Fabio Leonardo Castelo Branco Brito

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ENTRE TORQUATEIOS, GRAMMAS E SUPEROITOS: INTERSUBJETIVIDADES NA TRISTERESINA DE TORQUATO NETO∗

E-mail:

Fábio Leonardo Castelo Branco Brito Mestrando em História na Universidade Federal do Piauí

Membro do GT “História, Cultura e Subjetividade” (CNPq/Lattes) [email protected]

Edwar de Alencar Castelo Branco

Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco Professor adjunto do PPG e do DGH/CCHL/UFPI.

Líder do GT “História, Cultura e Subjetividade” (CNPq/Lattes) Vice-Reitor da Universidade Federal do Piauí.

Orientador da pesquisa em questão E-mail: [email protected]

RESUMO: Este artigo, tendo em vista a discussão sobre as peripécias artísticas de Torquato Neto e seus contemporâneos, aborda a recíproca relação poética (no sentido de poesis = fabricação) que se estabelece entre as cidades e os homens. A clássica indagação sobre quem é o habitante de quem na relação cidade-homem, feita a propósito de Walter Benjamin, será aqui tomada junto com a máxima certeauriana de que “caminhar é um ato de enunciar”. Desse modo, partindo da empiria composta pelos filmes experimentais O Terror da Vermelha, Davi Vai Guiar, Coração Materno e Miss Dora; bem como de jornais nanicos, e registros sobre atitudes comportamentais, se procurará mostrar que a “Geração Torquato Neto” moldou uma cidade de Teresina tanto quanto foi moldada por ela. PALAVRAS-CHAVE: Experimentalismo. Teresina. Geração Torquato Neto. ABSTRACT: This article, with a view to discussing the artistic pratices of Torquato Neto and his contemporaries, addresses the interrelated poetic (in the sense of poesis = manufacture) that is established between the cities and men. The classic question about who is the resident in respect of whom the city-man, made the way Walter Benjamin, will be taken here with the utmost of Michel de Certeau that “walking is an act of stating”. Thus, starting from the empirical experimental films made by O Terror da Vermelha, Davi Vai Guiar, Coração Materno and Miss Dora, and the runt of the newspaper, and records of behavioral attitudes, will seek to show that “Torquato Neto Generation” cast a city of Teresina was as much shaped by it. KEY WORDS: Experimental. Teresina. Generation Torquato Neto. ∗ Este texto, desenvolvido no âmbito do MHB/UFPI, é resultado dos esforços que vêm sendo feitos, com vistas à formatação da pesquisa “Torquato Neto e seus contemporâneos: experimentalismo e guerrilha semântica no Piauí dos anos 1970”, sob orientação do Prof. Dr. Edwar de Alencar Castelo Branco. Nesse trabalho, agradeço a colaboração providencial dos colegas/amigos Hermano Carvalho Medeiros e Paulo Ricardo Muniz Silva, pela sessão de materiais e pela leitura do texto.

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cidades como séculos – um século atrás do outro. na frente do outro. o tempo se ultrapassa no espaço do tempo. agora é nunca mais, e nunca antes. agora é jamais – um século atrás do outro. na frente do outro. ao lado. um dia é paralelo ao outro. isso tudo é um esquema muito chato enquanto a coisa anda: isso é que é legal, do mesmo jeito que é legal saber que isso tudo pulsa, de alguma maneira, no ponto misterioso do desenho. Princípio, fim. total e único. geral. cidades. ninguém pode mais do que deus!

Torquato Neto1

Partindo da perspectiva nietzschiana de que “nomear é dar forma ao mundo”

(NIETZCHE, 1999), e considerando a cidade de Teresina no início dos anos 1970 como

um espaço onde se desenvolveram diversas manifestações de arte juvenis, produzidas a

partir das influências de estéticas experimentais das décadas anteriores, como a Tropicália,

o Concretismo e o Poema/Processo, este trabalho pretende abordar as maneiras de se

praticar a cidade por alguns segmentos dessa juventude. Concebendo o conceito de

Introdução

A relação homem-cidade é, usualmente, marcada pela multiplicidade de sensações

e desejos. A prática dos espaços urbanos dá a ver os traços subjetivos que compõem o

“ser” do homem, sua constituição enquanto sujeito, conformado por marcas identitárias

diversas (HALL, 1999). Partindo da proposta presente em Walter Benjamin, de que há uma

reciprocidade no ato de habitar a cidade, praticado pelo homem e, simultaneamente, no ser

habitado por ela (ROUANET, 1990), faz-se possível compreender que um estudo histórico

do espaço urbano não engloba apenas a percepção das transformações materiais, mas,

também as subjetividades nele envolvidas.

