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  • Eu Vivi o TBC

  • Eu Vivi o TBC

    Nydia Licia

    So Paulo, 2007

  • Coleo Aplauso Srie Teatro Brasil

    Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Coordenador Operacional e Pesquisa Iconogrfica Marcelo Pestana Projeto Grfico Carlos Cirne Editorao Aline Navarro Assistente Operacional Felipe Goulart Tratamento de Imagens Jos Carlos da Silva Reviso Amancio do Vale Dante Pascoal Corradini Sarvio Nogueira Holanda

    Imprensa Oficial do Estado de So Paulo

    Diretor-presidente Hubert Alqures

    Diretor Vice-presidente Paulo Moreira Leite Diretor Industrial Teiji Tomioka Diretor Financeiro Clodoaldo Pelissioni Diretora de Gesto Corporativa Lucia Maria Dal Medico Chefe de Gabinete Vera Lcia Wey

    Governador Jos Serra

  • Apresentao

    O que lembro, tenho.Guimares Rosa

    A Coleo Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, tem como atributo principal reabilitar e resgatar a memria da cultura nacional, biogra-fando atores, atrizes e diretores que compem a cena brasileira nas reas do cinema, do teatro e da televiso.

    Essa importante historiografia cnica e audio-visual brasileiras vem sendo reconstituda de manei ra singular. O coordenador de nossa cole-o, o crtico Rubens Ewald Filho, selecionou, criteriosamente, um conjunto de jornalistas especializados para rea lizar esse trabalho de apro ximao junto a nossos biografados. Em entre vistas e encontros sucessivos foi-se estrei -tan do o contato com todos. Preciosos arquivos de documentos e imagens foram aber tos e, na maioria dos casos, deu-se a conhecer o universo que compe seus cotidianos.

    A deciso em trazer o relato de cada um para a pri meira pessoa permitiu manter o aspecto de tradio oral dos fatos, fazendo com que a mem ria e toda a sua conotao idiossincrsica aflorasse de maneira coloquial, como se o biogra-fado estivesse falando diretamente ao leitor.

  • Gostaria de ressaltar, no entanto, um fator impor-tan te na Coleo, pois os resultados obti dos ultra-passam simples registros biogr ficos, revelando ao leitor facetas que caracteri zam tambm o artista e seu ofcio. Tantas vezes o bigrafo e o biografado foram tomados desse envolvimento, cmplices dessa simbiose, que essas condies dotaram os livros de novos instru mentos. Assim, ambos se colocaram em sendas onde a reflexo se estendeu sobre a forma o intelectual e ide-olgica do artista e, supostamente, continuada naquilo que caracte rizava o meio, o ambiente e a histria brasileira naquele contexto e mo-mento. Muitos discutiram o importante papel que tiveram os livros e a leitu ra em sua vida. Deixaram transparecer a firmeza do pensamento crtico, denunciaram preconceitos seculares que atrasaram e conti nuam atrasando o nosso pas, mostraram o que representou a formao de cada biografado e sua atuao em ofcios de lin-guagens diferen ciadas como o teatro, o cinema e a televiso e o que cada um desses veculos lhes exigiu ou lhes deu. Foram analisadas as distintas lingua gens desses ofcios.

    Cada obra extrapola, portanto, os simples relatos biogrficos, explorando o universo ntimo e psicolgico do artista, revelando sua autodeter-minao e quase nunca a casualidade em ter se

  • tornado artis ta, seus princpios, a formao de sua persona lidade, a persona e a complexidade de seus personagens.

    So livros que iro atrair o grande pblico, mas que certamente interessaro igualmente aos nossos estudantes, pois na Coleo Aplauso foi discutido o intrincado processo de criao que envol ve as linguagens do teatro e do cinema. Foram desenvolvidos temas como a construo dos personagens interpretados, bem como a anlise, a histria, a importncia e a atualidade de alguns dos personagens vividos pelos biogra-fados. Foram examinados o relaciona mento dos artistas com seus pares e diretores, os proces-sos e as possibilidades de correo de erros no exerccio do teatro e do cinema, a diferenciao fundamental desses dois veculos e a expresso de suas linguagens.

    A amplitude desses recursos de recuperao da memria por meio dos ttulos da Coleo Aplauso, aliada possibilidade de discusso de instru mentos profissionais, fez com que a Im-prensa Oficial passasse a distribuir em todas as biblio tecas importantes do pas, bem como em bibliotecas especializadas, esses livros, de grati-ficante aceitao.

  • Gostaria de ressaltar seu adequado projeto grfi co, em formato de bolso, documentado com iconografia farta e registro cronolgico completo para cada biografado, em cada setor de sua atuao.

    A Coleo Aplauso, que tende a ultrapassar os cem ttulos, se afirma progressivamente, e espe ra contem plar o pblico de lngua portu guesa com o espectro mais completo possvel dos artistas, atores e direto res, que escreveram a rica e diver-sificada histria do cinema, do teatro e da tele-viso em nosso pas, mesmo sujeitos a percalos de naturezas vrias, mas com seus protagonistas sempre reagindo com criati vidade, mesmo nos anos mais obscuros pelos quais passamos.

    Alm dos perfis biogrficos, que so a marca da Cole o Aplauso, ela inclui ainda outras sries: Projetos Especiais, com formatos e carac-tersticas distintos, em que j foram publicadas excep cionais pesquisas iconogrficas, que se ori-gi naram de teses universitrias ou de arquivos documentais pr-existentes que sugeriram sua edio em outro formato.

    Temos a srie constituda de roteiros cinemato-grficos, denominada Cinema Brasil, que publi cou o roteiro histrico de O Caador de Dia mantes, de Vittorio Capellaro, de 1933, considerado o

  • primeiro roteiro completo escrito no Brasil com a inteno de ser efetivamente filmado. Parale-lamente, roteiros mais recentes, como o clssico O Caso dos Irmos Naves, de Luis Srgio Person, Dois Crregos, de Carlos Reichenbach, Narradores de Jav, de Eliane Caff, e Como Fazer um Filme de Amor, de Jos Roberto Torero, que devero se tornar bibliografia bsica obrigatria para as escolas de cinema, ao mesmo tempo em que documentam essa importante produo da cinematografia nacional.

    Gostaria de destacar a obra Gloria in Excelsior, da srie TV Brasil, sobre a ascenso, o apogeu e a queda da TV Excelsior, que inovou os proce-dimentos e formas de se fazer televiso no Brasil. Muitos leito res se surpreendero ao descobrirem que vrios diretores, autores e atores, que na dcada de 70 promoveram o crescimento da TV Globo, foram forjados nos estdios da TV Ex-celsior, que sucumbiu juntamente com o Gru po Simonsen, perseguido pelo regime militar.

    Se algum fator de sucesso da Coleo Aplauso merece ser mais destacado do que outros, o inte-resse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu pas.

    De nossa parte coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficcia a pesquisa

  • docu mental e iconogrfica, contar com a boa vontade, o entusiasmo e a generosidade de nos-sos artistas, diretores e roteiristas. Depois, ape-nas, com igual entu siasmo, colocar dispo sio todas essas informaes, atraentes e aces sveis, em um projeto bem cuidado. Tambm a ns sensibilizaram as questes sobre nossa cultura que a Coleo Aplauso suscita e apresenta os sortilgios que envolvem palco, cena, coxias, set de filmagens, cenrios, cme ras e, com refe-rncia a esses seres especiais que ali transi tam e se transmutam, deles que todo esse material de vida e reflexo poder ser extrado e disse minado como interesse que magnetizar o leitor.

    A Imprensa Oficial se sente orgulhosa de ter criado a Coleo Aplauso, pois tem conscin-cia de que nossa histria cultural no pode ser negli genciada, e a partir dela que se forja e se constri a identidade brasileira.

    Hubert AlquresDiretor-presidente da

    Imprensa Oficial do Estado de So Paulo

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    Prefcio

    Teatro Brasileiro de Comdia. Um belo nome escondido em uma sigla: TBC. E justamen-te pela sigla que hoje em dia a maioria das pes soas , que no o conheceram, se refere ao teatro semi-abandonado da Rua Major Diogo, na Bela Vista.

    Dados histricos esto em livros e depoimentos. Mera coleo de palavras, significando muito pouco para aqueles que o fizeram: encenadores, administradores, diretores, tcnicos e, sobretudo, atores. Eu Vivi o TBC no simplesmente uma frase arranjada. Nydia Licia deve t-lo vivido at mesmo antes de sua inaugurao, em plena ges-tao. Fazendo parte do elenco de Margem da Vida, a ser montada pelo Grupo de Teatro Experimental, em 1948, certamente nos ensaios, em casa de Alfredo Mesquita ou na Livraria Jaragu, ouviu discusses acerca de um edifcio que se deveria transformar em um teatrinho na Bela Vista.

    Quem descobrira o prdio fora Hlio Pereira de Queiroz, o Heliosponto, como o apelidaram os aficionados do teatro amador, uma vez que estava sempre pronto a pontar como se dizia muito antigamente todos os espetculos que programava. A localizao era inusitada. Bairro

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    pouco afeito a espetculos (o Cinema Espria h muito tempo estava desativado), conserva-va ainda certa animao nas ruas principais, percorridas por um bonde aberto que passava, clere, bem em frente ao teatro (no atrapalharia a voz dos atores?). De qualquer maneira, a adaptao corria em tempo acelerado, podendo ser inaugurado, como uma instalao perfeita, apta ao funcionamento de um pequeno teatro moderno, dotado de escritrio, sala de ensaio, guardaroupa e carpintaria, para a execuo dos cenrios e mveis de poca.

    Nydia Licia, por deciso prpria, no estava en-tre os escalados para a primeira apresentao e o real motivo foi esclarecido exausto. Mas estava escrito que nessa casa de espetculos ela namoraria um ator vindo do Rio de Janeiro, e com ele se casaria no prprio saguo do teatro. Era esse o esprito que a casa inspirava aos moradores: plena adeso arte que ali se praticava, abdicao quase total de um cotidiano de vida prpria, a fim de que cada um pudesse cumprir sua vocao.

    Foi assim que o Teatro Brasileiro de Comdia, por exigncia de horrios fixos, pelas progra-maes contnuas, tornou-se sem exageros no um segundo lar para os atuantes, mas um muito singular primeiro lar, e isso no s pelas

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    extensas horas de trabalho, como por ter se tornado uma sede propiciadora de sonhos e de realizaes pessoais. Nydia Licia e Srgio Cardoso, pacientemente, construram-se, aperfeioaram-se na organizao da Rua Major Diogo que, na verdade, constitura-se na almejada sede estvel, possibilidade nica para um empreendimento programado e, conseqentemente, um contnuo desenvolvimento artstico.

    O local dessa fbrica de sonhos tinha uma sala de 365 lugares que eram ocupados por espectadores assduos s estrias e que acompa nhavam com curiosidade o dia-a-dia das atividades de um fato novo em So Paulo: uma companhia teatral pau-lista, com repertrio, no mnimo, curioso. Nydia Licia descreve a sala de espetculos: A sala, em declive, proporcionava uma visibilidade total do palco. As paredes, claras, cuja nica decorao eram as duas mscaras da Comdia e do Drama, faziam ressaltar o vermelho das poltronas. Foi ali que ns, estudantes, ouvi mos em portugus, pela primeira vez, Saroyan, Pirandello, Sfocles, Schil-ler e... os no-catlicos tomaram conhecimento de Jean-Paul Sartre, como dramaturgo.

