (socialmente

    determinadas) que os homens formam sobre a realidade, atravs da moral, da religio, da

    metafsica, dos sistemas filosficos, das doutrinas polticas e econmicas etc. (LWY,

  • MUNDO DO TRABALHO

    Revista Pegada vol. 12 n.2 86 dezembro/2011

    1987, p. 10). A ideologia um instrumento de dominao utilizado para que a dominao

    seja mantida, mas que no seja percebida. CHAU (1984, p. 92) resume ideologia como

    (...) o processo pelo qual as idias da classe dominante se tornam idias de todas as classes

    sociais, se tornam idias dominantes.

    LWY (1987, p. 10 e 11) apresenta que a definio de ideologia contraposta a

    de utopia, sendo que a primeira entendida como (...) uma forma de pensamento

    orientada para a reproduo da ordem estabelecida (...), e a segunda (...) define as

    representaes, aspiraes e imagens-de-desejo (Wunschbilder) que se orientam na ruptura da

    ordem estabelecida e que exercem uma funo subversiva (um wlzende Funktion) [grifos do

    autor]. O pensamento utpico desacreditado, (...) visto que no senso comum sempre

    torna o substantivo utopia e o adjetivo utpico como sinnimos de, respectivamente,

    fantasia inconseqente e fantasista (SOUZA, 2006, p. 517).

    A ideologia possui grande fora atravs da dominao, que se fortalece a partir,

    principalmente da manipulao por meio da mdia. Neste sentido, SOUZA (2006) busca

    em Paulo Freire, a concepo de educao bancria para assimilar o educador ao planejador

    (que chama de educador-social), cujo depsito de idias e conhecimentos ocorre sem a

    utilizao do dilogo. Souza prope no mbito do planejamento urbano o que Paulo Freire

    props em relao educao libertria, enfatizando a necessidade de um planejador que

    estimule o dilogo entre ele e a sociedade a fim de construir coletivamente um

    planejamento, que optamos chamar aqui de utpico.

    Neste sentido, deve haver maior comprometimento do Estado com as classes

    sociais menos favorecidas, para que suas aes estejam pautadas no planejamento que

    objetive promover maior desenvolvimento socioespacial, o que colaborar com a

    transformao social, desde que no esteja apenas baseado na racionalidade tcnica guiada

    por critrios econmicos (VASCONCELLOS, 2001).

    O planejamento que no contempla as questes sociais aprofunda ainda mais as

    desigualdades, gerando o que VILLAA (1998) interpretou como a existncia de duas

    cidades no mesmo espao: a dos segregados involuntariamente e a dos auto-segregados, ou

    seja, uma desigualdade social e espacial ao mesmo tempo. Embora o autor tenha pontuado

    dois tipos de segregao, ele afirma que, na verdade, existe apenas uma, j que a voluntria

    gera a involuntria, isso se deve ao fato de que a segregao se d a partir de um

    movimento dialtico, seguindo a mesma lgica do escravo e do senhor. A estrutura social

    no capitalismo demanda essas contradies, pois elas contribuem para o movimento

  • MUNDO DO TRABALHO

    Revista Pegada vol. 12 n.2 87 dezembro/2011

    circulatrio do capital sem o qual o capitalismo no existiria. LOJKINE (1997) apresenta

    trs nveis de segregao: o nvel da habitao, o nvel dos meios de consumo coletivos e o

    nvel do transporte domiclio-trabalho.

    Para colocar o planejamento urbano utpico em prtica no h apenas

    dependncia dos recursos tcnicos e instrumentos legais, mas decises no apenas na esfera

    econmica como tambm e, principalmente poltica.

    Deve haver maior comprometimento com as classes menos favorecidas, para que,

    se possa caminhar rumo justia social, a qual atualmente s existe no mbito da utopia. O

    planejamento urbano um importante elemento para discutir questes que se referem

    minimizao das desigualdades na cidade, pois a partir dele que as aes e decises

    tomadas no mbito informal tm a possibilidade de serem regulamentadas, afinal por

    meio das leis que se viabilizam os projetos que colaboram com mudanas nas condies de

    vida da populao.

    O PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL

    Refletir acerca do planejamento urbano no Brasil necessrio, haja visto que as

    mudanas sofridas por ele, denunciaram a ideologia existente em cada momento histrico

    distinto. VILLAA (1999) ao tratar sobre a histria do planejamento urbano, apresenta trs

    perodos, cuja importncia se fez notvel, a qual permite analisar o carter do mesmo. Os

    perodos destacados pelo autor compreendem: 1875 1930; 1930 a 1990; e de 1990 em

    diante.

