Fabio Mura
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
MUSEU NACIONAL
Programa de Ps-graduao em Antropologia Social
Fabio Mura
PROCURA DO BOM VIVER
Territrio, tradio de conhecimento e ecologia domstica entre os
Kaiowa
Vol. I e II
Rio de Janeiro
2006
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Fabio Mura
PROCURA DO BOM VIVER
Territrio, tradio de conhecimento e ecologia domstica entre os
Kaiowa
Tese de doutorado apresentada
ao Programa de Ps-graduao
em Antropologia Social do
Museu Nacional - U F R J
Rio de Janeiro
2006
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procura do bom viver: Territrio, tradio de conhecimento e ecologia
domstica entre os Kaiowa
Fabio Mura
Tese submetida ao corpo docente do Programa de Ps-Graduao em
Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS-MN) da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), como requisito necessrio obteno do grau de Doutor.
Aprovada por:
___________________________________________ Orientador
Prof. Dr. Joo Pacheco de Oliveira
___________________________________________
Prof. Dr. Antnio Carlos de Sousa Lima
___________________________________________
Prof. Dr. Moacir Gracindo Soares Palmeira
___________________________________________
Prof. Dr. John Manuel Monteiro
___________________________________________
Prof. Dr. Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto
___________________________________________
Prof. Dr. Carlos Fausto
___________________________________________
Dr. Guillermo Wilde
Rio de Janeiro
2006
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Ficha Catalogrfica
Mura, Fabio.
procura do bom viver: territrio, tradio de conhecimento e
ecologia domstica entre os Kaiowa / Fabio Mura.-- Rio de Janeiro: UFRJ/ MN/
PPGAS, 2006.
504 p.: il. Tese Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu
Nacional PPGAS.
1. Guarani-Kaiowa.
2. Territrio, tradio de conhecimento, ecologia domstica.
3. Tese (Doutorado UFRJ / PPGAS / Museu Nacional). I. Ttulo.
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Para Alexandra e Pedro Tiberio,
com infinito amor.
Para Rubem, colega e
companheiro, por ter me apresentado
aos Guarani, e por essa nossa jornada,
sempre juntos, pelas trilhas tecidas por
estes ndios.
memria de meu companheiro
Lzaro, de Pirakua, cuja perda
entristeceu meu corao.
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Agradecimentos
O longo percurso que resultou no presente trabalho viabilizou-se graas a
auxlios de diversas ordens, os quais venho aqui a reconhecer publicamente.
A pesquisa, assim como a sua concretizao nesta tese, so em grande parte
devedoras da dotao que me foi concedida pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), atravs de uma bolsa de doutorado,
auxlio este de extrema valia.
Minha experincia de dois anos como professor visitante na Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) caracterizou-se como bastante profcua,
permitindo-me um sistemtico desenvolvimento de etapas de pesquisa e debates com
colegas e alunos indgenas e no-indgenas. Foi durante este perodo que pude tambm
desenvolver muitas das reflexes que aqui se consolidam.
No que diz respeito especificamente ao PPGAS do Museu Nacional, diversas
so as pessoas que, com sua amizade, estmulo e/ou prstimos, contriburam para o bom
fluir de meu trabalho. Assim, agradeo inicialmente a meu amigo e orientador,
professor Joo Pacheco de Oliveira, por ter me deixado expressar livremente minha
criatividade, sem, contudo, faltar em me apresentar crticas e observaes construtivas,
que foram valiosssimas para a realizao desta tese.
Agradeo tambm de modo especial aos professores Antnio Carlos de Sousa
Lima, Federico Guillermo Neiburg, Moacir Gracindo Soares Palmeira e Carlos Fausto,
que me acompanharam e me brindaram com vrios aportes, em diversos momentos.
Dentre as pessoas da secretaria do PPGAS, sem desconsiderar a ateno dos
demais, apresento minha gratido a Tnia e, mais recentemente, a Elisabete Ferreira,
me e filha, pela eficincia marcante com que sempre me atenderam e pelas inmeras
vezes em que quebraram meu galho.
A Isabel, Cristina e Carla, agradeo muito a ateno prestimosa no atendimento
na biblioteca.
No mbito mais ntimo, compartilhei e compartilho de amizades fundamentais,
com as quais, nas mesas de bares e/ou festas, em encontros acadmicos, em trabalho de
campo e/ou em reunies profissionais, conversei sobre coisas da vida e debati temas,
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textos e autores com grande paixo, algo que foi fundamental para me enriquecer e para
compreender o nvel e os limites de minhas reflexes. No Rio de Janeiro, lembro
especialmente de Andrey Cordeiro, Andrea Roca, Dbora Reston, Edmundo Pereira,
Elizabeth Linhares, Evangelina Mazur, Fernando Rabossi, Guillermo Wilde, Hernn
Gmez, Laura Zapata, Maria Jos Freire, Mariana Paladino, Renata Valente, Roberto
Salviani, Rolando Silla, Rubem Thomaz de Almeida e Sergio Chamorro. J em
Dourados, Mato Grosso do Sul, fiz diversos companheiros: Adilson Crepalde, Antnio
de Carvalho, Carlos Pacheco, Charles Pessoa, Gleice Barbosa, Jorge Eremites, Levi
Pereira, Loureno Alves, Marcos Homero Lima, Ramiro Rockenbach, Rosely Stefanes,
Spensy Pimentel, Vito Comar e Zelick Trajber. A estas pessoas digo: muito obrigado
por tornarem minha vida mais rica.
O kaiowa Tonico Benites merecedor de uma ateno particular. Em um
primeiro momento, como informante, foi de uma preciosidade nica. Depois, como
colega, debatendo com uma profundidade incomum os temas levantados durante as
minhas e as suas pesquisas, foi mais precioso ainda. Finalmente, como amigo, com
quem ao longo de quase quatro anos compartilhei momentos de alegria e de ansiedade,
em um relacionamento que foi (e vai ainda) bem mais alm dos limites estabelecidos em
uma dinmica de investigao, humanamente me enriqueceu muito. Tonico: te agradeo
enormemente.
Em casa, onde todos se mobilizaram para que esta empresa chegasse a bom fim,
contra dvidas enormes. Com meu filho, Pedro Tiberio, pela alegria e energia
fornecidas a cada dia; com minha sogra/me Dona Dora, pela sua vitalidade e
solidariedade; com minha cunhada/filha Marianna, pela sua preciosa ajuda na
composio da grfica e da bibliografia da tese; com minha companheira Alexandra,
pelo amor e pacincia comigo, e pela grande dedicao em debater nos mnimos
particulares o trabalho, e na detalhada reviso do mesmo; a eles, os meus mais sinceros
agradecimentos.
Em casas mais distantes, agradeo a meus pais, Liana e Giovanni, que, de Roma,
sempre torceram por mim, nunca me deixando sem apoio, e tambm a minha irm,
Claudia, pelo seu carinho, solidariedade e contribuio intelectual: muito obrigado.
Finalmente, agradeo aos Kaiowa e andva de todos os patamares do Cosmo,
por terem me recebido e por tudo o que me ensinaram; a eles vo os meus mais
humildes e calorosos agradecimentos.
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...sempre seremos irmos dos ande Rykey [deuses]. Apesar de hoje usarmos roupas diferentes e enfeites diferentes dos ande Rykey, eles vo nos reconhecer por meio de colar, voz, emboe, jeguaka etc. Com estes enfeites, vo nos reconhecer. Mesmo ns tendo errado porque no nos comportamos mais como eles; mesmo que vivamos j diferentes deles, pois ficamos bbados, violentos, brincamos muito; mesmo que nossas roupas, alimentos, atitudes, modo de ser, sejam diferentes de Nossos Irmos; mesmo que queiramos ser diferentes deles, isto impossvel, porque eles so Nossos Irmos legtimos, so nosso princpio, sempre gostam de ns! Eles aceitam, no esto nos excluindo por causa de nossos novos comportamentos. Eles tm a misso e a obrigao de cuidar dos seus irmos menores em qualquer situao (Xam Atans, ande Ru Marangatu, 06 de agosto de 2000).
A jarra uma coisa como recipiente. Este recipiente, sem dvida, necessita de uma produo. Mas o fato de ser produzida por um ceramista no constitui de fato o que pertence jarra enquanto jarra. A jarra no um recipiente pelo fato de ter sido produzida, mas, ao contrrio, a jarra teve de ser produzida pelo fato de que este recipiente (M. Heidegger 1991 [1957]: 111; traduo prpria).
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Resumo
O presente trabalho busca descrever e analisar a organizao territorial, a
tradio de conhecimento e a relao estabelecida com o mundo material por parte dos
Guarani Kaiowa contemporneos localizados no Mato Grosso do Sul. Para tal, pretende
se distanciar das abordagens sistmicas, que procuram entender a vida social e a relao
com os elementos materiais a partir de estruturas e/ou sistemas abstratos, preconcebidos
e coerentes o que oferece imagens incongruentes dos vrios aspectos da vida atual
desses ndios. Evita-se aqui distinguir a priori entre natureza e sociedade, buscando-se
analisar as atividades dos Kaiowa inseridas em contextos scio-ecolgico-territoriais,
contextos estes resultantes da configurao processual dos elementos do Cosmo, em
uma determinada situao histrica e espao geogrfico. Nestes termos, as atividades
polticas, a ao sobre a matria e as relaes entre seres viventes so vistas como
seqncias concatenadas a partir dos atos de sujeitos histricos precisos. Tais sujeitos
constroem grupos e sistemas abertos e instveis, tendo como ponto de referncia e como
fator limitador as observaes morais procedentes da tradio de conhecimento qual
aferem. possvel constatar que, entre esses indgenas, a unidade domstica, constituda
por uma famlia extensa, o grupo de articulao menos instvel e mais almejado,
sendo a partir deste ponto de referncia que os indivduos produzem, articulam,
integram e/ou adaptam historicamente conhecimentos, valores e elementos materiais,
numa procura constante pelo bom viver (tekove por).