    Os jornais apoiavam o novo empreendimento. Em O Estado de S. Paulo, Dcio de Almeida Pra-do, crtico serissimo, encarregava-se de fazer chegar ao pblico sua opinio, distribuda em

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    comentrios esclarecedores sobre o texto, dire-o e interpretao. Mattos Pacheco, no Dirio da Noite, em forma de noticirio, dava muita importncia ao TBC (Ah! A sigla!).

    s vezes irnico, nunca maldoso, ia tecendo co-mentrios do cotidiano dos bastidores, tornan do os atuantes mais prximos do pblico, huma-nizando-os, como parte importante na vida da cidade. Diretores e intrpretes, todos muito moos e dedicados, cientes de que ali estava a oportunidade de sua vida, iam formando o seu repertrio. E bom que se diga, laboriosa mente trabalhando, das 13 horas s 19 horas em ensaios cole tivos e, pela noite adentro, com cada um dos atores, em separado, quando julgavam ser neces srio. E assim ia se formando uma cadeia de textos, um tanto coloridos pela sua diversidade, mas de cores caprichadas: ora cinza, ora negro, algumas vezes rseo. Esse ir-e-vir entre clssicos, modernos e digestivos no agradava muito aos bem-pensantes que preferiam, certamente, um teatro com uma linha definida como o Abbey, dos irlandeses, ou o Provincetown Players, dos norte-americanos.

    Nosso territrio era diferente. A alternncia torna-va-se uma necessidade para que pudesse haver continuidade no projeto, uma vez que o pblico ainda era, de certa forma, pequeno para suportar

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    uma organizao idealizada como estvel. E o que se constitua num atrativo para uma platia varia-da foi para os atores que se iniciavam (a prpria Cacilda Becker afirmaria mais tarde que, quando entrou no TBC, era uma principiante, com apenas sete anos de carreira!) uma verdadeira escola de interpretao. Atrizes e atores passeavam, cora-josamente, pelos estilos, guiados por diretores conscientes, todos eles, do que de mais moderno se fazia em teatro, contudo diversificados em seu tom muito prprio de conduzir o espetculo. A atrao pelo belo, a ironia, a fibra, o experimentalismo formaram uma gerao sui generis que impressio-nava mesmo queles que vieram bem mais tarde a contest-la. Alis, todos ns sabemos que uma sbia contestao valida, justamente por apoiar-se em organizaes muito bem articuladas.

    comovente perceber, em um grupo de atores que se construam, o trabalho como fato praze-roso, manifestando-se s vezes em forma de ajuda. Assim, sem problemas, Nydia Licia nos conta que substituiu Cacilda no grupo de Dcio para que ela tomasse parte em A Mulher do Prximo. Logo depois Cacilda quem volta ao grupo universitrio, para que Nydia descanse sbado e domingo, para estrear com calma na tera-feira seguinte. Deu-se o mesmo em O Anjo de Pedra, quando Cleyde Yaconis, encarregada da produ-

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    o do guarda-roupa, ofereceu-se para substituir Nydia, uma vez que, de tanto assistir aos ensaios e ao espetculo, sabia perfeitamente o texto.

    Episdios engraados entremeavam-se s horas de trabalho: lapsos em cena, cochilos de Ziem-binski por exausto, narizes que se desfaziam e a conhecida intimao a Jean-Paul Sartre para que comparecesse a determinada delegacia, uma vez que fora ele o responsvel por certa pagodeira existencialista, acontecida em Pirituba.

    A pagodeira foi, na verdade, um baile de carna-val, ao qual todo o elenco compareceu fanta siado e que os Dirios aproveitaram para matria de escndalo, na falta de melhor assunto. Mais engra ado foi a atitude de Clia Biar, na ocasio secretria do teatro, enfrentando o oficial, dizen-do que o citado no se encontrava no prdio, mas que o informaria incontinenti.

    Com o passar do tempo, nem tudo foi um mar de rosas. Tristezas, inseguranas, traies, incompre-enses, contendas serissimas (como a demisso da talentosa Madalena Nicoll) no conseguiram, apesar de tudo, apagar o entusiasmo de Cacilda Becker e a coragem de Adolfo Celi, contami-nando os companheiros na edificao de um conjunto exemplar na histria do teatro, agora no mais paulista, mas brasileiro.

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    Nydia Licia, paciente e cautelosa, observa as con-seqncias do talento visceral dos dois grandes intrpretes, Cacilda e Srgio Cardoso, que, sados do palco, necessitavam ainda de ligaes com a fico: Cacilda, recebendo em casa a figura no embaada de Alexandre Dumas Filho, e Srgio, mais dramtico, no conseguindo livrar-se de seus personagens, que teimavam em se conservar vivos. Estranho romantismo, sem dvida, de dois seres geniais que talvez se sentissem em dificul-dade ao conviver com a forte modernidade que os arrastava.

    Se Cacilda se fez no TBC, Srgio Cardoso se no teve todas as oportunidades, como intr-prete, que merecia nos trs anos que pertenceu ao elenco formou-se naquela casa, como um homem de teatro. Foi dirigido por Ruggero Ja-cobbi, Adolfo Celi, Luciano Salce, Flamnio Bollini e Ziembinski. Ampliando sua condio de ator, prontificou-se a ser assistente de Luciano Salce em O Anjo de Pedra, reservando para si uma breve e pattica apario como Archie Kramer, o caixeiro viajante, no final da pea. Tambm desenhou figurinos e cenrios para O Inventor do Cavalo, e passou noites assistindo s iluminaes de Ziembinski.

    Nydia Licia, neste livro de memrias, depois de tantos acontecimentos, relembra, com a mesma

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    ternura dos primeiros tempos, aqueles cujas vozes talvez ainda ecoem no palco vazio, indi-ferentes ao silncio da platia. A fora de suas criaes, temperadas pelo ardor da juventude e da esperana que os envolviam, permaneceu fortemente em cada um deles, ainda que os cami-nhos futuros se mostrassem to desiguais: RacheI Moacyr, Clia Biar, Marina Freire, Maurcio Barro-so, Waldemar Wey, Ruy Affonso, Fredi Klee mann, A. C. Carvalho, Carlos Vergueiro e outros tantos atores e tcnicos. Vindos quase todos dos tempos do amadorismo, disciplinaram-se com os italia-nos, comandados pelo engenheiro metalrgico Franco Zampari, para quem a atividade arts tica no dispensava observncia de normas.

    Fiel ao TBC, Nydia no esconde em suas palavras a tristeza de deix-lo, ao seguir para o Rio de Janeiro em companhia de Srgio Cardoso. Afinal de contas, tanta coisa a prendia a So Paulo e sua primeira e verdadeira turma. Foi fcil levar as lembranas. Fatos cravados na memria que, sem dvida, iriam permanecer com ela para sempre.

    Maria Thereza Vargas

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    Eu vivi o TBC

    No um erro. Em nenhum momento quis dizer que vivi no TBC. Eu vivi o TBC, eu vivi aquela po-ca, aquele estado de alma, aquela euforia. Hoje em dia ningum conseguiria imaginar a cida de de So Paulo sem teatros, sem companhias, produ-zindo peas sem cessar. Mais de 120 casas teatrais em funcionamento, desde pequenas salas at grandes auditrios, jorram espetculos. Centenas de atores, oriundos de escolas, cursi nhos ou simplesmente autodi datas, convencidos que umas poucas aparies em passarelas da moda lhes auferem o direito de se autodefinirem mode lo e ator , todos querem fazer teatro.

    Agora, imaginem a cidade nos anos 40, com ape-nas trs digo, trs grupos amadores, querendo revolucionar a maneira de representar oficiali-zada pelas companhias mais antigas, originrias do Rio de Janeiro, e lutando para isso se tornar uma realidade. Desde 1942 Alfredo Mesquita, um jovem de sociedade, culto, inteligente e apaixonado por teatro, lutou para conseguir esse milagre. Fundou o Grupo de Teatro Experimental (GTE) e durante anos procurou reunindo ao redor de si jovens igualmente apaixonados por cultura trabalhar textos de autores consagrados , buscando uma maneira de representar mais

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    moderna, despretensiosa e ao mesmo tempo elaborada, pois at ento a comicidade popular tinha sido a nica tradio do teatro brasileiro.

    Buscava um teatro em que os atores e o diretor estivessem a servio do texto e no o contrrio. No h dvida que a grande influncia em seu modo de pensar veio do contato com Louis Jou-vet, cuja companhia teatral, vinda da Frana, ficara retida no Brasil por causa da guerra.

    Aqui o ator e diretor francs encenara espet-culos memorveis em matria de peas, direo, cenrio e interpretaes.

    At o fim de sua vida, Alfredo refutou a tese de que o teatro paulista tivesse sofrido influncia do grupo Os Comediantes, do Rio de Janeiro, que lanara Ziembinski, o diretor, e Nelson Ro-drigues, o autor de Vestido de Noiva. Seu maior argumento era de que o grupo carioca tinha aparecido depois do dele, em 1943.

    Dcio de Almeida Prado, diretor do segundo grupo de amadores, o Grupo Universitrio de Teatro (GUT), surgido em 1943 na Faculdade de Filosofia da USP, de opinio contrria. Considera que o grupo Os Comediantes, em sua temporada na cidade, muito influenciou os jovens atores paulistas. Essa discrepncia de

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    opinies lembra a clebre pergunta: Quem veio antes? O ovo ou a galinha?

    Na realidade, temos visto que nenhuma novidade seja uma simples idia ou uma grande inven-o aparece sozinha e em um nico lugar. O que autoriza a concluir que os dois movimentos tenham sido paralelos. O Brasil estava maduro para aceitar mudanas em todos os campos. Por que no no teatro?

    Dcio era descendente de famlias de fazendei-ros paulistas. O pai gostava muito de literatura e teatro e, aos 10 anos de idade, o menino assis-tia ao primeiro espetculo: uma pea feita por Raul Roulien, o maior gal da poca. Lembra ele que suas coleguinhas, de 10 e 11 anos de idade, estavam todas apaixonadas pelo ator, que che-gou at a fazer filmes em Hollywood. Dcio foi o grande responsvel pela mudana da crtica de teatro em So Paulo. Nos anos 40, Alfredo Mesquita deu a idia de fundarem a revista Clima, na Faculdade de Filosofia. Participaram da empreitada Antnio Cndido, Lourival Gomes Machado, Paulo Emlio Salles Gomes, Ruy Coelho e outros. Coube a Dcio o setor de teatro. At ento e Miroel Silveira citou isso vrias vezes , quando chegava na redao um convite para uma estria, a pergunta era sempre aquela: Quem tem smoking? Quem tivesse, ia.

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    Tive uma prova disso em 1939, quando chegamos da Itlia. Minha me, que era crtica musical de grandes jornais na Europa, alm de formada em Cincias Musicais na Universidade de Viena, ao chegar a So Paulo, foi procurar alguns jornais para ver se haveria possibilidade de trabalho. Qual no foi seu espanto ao ouvir a seguinte res-posta: Pra que precisamos de gente formada para escrever uma crtica? Qualquer jornalista faz.