Se a caminhada pela cidade denota um processo de enunciação da mesma

(CERTEAU, 1994, p. 177), é possível perceber que a Teresina, no contexto do processo de

crescimento e modernização das cidades brasileiras, que se dá, especialmente nos anos

1960 e 1970, se abre ao caminhante/enunciador como um lugar de satisfação dos desejos

de visão panorâmica e de prática dos espaços, concebendo, panopticamente, ambientes

onde convivem, ao mesmo tempo, a grandiloquência das construções que exalam

novidade, a dinâmica da urbe, e os praticantes ordinários da cidade. Esse entrelaçamento

de caminhos, poetizados pela diversidade de seus praticantes, dão a ver trajetórias

fragmentadas, cotidianamente indefinidas, impossíveis de se ver a partir de olhares

totalizantes, compondo, sinestesicamente, uma “erótica do saber” (ibid, p. 170).

1 TORQUATO NETO. Os últimos dias de Paupéria. Organização: Wally Sailormoon. Rio de Janeiro: Eldorado, 1973. p. 63.

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geração, como categoria temporal móvel (SIRINELLI, 2005, p. 135), e tendo em vista a

influência recebida pelo poeta piauiense, morto em 1972, compreende-se que o grupo em

questão forja-se, conceitualmente, como geração Torquato Neto (LIMA, 2007, p. 13).2

É nessa época que a cidade de Teresina se insere no contexto das capitais brasileiras

que, a propósito do processo de modernização deflagrado pelo “milagre econômico”

pregado pelo governo, à época, observava, como afirma Nascimento, que “as mudanças

nos modos de vida, as novas exigências de conforto, as inovações de consumo e lazer

engendravam uma expansão no território da cidade, em detrimento do centro antigo, que

perde habitantes” (2007, p. 204). Em congruência com as transformações urbanas, o

deslumbramento com as novas tecnologias causava uma mudança nos hábitos de algumas

Torquato Neto e os garotos sobre a grama: espaços de sociabilidades juvenis em

Teresina, a cidade sob impacto da pós-modernidade

O processo de expansão de novas tecnologias comunicacionais, dentro do qual se

insere a popularização da televisão, se apresenta como um aspecto de redefinição das

ideias de Brasil. Esse contexto, que também abarca a diversificação do gosto musical

brasileiro, bem como uma maior popularidade do cinema comercial, é propício para a

eclosão das chamadas “vanguardas artísticas” dos anos 1960, que, de acordo com Castelo

Branco, se apresenta como “condição história de emergência da pós-modernidade

brasileira” (CASTELO BRANCO, 2005, p. 95). Em Teresina, por sua vez, tais elementos

teriam sua efluência na década seguinte, como denota Bezerra, ao afirmar que:

Os anos 70 se iniciam, sobretudo em Teresina e Parnaíba, sob o signo do silêncio e da desinformação, em que quase toda uma geração despertou diante da televisão, manietada pela censura e por interesses comerciais. É através dessa “caixa infernal” que o Piauí passa a integrar a “aldeia global”, via satélite, preconizada por Mac Luhan. Foi a televisão, embora de canal único e de qualidade discutível (aliás, isso foi tema de muitos debates), que alterou costumes familiares e sociais. Entretanto, apesar da deformação de valores impostos sub-repticiamente via centro/periferia, verificou-se uma maior velocidade da informação, a diversão barata, a novela, o futebol, a mídia eletrônica, e tudo isso significou um impacto na atmosfera cultural imobilista que reinava até então (BEZERRA, 1993, p. 15).

2 Este conceito é aplicado aos jovens que, sob influência dos pensamentos e das atitudes de Torquato Neto, desenvolveram práticas artísticas no âmbito da literatura, da música e do cinema. Tal influência se deu, mais especificamente, na produção de livros, panfletos e jornais alternativos, reproduzidos em mimeógrafo, e em filmes feitos em formato não-comercial, com a utilização de câmeras super-8.