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Abstract
This research effort aims to describe and analyze the territorial organization,
tradition of knowledge and the relationship established with the material world by the
contemporary Guarani Kaiowa indigenous people, situated in Mato Grosso do Sul. For
this purpose, one needs to take a certain distance from the systemic approaches which
try to understand social life and the relationship with material elements based on
structures and/or abstract systems, of a preconceived and coherent nature thus offering
incongruent images of the various facets of the present life situation of these indigenous
groups. Avoiding to distinguish a priori between nature and society, Kaiowas activities
are analyzed in their insertion within the socio-ecological-territorial contexts, which
result from the process of configuration of the elements of the Cosmos, within a specific
historical situation and geographical space. Within these terms, political activities,
actions over material reality and the relationships between living beings are seen as
concatenated sequences starting from the acts of precise historical subjects as a
benchmark. These very subjects construct groups and open and unstable systems,
setting as their benchmark - and as a limiting factor - the moral observation forthcoming
from the tradition of knowledge from which they spring. It is possible to verify that, for
these indigenous people, the domestic unit, constituted by the extended family, is the
least unstable and most sought for group for articulations. It is starting from this
reference point that individuals produce, articulate, integrate and/or historically adapt
their knowledge, values and material elements, within a constant search for the good
life (tekove por).
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Sumrio
INTRODUO........................................................................................14
PARTE I: SITUAES HISTRICAS....................................................30
Captulo I: Os Guarani pr-colombianos ................................................................................. 36
1.1 Organizao territorial e poltica ........................................................................................ 36
1.2 Atividades tecno-econmicas............................................................................................. 48
Captulo II: Os Guarani aps a conquista europia ................................................................ 54
2.1 O regime das encomiendas, as redues jesuticas e as bandeiras paulistas..................... 54
2.2 Os Guarani no sul da Provncia de Mato Grosso ............................................................... 59
2.3 Organizao territorial e atividades tecno-econmicas...................................................... 64
Captulo III: O ciclo da erva mate............................................................................................. 74
3.1 A Cia. Matte Larangeira e o sistema do barraco........................................................... 74
3.2 Dinmica territorial e organizao domstica .................................................................... 77
Captulo IV: A espoliao das terras guarani .......................................................................... 81
4.1 O processo de aldeamento compulsrio............................................................................. 81
4.2 ndios aldeados e desaldeados..................................................................................... 86
Captulo V: Conflito fundirio e Constituio Federal de 1988 ............................................. 89
5.1 Da luta pela terra redefinio do papel do Estado aps a CF de 1988 ............................ 89
5.2 Da flexibilizao diversificao das atividades domsticas ............................................ 90
5.3 Dados sobre a situao contempornea das Terras Indgenas Kaiowa e andva ............ 94
PARTE II: TERRITRIO E POLTICA .................................................102
Captulo VI: Dinmica territorial............................................................................................ 103
6.1 Relaes cosmolgicas com a Terra ................................................................................ 104
6.2 Morfologia social.............................................................................................................. 109
6.3 A noo de tekoha ............................................................................................................ 113
6.4 Dinmica territorial e organizao do teyi ...................................................................... 123
6.5 - O tekoha guasu............................................................................................................... 131
Captulo VII: Organizao poltica ......................................................................................... 139
7.1 O teyi e a construo da comunidade poltica................................................................. 140
7.2 Relaes intercomunitrias simtricas e assimtricas ...................................................... 152
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7.3 O cargo de capito e as polticas intertnicas ............................................................... 156
7.4 O conflito na reserva de Limo Verde e seu desfecho ..................................................... 165
7.5 As Aty Guasu.................................................................................................................... 173
Captulo VIII: Dinmica territorial e processos polticos na T.I. Jaguapire ...................... 180
8.1 Jaguapire e o tekoha guasu de referncia ......................................................................... 182
8.2 Processo de reivindicao e reocupao da terra de Jaguapire ........................................ 184
8.3 Dinmica territorial e de parentela em Jaguapire............................................................. 186
8.4 A luta poltica em Jaguapire e a reivindicao de Karaguatay ........................................ 189
8.4 Algumas consideraes gerais.......................................................................................... 192
PARTE III: TRADIO DE CONHECIMENTO ....................................202
Captulo IX: Arquitetura e dinmica do Cosmo.................................................................... 210
9.1 O ra Ypy (o espao-tempo das origens) e suas transformaes..................................... 210
9.2 O ra Ypyr (o espao-tempo atual) e o Ararapyre (o fim do tempo do bom viver)...... 228
9.3 Relaes cosmolgicas: entre quadro normativo e prtica social .................................... 241
Captulo X: O modo de ser kaiowa (ande reko) e a integrao social do indivduo......... 255
10.1 Construo da pessoa ..................................................................................................... 255
10.2 O teko por perante o teko reta e as conseqncias para a famlia extensa................... 261
10.3 Doenas e prticas de cura ............................................................................................. 264
10.4 O consumo de bebidas alcolicas e a prtica do suicdio .............................................. 278
10.5 Feitiaria e tcnicas mgicas positivas ........................................................................... 284
Captulo XI: O xam................................................................................................................. 303
11.1 A formao ..................................................................................................................... 305
11.2 Xamanismo e tradio de conhecimento........................................................................ 314
Captulo XII: A trajetria histrica dos chiru ....................................................................... 327
12.1 Caractersticas do chiru .................................................................................................. 328
12.2 Chiru e a dominao colonial......................................................................................... 332
12.3 Chiru e tradio de conhecimento.................................................................................. 337
PARTE IV: ECOLOGIA DO GRUPO DOMSTICO .............................342
Captulo XIII: Bagagem material e atividades tecno-econmicas........................................ 349
13.1 O habitat ......................................................................................................................... 350
13.2 Organizao habitacional ............................................................................................... 361
13.3 Formao e diversificao da bagagem material ........................................................... 382
13.4 As atividades tecno-econmicas..................................................................................... 393
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Captulo XIV: Racionalidades, temporalidades e tecnologias em confronto ...................... 421
14.1 Normas e prticas de transao e uso dos recursos materiais ........................................ 423
14.2 Relao com os patres............................................................................................... 430
14.3 Atividades indigenistas................................................................................................... 437
14.4 Racionalidades, temporalidades e a dinmica do jeheka ............................................... 455
CONCLUSES.....................................................................................467
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................479
GLOSSARIO.........................................................................................499
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Introduo
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Em fevereiro de 1991 empreendi minha primeira pesquisa de campo entre os
Kaiowa, com o intuito de investigar aspectos da vida religiosa destes ndios, pesquisa
esta que devia constituir o material emprico para a redao da tese de graduao na
disciplina Antropologia Social, do curso de Letras da Faculdade de Letras e Filosofia
da Universidade de Roma La Sapienza. O meu interesse pelos fatos religiosos
derivava de minha trajetria nesta universidade, meu plano de estudos de cunho
antropolgico sendo constitudo em mais de um tero por matrias inscritas no mbito
da Histria das Religies. Especificamente, os exames feitos para a disciplina
Religies das populaes primitivas cujo programa incorporava textos sobre ndios
sulamericanos me estimularam a procurar entrar em contato com algum grupo
indgena, particularmente no Chaco argentino, onde uma equipe italiana estava
conduzindo pesquisas entre os Matacos. Em 1988, porm, durante uma viagem turstica
ao Rio de Janeiro, tive um casual encontro com Rubem Thomaz de Almeida,
antroplogo que havia dirigido uma ONG que implementava projetos de etno-
desenvolvimento entre os Kaiowa e andva de Mato Grosso do Sul, nos anos de 1970
e 1980. A partir desse contato, estabeleci um dilogo com Rubem, que me levou a
redefinir o local de pesquisa, os ndios a serem abordados e, tambm, a refletir sobre
alguns preconceitos oriundos de minha formao a respeito da presumida aculturao
dos povos indgenas1.
Foi assim que, voltando para a Itlia e entusiasmado pelo contato estabelecido
no Brasil, me mobilizei para conseguir as condies institucionais para convidar
Rubem, na inteno de realizar um seminrio voltado a fazer aprofundamentos sobre
trabalho de campo, etno-desenvolvimento e relaes intertnicas entre os Guarani.
Juntamente com outros colegas estudantes, em 1990 consegui que este convite se
tornasse realidade, o Departamento de Estudos Gloto-Antropolgicos da universidade
aceitando a proposta estudantil, oficializando-se a iniciativa. O seminrio ministrado por
Thomaz de Almeida no ms de maio de 1990 inaugurava um ciclo de trs, dedicados
1 Na poca, os meus parcos conhecimentos sobre os ndios das Amricas, incluindo a os prprios Guarani, derivavam principalmente da leitura de estudos sobre movimentos milenaristas e processos de ocidentalizao, foco de interesse da escola romana de Histria das Religies. Gilberto Mazzoleni, ministrante do curso de Religies dos povos primitivos, havia organizado, junto com Pompa e Santiemma, um livro intitulado LAmerica rifondata (1981), cujo pressuposto bsico era demonstrar que os ndios produziam movimentos milenaristas e concepes de mundo como resposta ao Ocidente europeu. A idia da aculturao religiosa, embora no explicitamente elaborada como teoria, estava subjacente perspectiva dessa vertente de estudos.
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aos Guarani, a ele seguindo-se os de Bartomeu Meli (dezembro de 1990) e Georg
Grnberg (maio de 1991) este ltimo, logo depois de minha primeira estadia entre os
Kaiowa, em Mato Grosso do Sul.
Os seminrios posteriormente publicados como uma coletnea, intitulada
ande Reko2 (Nosso modo de ser) (Mura et al. 2000) colocaram em evidncia o
profundo apego que os Guarani teriam sua religio, apego este ligado a uma
exaltao da linguagem entendida como sendo ao mesmo tempo fala e alma dos
indivduos. Nestes termos, Meli (2000) elevava mxima expresso dos estudos sobre
este povo o que definia como uma etnografia da fala, algo que teria sido inaugurado
por Cadogan, com seus estudos sobre cantos rituais e mitologia guarani mbya.
Posicionando-se justamente nesta linha de pensamento, Schaden escrevia que
Os estudiosos dos Guaran so unnimes em consider-los um povo profundamente religioso. J os antigos missionrios assinalam o grande interesse desses ndios por tudo que seja religio, verdadeira ou falsa. O esprito extraordinariamente mstico dos Guaran contemporneos tem despertado a ateno de mais de um pesquisador. Examinem-se a este respeito, entre outros, os escritos de Nimuendaju, Cadogan, Haubert e Meli. Sabemos que tambm no apego religio que os grupos hoje sujeitos ao desintegradora do contato com o mundo civilizado encontram o principal estmulo para insistir em sua identidade tnica. (1982: 6).