    O terceiro grupo amador era o dos English Players, na poca dirigido por Pussy Smallbones, do qual participavam vrios membros da colnia inglesa, desde uma simples dona-de-casa at o superintendente da Light and Power. Isso mostra a importncia que eles davam arte teatral.

    Em 1947 formou-se um quarto. O Grupo dos Artis tas Amadores, fundado por Madalena Nicol e Paulo Autran. Madalena era paulista, sobrinha de Dona Leonor Mendes de Barros, esposa do governador de So Paulo. Era casada com um ingls, e tinha representado com os English Players em Sonho de uma Noite de Vero, de Shakespeare. Ela no se conformava com o fato de, em sua terra, limitar-se a fazer teatro em ingls. Queria montar um grupo para se apre-sentar em sua prpria lngua. Era uma mulher inteligente, culta e tima cantora de msica de cmara. Chegou a cantar na Casa Branca, para

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    o presidente Roosevelt, o que considerou um desses acontecimentos da minha vida que jamais esquecerei. Apresentou-se na Inglaterra, com sucesso, e participou de um concurso de canto na Sua, em Genebra, onde tirou o segundo lugar. S no ficou com o primeiro lugar por-que entre as concorrentes estava Victoria de Los Angeles, uma das maiores sopranos do sculo passado. Quis tentar uma carreira de cantora na Europa, mas problemas familiares e econmicos impediram que continuasse l. Voltou ao Brasil onde no havia o menor futuro para msica de cmara. Madalena declarou: No queria desistir daquela minha nsia de comungar com a Beleza, atravs da Beleza e pela Beleza. Ento parti para o teatro.

    Paulo Autran era um jovem promotor, com uma promissora carreira. Quando abandonou a advoca-cia pelo teatro, deu-se um caso indito ou, pelo menos, bem raro: passou o escritrio dele para o pai, que j tinha se aposentado. Em lugar de ser uma firma de pai para filho foi de filho para pai.

    A luta do Teatro Amador em So Paulo se prolon-gou por sete anos. Tudo era difcil e visto com desconfiana por um pblico acostumado a dramalhes ou comedinhas leves e engraadas, centradas no primeiro ator ou na primeira atriz: Procpio, Dulcina, Jaime Costa, Alda Garrido,

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    Mme. Morineau, Dercy Gonalves, Rodolfo Mayer, todos velhos conhecidos. Os jovens pau-listas lutando por um ideal maior, ou seja, levantar o nvel do teatro brasileiro, fazer um teatro cultural e educar o pblico para a aceitao de peas fora do mbito das possibilidades do teatro profissional da poca (Alfredo Mesquita De-poimentos II), levando Aristfanes, Shakespeare, Molire, Lenormand, Musset, Martins Pena, Gil Vicente e apresentando em So Paulo um ainda desconhecido Tennessee Williams. Lanando tambm autores jovens, como Carlos Lacerda, Ablio Pereira de Almeida e o prprio Alfredo, no encontravam uma aceitao irrestrita. Muito pelo contrrio, a crtica era impiedosa com os amadores e o pblico mais culto, com ares con-descendentes, sorria para esses meninos que, na opinio dele, brincavam de teatro.

    Nem todos, porm. Houve quem levasse aquele esforo a srio. Franco Zampari acreditou neles, compreendeu o que desejavam e quis imediatamente ajudlos. (Alfredo Mesquita Programa do TBC)

    Zampari era um engenheiro italiano que havia chegado ao Brasil em 1922. Era amigo de infncia e colega de escola de Ciccillo Matarazzo e, ainda na Itlia, havia conhecido uma moa da socieda-de paulista, Deborah Prado Marcondes, de quem

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    ficara noivo. Ciccillo, sabendo de sua inteno de casar-se e se estabelecer no Brasil, ofereceu-lhe um emprego na laminao Matarazzo, em So Bernardo. Zampari trabalhou duro durante anos e teve sucesso. Quando foi criada a Metalrgica Matarazzo, ele foi escolhido para dirigi-la.

    Desde os 17 anos costumava freqentar teatros. Assistia a todos os espetculos, profissionais e amadores. Acompanhava a trajetria das companhias amadoras paulistas e acalentava o sonho de um dia oferecer-lhes uma sede oficial onde pudessem se apresentar sem dificuldades. Estava a par dos problemas que, invariavelmen-te, surgiam a cada tentativa de apresentar uma pea. Os teatros eram realmente pouqussimos e sempre ocupados por companhias estrangeiras de passagem por So Paulo, vindas do Rio de Janeiro, sede oficial do teatro brasileiro.

    Numa noite, assistindo a um espetculo do Grupo de Teatro Experimental, intitulado Improviso, em que Alfredo Mesquita mostrava, com muito humor, todos os problemas de um grupo amador e terminava fazendo um apelo ao p-blico, Franco Zampari imediatamente abriu uma subscrio, de vrios contos de ris, em nome do GTE. Abriu... E fechou, pois ningum mais se manifestou a respeito.

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    Tempos depois, em 1946, um acontecimento social reforou seu interesse pelo teatro. Franco havia escrito, em italiano, uma pequena pea, de 20 minutos de durao, intitulada A Mulher de Braos Alados. O Doutor Paulo Assuno a traduziu para o portugus e ambos resolveram apresent-la. O acontecimento teria lugar em casa de Paulo e Fifi Assuno. Ela, decoradora, se encarregou da construo e decorao de um teatrinho elegantssimo em seu jardim. A platia, coberta por uma lona afinal era o ms de ju-nho , tinha lugar para 400 pessoas. Havia 400 cadeirinhas douradas e lustres de cristal. Tudo de que Zampari gostava. Ablio Pereira de Almeida foi escolhido para ser o diretor e o protagonista. Participariam do espetculo, alm dos anfitries, Dbora Zampari, Maria Jos Rheingantz, Alfredo Mesquita, Lourdes do Amaral, Isabel de Moraes Barros e Carlos Zampari. Hlio Pereira de Queiroz se desincumbiu da funo de ponto. Ele adorava ser ponto. Sempre pedia a funo.

    Era uma pea simblica. Dbora, com duas tranas loiras, carregando um buqu de flores-do-campo, entrava em cena dizendo: Eu sou a Primavera. Ablio era O Artista, Fifi, A Musa. En-fim, cada um era um smbolo. No cenrio havia duas janelas, uma das quais era A Guerras e a outra, A Paz.

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    Pelo que se sabe, os ensaios na casa dos Zampari foram muito animados e rapidamente se trans-formaram em reunies sociais. Mas, apesar dos demorados e refinados jantares, aps alguns meses a pea ficou pronta.

    Na estria, o pblico high society se divertiu muito com a performance e, a cada entrada em cena de algum conhecido, morria de rir, aplaudia ou caoava. Quem no apreciou a brin-cadeira foi Alfredo Mesquita. Numa entrevista ao Servio Nacional de Teatro, anos mais tarde, ele desabafou: ... Aqueles que compareceram, conhecendo os atores, no levaram o trabalho a srio e ficaram soltando piadas cada vez que um de ns entrava no palco improvisado, de modo que eu me senti muito mal.

    Mas alguma coisa boa resultaria dessa apresen-tao gr-fina. Zampari, cada vez mais, queria fazer algo pelos amadores paulistas. Reuniu-se com os representantes dos parcos trs grupos de teatro da cidade: Alfredo, do GTE; Dcio de Almeida Prado, do Grupo de Teatro Universitrio; e Pussy Smallbones, dos English Players. Disse que possua terrenos no Morumbi (que, na poca, era um bairro longnquo e despovoado, puro mato) e pensava em construir um teatro especialmente para os amadores. Sonhava com um teatro em estilo veneziano, com muitos dourados e veludos,

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    no meio da floresta. Sua proposta, utpica para a poca, deixou o pessoal espantado.

    Argumentaram que os atores no tinham carro, como chegariam l? Franco j tinha a soluo: De nibus. Ele arranjaria um nibus que sairia da Praa do Patriarca e levaria e traria de volta os atores. E o pblico? Outro nibus! Alfredo, Dcio e Pussy saram da reunio bem desanimados. Como era de se esperar... Deu em nada. Da mes-ma maneira como os amadores no desistiram de sua luta para elevar o nvel do teatro nacional, tambm Franco Zampari no desistiu de seu so-nho de construir uma casa de espetculos.

    Mais algum tempo se passou. Um dia, em outubro de 1947, numa discusso com alguns conhecidos que afirmavam que o Brasil levaria mais de um decnio para conseguir realizar um teatro de qua-lidade e quem quisesse assistir a um bom teatro deveria ir para a Europa ou para os Estados Unidos, Franco, o nico estrangeiro presente, indignado, revoltou-se. Afirmou que os artistas brasileiros po-deriam ser to bons quanto qualquer estrangeiro, desde que tivessem condies iguais, e apostou que no espao de um ano criaria uma companhia em So Paulo, dentro dos melhores moldes. Con-tribuiu, nesse momento, o desejo de retribuir ao pas que o acolhera to generosamente um pouco do que lhe havia sido proporcionado.

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    Em 1948 ele, seu grande amigo Francisco (Cic-cillo) Matarazzo Sobrinho e Paulo de Assumpo reuniram um grupo de empresrios amigos e fundaram a Sociedade Brasileira de Comdia Sociedade civil de fins noeconmicos , cuja finalidade, expressa nos Estatutos, promover, para benefcio dos seus scios e do pblico em geral toda espcie de espetculos artsticos, principalmente teatrais.

    A 1a Diretoria da SBC foi assim constituda:

    Presidente de Honra: Francisco Matarazzo Sobri nhoPresidente: Paulo lvaro de AssumpoVice-presidente: Adolpho Rheingantz1. secretrio: Ablio Pereira de Almeida2. secretrio: Carlos Vergueiro1. tesoureiro: Franco ZampariConselho Consultivo: Alfredo Mesquita, Dcio de Almeida Prado, Madalena Nicol, Vicente Ancona, Clvis Graciano, Nicanor Miranda, Ruy Affonso Machado, Aldo Calvo, Enzo Cajone.

    Agora era preciso encontrar um local para ser transformado em teatro. De grande utilidade na ocasio foi o ponto de A Mulher de Braos Alados, Hlio Pereira de Queiroz. Ele indicou um prdio na Rua Major Diogo, que havia sido um laboratrio farmacutico e, antes disso, a sede de uma organizao fascista, a Unione Dopolavoro

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    Italiana (disfarada de Unio Desportiva Italiana), e agora estava vazio e parecia perfeitamente adequado para uma reforma. Imediatamente trataram de alug-lo e as obras comearam. A sorte de Zampari foi que naquela poca j estava em So Paulo um dos maiores cengrafos e tc-nicos da Itlia: Aldo Calvo. Foi ele que orientou os engenheiros e operrios encarregados da re-forma, desenhou os refletores que a Metalrgica Matarazzo construiria, cuidou do palco, no qual instalou dois discos giratrios, e proporcionou cidade um teatrinho de visibilidade e acstica perfeitas. Menos de trs meses mais tarde, o TBC estava pronto para estrear.

    No muito comum associar-se a figura de um engenheiro, como Zampari, de um produtor teatral, mas sempre h uma primeira vez...