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parcelas da população da cidade, que se via frente, dentre outros elementos, ao

entretenimento enlatado, trazido pela televisão. Tratando, de forma irônica e bem-

humorada, essas transformações nos hábitos e padrões de comportamento teresinenses,

João Luís Rocha do Nascimento tematiza a televisão em seu conto “Novela liberada para

esse horário”, publicado, originalmente, no jornal alternativo Ô de Casa:

A irmã via tv, pensava no Francisco Cuoco e sonhava com o mundo encantado do Fantástico, um mundo próximo/distante da miséria em que vivia mergulhada. Certa noite, saiu para um passeio inocente e, numa esquina qualquer, um tarado a estrangulou. Diante do vídeo, choraram a morte da irmã. A mãe via tv, e fazia crochê, que dizia fazer bem aos nervos. Durante os comerciais, sonhava com o futuro do filho, UM GRANDE HOMEM. Continuou a fazer crochê diante da tv, até que o corpo encurvou-se, os dedos enrijeceram, a respiração parou. Não pôde ver o GRANDE HOMEM esgoelando-se em frente às lojas Ypiranga, onde vendia retalhos. Diante do vídeo choraram a morte da mãe. [...] O filho via tv. Perdera a irmã, a mãe, o pai, mas ainda lhe restava a tv. Sentindo-se só, resolveu se casar. Acabou desistindo: a irregularidade do magro salário não recomendava tal ousadia. Resolveu entregar-se totalmente à tv. [...] (NASCIMENTO, 1977, p. 33).

O texto dá a ver uma percepção sobre as tecnologias de informação e

entretenimento que aportavam, com mais força, na cidade, na década de 1970. Como

afirma Tôrres (2009, p. 82), o desejo de modernização de Teresina se propagava através de

diversos meios, dentre os quais os círculos educacionais, políticos, os livros e demais

impressos e a produção jornalística. A contrapartida aos discursos de natureza progressista

acontecia através das artes de cunho experimental, em geral, de autorias juvenis.

Praticantes da cidade, e também adeptos a comportamentos, em geral, mal-vistos por uma

grande parcela da sociedade local, tais jovens cabem como ponto de observação das

possibilidades de leitura histórica dos comportamentos desviantes, vistos como parte de um

processo de desnaturalização dos sujeitos, uma vez que, fogem dos padrões de

comportamento a eles impostos. Tais circunstâncias denotam, segundo Deleuze e Guattari,

o momento em que se observa desaparecer “a distinção homem/natureza: a essência

humana da natureza e a essência natural do homem” (2004, p. 10).

As transformações comportamentais, como parte dos modos de praticar a cidade,

podem ser observados no trato dado por alguns jovens a temáticas antes intocáveis, como o

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casamento, a sexualidade, os modos de se vestir e de se portar. Durvalino Couto Filho3

Na terra “onde não acontece nada, onde nunca passou um filme de Godard e onde

cabeludo não entra na escola nem nas casas de família”, Torquato Neto vivia sua relação

de contraditoriedade. Ao passo que, em sua profunda dificuldade de territorialização

(CASTELO BRANCO, 2006, p. 06), encontrava na cidade um espaço de inconstância, o

poeta via em Teresina, também, o único local em que, nos momentos finais de sua vida,

estava tranquilo. Segundo amigos, “Torquato ultimamente só estava bem quando ia ao

Piauí. Voltava corado, bem disposto e com vontade de trabalhar” (JORNAL DO BRASIL,

1972, p. 13). Tal afirmação é observada nos próprios escritos de Torquato, com destaque

observa a mudança de práticas de comportamento vista a partir de suas próprias

experiências, quando coloca:

[...] As mulheres começam a ter acesso à pílula anticoncepcional, as pessoas começam a transar. [...] Houve uma imensa mudança de costumes e de hábitos. Não foi fácil. Teve caso de mães que descobriram pílulas anticoncepcionais na bolsa das filhas e falavam: “− Vai casar!” “− Casar?” “− É, vai casar com quem está lhe comendo. Quem é que está lhe comendo?” “− Sei lá, mãe! Vários!” (COUTO FILHO, 2009).