    O perodo compreendido entre 1875 e 1830, foi aquele em que as obras de

    embelezamento e melhoramento tiveram destaque, sobretudo nas cidades do Rio de

    Janeiro e de So Paulo. No Brasil, em meados na dcada de 1930 esse tipo de planejamento

    representava a ao concreta do Estado, com objetivos que no condiziam com o discurso.

    Villaa destaca que Foi sob a gide dos planos de embelezamento que nasceu o

    planejamento urbano (lato sensu) brasileiro (p. 193). Ao dar o exemplo do Rio de Janeiro,

    o autor afirma que, j no incio do planejamento no Brasil, constatou-se que (...) os

    interesses imobilirios estavam por detrs dos grandes projetos urbanos, os quais

    patrocinavam, discutiam, defendiam ou atacavam (p.195). Neste sentido a face ideolgica

  • MUNDO DO TRABALHO

    Revista Pegada vol. 12 n.2 88 dezembro/2011

    do planejamento urbano faz-se presente com a presena de um discurso baseado no

    privilegiamento dos interesses da classe dominante.

    O discurso ideolgico tambm se faz presente no segundo perodo que

    VILLAA (1999) seleciona para caracterizar como um perodo importante na histria do

    planejamento urbano no Brasil, o qual vai de 1930 a 1990. O autor apresenta a tentativa de

    esconder a origem dos problemas, atribuindo ao planejamento funo de solucion-los,

    os problemas eram, portanto, entendidos como fruto do crescimento catico, para os quais

    a soluo estaria no planejamento racional com tcnicas e mtodos bem definidos.

    No perodo da ditadura militar o planejamento caracterizou-se como justificativa

    para construo de obras, principalmente as de infraestruturas ligadas ao transporte. Para

    SOUZA e RODRIGUES (2004), neste perodo o planejamento teve carter conservador,

    pois as decises foram tomadas por um pequeno grupo para manuteno de uma ordem

    vigente. O objetivo deste planejamento, durante a dcada de 1970 era

    (...) ordenar a cidade de forma que a ao dos diferentes tipos de capitais (principalmente o imobilirio e o industrial) pudesse ser facilitada, em outras palavras, buscava ordenar a cidade para permitir maiores possibilidades de lucro. nesse contexto extremamente autoritrio que vai acontecer uma srie de intervenes e transformaes na cidade, intensificando e consolidando a segregao

    residencial (SOUZA e RODRIGUES, 2004, p. 42 e 43)

    Assim, com o passar dos anos, o planejamento vai se tornando cada vez mais

    prximo dos interesses dos agentes ligados iniciativa privada, seus traos tomam forma a

    cada adequao (necessria) no discurso dominante para manter o status quo, atribuindo ao

    planejamento um carter ideolgico. Nessa perspectiva VILLAA (1999, p. 191) destaca

    que o planejamento urbano na Europa e nos Estados Unidos, corresponde, em parte, a

    ao concreta do Estado, diferentemente no Brasil que constitui-se (...) apenas de

    discurso, o planejamento uma fachada ideolgica, no legitimando ao concreta do

    Estado, mas, ao contrrio, procurando ocult-la. O que h de semelhante entre Brasil,

    Europa e Estados Unidos que atrs da fachada do planejamento existe a dominao, o

    poder, (...) a grande diferena est nos nveis de hegemonia, aceitao e credibilidade desse

    poder.

    Com a construo dos planos, o discurso se tornou cada vez mais hegemnico,

    todavia, com o processo de urbanizao e a conseqente intensificao da desigualdade,

    sugiram movimentos urbanos que passaram a contestar esse discurso (...) especial e

  • MUNDO DO TRABALHO

    Revista Pegada vol. 12 n.2 89 dezembro/2011

    precisamente naqueles setores nos quais ela vinha tradicionalmente intervindo: nos setores

    imobilirio e no do sistema virio e de transportes (VILLAA, 1999, p. 204). Diante de tal

    situao, a classe dominante adaptou seu discurso nova realidade, essa iniciativa

    apontada por Villaa como a gnese planejamento integrado, o qual desencadeou os

    superplanos. Surge, portanto, uma nova maneira de formular o planejamento em

    substituio aos antigos planos de melhoramento e embelezamento no objetivo de

    abranger os aspectos gerais da cidade e seus problemas, denominado plano geral, cujos

    primeiros planos surgiram na dcada de 1930 com os planos Agache no Rio de Janeiro e

    Prestes Maia em So Paulo, a principal novidade desses planos era o destaque para a infra-

    estrutura, principalmente a de saneamento e transportes3.