    Em fins de julho de 1948 apareceu um artigo num jornal de So Paulo, assinado por Bettino. Quem ter sido esse senhor? Ningum mais sabe. Falava ele dos teatros de Gnova, na Itlia, que tinham sido destrudos pelos bombardeios aliados, e dos teatros de So Paulo, perseguidos pelo urbanismo, pelo fator econmico. Citava o Cassino An-trtica e o Boa Vista, o primeiro imenso, mas de acstica excelente, e o segundo simptico e muito requisitado, que foi demolido para dar lugar a um prdio com enorme capacidade de lucro. La-

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    mentava as companhias teatrais terem de se con-tentar com o Coliseu um teatro surdssimo e fora de mo, como tambm o Cineteatro Odeon, cujo palco no possui extenso e cujas acomodaes so precrias. Louvava o Conde Penteado por ter conservado o Teatro Santana, na Rua 24 de Maio, apesar das vantajosas propostas recebidas. Coitado do senhor Bettino: mal sabia que todos os teatros citados seriam demolidos e, junto com eles, muitos mais. Mas a finalidade do artigo era comunicar ao pblico leitor a criao do Teatro Brasileiro de Comdias.

    Deixo-lhe a palavra:

    Divulgase agora, que em setembro dever ser inaugurado, Rua Major Diogo 315, o Teatro Brasileiro de Comdias, por iniciativa do Grupo de Teatro Experimental, tanto assim que a renda do prximo espetculo a realizarse no dia dez de agosto, no Municipal, com a pea de Tennessee Williams Margem da Vida, em verso e adaptao de ster Mesquita, reverter inteiramente em benefcio das obras em andamento. Iniciativa deste gnero, entre ns, merece os melhores aplausos. Ao que se tem dito, a sala a inaugurarse dentro de dois meses destinarse exclusivamente ao teatro amador, nenhuma meno se havendo feito utilizao dela, por parte dos conjuntos profissionais. Cremos que nem todas as noites

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    estar o teatro ocupado com representaes dos trs grupos de amadores existentes na Paulicia, e, assim, a cesso a companhias profissionais s poder trazer benefcios financeiros sociedade que est promovendo a construo e se tornar proprietria. A par disto, o pblico poder contar com mais uma casa de diverses, mesmo que se trate de teatro particular. E aqui fica uma palavra de louvor a to benfica iniciativa. A platia bandeirante est de parabns.

    A pea qual o senhor Bettino se referia, Margem da Vida, de Tennessee Williams, era um texto que Alfredo trouxera de sua ltima viagem aos Estados Unidos. Ele j estava com trs dos quatro intrpretes necessrios: Marina Freire, Caio Caiubi e Paulo Mendona. Estava faltando quem pudesse viver o papel de Laura, mocinha manca e cheia de complexos, que fugia da realidade brincan-do com uma coleo de bichinhos de vidro. Foi quando Caio, que eu conhecera no vero, numa fazenda perto de Ribeiro Preto, se lembrou de mim e foi me procurar no Museu de Arte, onde eu era assistente de Pietro Maria Bardi. O Museu, em seus primeiros anos de vida, estava localizado no prdio dos Dirios Associados, na Rua Sete de Abril. A Livraria Jaragu, local dos ensaios, estava na Rua Marconi. Ambos bem no centro de So Paulo, no clebre Quadriltero das Artes.

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    A livraria era de propriedade de Alfredo e tinha, nos fundos, um pequeno e elegante salo de ch, dirigido por suas irms Lia e Esther, onde se saboreavam doces caseiros tipicamente paulistas. Era tambm ponto de encontro dos intelectuais da poca. Quem passasse por l nos fins de tarde podia se encontrar com Oswald de Andrade, Sr-gio Milliet, Rebolo, Clovis Graciano, Souza Lima, Pancetti, Aldemir Martins, Lasar Segall, Pagu e, se tivesse muita sorte, com os cariocas Vinicius de Moraes, Carlos Lacerda, Tristo de Athayde, Portinari. Isso, sem falar dos estrangeiros de passagem pela cidade. No fim do expediente, a livraria fechava as portas e o salo de ch virava sala de ensaio.

    Imaginem, por um momento, as ruas 7 de Abril, Marconi e Baro de Itapetininga sem o calado. Suprimam os camels, os pedintes e as lojinhas de mercadoria contrabandeada. Coloquem trilhos de bonde no cho e um bondinho aberto, pas-sando em direo Praa da Repblica, rumo a Higienpolis. Vitrines iluminadas exibem vestidos, mants, lingeries e calados da melhor qualidade . Pela porta de duas confeitarias, a Selecta e a Vienense derramam na rua sons delicados de um piano ou de um trio de cordas. Senhoras elegantes, de chapus e luvas, passeiam diante das vitrines e seguem rumo s suas casas ou em

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    direo aos cinemas do centro. Homens de terno e gravata, com chapu na cabea, param nos bares para um aperitivo. Todos se conhecem e se cumprimentam. Era um fim de tarde na So Paulo dos anos 40.

    Agora que sonhamos um pouco, voltamos his-tria: saindo do Museu, dirigi-me Livraria Jara-gu, onde Alfredo me aguardava. Gostei dele primeira vista e ele tambm de mim. Ele me deu a pea para ler. Tennessee Williams era um jovem escritor americano completamente desconhecido em So Paulo. Li o texto. Achei estranho, mas gos-tei. Fiz um teste e fui aprovada para o papel de Laura. Mal comeamos a ensaiar, houve a primei-ra desero no teatro amador: Paulo Mendona ficou noivo e isso motivou sua sada do elenco (no se esqueam de que estvamos em 1948!). Em seu lugar entrou Ablio Pereira de Almeida, que j pertencia ao grupo, assim como sua mulher Lcia. Era mais velho do que o papel pedia, mas comunicativo e cheio de humor.

    Os ensaios foram extremamente agradveis, pois o grupo no poderia ser mais simptico. Marina Freire, ento, era a simpatia em pessoa. Colega, amiga e mezona, tudo ao mesmo tempo. Jun-tou-se a ns o pintor Clvis Graciano, responsvel pelo cenrio, muito bonito, da casinha espremida entre os arranha-cus da cidade de Nova Iorque.

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    Ele conseguiu criar um ambiente sufocante, bem de acordo com o clima da pea, no qual vivem trs criaturas sem futuro. A me, que j foi rica e cortejada, e que casou com um caixeiro viajante que a abandonou. O filho, Tom, que adora ir ao cinema e sonhar, mas trabalha numa loja de sapa tos, e a pobre Laura, que manca, apavo-rada e sem esperana. S se apaixonou uma vez na vida, no colgio, por um rapaz bem-sucedido, com quem nunca falou. Um dia, a pedido insis-tente da me, Tom traz pra casa um colega que trabalha na loja. justamente ele, o rapaz dos sonhos da menina. Eles conversam pela primeira vez e ele acaba beijando-a. Mas tudo d em nada, ele est noivo e vai se casar. Aps uma violenta discusso com a me, Tom vai embora, do mesmo jeito que o pai, e as duas ficam sozinhas naquela casa angustiante.

    A pea estreou no Teatro Municipal diante de uma platia lotada que nos recebeu muito bem. Foi reprisada em outro dia, tambm com boa lotao. No programa do espetculo aparecia, pela primeira vez, o logotipo TBC, j que a renda reverteria para as obras de reforma do futuro tea-tro. Quase ningum na platia sabia o que essas trs letras significavam; houve at quem achasse tratar-se de uma apresentao em benefcio de algum sanatrio de tuberculosos.

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    A pea causou um impacto muito grande, no s pelo texto modernssimo, mas tambm pelas interpretaes. Os crticos, todos, a consideraram a maior direo de Alfredo Mesquita.

    Duas semanas mais tarde levamos trechos do espetculo a So Jos do Rio Pardo. Caio no pde ir e, em seu lugar, se apresentou um aluno da primeira turma da Escola de Arte Dramtica: Xand Batista. Embora um pouco intimidado por estar em companhia do diretor da escola e de atores do GTE, saiu-se bem.

    Na volta, aps uma festana em nossa honra, ofere-cida por um fazendeiro amigo, que se prolon gou noite adentro, pegamos o trenzinho da Mogiana que vinha sacolejando pela bitola estreita. Na primeira estao compramos O Estado de S. Paulo para ler a crtica de Dcio de Almeida Prado. Marina, meio de ressaca, disse pro Ablio: Se a crtica for ruim, no me conte, seno eu vomito. E o Ablio, aps ler no jornal o parecer do crtico, no totalmente favorvel interpretao dela, aconselhou: Vomita Marina! Vomita.

    De volta a So Paulo, iniciamos os ensaios de A Mulher do Prximo, a segunda pea de Ablio, que inauguraria o TBC. S que eu no cheguei a interpretar o papel.

  • Cenas de Margem da Vida, com Nydia e Marina Freire

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    Passaram-se 57 anos da inaugurao do TBC e, no entanto, alguns curiosos continuam a me perguntar se verdade que eu desisti do papel da protagonista feminina de A Mulher do Prximo, porque devia pronunciar a palavra amante e porque devia beijar o ator principal.

    Pelo amor de Deus! A palavra amante no um palavro e, at naquela poca, podia ser pronun-ciada se bem que acompanhada por um sorriso maroto! Quanto ao beijo... Ningum beijava em cena no teatro amador. O ator no caso, Ablio punha o polegar na frente dos lbios e com um ligeiro movimento de ombros se colocava na frente da atriz e a escondia com o prprio corpo. A atriz, por sua vez, beijava o outro lado do dedo, o que permitia que Ablio sasse de cena galhar-damente mostrando, a quem estivesse na coxia, o polegar sujo de batom. Prova incontestvel de sua fideli dade conjugal! Entenderam? Nem Carlinhos Vergueiro, que era o mais curioso e ficava nos basti-dores olhando, encontrava algo para censurar.

    O motivo que me levou a abrir mo do papel, que eu j estava ensaiando, foi que eu, na poca, tinha sado do Museu de Arte e trabalhava na Modas A Exposio Clipper. Era assistente da diretoria e meus chefes, muito religiosos, acharam que a pea seria um escndalo, pois enfocava os truques e as traies dos scios do Jockey Club de So Paulo.

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    Havia toda uma trama. As telefonistas do Clube possuam o telefone das garonnires onde os distintos e impolutos senhores se encontravam com suas amantes. Portanto, quando as legtimas esposas telefonavam procura dos maridos, as telefo nistas (cmplices) rapidamente transferiam a ligao para a garonnire e as senhoras con-versavam com os esposos infiis, sem suspeitar de nada. Imaginem s o escndalo que a pea iria provocar.

    Vocs bem podem imaginar o clima! Maridos tremeram de medo. Casamentos periclitaram. Diante das insinuaes veladas do tipo: Uma moa de famlia no pode participar de semelhante horror!, entendi claramente que minha participao no espetculo me faria perder o emprego. Tive que desistir do papel.

    Inutilmente, Franco Zampari insistiu para que eu no recusasse a oportunidade. Chegou a me ofere cer um ordenado duas vezes maior do que o que eu ganhava na Clipper. Pois acreditem, fiquei chocadssima. Eu era uma amadora; nunca havia passado pela minha cabea a idia de ganhar dinheiro fazendo teatro! Dinheiro se ganhava no comrcio!!!