Outro aspecto relacionado aos novos comportamentos juvenis se refere ao tamanho

dos cabelos masculinos. Castelo Branco destaca que “o cerco aos cabeludos,

aparentemente banal, marcou decisivamente a vida das pessoas na virada dos anos sessenta

para os setenta” (2005, p.91). Cabe observar as atitudes de alguns jovens, dentre eles

Torquato Neto, em sua discordância quanto às restrições sociais aos longos cabelos. Em

carta enviada a Hélio Oiticica, a propósito da produção em andamento do jornal Navilouca,

e do envio do recém-saído primeiro número do jornal O Gramma, manifesta seu

desagrado:

Bom: espero que você vibre, como nós vibramos, com essa Gramma de Teresina. Os garotos vão tentar tirar um outro número na marra, agora, e tão logo saia (se sair), eu te mando. Me escreva a respeito disso, por favor – inclusive porque seria fantástico para os meninos daqui. Eles andam fudidíssimos por causa do jornal (ah, se você conhecesse o que é o Piauí...), e numa terra onde não acontece nada, onde nunca passou um filme de Godard e onde cabeludo não entra na escola nem nas casas de família, pode crer, essa Gramma é o que eu disse antes: uma espécie de milagre. E vai render (TORQUATO NETO, 2004, p. 284, grifo nosso).

3 A entrevista foi realizada por Hermano Carvalho Medeiros, quando da formatação da monografia de conclusão de curso “Da fuga ao mito: a construção do mito cultural Torquato Neto”, no dia 08 de abril de 2009, na Árvore da Propaganda, local de trabalho do entrevistado.

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para a carta da qual foi retirado trecho acima. Em outro recorte do texto, o poeta ressalta:

“foi de repente que eu tive de sair do Rio para um repouso necessário e compulsório no

Piauí” (TORQUATO NETO, 2004, p. 283).

O “repouso necessário e compulsório” pode ser visto como um dos vários

internamentos de Torquato no sanatório Meduna, por conta própria, dada suas constantes

crises de depressão. Durvalino Couto Filho também aborda este aspecto da vida do poeta

d’Os últimos dias de Paupéria, como parte das circunstâncias em que o conheceu:

[...] Ele tinha passado um tempo internado por conta própria. O Torquato é o que se chama hoje de bipolar, que na época a medicina chamava de maníaco depressivo. Ele alternava momentos de euforia com momentos de profunda depressão. Tinha esse transtorno bipolar. Mas quando ele saiu do Meduna tava na boa [risos] [...] (COUTO FILHO, 2009).

Na circunstância da saída de Torquato Neto do Meduna, deu-se o contato do poeta

com um grupo de jovens que, editores de um suplemento no jornal Opinião, de Camilo

Filho, intentavam entrevistá-lo. Durvalino Couto Filho continua seu relato sobre a relação

do grupo, composto por ele, Edmar Oliveira e Paulo José Cunha, primo de Torquato, e o

poeta: “Aí ele topou a entrevista. Então nós passamos uma noite inteira conversando,

chegamos na casa dele uma sete e meia e saímos de lá meia noite, gravamos umas quatro

fitas K7. Depois compilamos tudo e levamos para revisar. Esse foi o primeiro contato”

(ibid.).

Do contato inicial com Torquato Neto, surge a relação na qual este passa de

entrevistado a colaborador do grupo, ganhando destaque a edição do supracitado jornal O

Gramma4

[...] O Gramma foi notícia no Pasquim, saiu na capa, o fac-simile do jornal Rolling Stones: “Rapaziada no Piauí fazendo um jornalzinho esperto”. Tinha o Arnaldo Albuquerque, que mora no Barrocão até hoje. O Arnaldo era o câmera e o desenhista. O Edmar escrevia, eu escrevia. O doutor Noronha, que é pediatra, foi colega de Torquato no ginásio Leão XIII, era muito amigo do Torquato. O doutor Noronha é um pouco mais velho do que a gente, mas se engajou e passou a ser uma espécie de produtor, porque já era independente e a casa dele virou um ponto de encontro. A gente ia lá ouvir o último disco do Caetano, da Gal, o último

. De conteúdo que perpassava a poesia marginal, desenhos, fotografias e textos

em prosa, a produção coletiva demarca um momento na história do experimentalismo no

Piauí, dando a ver a atuação direta do poeta tropicalista como influenciador das vanguardas

juvenis na capital do Estado:

4 O jornal recebeu esse nome como referência aos seus produtores, jovens que eram, comumente, vistos sentados sobre a grama das praças de Teresina.