    Mantem-se, entretanto, o interesse pelas oportunidades imobilirias que as remodelaes urbanas oferecem, e nesse sentido o centro da cidade ainda o grande foco de ateno dos planos. No discurso, entretanto, pretende-se abordar a cidade inteira. (VILLAA, 1999, p. 207).

    O plano Agache, do Rio de Janeiro o primeiro a usar a expresso plano diretor.

    No Brasil, o plano diretor se difunde a partir da dcada de 1940, substitudo por outros

    nomes a partir de 1960, perodo que estendeu-se at o fim da dcada de 1980, passando

    pelo perodo ditatorial em que foram associados tecnocracia, volta a ter o nome original

    com a Constituio de 1988.

    O discurso do plano diretor e do urbanismo multidisciplinar gera o plano-

    discurso, assim chamado por VILLAA (1999). Para o autor, os planos representaram

    trs diferentes perodos no Brasil, entre os anos de 1930 a 1990: Urbanismo e plano diretor

    (1930-1965 apresentado anteriormente); do planejamento integrado e dos superplanos

    (1965-1971) e dos planos sem mapa (1971-1992).

    O planejamento integrado trazia no discurso dos que o defendiam, a necessidade

    de ver a cidade alm de seus aspectos fsicos, dessa forma o argumento era que Os planos

    no podem limitar-se a obras de modelagem urbana; eles devem ser integrados tanto do

    ponto de vista interdisciplinar como do ponto de vista espacial, integrando a cidade em sua

    regio (VILLAA, 1999, p. 212). O Planejamento integrado no se insere na esfera

    poltica, mas na ideolgica porque se limita ao discurso no atingindo a ao real do

    Estado.

    3 O Plano Prestes Maia foi denominado apenas como Estudo de um Plano de avenidas porque vrias pginas para o sistema de transportes.

  • MUNDO DO TRABALHO

    Revista Pegada vol. 12 n.2 90 dezembro/2011

    O apogeu tcnico, no entanto, vem com os superplanos, que, devido

    abrangncia aproximaram-se muito mais de recomendaes para criao de outros planos,

    distanciando o plano e suas propostas, da possibilidade de implantao. O auge foi atingido

    na atuao do Servio de habitao e Urbanismo (Serfhau), criado no incio do regime

    militar. Nessa poca foi elaborado tambm o Plano Urbanstico Bsico do municpio de

    So Paulo (PUB), feito por um corpo tcnico que, segundo Villaa aps sua finalizao

    acabou indo direto para o arquivo da prefeitura.

    No incio da dcada de 1970, mas especificamente no ano de 1971 aprovada a lei

    n. 7.688 que institua o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado do Municpio de So

    Paulo (PDDI), esse plano caracteriza o terceiro perodo dos planos no Brasil, em que eles

    passam de tcnicos e sofisticados a simplrios, Villaa, apelida-os de planos sem mapa, essa

    expresso adotada pelo autor busca designar o plano enquanto nova adaptao da ideologia

    dominante em seu discurso, na tentativa de dar a impresso que o planejamento urbano

    estava a seus cuidados e que, estava sendo constantemente aperfeioado, as caractersticas

    desse novo tipo de plano so facilmente perceptveis pois apresentam (...) apenas

    objetivos, polticas e diretrizes, essa uma estratgia interessante porque tenta esconder as

    disputas e os conflitos, j que a idia do plano diretor de princpios e diretrizes est

    associada de posterior detalhamento, e isso nunca ocorre. (VILLAA, 1999, p. 221).

    Com tudo isso, o plano diretor passa a ser uma atividade intelectual, pautada apenas no

    discurso que, cumpre sua misso ideolgica ao maquiar os problemas da maioria e manter

    os interesses dominantes. Para o autor, o Plano Diretor sobrevive porque est inserido na

    ideologia dominante em relao aos problemas e suas causas e sobre a iseno e

    objetividade da tcnica.

    Nos anos oitenta devido influncia neoliberal, o endividamento e estagnao

    econmica, o planejamento regulatrio perde fora. Este perodo, segundo SOUZA, (1988,

    p. 70), caracterizou-se por (...) tentativas formalistas e funcionalistas de planejamento,

    traduzidas na filosofia dos planos diretores, com suas propostas de planejamento, e nos

    mltiplos planos regionais e estaduais.

    No entanto, no fim dos anos de 1980 novas possibilidades surgiram atravs da

    Constituio de 1988 a qual representou um avano na possibilidade do Plano Diretor ser

    um instrumento que define se a propriedade est ou no cumprindo sua funo social. Por

    esse motivo, o ltimo perodo que Villaa apresenta, sobre a histria do planejamento no

    Brasil, compreende a dcada de 1990 em diante e, para ele, representa uma reao s

    formas anteriores de planejamento, pois trs uma nova viso baseada na retomada dos

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    Revista Pegada vol. 12 n.2 91 dezembro/2011

    planos diretores e da maior democratizao da gesto urbana, sendo assim admite que o

    processo de politizao do planejamento no Brasil s tem incio neste sculo.