    A essa altura no havia mais nenhuma atriz amadora em So Paulo disposta a se arriscar; era

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    preciso convidar uma profissional. Foi quando houve um acordo entre os dois grupos amadores. Dcio, diretor do Grupo Universitrio de Teatro, abriu mo de Cacilda, uma atriz profissional que s vezes participava das apresentaes do grupo dele e estava, justamente, ensaiando O Baile dos Ladres. Ela iria para a pea de Ablio e eu fui para o grupo de Dcio. Impasse resolvido!

    Pois , senhor Bettino; o TBC foi inaugurado. No em setembro, como o senhor anunciou, mas logo depois, a 11 de outubro de 1948. E nada de dourados ou veludos!! Em estilo bem mo der no, de bom gosto, acolhedor e simples. Fran co Zam-pari cumpria sua primeira promessa: os amadores tinham finalmente sua casa. Se ele conseguiria cumprir totalmente a segunda a que os artistas brasileiros poderiam ser to bons quanto os estran geiros, desde que tivessem condies iguais s o tempo diria.

    Noite de 11 de outubroA fachada do novo teatro iluminada. A rua es-trei ta do Bexiga, com um trnsito nunca visto. Carros particulares e txis tentando estacionar na estreita Rua Major Diogo, onde ainda passava um bonde. Foi grande o espanto dos moradores do bairro, que nunca tinham visto tanto luxo. Homens de smoking e senhoras vestidas a rigor, com estolas de viso, entrando no saguo do tea-

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    tro e dirigindo-se para a platia de 365 lugares. Aroma de perfumes franceses no ar.

    Mas... Zampari parecia no confiar totalmente no sucesso da noite, tanto assim que convidara Mme. Henriette Morineau para um lver de rideau , isto , uma pequena pea de um ato para abrir o espetculo. Em francs! ltimo estertor de um gr-finismo que no mais se repetiria no TBC.

    A noite foi um sucesso. A sala, em declive, propor-cionava uma visibilidade total do palco.

    As paredes, claras, cuja nica decorao eram as duas mscaras da Comdia e do Drama, faziam ressaltar o vermelho das poltronas. O palco, bem iluminado, revelava o cenrio de Aldo Calvo que surpreendeu pela elegncia e pelo acabamento perfeito. Nada parecido com os teles pintados que tremiam a cada movimento de cena das companhias cariocas de passagem por So Paulo (aqui vai uma honrosa exceo: Dulcina. As apresen-ta es da Companhia Dulcina-Odilon traziam cenrios requintados e guarda-roupa luxuoso).

    O elenco, todo de amadores, tinha no principal papel feminino uma atriz profissional: Cacilda Becker Fleury Martins, que j havia trabalhado no Rio de Janeiro nas companhias de Bibi Ferreira, Raul Roulien e em Os Comediantes em sua segun-

  • Saguo e platia do TBC, na sua inaugurao

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    da fase, quando j tinham se transformado em companhia profissional. A maioria dos atores era conhecida da platia: Ablio Pereira de Almeida, Marina Freire Franco, Carlos Vergueiro, Srgio Junqueira, Delmiro Gonalves, Paulo Cajado e at Alfredo Mesquita disfarado de homem gordo papel mudo que passava o primeiro ato quase inteiro dormindo numa poltrona do clube, escon dido atrs de um jornal. A certa altura, ele se levantava e saa. Quando o fez, apesar de to-dos os enchimentos que usava, um bigodo e a maquiagem carregada, a platia o reconheceu e veio abaixo numa gargalhada.

    Ablio sempre foi um autor de sucesso de pblico. Ele escrevia sobre a sociedade paulista, da qual era membro e que conhecia como ningum.

    Nunca se preocupou se seu texto incomodaria algum. Falava do que sabia, sem medo e com muito humor. A crtica nem sempre esteve a seu favor, mas isso tambm pouco o incomodava, ele tinha o pblico do seu lado. Durante anos a classe teatral falou mal dele sem conhec-lo, sem nunca ter lido uma pea sua, j que nenhuma foi publi-cada. Mas, nada como o tempo para recolocar as coisas em seu devido lugar. Hoje em dia h uma grande curiosidade com relao s suas peas e muitos grupos esto pensando em lev-las.

  • A Mulher do Prximo tem um ato inteiro s com dois atores em cena: Carmen (Cacilda) e Alfredo (Ablio). um presente para uma atriz e Cacilda soube aproveit-lo ao mximo. Cacilda sempre foi uma mulher inteligente. Percebeu que aquele teatro de amadores poderia ser muito impor-tante para sua carreira. S aceitou participar do espetculo se tratada como profissional, que era, e contratada por um ano como primeira atriz.

    Alfredo Mesquita se preparando para entrar em cena

  • Mas no se sentia muito vontade no meio dos colegas da pea. Nunca havia trabalhado no Grupo de Teatro Experimental, composto, na maioria, de amigos de longa data. Eles costuma-vam sair juntos depois do espetculo para ir a algum barzinho ou jantar em casa de conhecidos e nunca a convidavam.

    Afinal, ela era uma senhora casada e nem ela nem o marido faziam parte da turma. Ter acres-

    Reproduo do Salo do Jockey Club

  • Cacilda e Ablio, no beijo de polegar em A Mulher do Prximo

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    centado o sobrenome Fleury Martins, ao lado de Cacilda Becker, j era um sinal de que ela no estava se sentindo muito firme. Apesar de ser uma mulher extremamente forte, sua aparncia frgil e franzina despertava nos outros a vontade de proteg-la, de cuidar dela. Eu mesma, vrias vezes no fim dos ensaios, ou de um espetculo, a levava, de txi, at o Itaim onde ela morava, para depois ir para minha casa em Higienpolis. E eu era bem mais moa do que ela!

    Agora imaginem o que ela deve ter sentido quando, pouco antes da estria, uma senhora da sociedade carioca a procurou e lhe ofereceu uma quantia bem alta para que a deixasse representar o papel na noite de estria. A recusa de Cacilda foi imediata, mas o choque foi to violento que chegou a pensar tratar-se de uma manobra da prpria direo do teatro, arrependida de ter contratado uma profissional que trabalhava em rdio para um acontecimento da importncia da inaugurao do TBC.

    O mal-entendido foi rapidamente esclarecido; o teatro no tinha nada a ver com aquilo. A tal senho-ra queria aparecer em cena para reconquistar o amante que a havia abandonado. O interesse que a movia no era nada artstico.

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    A Mulher do Prximo foi um sucesso. Quanto aos maridos puladores de cerca, do Jockey Club... Bem... Tiveram que procurar outra solu-o, mais criativa.

    O segundo espetculo do TBC foi O Baile dos Ladres, de Jean Anouilh, dirigido por Dcio, com marcaes de R. Rognoni, ator da Comdie Franaise, que esteve algum tempo no Brasil. Traduo de Antnio Cndido, cenrios de Hilde Weber (caricaturista de O Estado de S. Paulo), guarda-roupa de Maj Rheingantz, utilizando fi-gurinos autnticos de senhoras da sociedade, que vasculharam os bas do sto e desencavaram modelos franceses de poca. A parte danada ficou a cargo da coregrafa Kitty Bodenheim.

    A estria se deu no dia 4 de novembro. Faziam parte do Grupo Universitrio de Teatro Walde-mar Wey, Ruy Affonso Machado, Delmiro Gonal-ves, Mira Lifchitz, Lgia Corra, Glauco de Divitiis, Ciro Cury, Jos Scatena e, estreando num papel mudo, Clia Biar.

    Waldemar era filho do maestro Otto Wey, regente de uma orquestra de dana que abrilhantava os bailes de formatura de quase todas as escolas. Dancei muitas valsas ao som de seus msicos. Delmiro Gonalves era um jovem extremamente inteligente e culto que, anos mais tarde, se tornou

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    crtico de teatro dos mais ferozes. Quanto a Jos Scatena, ele tinha um estdio de gravaes: o R.G.E. Chegou a gravar algumas peas do TBC, em 78 rotaes, mas nada mais existe, infelizmente.

    O Baile dos Ladres pertence srie de pices roses peas cor-de-rosa de Anouilh. leve, espi-rituosa, cheia de delicadas confuses. Pequenos ladres se fazem passar por pessoas importantes, h namoros, ingenuidade e festas fantasia. No fim, tudo acaba bem.

    Eu interpretava o papel de uma velha senhora Lady Hurf rica e entediada. A maquiagem, na poca, consistia em traos de lpis marrom, para fingir rugas (o que somente servia para sujar o rosto) e toneladas de talco no cabelo, que, no fim da pea, eu levava horas para tirar.

    O espetculo era engraadinho e bem-humo-rado; havia um acompanhamento musical bem leve e ns todos nos divertimos muito. Parece que o pbli co tambm gostou, pelo menos riu bastante. As crticas foram boas.

    O Baile dos Ladres foi uma exceo dentro do repertrio do GUT que, desde sua criao, se especializara em apresentar textos brasileiros e clssicos portugueses. O primeiro espetculo fora composto por trs peas em um ato: Auto da Bar

  • Duas cenas de O Baile dos Ladres

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    ca do Inferno, de Gil Vicente; Os Irmos das Almas, de Martins Pena; e Pequenos Servios em Casa de Casal, pea de um autor jovem, Mario Neme, indi cado por Mrio de Andrade (mais tarde ele foi nomeado diretor do Museu do Ipiranga).

    Foi sorte o Dcio encontrar uma atriz como Cacil-da Becker, que j tinha experincia profissional e um grande talento e se sobressaiu no papel de Brgida Vaz.

    O segundo espetculo foi constitudo por Farsa de Ins Pereira, adaptada por Dcio; e Amap, pea indita de um jovem escritor carioca: Carlos Lacerda. O terceiro foi o vaudeville O Baile dos Ladres, de Jean Anouilh.

    Trabalhar com Dcio foi muito agradvel. Era alegre, bem-humorado, muito inteligente e mo-desto. Quando a pea terminou, convidou todo o elenco para um jantar, no qual aconteceu uma daquelas cenas tpicas dos anos 40.

    O namorado de uma das mocinhas telefonou, furio so, mandando ela sair imediatamente dali (no mnimo, deve ter pensado que ela se encon-trava em algum antro de perdio!), caso contr-rio, terminaria o namoro. Lgico que a coitadinha teve de sair, pra no perder o namorado. Mas foi chorando. Era mais uma demonstrao de como

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    o teatro era considerado uma atividade pouco recomendvel pelos preconceituosos.

    Anos mais tarde, Dulcina de Moraes nos contou que uma vez estava indo de navio para uma temporada teatral em Salvador, de onde inicia-ria uma turn. Como era praxe, os funcionrios da polcia martima subiram a bordo antes de o navio atracar e pediram documentos aos pas-sageiros. Quando chegou a vez dela, ficaram sabendo tratar-se da dona de uma companhia teatral. Imediatamente perguntaram onde es-tava a carteira de prostituta.

    Na poca, para trabalhar em teatro era preciso tirar uma carteira no Departamento de Diverses Pblicas. A carteirinha era cor-de-rosa, exatamen-te igual usada pelas senhoras de vida airada, como eram definidas, na poca, as prostitutas. Parece que, para o incauto policial, atriz e mere-triz era tudo a mesma coisa. Dulcina, indignada, no teve dvida: mandou que as malas fossem levadas de volta ao camarote e voltou ao Rio de Janeiro, no mesmo navio, desistindo da tempo-rada na Bahia.