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disco dos Rolling Stones, tinha essa efervescência. Aí a turma foi crescendo, vieram as meninas, namoradas, veio casamento, separação, uma loucura. Mas foi basicamente assim que a gente conheceu Torquato, no calor mesmo dos acontecimentos (ibid.).

O jornal, “feito de repente por uns sete a oito meninos aqui de dentro, com idade

variável entre 16 e 20 anos” (TORQUATO NETO, 2004, p. 283) cria uma relação de

contiguidade com a produção artística juvenil feita fora do Piauí. No contexto em que se

produzia jornais como o Pasquim, é perceptível, nas produções locais, dentre as quais

também se destacarão O Estado Interessante, Inovação (este produzido em Parnaíba),

Boquitas Rouge, dentre outras, a relação com os espaços de sociabilidade praticados por

estes jovens. O bar Gelatti, situado, segundo Couto Filho (2009), “ao lado de onde hoje

existem esses caldos de cana na Frei Serafim”, se presentifica como um desses lugares

praticados (CERTEAU, 1994, p. 202), onde o entrevistado afirma ter se dado a divulgação

do jornal O Gramma:

No lançamento do jornal a gente fechou esse lado da Frei Serafim, no Gelatti, e fez um acontecimento, uma loucura, cara! Teve banda de rock comandada pelo Renato Piau, enquanto as amigas e namoradas vendiam o jornal de mesa em mesa. O Gelatti era um ponto de encontro da contracultura, da cultura alternativa e dos malucos de todas as tribos (COUTO FILHO, 2009).

O Gelatti é um espaço constante em diversas obras da produção juvenil na Teresina

dos anos 1970. No conto “A Classe Média Vai à Caça”, de Arnaldo Albuquerque, pode-se

perceber a inconstância dos jovens de classe média de Teresina, em seu trânsito entre uma

produção contracultural engajada e a alienação, literatura que, por seu conteúdo,

caracteriza uma fuga identitária (CASTELO BRANCO, 2005, p. 94):

Direto ao Gelatti. Ouviram as novas novidades velhas, viram a Dora, adorado sonho. Tomaram a mesma cerveja-conhaque-batida. Comeram o mesmo frito de tripas, evidenciador de uma caganeira tomorrow. As mesmas pessoas, muito mais bonitas e agradáveis, vistas agora através do barato (ALBUQUERQUE, 1977, p...)

A presença do bar, bem como de outros espaços de sociabilidade juvenis, é

marcante, também, na filmografia experimental produzida em Teresina entre 1972 e 1974.

Nos filmes, em especial O Terror da Vermelha, Davi Vai Guiar, Coração Materno e Miss

Dora, o Gelatti e outros pontos de encontro da geração Torquato Neto surgem como

lugares praticados a partir das significações que estes estabeleceram sobre os mesmos.

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Marcas de uma geração, o bar e outros ambientes são, também, pontos de partida para que,

nesses filmes, tais jovens passem a praticar outros espaços de Teresina.

A cidade que habita em nós: super-8 e torquateios na Tristeresina

Naquela que foi, provavelmente, sua última incursão nas artes de viver, Torquato

Neto produziu, em Teresina, O Terror da Vermelha5

5 O título O Terror da Vermelha é atribuído ao filme por ser o primeiro cartão-título apresentado, embora este pudesse ter ganhado um dentre vários outros, colocados como telas-cartões ao longo da produção: Vir Ver Ou Vir, O Faroesteiro da Cidade Verde, Só Matando, Tristeresina, etc.