Os fatos religiosos pareciam, portanto, os mais interessantes a serem tratados
em uma eventual pesquisa sobre os Guarani. Contudo, diferentemente de Schaden,
minha motivao para viajar ao Mato Grosso do Sul estava em querer realizar uma
crtica ao paradigma da aculturao adotado por este autor. Em conversas, Thomaz de
Almeida me convencera de que Schaden teria feito observaes incautas sobre estes
ndios, no considerando o aspecto arredio que os caracterizaria, bem como a prtica do
embotavy (fazer-se de bobo), que levaria os ndios a responderem s questes postas
pelo pesquisador buscando no contradiz-lo. Foi assim que, aps investir em leituras
2 No tocante s regras de acentuao das palavras em guarani, seguirei a nomenclatura mais utilizada no Paraguai, explicitadas em Meli et al. (1997: 8), no utilizando o acento grfico nas palavras oxtonas, estas sendo a maioria na lngua indgena. A ocorrncia do apstrofe indica parada glotal. Por motivos tcnicos ligados aos recursos do editor de textos do computador, utilizarei dois smbolos distintos para indicar a nasalizao: nas vocais a e o, ser utilizado o til, j no i e no e utilizarei o acento circunflexo. O psilon a sexta vogal guarani, de som gutural; no caso especfico da palavra teyi, esta letra, alm de gutural tambm nasalizada. No existindo recursos no editor de texto para indicar esta condio, ressalto-a aqui.
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17
de material bibliogrfico produzido sobre o grupo em causa, enveredei para a j referida
viajem a campo, em fevereiro de 1991.
Nessa minha primeira experincia junto aos Kaiowa da Terra Indgena (T.I)
Pirakua, permaneci hospedado na unidade residencial de um reconhecido lder poltico,
Lzaro Morel. As minhas observaes sobre a realidade vivenciada pelos ndios deste
lugar foram, porm, em certa medida frustrantes, visto que, com base na literatura que
havia lido, esperava encontrar profuses de rituais e uma profunda dedicao cotidiana,
por parte dos ndios, s dimenses espirituais. Contrariamente, outros aspectos da vida
desses Kaiowa me chamaram a ateno, e estes eram justamente os menos valorizados
na bibliografia sobre os Guarani: a organizao material da unidade residencial. Percebi
que, com relao s parcas descries sobre os elementos da vida material atribudos a
estes ndios, quase nada coincidia, no sentido de que os objetos que compunham o
estoque material das unidades residenciais eram, na sua grande maioria, no produzidos
pelos prprios Kaiowa. Recipientes metlicos, de vidro e de plstico, panelas de
alumnio, ferramentas metlicas etc, dominavam na composio da bagagem material
destes ndios. H que se considerar que, paralelamente, outros elementos tambm eram
encontrados com freqncia, procedentes estes das redondezas do ptio residencial,
como as cabaas utilizadas como recipientes (hyakua), assim como vrios tipos de
confeces em madeira. Instrumentos lticos e cermicos eram totalmente ausentes e a
cestaria, assim como a tecelagem, praticamente inexpressiva. Nestes termos, atravs de
apressadas concluses, se poderia concordar com Schaden (1974) no sentido de que a
aculturao material se processou rapidamente, os aspectos religiosos sendo os mais
resistentes s presses da civilizao. Mas, de se dizer, esta rpida concluso no
faz minimamente justia s relaes que os Kaiowa estabelecem com o mundo material.
Com uma formao tcnica a nvel de segundo grau3, fiquei particularmente
interessado numa lgica de rendimentos (mecnicos, fsicos e qumicos) dos objetos
utilizados pelos ndios e sobre o modo como os indgenas operavam a escolha destes.
Percebi rapidamente que existiam lgicas bem precisas operadas pelos Kaiowa, estas
procedentes de experincias prticas, no conseguindo eu ver nelas nenhuma imposio
externa, seja de tipo tcnico, seja simblica como, por exemplo, a necessidade de
3 Tenho formao como eletrotcnico.
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18
marcar um status diferenciado de um indivduo ou um conjunto destes perante outros
grupos.
Para explicitar estas minhas preocupaes, um exemplo poder ser til. A
freqncia com que encontrava recipientes de hyakua4 com capacidade volumtrica de
cerca de cinco litros paralelamente a garrafes trmicos com o mesmo volume (v. fotos
A, B e C) me levava a procurar explicaes para este fenmeno no na presumida
sobrevivncia do uso de objetos em cabaa, mas no raciocnio feito pelos ndios para
justificar a manuteno deste material paralelamente aos procedentes de uma produo
industrial. Com freqncia os Kaiowa me diziam que o recipiente de hyakua a
geladeira do ndio, afirmao esta, de um ponto de vista tcnico, muito relevante. Com
efeito, as qualidades trmicas deste objeto so boas leve e no requer muita despesa
em termos de tempo para a procura do material e a confeco do recipiente. A rigor, os
ndios quase no produzem o recipiente de hyakua, uma vez que jogadas as sementes
este tipo de cabaa cresce espontaneamente ao redor do ptio, sua forma e capacidade
volumtrica sendo produzida pelo simples ato de crescer. Alcanada a dimenso
desejada, suficiente colher este fruto, deixando-o secar para depois extrair dele o p
que se foi depositando durante a exsicao, atravs de um furo em uma das
extremidades do objeto. Podemos dizer que o processo de incorporao em uma
unidade residencial kaiowa de um recipiente de hyakua requer uma to baixa
quantidade de energia, em termos de trabalho (no sentido fsico deste conceito), a ponto
de se poder pensar que a natureza quem mais contribui para produzi-lo, limitando-se
os ndios a colet-lo, j quase em sua estrutura formal definitiva.
4 De hya (cabaa) e kua (furo). Trata-se de um tipo de cabaa apropriada para produzir recipientes.
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19
Cabaa hyakua. T.I. Jaguapire. Outubro de 2004.
Recipiente de Hyakua. T.I. Jaguapire.
Outubro de 2004.
Foto B Foto C
Foto A
Garrafo trmico. T.I. Jaguapire.
Outubro de 2004.
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20
Os garrafes trmicos, atualmente muito utilizados pelos ndios, desempenham um
papel semelhante aos recipientes de hyakua, mas eles precisam ser comprados ou
trocados, sendo necessrias, neste processo, atividades intermedirias (para se obter
dinheiro ou outro objeto que sirva na base da troca), isto com custos em termos de
tempo, relaes sociais e polticas, bem como de energia, os quais devem ser
computados para se entender quais as estratgias adotadas pelos Kaiowa para incorporar
em sua bagagem material os objetos e os materiais almejados.
A comparao entre os recipientes de hyakua e os garrafes trmicos me
permitiu elaborar uma hiptese, que com o passar do tempo foi adquirindo cada vez
mais consistncia, e foi constituindo o elemento central de minha abordagem terica e
metodolgica s atividades tcnicas. Ficava para mim claro que eram as necessidades de
uso (prtico e/ou simblico) de um determinado objeto que norteavam as aes dos
indgenas sobre a matria, e no a produo deste objeto. Por sua vez, a nfase por mim
colocada sobre o uso, ao se conotar as tcnicas, me levava a considerar as atividades
realizadas pelo homem no meramente como uma ao sobre a matria, mas tambm
com uma racionalidade nas escolhas, algo que comporta clculos, avaliaes e
administrao dos objetos. Nestes termos, em lugar de falar simplesmente de
atividades tcnicas, preferi adotar a expresso atividades tecno-econmicas5.
Aps pouco mais de dois meses de campo, tornei Itlia, ciente que deveria
realizar uma viagem mais longa para completar meu levantamento emprico. O dilogo
com meu orientador, o Prof. Antonino Colajanni, ministrante da disciplina Antropologia
Social, foi fundamental para a redefinio do objeto de minha pesquisa. Este
antroplogo trabalha com processos de mudana e com projetos de desenvolvimento, e
estava particularmente interessado nas atividades tecno-econmicas do grupo que eu
pretendia estudar. Foi assim que decidi redefinir minha pesquisa, buscando centrar a
ateno na organizao material dos Guarani-Kaiowa e Guarani-andva.
5 Ingold (1997: 108) prefere radicalizar e substituir o termo economia por tecnologia, visto que, segundo ele, o primeiro estaria ligado ao desenvolvimento do capitalismo no Ocidente, seu conceito no podendo ser extendido a outras realidades sociais. Embora possa parcialmente concordar com este autor, assim como Firth (1972), considero que as populaes no ocidentais possuem critrios de administrao de bens que podem propriamente ser analisados sob a rubrica de econmico. Neste termos, o que se procura so formas de entendimento nativas do que significa administrar e economizar. Ocupar-me-ei especificamente deste tema mais adiante, na quarta parte.
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21
A segunda etapa de campo, em 1993, durou pouco mais de seis meses, desta vez
no me limitando a uma nica terra indgena, mas buscando conhecer outros lugares que
me permitissem ter uma idia bastante ampla sobre os elementos materiais com que
lidam os indgenas. Nestes termos, visitei a reserva de Dourados, as T.Is Guasuty,
Cerrito e Jaguapire, com uma breve visita a Panambizinho para presenciar a cerimnia
de fechamento do ritual de iniciao masculina (o kunumi pepy). Especificamente em
Jaguapire, consegui estabelecer relaes com famlias locais, que me levaram a escolher
esta terra, junto com Pirakua, como o lugar onde fazer maior investimento em termos de
pesquisa.
Novamente de volta Roma, antes de me empenhar na anlise e classificao do
material recolhido em campo, busquei aprofundar as leituras sobre tecnologia,
especialmente algumas famosas obras de Leroi-Gourhan (1977, 1993[1943],
1994[1945]). Entre os vrios textos, encontrei um artigo publicado por Amodio, em
1986, na revista Luomo, intitulado Coisas prprias e coisas de outros: objetos
ocidentais, sincretismos e processos aculturativos entre os Macuxi do Brasil (traduo
minha). Neste trabalho, o autor prope considerar os objetos industriais utilizados pelos
indgenas a partir do nvel de transformao formal que tiveram, uma vez incorporados.