    Aps o O Baile dos Ladres, entrou uma reapre-sentao de Margem da Vida, de Tennessee Williams, que s tnhamos levado durante dois dias no Teatro Municipal. O elenco era o mesmo:

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    Marina, Caio, Ablio e eu. O cenrio de Clvis Graciano foi adaptado para o palco, bem menor, do TBC. O pano de boca abria ao som da Rhapsody in Blue, de George Gershwin, que criava um clima incrvel para a pea. O diretor Alfredo Mesquita, com esse espetculo, se desligava de-finitivamente do Grupo de Teatro Experimental para se dedicar exclusivamente Escola de Arte Dramtica, por ele criada. Mas essa despedida era dolorosa e ele, todas as noites, ao sair da escola, vinha assistir ao espetculo, quietinho, dos bastidores.

    Apesar de a pea j ter sido vista por um pblico bastante numeroso no Teatro Municipal, a bilhe-teria do TBC registrou 3.500 lugares vendidos, o que no era nada desprezvel para a poca. No h dvida de que o espetculo deve ter lucrado em qualidade ao ser apresentado num teatro menor e com tima acstica.

    No foi s a despedida de Alfredo, mas tambm de Caio Caiubi, considerado o melhor ator ama-dor da poca. Infelizmente, como j vimos, na d-cada de 40 o teatro no era visto com bons olhos e a famlia da noiva no fugiu regra. Os pais dela iriam passar uma temporada na Europa e s o deixariam visitar a noiva se largasse o teatro. Mais ou menos 25 anos mais tarde reencontrei Caio na TV Cultura, escrevendo textos para o

  • A controversa carteira rosa, de atriz

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    programa infantil Vila Ssamo. Estava desquitado e tornara-se uma pessoa triste e desanimada.

    Enquanto eu ainda estava representando a pea de Anouilh, algum teve a brilhante idia de me dizer: Como? Voc vai entrar numa outra pea logo em seguida, sem nenhum intervalo? Mas isso um absurdo! Imediatamente achei que eu precisaria descansar pelo menos um sbado e um domingo, para poder estrear Margem da Vida na tera-feira seguinte. Era s a Cacilda me subs-tituir! Afinal, ela tinha ensaiado o papel de Lady Hurf, de O Baile dos Ladres, antes de mim; alm disso, ela tinha o compromisso de substituir as pri-meiras atrizes amadoras, se necessrio; ela mesma nos tinha contado; ento, qual o problema?

    Cabea de vento a minha!!! Burrice de inician-te! Espero que os amadores hoje em dia sejam mais sensatos.

    Cacilda era de um profissionalismo exemplar. No discutiu (pelo menos, comigo). Maquiou-se at ficar uma velhinha perfeita e entrou em cena disposta a dar um show.

    E vocs acham que eu descansei? Que nada, no sa do teatro. Assisti a todas as suas apresenta-es com o maior interesse, alm de bater longos papos com ela no camarim.

  • Cacilda Becker e Nydia Licia

    Apreendi uma lio que me serviu para toda a vida. Percebi como tinha sido boba e isso me transformou numa atriz profissional e discipli-nada pelo resto de minha carreira.

    Em dezembro se apresentou, durante uma ou duas noites, a Sociedade de Amadores Ingleses, com a pea I Have Been Here Before, de J.B. Priestley. Audrey Cammiade foi diretora e cengrafa do

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    espetculo. Os atores ingleses eram infinitamente melhores do que ns. Representavam com uma naturalidade total e uma poderosa dramaticidade. Ns ficvamos sentadinhos na platia, olhando com toda a nossa admirao Mary Rees, Mary Durrell, W.S. Born, Tiny Shaw, Tommy Cammiade e R.H. Eagling, um ator extremamente verstil.

    Eagling era conhecido dos amadores paulis-tas, principalmente do Grupo Universitrio, pois gostava de maquiagem e se oferecia para maquiar os atores e acompanhava os grupos em suas apresentaes at fora de So Paulo. Era magrinho, falava portugus com muito sotaque e tinha um jeito engraadssimo de contar piadas. Mais tarde se juntaria ao gru-po Alec Wellington, figura carismtica, com uma poderosa voz de baixo profundo e um ta-lento extraordinrio.

    No ms de dezembro estreava o quarto espe-tculo amador: A Esquina Perigosa (Dangerous Corner), tambm de Priestley, com o Grupo dos artistas amadores. Por ser pea do mesmo autor, saiu num jornal que se tratava da traduo em portugus de I Have Been Here Before, que os amadores ingleses tinham acabado de levar.

    A direo foi de Madalena Nicol, em sua primei-ra experincia teatral, com Paulo Autran, Esther

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    Min dlin Guimares, Martha Ekstein (minha gran-de amiga, em sua nica participao teatral ), Glauco De Divitiis, Paulo Cajado (irmo de Madalena, piloto de carreira), Ewa Lieblich e a prpria Mada lena. A pea agradou e foi elogiada a perfor mance dos artistas.

    Entre os grupos amadores paulistas havia um deno minador comum: a maneira de representar muito natural e discreta. Em contraste com o estilo violentamente teatral da maioria dos espetculos que vinham do Rio de Janeiro, como Desejo, Hamlet, Uma Rua Chamada Pecado. No Rio houve a influncia dos expressionistas estran geiros. (Sbato Magaldi). Mais tarde, com a vinda dos diretores italianos, percebemos que o nosso modo de representar era contido demais, extremamente tmido.

    A Esquina Perigosa foi tambm apresentada em So Paulo pelo Grupo de Teatro Amador de Per-nambuco, com traduo de Madalena Nicol, e diri-gida por Ziembinsky, que tambm criou o cenrio e cuidou da iluminao. O espetculo, levado no Teatro Leopoldo Fres, teve crticas excelentes.

    O ano de1949 iniciou com uma reprise de A Mulher do Prximo, que no despertou o mesmo interesse de sua anterior apresentao, mas assim mesmo permaneceu em cartaz durante 15 dias.

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    A primeira tentativa de criar um espetculo que no seguisse 100% as regras de um grupo ama-dor foi Ingenuidade (The Voice of the Turtle), de Van Druten, que ficou cinco semanas em cartaz, com uma mdia de 1.500 pessoas por semana. Era um esboo de teatro profissional, pois os trs atores que participavam da montagem recebiam salrio: Cacilda, Maurcio Barroso e Madalena Nicol, que tambm assumiu a funo de diretora do espetculo. Eram apresentados como Grupo de Arte Dramtica.

    Maurcio foi o primeiro grande amigo de Cacilda dentro do TBC. Amizade que se estendeu por muitos anos. Ele era inteligente, bonito, pinta de gal. Chegava sempre atrasado aos ensaios, esquecia o texto da pea em alguma festinha na noite anterior, mas decorava o papel com a maior facilidade. Era locutor de rdio e tinha uma dico perfeita. O que no impediu que uma vez causasse a sada da estao do ar, ao anunciar um programa do Licor de Cacau Xavier. No sei se distrado ou sonolento, anunciou: Licau de Coc Xavier.

    Assisti estria de Ingenuidade sentada ao lado de um jovem com o pescoo enfaixado, que acabava de chegar de Buenos Aires: Adolfo Celi. Era um diretor italiano de 26 anos, recomenda-do pelo cengrafo Aldo Calvo, diretor-tcnico

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    do TBC, que sugerira sua contratao. Com a experincia de longos anos de teatro na Itlia, Calvo, mais do que ningum, sabia que nenhum teatro no mundo se sustentaria s com trs ou quatro grupos amadores. Desde o incio insistira com Zampari para que chamasse algum capaz de unir todos aqueles talentos e transform-los em profissionais.

    Celi assistiu ao espetculo com ateno. Pareceu-me um tanto perplexo, estranhou a lngua, de sons to diferentes do italiano e do espanhol, e perguntou-me se aquela era a maneira de falar brasileira. No entendi a pergunta, respondi que sim. No falou muito. Estava com o pescoo dolorido, pois pouco antes de embarcar tivera que lancetar um abscesso.

    Os atores o receberam ansiosos, principalmente Cacilda, que comeou logo a bombarde-lo com informaes: Precisamos fazer muitas coisas no teatro. Precisamos disto e daquilo. Precisamos... Eu lhe disse que ele parecia cansado, que seria me-lhor eles conversarem no dia seguinte. Celi agra-deceu, precisava dormir e cuidar do curativo .

    Anos mais tarde eu soube que, ao escrever para Roma, definira o espetculo como teatro di parrocchia que vem a ser uma espcie de teatro de provncia, dirigido por padres.

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    Os primeiros dias em So Paulo devem ter sido uma loucura. Todos queriam falar com ele, Zampari queria apresent-lo a todo mundo da sociedade paulista. Eram coquetis, almoos, alm de reu-nies de trabalho. Cacilda no lhe dava trgua. Ns precisamos cuidar dos atores, dos tcnicos. Precisamos saber o que voc pensa a respeito de um repertrio, etc. Celi se saiu galhardamente.

    Com Franco Zampari logo se entendeu muito bem, ambos eram homens de ao e rpidos nas decises. Ele se comunicava com todos em italia-no, o portugus viria aos poucos. Desde os primei-ros dias ficou fascinado pelas mulheres brasileiras, bancava um pouco o latin lover, olhava para todas com aqueles olhinhos pequenos, penetrantes e cantava todas. Aos poucos, se acalmou.

    lgico que Celi precisava de algum tempo para se adaptar, conhecer os atores e aprender um pouco de portugus. Cogitou-se, ento, diante do sucesso alcanado por Ablio com A Mulher do Prximo, na remontagem de sua primeira pea: PifPaf, que o Grupo de Teatro Experimen-tal apresentara anteriormente. Madalena viveria o principal papel feminino, que no era nenhum cavalo-de-batalha. Por isso sugeriu levar, antes da pea, um monlogo de Eugene ONeill, Antes do Caf, dirigido por ela mesma.

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    A deciso foi acertada, pois conseguiu um grande sucesso com o papel (que, alis, foi oficiosamente supervisionado por Adolfo Celi).

    Estvamos prximos do carnaval. Celi estava muito curioso a respeito dessa festa de que tanto ouvira falar na Argentina e a que nunca tinha assistido. O pessoal do teatro resolveu organizar um baile fantasia num clube em Piri tuba, o Golf Club Anastcio. Mas precisava ter mais gente. Foram convidados, ento, os scios do Clube dos Artistas e Amigos da Arte, que aceitaram de pronto. Esses, por sua vez, convidaram outras pessoas. No fim, eram mais de 200.

    No sei quem providenciou as bebidas, mas eram todas falsificadas. Em questo de minutos, quem bebesse comeava a passar mal. Teve gente que desmaiou; outros que adormeceram no cho da varanda; alguns at foram embora. Quem chegou depois disso s tomou batidas de limo e evitou o desastre.

    A parte mais engraada da festa foram as fan-tasias. A imaginao correu solta. Alfredo foi de Deus Netuno, com um poderoso tridente, com o qual espetava os bailarinos. Mister Nichol, marido de Madalena, com seu porte majestoso e cabelos brancos, foi de beb, com chupeta e touquinha. Cacilda, de holandesa, e Tito, seu

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    marido, de aviador. Celi vestiu-se de pirata, com direito a uma faixa preta no olho. Madalena, Marina e Clia, as trs de cocottes francesas, do sculo passado. Eu fui de A Estrada do Tabaco, pea que acabara de fazer grande sucesso com Itlia Fausta e Maria Della Costa. E Ruy Affonso, solenemente vestido de cardeal. Coube a Ablio a fantasia mais maluca. Foi de irrigador medicinal (em outras palavras, clister) e com um tubo de borracha espirrava gua nos convidados.