    Para que pudessem ser implantados os princpios presentes na Constituio de

    1988, eram necessrios instrumentos que a regulamentassem e que incorporasse os

    princpios constitucionais, previstos no captulo que dispe sobre a poltica urbana. Com a

    aprovao do Estatuto da Cidade em 2001 (Projeto de Lei n. 5.788/90), em combinao

    com aquele captulo e com o texto da Medida Provisria n. 2.220/01

    (...) a regulamentao urbanstica passa a ser tratada como um processo, com etapas sucessivas: a formulao de instrumentos urbansticos que serviam para realizar e implementar os princpios, objetivos e diretrizes estabelecidos pelo Plano; sua aprovao na Cmara Municipal; sua fiscalizao e reviso peridica a partir do cotejamento entre a estratgia proposta e os resultados alcanados. (AZEVEDO, 2004, p. 156)

    Foi a partir da implantao que os resultados causados pelo planejamento tiveram

    a possibilidade de serem acompanhados de perto pelo poder pblico municipal. Com isso,

    os municpios brasileiros passaram a ser vistos como unidades de planejamento no espao,

    sendo que ao poder pblico local foi dada maior autonomia em relao ao gerenciamento

    de seu ordenamento territorial, por meio do estabelecimento do Plano Diretor4, o que

    proporcionou responder de maneira mais efetiva s necessidades da populao

    (RODRIGUES, 2005).

    Todavia, existem obstculos para a implantao dos princpios contidos no

    Estatuto da Cidade, esses obstculos so colocados, pois os interesses entre os agentes que

    coexistem na cidade so distintos. SOUZA e RODRIGUES (2004) apontam os obstculos

    como sendo de natureza poltica, econmica e sociopoltica. SILVA (2003) acredita que o

    Estatuto da Cidade alcanar a plenitude quando incorporar polticas de carter distintos,

    dentre muitas que menciona est poltica de transporte.

    Apesar dessa nova direo que toma o planejamento no Brasil, a partir de 1990,

    SOUZA e RODRIGUES (2004) afirmam que nessa dcada, que o planejamento

    consolida seu carter mercadfilo, pautado na defesa dos interesses individuais em

    detrimento do pblico e do coletivo. Isso se deve a aproximao cada vez maior entre o

    poder pblico e a iniciativa privada. Neste sentido, para respaldar algumas aes e decises

    4 O Plano Diretor normatiza os princpios presentes no Estatuto da Cidade, na escala municipal e, consiste

    em uma lei obrigatria para municpios com mais de vinte e mil habitantes.

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    Revista Pegada vol. 12 n.2 92 dezembro/2011

    o discurso ideolgico se faz presente, justificando certas iniciativas como necessrias para a

    populao.

    CONSIDERAES FINAIS

    O planejamento que no contempla as questes sociais corrobora com o aumento

    da injustia social e da desigualdade. Apesar da elaborao das leis que regulamentam o

    planejamento urbano estarem suscetveis aos interesses da iniciativa privada, ainda assim,

    h necessidade de um planejamento urbano elaborado de forma crtica, que contemple os

    distintos mbitos da vida social (CARNEIRO, 1998), tratando de maneira diferente, os

    diferentes, no intuito de dispor de forma mais eqitativa os investimentos na cidade.

    Para colocar o planejamento urbano utpico em prtica no h apenas

    dependncia dos recursos tcnicos e instrumentos legais, mas decises no apenas na esfera

    econmica como tambm e, principalmente poltica. A ideologia imposta ao planejamento

    tem sua raiz no conflito das classes sociais, em que aquelas que possuem maior poder

    aquisitivo influenciam de forma decisiva na elaborao e aprovao das leis que

    regulamentam o planejamento urbano, visto que, maior a quantidade de representantes

    do poder pblico que fazem parte dessa classe, confundindo, portanto, os interesses do

    Estado com os interesses hegemnicos, resultado do estabelecimento de alianas entre

    iniciativa privada e poder pblico.

    O planejamento posto em prtica se d de forma perversa, pois est a servio do

    capital, e maquiado pelas leis e planos que tentam justificar suas aes. Neste sentido,

    emerge a cada momento histrico a necessidade de um planejamento que contemple as

    necessidades sociais, o qual tem sido concebido atualmente apenas no mbito da utopia.

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    Revista Pegada vol. 12 n.2 93 dezembro/2011

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