Atravs de um exemplo, o autor afirma que se uma lata de leo comestvel utilizada
como recipiente sem sofrer nenhuma alterao, teramos para o uso funcional desse
objeto uma aculturao completa. Se, por outro lado, os ndios modificassem a lata,
aportando-lhe, por exemplo, cortes e alas, transformando-a em um porta-objetos, a
aculturao seria parcial.
As observaes do autor me pareceram no levar em devida conta a perspectiva
tecno-econmica do operador; isto , qual raciocnio este ltimo poderia fazer frente a
um mundo material por ele avaliado a partir de suas necessidades prticas e simblicas.
Atravs de uma viso dualista, Amodio dividia, de modo apriorstico, entre coisas
indgenas e coisas ocidentais, a partir da origem da fabricao do objeto em questo.
Nestes termos, o prprio conceito de aculturao material por ele adotado o coloca em
contradio, uma vez que, a rigor, para que os ndios fossem aculturados
materialmente, deveriam ter incorporado do Ocidente a siderurgia, nico meio possvel
para reproduzir o recipiente metlico.
Esta constatao tornou-se a idia guia de minha monografia de graduao, onde
defendi a tese de que os ndios incorporam objetos a partir de suas qualidades e
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destinao de uso; o fato de estes procederem do mato dos arredores do ptio (caso, por
exemplo, da cabaa) ou de uma fbrica em So Paulo ou na China (o garrafo trmico),
para o usufruturio indiferente, uma vez que o que realmente importa so as
qualidades (fsicas e simblicas) do objeto, assim como sua disponibilidade e sua
acessibilidade. Nesses termos, o trabalho de graduao me permitiu enfrentar a relao
dos ndios com o mundo material indo na contramo de quase todos os estudos sobre
tecnologia, que, contrariamente, conotam a tcnica a partir da produo de artefatos, na
maioria dos casos como processo de transformao da natureza. A quarta parte da
presente tese traz uma considerao especificamente sobre este argumento.
Fechado o perodo italiano de minha formao, permanecia no meu enfoque uma
certa incongruncia, entre, por um lado, uma minha abordagem tcnica (fortemente
vinculada a uma viso poltica da organizao material dos Guarani), e, por outro, a
aceitao de uma anlise sistmica da organizao social, territorial e religiosa desses
ndios. Isto decorria, em certa medida, do fato de ter eu relegado a segundo plano estas
ltimas questes, delegando a autores consagrados (como Cadogan, Meli e Grnberg
entre outros) sua definio etnogrfica e analtica. Foi j durante o mestrado, sob a
orientao do professor Joo Pacheco de Oliveira, que me deparei com uma literatura
que se revelou fundamental para a redefinio de minha abordagem terica e
metodolgica. As leituras especialmente da obra recente de Fredrik Barth contriburam
de modo decisivo para resolver as minhas preocupaes a respeito das incongruncias
de meu enfoque, anteriormente explicitadas. Mas isto ocorreu de modo progressivo. Em
um primeiro momento, at mesmo pelos curtos tempos de que dispunha durante o
mestrado para desenvolver uma acurada pesquisa de campo, no consegui me dedicar
como queria aos outros aspectos que no fossem o da vida material desses ndios.
Nestes termos, aproveitando dos dados procedentes de minhas pesquisas anteriores,
enveredei para a realizao de um levantamento pontual de quase dois meses,
desenvolvido em Jaguapire e Pirakua, sobre o ciclo de construo das habitaes nas
unidades residenciais. Estabelecendo uma correlao com a abordagem que Barth faz
cultura (1984, 1987, 1989, 1992 e 1993), considerando-a como uma correnteza, um
fluxo de conceitos, idias e valores, tracei um paralelo com o mundo material. Assim,
ao passo que Barth considera os indivduos constituindo, ao longo de suas experincias,
estoques culturais (cultural stocks), por meio dos quais do vida a seus atos atos estes
que, por sua vez, contribuem para a gerao de novas experincias , propus
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correspondentes estoques material e tcnico6. Neste sentido, atravs da interao entre
indivduos inscritos em uma especifica tradio de conhecimento, fluxos culturais,
materiais e tcnicos seriam organizados socialmente, em um contexto histrico
determinado.
Como dizia, por motivo de tempo, durante o mestrado no consegui aprofundar
em sua complexidade os aspectos que contribuem para a organizao desses trs
estoques, limitando-me a enfrentar os ltimos dois aqui listados. Alm disso, tambm
me mantive em um nvel de escala bastante micro, abordando em detalhes as
caractersticas organizativas, de um ponto de vista tcnico e material das unidades
residenciais, simplesmente indicando, no ltimo captulo, que os processos que a
ocorrem esto intimamente vinculados organizao mais ampla da famlia extensa
(entendida como grupo domstico que engloba vrias unidades residenciais). Nestes
termos, como me foi justamente observado durante a defesa da dissertao, a
organizao social do grupo abordado encontrava-se apenas esboada, demandando um
aprofundamento. Com efeito, nas prprias concluses daquele trabalho (dedicadas
justamente s variaes de escala), eu explicitava a necessidade de enveredar, em um
segundo momento, para uma abordagem de mais ampla envergadura, fazendo uma
anlise das atividades dos indivduos luz da organizao do grupo domstico.
Foi assim que durante meu primeiro ano de doutorado, paralelamente a trabalhos
sobre tecnologia que permanecia o tema central de minha pesquisa , procurei
aprofundar estudos sobre unidades domsticas e organizao social, mas ainda no me
preocupava muito com a organizao territorial. Permanecia eu ento vinculado, de
modo a-crtico, s formulaes de Meli et al. (1976) sobre a territorialidade indgena,
formulaes estas amplamente aceitas pela maioria dos estudiosos dos guarani. Durante
o segundo ano, porm, por ocasio de um trabalho como perito judicial para verificar a
tradicionalidade de uma terra reivindicada por uma comunidade andva, me deparei
com um fato para mim inslito. Entre os quesitos apresentados pela parte que se opunha
aos ndios, constava o seguinte: Qual a bibliografia da Etnografia e da Etnologia
brasileiras, que poderiam definir o que seriam os Tekoh e onde estivesse localizada a
Comunidade de Potrero Guasu?. Embora a colocao fosse tendenciosa, visando
6 Em lugar do termo estoque, preferi aqui lanar mo do termo bagagem, termo este que, com relao ao primeiro, evoca tambm a imagem de um transporte dos elementos estocados.
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claramente a desconsiderar a produo paraguaia sobre os Guarani (sem dvida entre as
mais ricas), e a argumentao do assistente tcnico dos fazendeiros fosse bastante
inconsistente7, tal quesito me estimulou a procurar na literatura em geral a recorrncia
histrica da categoria de tekoha expressando organizao territorial. Assim, foi possvel
constatar que esta remonta ao incio dos anos setenta, justamente com a produo de
Meli e os cnjuges Grnberg (1976) no Paraguai. Foi ento que comecei a me dedicar
a um aprofundamento sobre os mecanismos de construo histrica do territrio e dos
sentidos e nfases atribudos pelos ndios s suas categorias, evitando assim uma atitude
muito comum nos estudos sobre estes ndios isto , a tendncia a reificar e a
descontextualizar (tanto espacial quanto temporalmente) essas categorias.
Minha desconfiana com relao ao modo de organizar os dados etnogrficos e
nfase dada a alguns aspectos normativos, por parte da maioria dos estudiosos dos
Guarani, me levou a recuperar meu antigo interesse sobre a cosmologia destes ndios.
Desta vez, porm, estava firmemente intencionado a buscar relacionar todos os
elementos por mim tratados, evitando a clssica diviso entre uma vida religiosa
resistente e vivaz, e uma vida material totalmente aculturada como geralmente feito
na literatura sobre estes grupos. A posio terica de Cardoso de Oliveira (1968, 1976
[1960]), que considera os ndios (Terena) integrados em uma sociedade nacional, na
condio de classe subalterna atravs do trabalho e do comrcio, elementos que
permitem a integrao material , ao passo que se mantm como grupo tnico,
diferenciando-se atravs de uma organizao poltica, demonstra-se uma abordagem que
carece de aprofundamento; baseia-se ela em uma lgica do encapsulamento8, que no
leva em conta o ponto de vista indgena nas interaes seja entre indivduos aferentes
a tradies de conhecimento diferentes, seja entre estes e o fluxo de elementos
materiais. Por outro lado, h tambm as consideraes de Viveiros de Castro ao
apresentar a verso em portugus do livro de Nimuendaju sobre os Apapocuva Guarani
(1987) , de que os grupos tupi-guarani se identificam mais nos aspectos cosmolgicos
que naqueles sociolgicos. Para mim, estas consideraes constituem um modo de
evitar dar ateno s atividades cotidianas, atravs de um refgio na produo
normativa que ilustra idealisticamente um Cosmo o qual, por rico que seja, representa
7 Como fica claro na leitura de seu relatrio justamente sobre Potrero Guasu, a terra em questo. 8 Sobre uma crtica lgica do encapsulamento, ver o primeiro captulo de Oliveira (1988).
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os interesses e momentos especficos da vida de indivduos especialistas, como so os
xams.