    De sbito apareceram fotgrafos dos Dirios Associados e das Folhas, fotografando tudo e todos e de todos os ngulos. Especialmente interessados nas pessoas meio des maiadas por efeito das bebidas.

    O resultado foi publicarem reportagens esca-brosssimas no dia seguinte, com ttulos como Pagodeira Existencia lista e Discpulos de Sartre com artigos violentos, chamando a reunio de bacanal. Para cada foto publicada, inventaram uma historieta maldosa. Quem leu aquilo, ficou imaginando horrores.

    A nica nota engraada foi a polcia mandar uma convocao para o senhor Jean-Paul Sartre comparecer delegacia para prestar informaes sobre essa tal festa existencialista. Clia Biar, que era secretria do TBC, recebeu a intimao com a

  • maior seriedade, lamentando que o sr. Sartre no estivesse presente no momento, mas garantindo que o informaria.

    Quanto ao Celi, algum o depositou, de volta da festa, na porta do teatro, em cuja calada acor-dou, no dia seguinte, vestido de pirata e rodeado de crianas curiosas por saberem o que um pirata estava fazendo na calada da Rua Major Diogo, numa quarta-feira de cinzas.

    Primeiro problema no teatro de amadores: no havia nenhuma outra pea pronta. O repertrio dos diletantes estava meio desfalcado.

    Imagens da pagodeira existencialista em Pirituba

  • Zampari ento convidou uma atriz carioca, Aime , e a Companhia de Comdias do Teatrinho ntimo do Rio de Janeiro para se apresentarem no palco do TBC com uma comdia de Louis Verneuil, dirigida pela diretora portuguesa Ester Leo, intitulada Ele, Ela e o Outro. No elenco, alm de Aime, estavam dois timos atores: Paulo Porto e Ambrsio Fregolente (que, por sinal, odiava o prprio nome; quem o chamasse Ambrsio, se arriscava a comprar uma briga). A comdia no tinha nada de especial, mas estava bem feitinha.

    Em seguida, foi a vez de uma pea que fizera muito sucesso na capital, A Inconvenincia de Ser Esposa. Era de autoria de um mdico,

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    autor-ator-diretor-cineasta de nome Silvei-ra Sampaio, figura mpar do teatro carioca e principalmente da praia de Ipanema. Sua obra, bem-humorada e altamente inteligen-te, criticava os costumes da burguesia do Rio de Janeiro, hesitante entre a moralidade e o adultrio. Portanto, bem na linha inicial de Ablio Pereira de Almeida. Dirigida pelo autor, tinha a presena de Laura Suarez, uma atriz excelente, bonita e elegante, que fora convi-dada para fazer cinema em Hollywood. Ela at chegou a ir para l.

    No primeiro almoo que teve com o empresrio norte-americano (desses gordos, com charuto na boca o dia inteiro, que se acham grandes conquistadores) o distinto senhor botou a mo no joelho dela. Laura fechou a cara e olhou bem firme para ele, achando que sua postura de desagrado seria suficiente para ele desistir de gracinhas. Nenhuma reao da parte do gordo: a mo no foi retirada. Ela, ento, pe-gou o prato cheio de comida e entornou-o na cabea dele. Depois disso levantou-se com toda a dignidade e voltou para o Brasil. Claro que ela no fez o filme.

    A pea, engraadssima, era diferente de tudo o que fora apresentado at ento em So Pau-lo. (...) No h dvida de que Silveira Sampaio

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    descobriu um novo e riqussimo filo cmico. A sua pea , incontestavelmente, a mais original comdia brasileira moderna. Dcio de Almeida Prado O Estado de S. Paulo.

    No havia resqucio de naturalismo em sua ma-neira de representar; os gestos eram exagerados, beiravam o grotesco. Silveira Sampaio atraves-sava o palco com passos enormes, esticando e dobrando as pernas. Os gestos eram largos, os tons ampliados.

    As frases espirituosas. Tudo era de acordo com a sua personalidade de ator, que no tinha nada em comum com a maneira de representar meio antiquada dos cariocas ou com a discrio meio provinciana dos paulistas. Prova disso que, embora durante toda a sua carreira de autor -ator, ele tenha tido sempre muito sucesso, nenhuma pea escrita por ele resistiu quando foi interpretada por outros atores.

    Com o advento da televiso, Silveira Sampaio criou, na TV Record, um talkshow que era assis tido pelo Brasil inteiro. Usava o telefone para falar com o presidente da Repblica, truque mais tarde muito usado por outros apresentadores. Tinha um assis-tente muito competente, um rapazinho chamado J Soares, que foi seu herdeiro na TV.

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    Terminada a temporada dos colegas cariocas chegou a vez de ns nos apresentarmos. Paulo Autran criou um grupo, o Conjunto de Arte Teatral, para levar a pea policial A Noite de 16 de Janeiro, de Ayn Rand, sugesto de Franco Zampari, cuja cunhada traduzira o texto.

    Paulo convidou Ronald H. Eagling, dos English Players, para dirigir. A ao se passava inteira num tribunal e o jri era escolhido, na hora, en-tre o pblico. Havia, no palco, atrs do cenrio, um quartinho especialmente preparado, com poltronas, gua gelada e cafezinho, para que os jurados no sassem do ambiente, como num jri de verdade.

    Ao todo ramos quase 30 atores; havia guar-das, reprteres, ajudantes de advogado e at jornaleiros que, nos intervalos, distribuam na platia jornais especialmente impressos, com cabealho e artigos referentes ao julgamento. Alguns jornaleiros at ganhavam uns trocados dos espectadores...

    Eu era a r, Karen Borg, acusada de ter assas-sinado o amante, atirando-o do 20. andar do prdio. O corpo fora encontrado estraalhado e irreconhecvel. Paulo era o promotor pblico; Jlio Gouveia o advogado de defesa, Clia Biar a viva, Marina Freire uma testemunha. E havia

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    mais: Clvis Garcia, Renato Consorte, Ablio Pereira de Almeida, Nelson Coelho e muitos outros atores.

    Durante os ensaios preparamos dois finais. Um, se eu fosse absolvida e outro, se condenada. S fui ser condenada uma ou duas vezes. No sei por que, mas o pblico sempre torce a favor dos possveis viles; os intrpretes de novelas que o digam!

    A poucos dias da estria fomos comunicados que haveria matin s quintas-feiras, s 16 horas, hbito introduzido pela companhia de Ayme. Foi um susto. A maioria trabalhava tarde, no havia como faltar ao servio todas as semanas.

    Explicamos isso, mas inutilmente. Paulo, ento, escreveu uma carta para o Zampari, iniciando-a assim: Ilustrssimo Dono do Teatro Brasileiro de Comdia... O elenco inteiro assinou, menos as trs atrizes, porque os cavalheiros no qui-seram nos expor, ainda mais porque Marina e Clia eram amigas pessoais do Zampari e freqentavam a casa dele. Nada como o cava-lheirismo da poca!

    As matins foram suspensas, mas o castigo veio a cavalo. Embora a pea estivesse fazendo sucesso, foi retirada de cartaz aps duas semanas.

  • Programa da pea (Reproduo do NY Times)

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    Durante a temporada, tive uma gripe medo-nha que desencadeou uma sinusite. Cheguei a representar com mais de 39 graus de febre. O mdico receitou penicilina a cada seis horas, impreterivelmente. Ao lado do teatro havia uma farmcia, em cuja geladeira eu deixava um vidro de remdio. Na matin de sbado o intervalo das seis horas coincidiu com minha presena obrigatria em cena, sendo julgada por homicdio. O que fazer? A soluo foi o ator que fazia o papel do guarda, e que ficava ao meu lado a pea inteira com ar sinistro, me pegar pelo brao e, com a mxima seriedade, me fazer sair de cena. Corri para baixo, trope-ando nos degraus, entrei na farmcia, tomei a injeo, sa correndo e meu algoz me levou rapidamente de volta ao banco dos rus.

    O pblico no percebeu nada de estranho, o que confirma a minha teoria: Faa o que fizer em cena, faao com convico e qualquer platia aceitar como normal. Afinal, voc sabe o texto, eles no!

    O importante foi que a lio recebida no final da temporada de O Baile dos Ladres, frutifi-cou; mesmo doente, no pedi para ser substi-

  • tuda. E confesso que fiquei muito orgulhosa de mim mesma.

    Aconteceram outras coisinhas em cena, mas a mais engraada foi a do jri de um domingo, na terceira sesso, a das 22h30. O ltimo pblico da semana sempre foi meio retrado e, quando foram convidados espectadores para participar do jri, s nove subiram ao palco. Faltava um. A soluo foi correr at o bar em frente, que estava cerrando as portas e convidar o dono, um portugus de meia-idade muito amigo dos atores, para ser jurado. No fim da pea, coube a ele ler a deciso do jri.

    Cenrio de A Noite de 16 de Janeiro

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    Muito satisfeito e orgulhoso soltou o verbo: Senhor Juiz, a culpada inocente!

    Mister Eaglin vinha todas as noites assistir ao espetculo. Passava em todos os camarins, per-guntava se precisvamos de ajuda na maquia-gem, mas no havia nenhum papel caricato e todo mundo representava com a prpria cara, no mximo com um bigodinho postio. Aos sba-dos, ele passava no Nick Bar e bebia tudo a que tinha direito. Em seguida, no final da terceira sesso, descia at os camarins, sentava em cima de sua inseparvel maleta e pegava no sono. Ns tirvamos a sorte para decidir quem que iria lev-lo para casa, no outrora longnquo bairro do Brooklin.

    Ao saber da inteno de Zampari de tirar de car taz A Noite de 16 de Janeiro, Madalena se ofere ceu logo para nos substituir com dois textos de um ato, montados s pressas: Dois Destinos, de Noel Coward , e A Mo do Macaco, de W.W. Jacobs, ambos traduzidos e dirigidos por ela. Foi uma atitude profissional da parte dela, mas que ns achamos, tambm, uma traio porque se no tivesse outra pea pronta para estrear, ns continua ramos em cartaz.

  • Para nosso gudio, A Mo do Macaco foi muito ruim, o texto nem estava decorado direito, mas, em Dois Destinos, Madalena esteve maravilhosa, tivemos que reconhecer.

    Aps as duas peas dos Artistas Amadores, che-gou finalmente a vez de Adolfo Celi montar seu primeiro espetculo. Escolheu uma que havia dirigido na Itlia, com Vittorio de Sica no papel principal, The Time of Your Life, de William

    Nydia e Ablio

  • Saroyan, traduzida por Gustavo Nonnenberg com o ttulo de Nick Bar... lcool, Brinquedos e Ambies. Esse foi o primeiro espetculo profissional do TBC.

    Acabara a fase dos amadores.