, super-8 no qual traça um retrato

sentimental de sua cidade natal. A “Tristeresina”, que se apresenta em um dos cartões

iniciais do filme, cabe na representação de uma cidade contraditória, aos olhos do “anjo

torto”. “Nesta fase, a fotografia, o cinema e a exploração do espaço gráfico da poesia

foram os instrumentos principais” (CASTELO BRANCO, 2005, p. 189) para o poeta, que

coloca o sequenciamento (mais ou menos) lógico dos acontecimentos do filme,

roteirizando-o, no poema Vir Ver Ou Vir:

a coroa do rio poti em teresina lá no piauí, areia palmeira de babaçu e céu e água e muito longe, depois, um caso de amor um casal uns e outros. procuro para todos os lados – localizo e reconheço, meu chicote na mão e os outros: a ora da novela o terror da vermelha o problema sem solução a quadratura do círculo o demônio a águia o número do mistério dos elementos os quintais da minha terra é a minha vida; o faroesteiro da cidade verde estás doido então? (sousândrade). ela me vê e corre, praça joão luís ferreira. esfaqueada num jardim estudante encontrado morto ando pelas ruas tudo de repente é novo para mim. a grama. o meu caso de amor, que persigo, esses meninos me matam na praça do liceu. conversa com gilberto gil e recomeço a vir ver ou aqui onde herondina faz o show na estação da estrada de ferro teresina – são luís um dia de manhã onde etim é sangrado TRISTERESINA uma porta aberta semiaberta penumbra retratos e retoques eis tudo. observei longamente, entrei saí e novamente eu volto enquanto

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saio, uma vez ferido de morte e me salvei o primeiro filme todos cantam sua terra também vou cantar a minha [...] (TORQUATO NETO, 1973, p. 107)

No poema/roteiro, Torquato Neto estabelece uma relação com diversos elementos

da cidade, que viriam a ser transformados em imagens em movimento. “Todos cantam sua

terra, também vou cantar a minha” é o lema, através do qual retrata a coroa do rio Poti, as

Praças do Liceu e João Luís Ferreira, a estação ferroviária, etc. Nele, também constam

vestígios de seus laços de amizade e parentesco, como Herondina e Etim, que

compartilhariam espaço no filme com Edmar Oliveira, Durvalino Couto Filho, Claudete

Dias, Paulo José Cunha, Geraldo Cabeludo, Carlos Galvão, Xico Ferreira e Arnaldo

Albuquerque, dentre outros. A figura do serial killer, interpretado por Edmar Oliveira, e

que se mostra uma constante nos filmes experimentais da época, constitui um alter ego do

autor, que, constantemente atribuindo às suas produções a figuração da morte – presente

em muitos de seus poemas – faz das ações do personagem um pretexto para reaver

elementos existentes em suas incursões poéticas iniciais: “uma atitude reativa em relação

ao tempo, a idealização da infância e a repetida memória de Teresina como cidade-luz”

(CASTELO BRANCO, 2007, p. 184).

Apropriando-se de Teresina, por sua vez, a fim de construir um retrato panóptico da

cidade, Durvalino Couto Filho estabelece o Gelatti como um dos primeiros ambientes

retratados no filme Davi Vai Guiar, de 1972. Dessa maneira, concebe a cidade a partir dos

principais espaços praticados pelos jovens com os quais convivia na época, traçando um

roteiro com intencionalidade direcionada. O trânsito dos personagens, estabelecendo com

os espaços uma relação de reciprocidade, o aproxima do flanêur (BENJAMIN, 1999, p.

68), aquele que caminha sem compromissos, e atravessa a cidade destraidamente. Davi

Aguiar, figura central do filme, denota, em sua caminhada, olhares particulares dos

espaços, formatando concepções singulares e discursos que fogem ao padrão de olhar da

época, em geral balizado nos ideais de desenvolvimento e “milagre econômico”.

A mesma intenção de retratar a cidade, e se mostrar conduzido por ela se mostra

presente em Coração Materno, de 1973, onde Haroldo Barradas, a propósito de imprimir o

seu olhar ao contexto urbano, tematiza as relações familiares, um dos elementos que se

encontrava em vias de transformação na década de 70, ao mesmo tempo em que

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estabelecia uma referência tropicalista, colocando a versão de Caetano Veloso à música

homônima de Vicente Celestino como trilha sonora principal do filme.

Em Miss Dora, de Edmar Oliveira, produzido em 1974, a personagem central,

Dora, uma representação das transformações nas conjunturas de gênero, sai do Gelatti, e, a

partir do local, pratica, juntamente com outros personagens, ambientes diversos da cidade.