Como pude verificar ao longo dos ltimos anos de pesquisa, o fato de minha
primeira experincia etnogrfica no ter revelado uma grande recorrncia a ritos e
narraes sobre a estrutura do Cosmo no se constitua em uma observao incauta de
minha parte. Existem momentos e lugares especficos onde esses conhecimentos (bem
como os valores a eles atrelados) so sistematizados e enfatizados; fora destas ocasies,
a vida indgena norteada por muitos outros fatores que no podem ser relegados a
segundo plano, afirmando-se, assim, que a organizao social guarani padeceria de
uma fluidez ou simplicidade acentuadas (Viveiros de Castro 1987: xxx). Ademais,
como espero que fique claro ao longo desta tese, no se pode separar cosmologia,
sociologia e anlise das tcnicas, nem mesmo com finalidades metodolgicas,
procedendo-se com o escopo de posteriormente relacion-las. Ao contrrio, necessrio
se relacionar todos os elementos do Cosmo, sejam eles sujeitos e/ou objetos, atravs de
aes sociais, polticas, tecno-econmicas, mgicas, fsicas, qumicas, mecnicas etc.,
formando cadeias causais desenvolvidas processualmente. Tais cadeias, s vezes
formam redes, s vezes sistemas instveis e abertos, mas isto sempre a partir de
contextos histricos determinados. Mas, neste ponto, uma pergunta se coloca: o que se
entende por contexto histrico? No meu entender, aqui no estaria em jogo
simplesmente uma realidade social, devendo ser includos tambm os elementos
materiais, e a prpria causalidade material. Ademais, a configurao deste contexto no
ocorre em um lugar indeterminado, mas se inscreve ela em um espao geogrfico, a
partir do qual os atores podem desenhar a arquitetura do Cosmo, numa perspectiva
tridimensional, e mesmo multidimensional, abrangendo, neste ltimo caso, espaos
considerados invisveis para a maioria dos seres humanos. Nestes termos, na falta de
uma palavra especfica para adjetivar o contexto, enveredei para a juno de trs
aspectos que me parecem extremamente significativos na considerao da vida
indgena; em um s adjetivo, o contexto scio-ecolgico-territorial.
Importa, por um momento, tornar minha trajetria. Aps a primeira
experincia como perito judicial (em 2002), minhas etapas de campo com fins
acadmicos se foram alternando com aquelas dedicadas a trabalhos tcnicos (como
identificaes de terras, levantamentos situacionais e diagnsticos), encomendados por
organismos como a FUNAI e o Ministrio Pblico Federal, trabalhos estes realizados na
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companhia de Rubem Thomaz de Almeida. Nos ltimos tempos, juntou-se a ns
tambm minha esposa, Alexandra Barbosa da Silva, tambm ela desenvolvendo
pesquisa de doutorado sobre os Guarani com nfase sobre a relao destes ndios com
os centros urbanos e as fazendas.
A transferncia, junto com Alexandra, para Dourados (MS), cidade esta situada
a apenas 5 Km de distncia da rea indgena homnima, nos permitiu uma experincia
constante com os ndios que a vivem. A relao estabelecida com a FUNAI e o MPF,
na qualidade de consultores, nos mantinha sempre informados sobre processos polticos,
dinmicas territoriais e processos tecno-econmicos.
Como professor visitante na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
(UEMS), entre agosto de 2003 e setembro de 2005, consegui realizar trabalhos de
campo pontuais, em linha com o tema desenvolvido no meu doutorado, alm de
estabelecer uma rica parceria com o eclogo Vito Comar, com o qual desenvolvi
algumas etapas de campo. Este tipo de relao me possibilitou aprofundar alguns
aspectos sobre processos ecolgicos, muito teis para o que eu pretendia argumentar no
presente trabalho. Nesta instituio tive tambm o enorme prazer de orientar o kaiowa
Tonico Benites, da T.I. Jaguapire, um de meus mais valiosos informantes, orientao
esta que se transformou em um dilogo intelectual que segue at hoje.
Relevante tambm foi (e ) minha experincia como co-orientador informal do
psiquiatra Antnio de Carvalho Silva, que me levou a aprofundar certos argumentos
sobre processos de cura entre os Kaiowa, os quais resultaram fundamentais na
elaborao da terceira parte deste trabalho. O posterior convite feito a mim pela
FUNASA, para elaborar um projeto de pesquisa sobre sade mental, permitiu iniciar
uma reflexo, juntamente com Antnio, Alexandra e Tonico, sobre o aspecto
emocional-afetivo nas famlias extensas dos Kaiowa, reflexo de no pouco peso na
feitura desta tese.
Assim, os ltimos quatros anos antes tornar ao Rio de Janeiro (em julho de
2005) foram caracterizados por uma insero em campo com papis diferenciados. A
heterogeneidade de contextos locais em que foram recolhidos os dados no constituiu,
de modo algum, um problema, revelando-se antes uma grande vantagem, visto que as
situaes encontradas permitiam entender como se processavam as dinmicas em
escalas diferenciadas, e como os ndios agiam e/ou reagiam s circunstncias
encontradas em cada lugar. Nestes termos, j como equipe, incluindo Alexandra,
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Rubem, Vito, Tonico e Antnio, e com a constante colaborao com o antroplogo do
MPF, Marcos Homero Lima, foi possvel levantar uma significativa massa de dados,
conseguindo-se, por um lado, um mapeamento geral das demandas fundirias dos
Guarani de MS. Em alguns casos foram possveis levantamentos detalhados, pois que
nas micro-bacias dos rios Iguatemi, Apa e Brilhante-Ivinheima, chegou-se a levantar
relaes de parentela, organizao domstica, aspectos emocionais-afetivos, processos
de construo de comunidades, relaes simblicas e materiais com a terra,
manifestaes ritualsticas e embates polticos e blicos (tanto entre ndios quanto entre
estes e os brancos) consumados seja atravs de atos verbais, seja como com armas
materiais e imateriais, em uma escala que transcende a dimenso especfica de cada
terra indgena. Foi possvel tambm reconstruir processos de formao de
acampamentos nas terras tradicionais demandadas pelos ndios e que relaes as
comunidades a localizadas estabelecem com fazendas, cidades e demais terras
indgenas da regio. Conseguiu-se mapear tambm circuitos de intercmbio de bens e
de atividades mgico-polticas, em uma escala que permitiu o entendimento das relaes
estabelecidas pelos ndios em ambientes diferentes, com comerciantes, fazendeiros,
pees, curandeiros, usineiros etc. O monitoramento das dinmicas estabelecidas entre
ndios, MPF e FUNAI, FUNASA, governos municipais, estadual e federal, misses e
ONGs, assim como com os vrios nveis da justia federal, permitiu, por sua vez,
ampliar a escala de enfoque, observando processos e impasses em um mais amplo
espectro de relaes e interaes entre atores inscritos no espao geogrfico do estado-
nao brasileiro.
Em suma, toda as minhas experincias em Mato Grosso do Sul constituram-se
em campo. A heterogeneidade de situaes e dinmicas aqui assinaladas so fatores
constitutivos do referidos contextos e requeriam ser cuidadosamente estudados. Nestes
termos, tendo eu uma vez decidido me ocupar das unidades domsticas construdas
pelos Kaiowa e de suas transformaes organizativas ao longo do tempo isto como um
processo adaptativo s condies encontradas nos espaos geogrficos onde
desenvolvem suas atividades , constatei que eu no podia me limitar a considerar os
ndios relacionando-se, por um lado, entre si, por outro, com o que definimos como
natureza, e, por outro ainda, com os brancos. Tampouco as relaes sociais e
polticas dos indgenas podiam ser separadas das relaes tcnicas e econmicas. De
fato, nas observaes empricas, o que unicamente se constata que as
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relaes/interaes se do sempre entre sujeitos e entre estes e objetos. Foi justamente a
partir destas observaes que, seguindo as sugestes de Barth (1966 e 1987), busquei
construir modelos de processos, que apresentarei ao longo desta tese.
***
Dividi o presente trabalho em quatro partes, sendo que na primeira busco
desenhar cinco situaes hitricas, partindo do perodo imediatamente anterior
conquista, por parte dos europeus, dos espaos ocupados pelos grupos Guarani. Meu
objetivo com esta parte ilustrar as condies dos contextos scio-ecolgico-territoriais
configurados em cada uma das situaes, centrando a ateno sobre os processos de
adaptao dos indivduos que compem as unidades domsticas s mudanas (de ordem
social e material) ocorridas nos espaos geogrficos em que se encontravam. Apontando
as dificuldades para se analisar em detalhes perodos anteriores segunda metade do
sculo XIX, esta parte procura principalmente reconstruir os contextos scio-
ecolgicos-territoriais das ltimas trs situaes histricas, identificadas a partir do
fim da guerra entre Brasil e Paraguai. Com efeito, tomando-se esse momento possvel
reconstruir, para o cone sul de Mato Grosso do Sul, as trajetrias de muitas famlias
kaiowa e a transformao organizativa dos grupos domsticos, at os dias de hoje.
A segunda parte j aborda especificamente o tema da organizao territorial e
poltica no como expresso de uma territorialidade indgena, mas como o resultado
de dinmicas territoriais protagonizadas por sujeitos indgenas e no-indgenas, em
espaos geogrficos disputados para se obter seu controle e usufruto. Nestes termos, as
categorias guarani que implicam a definio de espaos geogrficos, familiar e
etnicamente exclusivos, com fronteiras fixas, foram entendidas como uma construo
histrica em disputa e interao com sujeitos brancos dominantes, tutelados por leis
que substantivam cartesianamente as terras pleiteadas em termos de propriedade privada
e alienvel. A organizao das relaes comunitrias e inter-comunitrias so analisadas
tambm como construtos em contnua transformao, devido s prprias dinmicas de
parentesco e de controle territorial. Neste sentido, alianas situacionais entre membros
de famlias indgenas e agentes brancos so constitutivas dos arranjos poltico-
territoriais realizados em cada contexto local.
A terceira parte, por sua vez, centra o foco sobre a construo de sentido das
atividades e aes indgenas a partir de um arcabouo normativo cujos mentores
principais so os xams depositrios de saberes especializados, que permitem dialogar
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de modo profcuo com as divindades, bem como operar magicamente na vida cotidiana
e em processos de cura. Por outro lado, as normas constituem um parmetro para a
hierarquizao dos saberes, distribuindo competncias entre os membros de uma
determinada comunidade poltica local. Nestes termos, elas simplesmente servem como
ponto de referncia e como advertncias morais, deixando aos indivduos certa
flexibilidade na determinao de escolhas e aes a serem realizadas, bem como na
incorporao de conhecimentos atravs das experincias propiciadas ao longo de suas
trajetrias de vida. Assim, toda esta parte busca colocar em evidncia e analisar os
mecanismos que permitem a sistematizao dos saberes e sua hierarquizao, a partir de
disputas tanto entre autoridades gestoras dos conhecimentos valorizados quanto entre
famlias rivais. Com efeito, um determinado xam ser visto como tal por seus aliados,
mas como feiticeiro por seus inimigos. Portanto, os conflitos e a tenso constante entre
norma e prticas so abordados como fatores integradores e no como produtores de
anomias como geralmente so considerados na literatura sobre os Guarani.
Uma vez esboadas as dinmicas polticas e territoriais e a tradio de
conhecimento qual aferem os ndios, na ltima parte deste trabalho concentro minha
ateno sobre a ecologia do grupo domstico. Neste caso, ilustro como as
transformaes ocorridas ao longo do tempo nos espaos geogrficos onde vivem os
Kaiowa levaram modificao dos contextos-scio-ecolgicos territoriais, permitindo
aos indgenas o abandono progressivo de boa parte dos objetos por eles produzidos,
favorecendo e potencializando as tcnicas de aquisio. Por outro lado, possvel se
perceber que princpios morais, racionalidades, temporalidades e regras de propriedade
e uso de objetos produzem uma configurao desses objetos, configurao esta
especfica das unidades domsticas kaiowa.
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Parte I
SITUAES HISTRICAS
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Os Kaiowa constituem um grupo tnico de fala guarani e, na literatura
especfica, so considerados como descendentes dos Itatim (v. mapa I), ndios estes em
grande parte reduzidos pelos jesutas e que foram vtimas das incurses dos
bandeirantes (Meli et alii 1976, Susnik 1970-80, Thomaz de Almeida 1991, Gadelha
1980). Existem hoje muitas informaes sobre os Kaiowa, resultando difcil, porm,
estabelecer critrios precisos que permitam registrar com segurana processos de
mudana e/ou de continuidade com relao a vrios aspectos da vida social, tecno-
econmica, poltica e religiosa de seus antecessores, seja com relao aos primeiros
sculos aps a conquista europia, seja no que concerne s pocas anteriores s
importantssimas variveis introduzidas pela interveno colonial. Quanto mais nos
afastamos das condies scio-ecolgico-territoriais do presente, mais as informaes
disposio se fazem fragmentrias, a escala geogrfico-temporal dilatando-se muito.
Deste modo, na extensa literatura sobre os Guarani9 apresentam-se dados relativos a
lugares e grupos diferentes, recolhidos por missionrios, viajantes e administradores
coloniais, em pocas muito distintas umas com relao s outras. Cabe observar que
nem todas as fontes apresentam o mesmo teor descritivo, muitas delas limitando-se a
nomear, em poucas frases, traos genricos dos indgenas encontrados. Perante esta
diversidade de rigor descritivo, os trabalhos que Meli et alii (1987: 20) classificaram
como de Etnologia Antropolgica e Antropologia Etno-Histrica privilegiaram um
nmero limitado de fontes, entre as quais se destacam as obras do jesuta espanhol
Antonio Ruiz de Montoya. Este religioso, em 1639 redigiu tanto um rico vocabulrio da
lngua guarani (1876) quanto um livro (1985), onde relatou as viagens por ele realizadas
no intento de instituir redues religiosas nas denominadas provncias do Itatim e do
Guair.
9 Para uma panormica das fontes e os trabalhos relativos aos Guarani, ver Baldus 1954; Meli et alii 1987, e Noelli 1993.
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,0
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Cabe observar tambm que os trabalhos de cunho etno-histrico no se
limitaram a tentar compreender a vida indgena no passado, remetendo as fontes
disponveis aos contextos histricos da sua produo. O objetivo principal da maioria
desses trabalhos o de reconstruir a vida indgena em sua totalidade, para tal propsito
prescindindo desses contextos. Aspectos da vida social, religiosa, poltica e tecno-
econmica so conectados entre si, tendo como norte principal as etnografias realizadas
no presente e, em grande medida, pelas categorias lingsticas recolhidas no dicionrio
redigido por Montoya. Deste modo, como se poder ver mais adiante, traos culturais
so articulados e sobrepostos, seguindo-se imagens preconcebidas da vida indgena,
preenchendo-se esse modelo com informaes oriundas de lugares e pocas distintas.
Neste proceder, o importante que essas informaes refiram-se aos Guarani (e em
muitos casos tambm aos Tupi), cuja cultura e organizao social so considerados a
partir de uma suposta originalidade (no duplo sentido de primordial e de distinto de
outros grupos tnicos), a ser progressivamente descoberta. Assim, as informaes
etnogrficas do presente podem servir como norte, na medida em que estas se
demonstrem como tpicas de populaes silvcolas, os outros aspectos do cotidiano
sendo considerados como meramente oriundos da situao do contato com o
colonizador.
Nestes termos, o grupo trabalhado apresenta-se como bastante homogneo, com
estruturas em larga medida a-histricas, sendo as variaes abordadas como produto de
contingncias, estas sim historicamente determinadas. Percebe-se, deste modo, o
delinear-se de dois distintos critrios para realizar comparaes entre os dados
recolhidos: por um lado, para estabelecer continuidade formal e de significado no
tempo, procede-se a juntar informaes tidas como originalmente indgenas,
articulando-as entre si, e buscando a coerncia quase exclusivamente atravs de
categorias micas (recolhidas e comparadas indistintamente nas fontes e nas etnografias
modernas); por outro lado, para compreender as mudanas e descontinuidades, procede-
se no sentido contrrio, procurando nos eventos histricos a introduo de elementos
sociais, polticos, econmicos e tcnicos, que perturbariam ou obrigariam os Guarani a
mudar, sendo as variaes interpretadas a partir da anlise de categorias
prevalentemente ticas.
Na tentativa de reconstruir a suposta cultura guarani como algo atemporal,
apresentam-se claras diferenas nas formas de sistematizao dos dados relativos a cada
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um dos aspectos da vida indgena. No tocante s informaes sobre organizao dos
rituais, circuitos de cooperao e de organizao territorial, a maior parte das
informaes procede de etnografias recentes, preenchendo estas os vazios deixados
pelas fontes histricas e funcionando como, o que se poderia definir, referente
contextual atemporal para as categorias lingsticas presentes no dicionrio de
Montoya10. Estas ltimas, por sua vez, atravs de um efeito feedback, so utilizadas
como estratgia narrativa para atribuir autoridade aos discursos sobre a maior ou menor
autenticidade da cultura guarani contempornea11. Para os aspectos da vida material,
por outro lado, o procedimento se inverte, as fontes histricas e arqueolgicas tornando-
se preponderantes, visto que os Guarani contemporneos deixaram h muito de produzir
e utilizar vrias tcnicas e objetos que caracterizavam a vida indgena no passado.
Como j observado em outro trabalho (Mura 2000), todos estes procedimentos
levam, em certa medida, a essencializar e reificar os Guarani, no momento em que
subtraem estes indgenas de seus contextos histricos onde eles produzem e reproduzem
suas categorias sociais e culturais. Alm disso, esta atitude tem como conseqncia, nos
estudos sobre a realidade contempornea, o deslocamento da compreenso do grupo
focado para o passado, subtraindo aos ndios o papel de sujeitos histricos do presente,
o que lhes nega o status de serem coevos (Fabian 1983) a outros grupos sociais com os
quais compartilham a construo de um determinado contexto histrico.
Estas observaes crticas sobre como operar com fontes histricas e dados
etnogrficos no tm, em hiptese alguma, a inteno de negar a possibilidade de se
realizar comparaes e buscar critrios que permitam entender processos de mudanas e
de continuidade na vida indgena. Aqui to somente se quer alertar sobre alguns perigos
nos procedimentos adotados e na determinao de certos paradigmas analticos
conseqentes. Neste mesmo sentido, Oliveira alerta que:
Para que a observao realizada pelo cronista faa sentido para uma etnografia moderna (e no corresponda a uma induo do prprio cronista ou do pesquisador atual), necessrio que ela seja localizada em um eixo que abranja tempo e espao. Isso requer efetivamente deixar o material falar sobre aquilo que est sendo observado, as situaes sociais concretas, deixando de lado tanto as
10 Como resultar claro mais adiante, Susnik (1879-80 e 1982), Meli (1986), Noelli (1993) e Soares (1997). 11 Por exemplo, nas obras de Schaden (1974) e Watson (1952).
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generalizaes duvidosas feitas pelos prprios cronistas, quanto a pretenso do antroplogo de reunir informaes procedentes de diferentes tribos e diferentes momentos num monstro mecnico e artificial (a sociedade ou a cultura tal). (1987: 88-89).
Ciente de que em muitos casos reconstruir contextos histricos com um mnimo
de detalhes uma tarefa muito difcil, creio que oportuno o estabelecimento de limites
bem precisos especulao analtica, evitando-se atribuir sentidos micos a dados
colhidos em contextos temporal e espacialmente muito distantes um com relao aos
outros. Alm disso, seria forar excessivamente as fontes documentais atribuir s
categorias lingsticas colhidas por Montoya o mesmo status daquelas descritas nas
etnografias modernas, visto que estas ltimas so registradas procurando entender seu
sentido a partir do contexto de uso, com o qual o pesquisador, se supe, deveria estar
familiarizado. Para o passado, ao contrrio, resulta muito difcil se ter esse nvel de
controle contextual.
Levando em conta estas limitaes na construo de paradigmas analticos,
pretendo, no presente captulo delinear diferentes situaes histricas (Oliveira 1988),
cada uma com caractersticas distintivas, fato que permitir estabelecer limites precisos
especulao. Cabe observar que, como salienta o prprio Oliveira em sua definio, a
situao histrica trata-se de uma construo do pesquisador, uma abstrao com
finalidades analticas... (idem: 57). Neste sentido, o objetivo deste captulo no
construir ou reconstruir a histria dos Guarani em geral ou dos Kaiowa em particular,
como em alguns momentos poder parecer. Visto que outros autores forneceram
valiosas contribuies neste ltimo sentido12, e estando meu trabalho focalizado mais
que tudo na realidade contempornea dos Kaiowa, pretendo, com esta ferramenta
analtica, estabelecer critrios de comparao que permitam reconstruir as
caractersticas centrais dos contextos scio-ecolgico-territoriais nos quais os Guarani
estiveram e esto inscritos. Deste modo, ser possvel enfocar as mudanas e/ou a
continuidade de determinadas caractersticas sociais, ecolgicas ou territoriais, no a
partir de uma suposta cultura guarani, que constituiria o ponto zero da comparao,
mas como variaes histricas das configuraes desses contextos aqui analisados.