Aplicando a noção de Certeau, na qual os percursos são os condicionadores dos mapas

(1994, p. 205), é possível perceber que os sujeitos colocados reescrevem os locais de

Teresina, dando novas formas a ambientes, estradas e placas. A Cerâmica Mafrense se

transforma na representação da fábrica, enquanto lugar de dominação social e controle

(FOUCAULT, 2008). As placas, indicando “Direita Livre” ou “Vire à Esqueda”, sugerem

referências ao momento político vigente6, onde facções ideológicas trocavam acusações, e

onde se observa uma diferença entre a juventude politicamente engajada e os jovens ditos

“marginais”,7

É possível entrever que esse contexto de modernização configurou em Teresina

uma parcela de juventude que, interligada às novas tecnologias, passou a praticar os

espaços de forma diferenciada. Postando-se de maneira diversa aos valores impostos pela

sociedade e pela família, seja nos hábitos de se vestir e se portar, seja numa prática artística

que pendia para o satírico e o desbunde, tais jovens, intentando, também, uma fuga em

relação à arte socialmente comprometida, criavam novas linguagens, promovendo,

também, de forma intuitiva e pouco organizada, uma reflexão sobre as linguagens já

institucionalizadas (HOLLANDA, 2004, p. 130), ao mesmo tempo em que utilizavam tais

guerrilhas semânticas

mostrando-se como táticas juvenis, frente às estratégias político-sociais de

organização das coisas.

Considerações finais

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6 Em 1972, vivia-se o auge da Ditadura Militar no Brasil, momento no qual os partidos políticos de esquerda encontravam-se em posição de ilegalidade. A política nacional ficava restrita à relação entre a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), o partido do governo, e o Movimento Democrático Nacional (MDB), a oposição oficialmente aceita. 7 Para uma discussão sobre a relação entre o engajamento ou não-engajamento político da juventude, ver: CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Entre o corpo-militante-partidário e o corpo-transbunde-libertário: as vanguardas dos anos sessenta como signos da pós-modernidade brasileira. História Unisinos, v. 9, n. 3, set/dez, 2005. p. 218-229.

para (re) praticar o espaço urbano.

8 Este conceito é utilizado pelo historiador Edwar de Alencar Castelo Branco para nomear as produções de cultura e arte experimental no Brasil das décadas de 1960 e 1970, tendo em vista a configuração de sujeitos que investiam socialmente, para além das manifestações político-ideológicas engajadas. Para uma maior

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Formatando tais leituras, sob o objetivo de compreender a cidade de Teresina como

um campo aberto à emergência dos valores da pós-modernidade brasileira, cabe observar

que se empreendeu nela uma reciprocidade entre sujeitos e espaços. A relação poética de

habitação, mapeamento e prática dos espaços pelos homens, proposta a partir da leitura

conjunta de Walter Benjamin e Michel de Certeau, contribui para entender que a urbe

existe apenas como algo inventado e reinventado pelos homens, sendo, dessa maneira, um

subproduto da cultura.

Conceber a cidade a partir das peripécias urbano-artísticas da “Geração Torquato

Neto” permite lê-la como local que moldou tal geração, na mesma medida em que foi

moldada por ela. Teresina, apresentando-se propícia a novas experiências, ofereceu-se

como lugar para que um conjunto de jovens destruíssem e reinventassem linguagens,

forjando novas concepções de tempo/espaço, e redimensionando o lugar da arte. Cabe ler,

também, que as categorias teóricas a partir das quais se passa a analisar as produções

culturais advindas das décadas seguintes resultam, em grande parte, da contribuição de

novas estéticas criadas no período em questão. A cidade de Teresina se forja, dessa

maneira, indo para além de um lugar dos desejos, como espaço propício para a construção

de novos valores sociais e olhares sobre o mundo.

REFERÊNCIAS Livros, capítulos de livros, dissertações e artigos ALBUQUERQUE, Arnaldo. A Classe Média Vai à Caça. In: Ó de Casa. Teresina: Editora Nossa, 1977. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas. v. III. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1999. BEZERRA, José Pereira. Anos 70: Por que essa lâmina nas palavras? Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1993. CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a invenção da Tropicália. São Paulo: Annablume, 2005a.

discussão sobre o conceito, ver: CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a invenção da Tropicália; CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Táticas caminhantes: cinema marginal e flanâncias juvenis pela cidade; dentre outros textos do autor, bem como os produzidos no âmbito do GT “História, Cultura e Subjetividade” (CNPq/Lattes).

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