12 Considero entre as mais significativas Susnik (1979-89), Meli (1986), Meli et al. (1976), Thomaz de Almeida (1991), Noelli (1993) e Soares (1997). Especificamente sobre a relao entre os Guarani e as misses, ver Gadelha 1980, Necker 1990 e Wilde 2003.
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Captulo I
Os Guarani pr-colombianos
1.1 Organizao territorial e poltica
Susnik (1979-80, 1982, 1983) considera que a organizao poltico-territorial
entre os Guarani pr-contato era expressa pelo gura, um amplo espao territorial onde
relacionavam-se unidades formadas por famlias extensas, unidades estas definidas pela
autora como teyi-ga, isto , o teyi constituindo a famlia extensa e ga, representando
a habitao comum que abrigava a totalidade do grupo familiar. Localizando-se os teyi-
ga a vrias lguas de distncia um do outro, os encontros entre eles efetuavam-se
periodicamente, especialmente em ocasio de convites para as festas religiosas e
profanas, assim como para determinar alianas e expedies guerreiras. Na vida
cotidiana, porm, as atividades tecno-econmicas eram fruto da cooperao do grupo
domstico constitudo simplesmente por um teyi-ga, este garantindo, assim, uma
autonomia relativa para com a unidade maior do gura.
Segundo a autora, no interior do gura
Cuando varios tei se asociaban , 5,6 o ms, formbase una conciencia socio local unitaria, el vnculo aldeano, teko; los Guaranes no desarrollaron, empero, aldeas multipoblaciones al modo de los Chan-Arawak. Al iniciarse la conquista hispana, las unidades teko estaban en algunas regiones recin en el proceso de integracin, de donde algunas peculiaridades socio polticas de los gura (Susnik 1983: 128).
possvel observar que as trs unidades sociolgicas introduzidas pela
autora expressam uma viso concntrica da organizao poltico-territorial dos Guarani
histricos: em primeiro lugar estaria o espao restrito do teyi-ga, liderado por um
teyi-ru (literalmente, pai, da famlia extensa); em segundo lugar, o espao mais amplo
do tekoha, que seria um conjunto instvel e incipiente quando da colonizao
espanhola de teyi-ga, unidos pelo vnculo aldeo, num modelo de povoado
constitudo de residncias dispersas com distncias entre elas variveis, liderado por um
tuvicha-ruvicha (chefe dos chefes); e, por ltimo, o espao regional abrangente definido
como gura, tambm neste caso liderado por um tuvicha-ruvicha.
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O arquelogo Soares, defendendo recentemente (1997) este tipo de modelo
clssico de organizao poltico-territorial, insiste sobre o fato de que os Guarani pr-
colombianos estariam organizados em cacicados, fato que para ele seria evidente
devido recorrente meno nas fontes histricas de lderes muito respeitados em escala
territorial ampla. Neste sentido, apoiando-se quase exclusivamente no vocabulrio
redigido por Montoya, procura ele tambm definir as unidades sociolgicas seguindo o
mesmo critrio de Susnik, acrescentando, porm, um nvel a mais nesse jogo de crculos
concntricos. Isso ocorre porque o autor, para definir formas aldes de agrupamento e
integrao social dos teyi, prefere manter-se fiel definio fornecida por Montoya,
usando, para este nvel de organizao territorial, o termo amund. O tekoha, segundo
Soares, seria um nvel intermedirio entre a aldeia e o gura.
Aps as observaes feitas por este ltimo autor, os nveis de
organizao territoriais podem ser expostos da seguinte forma:
Para compreender qual o grau de interpretao analtica e de abstrao terica
alcanados pelos dois autores, parece-me oportuno entrar minimamente nos detalhes das
categorias nativas sobre as quais a argumentao feita. Os termos utilizados para
denominar os quatro nveis relatados encontram-se em Montoya (1876), cujos verbetes
teyi-ga
tekoa
amund
gura
Figura I
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so apresentados a seguir, em seguida sendo feitos alguns comentrios que me parecem
pertinentes.
Teyi:
Tei, manada, compaia, parcialidad, genealoia, muchos. Cherei, mi parcialidad, Religi, los mios. Cherei guar nde, tu eres de los mios, de mi Religion. Jei hei hecni. Tei tei, andan em manadas. Gueipe chemoyng cherend pguama, en medio me pufieron para oirme. Teipe ha, dixelo en publico. Tei tape, publicamente. Tei upba, lugar publico, o lugar de muchos. De aqui fale. Teyp, el rancho por los caminos. Nde eic orereimo, fed vos nueftro caudillo. Orereimo toroguerec Per, elijamos por nueftro caudillo a Pedro. Gueia, ellos all, fu parcialidad dellos en fu pueblo fon muchos. Orerei a oroic, todos los de vna parcialidad eftamos juntos. Pendei a, los vuesftros de vueftra parcialidad. Tei eup aqu. Tei pe ah. Teiereheguarup ayquie, paffaronfe al outro vdo. (p. 376).
Amund:
pueblo, la vezindad de pueblos pequeos. Amundabigura, vezinos en aldeas cerca de pueblos grandes. Amundra, idem. A amund hec, poner fu cafa, o ueblo cerca de otro.Amo amund, hago que fe pueblo cerca de otro pueblo, cafa. Oroo amund, acercamonos vnos a otros con las cafas, viuienda. Nache amundbi, no tengo vezinos. Oo amund tba oicbo, eftn los pueblos cercanos vnos a otros. (p. 34).
Teko / Tekoa:
Tec, fer, eftado de vida, condicin, eftar, coftumbre, ley, habito. Cherec, mi fer, mi vida. Teco, cogerle fu coftumbre, imitar. Chereco, me imita. Aheco, yo le imito. Aheco ruc, hazer que le imite. ande remieco rm Iefu Chrifto .y. el que hemos de imitar es Iefu Chrifto nueftro Seor.
Teco, fuerte, caer fuerte. Chereco ibi catupiripe, cayome la fuerte en buena tierra. Chriftianos reco pip pendeco . Cayoos la fuerte de Chriftianos; entre Chriftianos. Tec catupiri pip chereco , cayome muy buena fuerte. Cherori cat ibi catupiri pip nde recori, huelgome q os aya cado en fuerte tan buena tierra. () (p. 363).
Gura:
Utilidad pertenecer a cofas, y perfonas, y tiempos, conftar de materia y forma, para de perfona, tiempos, y cofas, patria, parcialidad, paifes, region, fum, es, fui, participio, aduerbios, tiene quatro tiempos como los demas nombres, gura guerra, gurma, garan, gera.
Vtilidad.
Ab chebegara, hombre que me es vtil. Che a ychup gara, yo folo le foy de prouecho. (...).
Pertenecer con rehe.
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Cherehegara, lo que me pertenece. Cheret rehegara, lo que pertenece a mi cuerpo. Mba che rehegara, los bienes que me pertenecen. (...)
Conftar de materia y forma.
Ab ibi rehegara, hombre de tierra. Ogibirap rehegara, cafa de tablas. (...).
Para de perfona y cafas.
Chebegarma ehey am, dexa algo para mi. Chebeguarangera ocay, lo que auia de fer para mi fe perdio. (...).
Patria.
Ponen el nombre del rio de que beuen, o lo de q toma la denominacion. Paragaigara, los que fon del rio Paraguay. Paran igara, los del Parana. (...). Chertambigara, los de mi pueblo.
Parcialidad, Paifes, Region.
Efte, gara, haze finalefa con ram. V.g. gamo, humo, uamo, dize parcialidad. Oroygumo oroyc, eftamos en parcialidades.Oyo hamoquybongara na p ram rugua, los deftos paifes de aca no fomos como vsotros. (...). Oyou amo rehegara, los de fu parcialidad dellos, o de aquella region. (...).
Sum, es, fui.
Oy e gara, lo q es de oy. P ceh gara bi, petuy bae ep aub, mbittich im gara, vofotros que naciftes ayer eftais viejos, que fer yo.
Particpio de verbos.
Acaa, beuer yerua, caagara. Aca, beuer vino. (...). Amombe, dezir. (p. 129-130).
Como se pode observar, Montoya muito detalhista na definio dos termos,
indicando vrios contextos lingsticos de uso. Neste sentido, o nvel de interpretao
semntica feita pelo jesuta reduzido - porm no ausente -, fornecendo ao leitor uma
ampla gama de significados.
Rapidamente se poder notar que existe uma clara correspondncia entre alguns
significados registrados por Montoya e aqueles atribudos pelos autores anteriormente
citados, em trs das quatro categorias examinadas. A primeira e a segunda (isto , teyi e
amund) deixam pouca margem para que se faa delas uma interpretao ambgua. J
para a categoria de gura, sobre a qual o jesuta se deteve amplamente, no se pode
afirmar o mesmo. Quando o termo se refere associao entre grupos de indivduos e o
espao, o significado permanece genrico, a categoria lingstica podendo se referir ao
domnio de uma residncia, mas tambm ao de uma regio neste ltimo caso, no se
partindo de uma determinada organizao poltico-territorial, mas em funo das
caractersticas hidrogrficas de um determinado lugar. Esta ambigidade ocorre porque,
a rigor, gura significa Deve-se observar tambm que, em relao classificao dos
significados, Montoya deixa transparecer certo nvel de interpretao, que permite
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localizar a projeo de suas categorias, enquanto categorias compartilhadas com a
populao colonizadora. A diviso em ptria e parcialidade, pases e regio, por
exemplo, parece responder mais a uma tentativa de sistematizao dos significados do
termo gura segundo uma imagem predeterminada dessas unidades polticas e
territoriais, imagem esta em certa medida construda a partir da ideologia europia do
sculo XVII. De qualquer forma, o rigor descritivo demonstrado pelo jesuta de
considervel apreciao, prevalecendo o significado literal do termo gura. Isto nos
permite observar que para indicar parcialidade, no s o termo gura pode ser
utilizado, mas tambm teyi. Esta comparao me parece pertinente porque se, no caso
de gura, a construo do tamanho da parcialidade determinada por via indireta,
atravs de uma equao analtica que associa o porte de um curso fluvial ao nmero dos
grupos de indivduos englobados no espao geogrfico desenhado por sua bacia (ou
micro-bacia), no caso de teyi, parcialidade indica um grupo baseado no parentesco,
apresentando-se como uma categoria essencialmente social e no geogrfica.
Estas ltimas observaes no tm como objetivo negar o entendimento do
gura como espao no interior do qual existiam formas precisas de organizao poltica.
Aqui se quer simplesmente indicar que no dispomos de elementos suficientes para
detalhar este tipo de organizao. O simples fato de existirem indivduos
reconhecidamente prestigiosos no nos autoriza a considerar a organizao poltica
como sendo hierarquicamente ordenada em torno a esta figura, gerando um sistema
poltico centralizado em escala territorial ampla.
Referindo-se ao Itatim, Gadelha (1980) observa que esta provncia no era
povoada por uma nica parcialidade, e para fundamentar esta posio se apia no
seguinte trecho da Carta nua do padre Nicols Mastrillo Duran, escrita em 1628:
Cada una [casa] es una grande pieza donde vive el cacique con toda su parcialidad, o vasallos que suelen ser veinte, treinta, cuarenta, y a veces ms de cien familias; segn la calidad del cacique (apud Gadelha 1980: 258).
A autora considera este documento como esclarecendo que a parcialidade vem
a ser o cacique principal e sua linhagem (idem: 258). Alm disso, acrescenta que a
relao entre cacique e nmero de famlias conjugais permanece constante nas
descries feitas pelo padre Antonio Sepp no sculo XVII, sendo que o padre Cardiel,
no sculo XVIII, afirmava que o nmero de famlias podia chegar a ser mais de
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duzentas (ibidem). Nestes termos, se calculamos como mdia cinco pessoas por famlia,
ter-se-ia, em casos excepcionais, pouco mais de 1.000 indivduos.
No podemos perder de vista o fato de que as fontes apresentadas por Gadelha
so fortemente emprenhadas das concepes polticas da poca, a hierarquia
estabelecida entre cacique principal (tuvicha ruvicha13) e cacique (tuvicha,
mburuvicha) no sendo endossada por uma efetiva demonstrao emprica dessa
eventual diviso de status poltico. O caso do cacique principal anduavusu
apresentado pela autora (idem: 260) como sendo emblemtico especialmente do grande
poder religioso exercido por esta figura em escala territorial ampla, gozando ele do
respeito e da considerao de muitos outros caciques da regio do Itatim. Isto, porm,
no implica diretamente que existisse uma relao de mando e nem indica o tempo
efetivo em que este importante lder-xam teria mantido seu grande prestgio.
Um trecho de Azara extremamente significativo, pelo fato de nos fornecer
(segundo sua ptica, obviamente) preciosos detalhes sobre o papel dos caciques. Este
viajante, no final do sculo XVIII, afirmava que
El cacicazgo es una especie de dignidad hereditaria como nuestros mayorazgos, pero muy singular, porque el que la posee no se difiere de los dems indios en casa, vestido ni insignia, ni exige tributo, respecto, servicio ni subordinacin, y se ve precisado a hacer lo que todos para vivir. Tampoco manda en la guerra, y si es tonto le dejan y toman otro (Azara apud Gadelha 1980: 260).
A descrio que nos fornece o autor contrasta plenamente com a imagem do
lder desenhada por outras fontes coloniais, aproximando-se mais daquela oferecida
pelas etnografias modernas14. Isto nos deveria alertar para evitarmos definies frgeis e
pouco confiveis de um modelo de organizao poltica dos Guarani pr-coloniais
baseado no cacicado. Acredito que os dados numricos fornecidos por duas tabelas
redigidas por Wilde (2003), apresentadas a seguir (v. tabelas I e II), podem colocar
ainda mais dvidas neste sentido.
Nelas, embora se fale de cazicazgos, com um simples clculo pode-se
perceber que a relao entre o nmero de lderes e as pessoas a eles associadas desenha
grupos relativamente pequenos, constitudos de poucas dezenas de indivduos. Nestes
13 Cf. Susnik 1979-80. 14 Ver especialmente Meli et al. 1976, Thomaz de Almeida 2001, L. Pereira 1999, 2004, Mura 2000, 2004.
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termos, o que os Jesutas chamavam de cacique, com muita probabilidade era
simplesmente o tami (av), chefe da famlia extensa, ou um de seus filhos.
Tambm Meli apresenta srias dvidas sobre a presumida organizao poltica
em grandes cacicados, como fica evidente na seguinte argumentao:
Lo que los espaoles de la poca y entre ellos los jesuitas llamaban cacicazgos, no eran muchas veces sino aquellos tyy cuyo significado, segn el Tesoro de la lengua guarani de Montoya (Madrid 1639b: f. 376), es compaa, parcialidad, genealoga, muchos. Y estas parcialidades por linaje no contaban con un nmero fijo de familias. Aquellas 400 familias, respondiendo a 27 caciques, que se juntaron en San Pablo de Iniay, dan una media de 15 familias por cacique. (Meli 1986: 79-80).
Podemos concluir que para formular modelos minimamente confiveis de
organizao poltico-territorial dos Guarani do perodo colonial necessrio ter
disposio muito mais elementos dos que nos fornecem as fontes. Dever-se-ia saber
tambm a nfase que era dada pelos ndios aos fatores de ordem poltica, religiosa,
blica e tecno-econmica, cuja variao poderia resultar na determinao de
configuraes sensivelmente diferentes entre si, dependendo do lugar e das
circunstncias historicamente dadas.
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Tabela I Evoluo de censos
PUEBLOS 1647 1676 1735 1747
(Querini) 1772 1784
(Melo) 1796 (Als)
1800
Loreto 44 66 64 Itapua 55 55 53 San Ignacio Mini 32 85 San Ignacio Guasu 31 23 21 Corpus (14) 44 Jess 31 26 Santa Rosa 21 Santiago 27 26 Nuestra Seora de Fe 23 21 Trinidad 24 24 Santa Ana 39 San Cosme 23 Pueblos del Paran 269 Pueblos del Uruguay 302
Fonte: Susnik 1966 (Wilde 2003)
Tabela II Nmero de cacicados por Pueblo em 1799
PUEBLOS PRESENTES FUGITIVOS N DE CACICADOS Santa Ana 1329 1689 39 Itapua 2244 793 53 Jess 981 824 26 San Ignacio Mini 771 1046 72 Loreto 1212 840 64 Trinidad 937 528 24 Candelaria 29 Santa Rosa 1228 286 21 San Cosme 939 358 23 Santiago 1289 266 26 Corpus 2287 1671 43 Santa Mara de Fe 21 San Ignacio Guazu 24
Censo de pueblos (redues) sob jurisdio paraguaia realizado por Lazaro de
Rivera em 1799. Dados obtidos de AGN Sala IX.18.2.2. (apud Wilde 2003)
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Por exemplo, o fator religioso como elemento central na construo da tradio
de conhecimento dos Kaiowa contemporneos, unido s condies de sujeio
dominao colonial exercida pelos Estados brasileiro e paraguaio que imps regras de
acesso aos espaos geogrficos alheias quelas anteriormente consideradas por estes
ndios favoreceu o surgimento de formas especficas de organizao territorial,
reforando sentimentos de autoctonia e introduzindo critrios dinmicos de diviso de
espaos etnicamente exclusivos, indicados atravs da importante categoria de tekoha15.
Tornando s quatro categorias listadas anteriormente, h uma delas cujo
significado registrado por Montoya no corresponde quele atribudo pelos autores
analisados: justamente a de tekoha. Como foi evidenciado, hoje tekoha, como categoria
que indica espacialidade, uma noo muito importante para os Kaiowa, bem como
para os outros grupos guarani, mas seu significado no dicionrio do jesuta no nos
oferece qualquer indcio neste sentido. Registrando o significado de teko Montoya
fornece uma clara descrio de sua conotao como ser, estado de vida, condio,
estar, costume, lei e hbito. Na extensssima descrio deste verbete, porm, o autor
trata sinteticamente as formas tec e teco, a primeira significando imitao e a
segunda sorte.
Em face da enorme riqueza descritiva fornecida pelo jesuta sobre o verbete
teko, parece ser muito estranho ter-lhe passado despercebida a conotao de tekoha
como categoria de espacialidade; no obstante, boa parte da literatura recente sobre os
Guarani histricos e pr-histricos parece enveredar neste sentido.
Para preencher essa presumida lacuna nessas e outras descries da poca, Meli
prope o seguinte:
El tipo de poblados que describen las fuentes jesuticas presenta notables coincidencias con los tekoha, tal como se conocen a travs de la etnografa moderna; de ah que sea permitido inducir supuestas analogas incluso para aquellos aspectos que la documentacin histrica no seal (1988: 104).
15 Deste tema me ocuparei no segundo captulo, dedicado dinmica territorial desenvolvida recentemente nos territrios onde vivem os Kaiowa contemporneos. Aqui o que se quer sublinhar o fato de que, com os elementos disposio, no possvel desenhar apropriadamente, atravs de categorias micas e poucos elementos contextuais, a natureza organizativa dos gura, tanto do ponto de vista de suas variaes regionais como em sua amplitude scio-poltica.
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Entre as fontes mais significativas s quais se refere Meli, encontram-se as
fornecidas pelo prprio Montoya em outro livro (A Conquista Espiritual). Vejamos o
trecho que diz respeito ao tema tratado:
Note-se que chamamos Redues aos povos ou povoados de ndios que, vivendo sua antiga usana em selvas, serras e vales, junto a arroios escondidos, em trs, quatro ou seis casas apenas, separados uns dos outros em questo de lguas duas, trs ou mais, reduziu-os a diligncia dos padres a povoaes no pequenas e vida poltica (civilizada) e humana, beneficiando algodo com que se vistam, porque em geral viviam na desnudez, nem ainda cobrindo o que a natureza ocultou. (1985 [1639], p. 34)
Como perceptvel, o tipo de descrio feita pelo jesuta nos oferece to
somente uma imagem sobre a distribuio das residncias de modo disperso nos espaos
geogrficos; o autor no detalha a organizao interna a essa unidade territorial.
Portanto, no existindo uma etnografia do povoado realizada na poca colonial,
muitos autores pretendem associar significados do presente a essas imagens fornecidas
pelas fontes da poca.
A analogia proposta por Meli, no trecho anteriormente citado, entre o presente
e o passado seria mais pertinente se tivssemos disposio registros recorrentes da
categoria tekoha pelo menos nos ltimos cem anos de histria