    O jri da pea na estria: Vera Alves Lima, Carlos Mesquita, Maj Rheingantz, Renata Crespi Prado, Fifi Assumpo, Fbio Prado, Cacilda Becker e Alfredo Mathias, entre outros

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    Os profissionais

    Com a vinda de Celi, o clima no teatro comeou a mudar. Todo mundo queria ser esco lhido para participar da primeira pea, mesmo antes de sa-ber qual seria. At atores de rdio queriam fazer testes, e jovens que nunca haviam representado se candidatavam. Os amadores comearam lenta-mente a repensar sua condio de diletantes. De todo o elenco, os nicos que tinham trabalhado como profissionais eram Cacilda e seu marido, Tito Fleury.

    Desde o incio, Celi imprimiu seu ritmo de traba-lho: ensaios em conjunto das 13 s 19 horas e individuais pela noite adentro. Ningum se quei-xava. O entusiasmo era maior do que o cansao. Ele era muito exigente com os atores e consigo mesmo, mas, em contrapartida, exibia uma rara pacincia. Sabia estar tratando com principiantes alguns dos quais apavorados e no se inco-modava em repetir as cenas dezenas de vezes. Alm do mais, dava as instrues em italiano misturado com espanhol, o que dificultava um pouco a compreenso, mas, no fim, todo mundo entendia. Os brasileiros sempre tiveram grande generosidade com os estrangeiros que no falam portugus, o que no ocorre nos pases de lngua espanhola. Na Colmbia, por exemplo, quando

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    eu falava portugus, me perguntaram mais de uma vez se era francs! E faziam questo de no entender nada.

    Havia entre os candidatos um rapazinho que devia ter uns 18 anos e adorava teatro. Ns o conhecamos porque trabalhava na Fotoptica, loja na qual comprvamos e revelvamos filmes. Era amigo de todos, principalmente de Cacilda, e estava louco para conseguir uma oportunidade de estrear como ator. Havia um papel que fala-va pouqussimo, o de um jovem que ficava em cena, jogando num jukebox, e Celi deu-lhe uma oportunidade. O nome dele era Fredi Kleemann. Tinha um talento mpar com a fotografia e rapi-damente tornou-se o fotgrafo oficial do TBC, alm de ator em ascenso e, anos mais tarde, tambm diretor de talento.

    Fredi foi um grande amigo que, infelizmente, se foi muito moo. Aos 47 anos, seu corao no agentou. Quem o encontrou de manh, morto na cama, foi sua me, uma pobre senhora cega.

    Aps uma srie de testes, Celi escolheu o elenco de Nick Bar. O principal papel feminino seria de Cacilda; o protagonista masculino, Gustavo Nonnenberg, jornalista e tradutor da pea. De uma naturalidade impressionante, sem nunca ter sido ator, era o tipo perfeito para o papel: alto,

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    magro e desleixado. Mas... e sempre h um mas, tinha a pior dico do mundo. L foi o diretor ensin-lo a falar com um lpis na boca, fazendo-o puxar a lngua pra fora e segur-la com um leno, enquanto tentava dizer o texto.

    Madalena Nicol teve um pequeno papel e Marina Freire e Ruy Affonso faziam um casal de gr-finos que s entrava no terceiro ato. Carlos Vergueiro, com a cara e as mos pintadas de preto, passava o tempo todo sentado ao piano tocando msicas lentas, tpicas do Sul dos Estados Unidos. Lembro que, uma noite, duas senhoras muito elegantes vieram de Porto Alegre para assistir pea. Eram parentas do ministro Oswaldo Aranha. No intervalo, desceram at os camarins, que eram no poro do prdio, e cumprimentaram vrios atores. Carlinhos, rapaz de sociedade, acostu-mado a andar sempre bem vestido, de barba feita e perfumado, aproximou-se delas para se apresentar. As duas senhoras nem o dignaram com um olhar. Acharam que ele era mesmo um negro pobre e maltrapilho de New Orleans, to bem encarnara o papel. Ele ficou uma fera.

    Waldemar Wey fazia um ex-Buffalo Bill, de revl-ver na cintura e chapu de cowboy.

    Maurcio Barroso era Tom, o gal. Ricardo Campos era o Blick. Ele s tinha duas falas na

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    pea: Ol Nick e Adeus Nick. Antes do incio dos espetculos passava meia hora no camarim repetindo as duas falas em voz alta, de todas as maneiras possveis e em todos os tons. Era a gozao da turma. Mais tarde, na Companhia Cinematogrfica Vera Cruz, ele se revelou no papel do feitor de escravos em Sinh Moa e, em Lampio, era arrastado pelo cho, puxado por um cavalo a galope.

    O dono do bar era Ablio, justamente o Nick. Ao todo, eram 24 atores. Entre eles um rabe, vestido de branco, que ficava tocando gaita; in-terpretado por Milton Ribeiro, o futuro Lampio de O Cangaceiro, de Lima Barreto.

    A pea agradou muito e foi bastante comentada na cidade; chegou a ficar em cartaz cinco sema-nas, com bom pblico.

    O que impressionou a platia foi o ritmo acele-rado da pea. Era a marca registrada de todos os espetculos de Celi. Ele sempre afirmava que qualquer pea dirigida por ele durava dez minutos menos do que se fosse dirigida por outro diretor.

    Alguns crticos estranharam a velocidade. Paulo Fbio, por exemplo, escreveu em sua crnica: ... No posso entender a razo de quase todo

  • Cacilda Becker, em Nick Bar

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    o elenco entrar em cena correndo, como Francisco Landi no circuito de Bari. O danarino, o jornaleiro e o rapaz apaixonado pela bailarina entravam em cena como se estivessem fugindo de um incndio. Ser que isso lhes foi marcado pelo diretor Adolfo Celi?

    Durante os ensaios, Cacilda comunicou que esta-va grvida, mas, por ocasio da estria, estaria apenas de cinco meses, o que no impediria de maneira alguma a representao. No mximo estaria com uma barriguinha, que no preju-dicaria o papel da prostituta Kitty Duval. Real-mente, tudo foi tranqilo at que, numa tarde de sbado, ela teve uma ameaa de aborto. Foi um susto no teatro. Havia duas sesses noite, completamente lotadas. Nonnenberg lembrou que eu havia assistido a muitos ensaios e que havia decorado o papel de Cacilda, de acordo com ela, para qualquer eventualidade. Telefo-naram para minha casa, mas eu j havia sado. Certos de que eu estaria chegando no teatro, como todas as noites, ficaram me aguardando na porta. Quando me relataram a situao no tive dvidas, procurei um vestido bem vermelho no guarda-roupa do TBC e me preparei para entrar em cena. Animadssima, porque, quando a gente jovem, nada parece complicado.

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    Celi que ficou assustado. Eu nunca ensaiara o papel, e ele no tinha a menor idia do que eu seria capaz de aprontar. No sabia o que fazer: correr o risco de me deixar entrar em cena, ou suspender as duas apresentaes? No teve es-colha, o pblico estava l, j impaciente. Alm disso, the show must go on!

    Entrei em cena, tranqilssima. Dirigi-me ao bar, onde Nick servia as bebidas, e atirei umas moedas em cima do balco, pedindo um trago. Ablio serviu a bebida com a cara impassvel, mas em voz baixa disse para mim: O meu papel da Mulher do Prximo voc no quis fazer, mas essa puta de cais do porto, voc faz. Era pra desmon-tar qualquer um!!!

    Agora, imaginem o susto de Marina Freire e Ruy Affonso que, como disse anteriormente, s entra-vam no terceiro ato. Tendo sado do teatro aps a matin, nada sabiam do ocorrido. O contra-regra, mais preocupado em seguir o que acontecia no espetculo, esqueceu de inform-los. E eles, de repente, deram de cara comigo, entrando em cena e interpretando o papel de Cacilda.

    No entenderam nada e tiveram um frouxo de riso, que quase parou o espetculo. Represen-tei o papel durante uma semana, at Cacilda poder voltar.

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    Zampari havia convidado para a estria muitos crticos do Rio de Janeiro, entre os quais Accioly Neto, da revista O Cruzeiro, e Paschoal Carlos Magno, do Correio da Manh. Ele era o criador do Teatro do Estudante do Brasil, que tanto sucesso tinha alcanado com a apresentao do Hamlet, de Shakespeare. Todos foram unnimes em achar o espetculo de alto nvel e o teatro muito bonito e confortvel.

    Paschoal assistia a todos os espetculos, tanto de profissionais como de amadores. Muitas vezes dormia no meio das peas, mas no final aplaudia de p, com muito entusiasmo, gritando: Bravo! At o fim da vida, j doente e cansado, acompanhava o trabalho dos jovens atores e os estimulava e encorajava.

    O segundo espetculo dirigido por Adolfo Celi foi Arsnico e Alfazema, de Joseph Kesserling. A escolha no poderia ter sido mais feliz. A farsa do autor norte-americano conquistou em primeiro lugar os atores e, como conseqncia, o pblico. A histria das duas velhinhas que alugam um quarto a velhos solitrios, completamente sem famlia, e que, com peninha deles, os envenenam e enterram no poro, hilariante. Os aconteci-mentos se sucedem, cada vez mais bizarros. Em nenhum momento o pblico deixa de adorar as duas senhoritas, quando o normal seria que

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    elas provocassem horror e repdio. Mas tal a ingenuidade e a pureza delas, que todos querem proteg-las, desde o sobrinho, que acaba de des-cobrir terem sido 25 os cadveres, at o ltimo dos espectadores, que morre de rir na platia.

    O elenco, muito homogneo, revelou um pro-gresso enorme. As duas protagonistas Cacilda e Madalena , excelentes. Cacilda, j com uma boa barriga, era forada a um andar mais pesa-do, ao contrrio de Madalena, uma velhinha mais saltitante. Maurcio j era o gal oficial da companhia. Ruy Affonso, o outro sobrinho, meio maluco, tocando uma trombeta, nunca esteve mais engraado. Clia Biar, natural e elegante, bem simptica. O cirurgio plstico (A. C. Carva-lho), que operara o criminoso (Mil ton Ribeiro) durante uma bebedeira, colo cando-lhe a cara de Boris Karloff, o ator que vivera o monstro de Frankenstein no cinema, divertidssimo.

    O pblico adorou. Nas ltimas representaes, Clia Biar substituiu Cacilda, com um nico en-saio. Clia sempre foi uma atriz cmica de primei-ra qualidade com um timing de comdia raro e uma das atrizes mais elegantes que eu conheci.

    Durante a temporada de Arsnico e Alfazema foi inaugurada a srie de Segundas Musicais no TBC. Por coincidncia, apresentaram-se duas

  • contraltos, a voz mais rara entre as mulheres no Brasil. Estilos completamente diferentes, ambas donas de voz possante tiveram uma recepo calorosa.

    Madalena Nicol com um repertrio de msicas de cmara, confirmou todos os elogios recebidos na Europa e nos Estados Unidos, e Inezita Barroso com msica regional e folclrica. Na poca, Ine-zita ainda no tinha sido consa grada pela crtica, era pouco conhecida, mas sua voz apaixonada emocionou e entusiasmou o pblico.

    O sucesso do TBC repercutiu no Rio de Janeiro, tanto que Jorge Guinle, proprietrio do Copaca-bana Palace, convidou Ablio para reinau gurar o Teatro Copacabana, recm-reformado, com suas duas peas: A Mulher do Prximo e PifPaf.

  • Aps ter representado Kitty Duval em Nick Bar, no fazia mais sentido recusar o papel, pois a essa altura o teatro se tornava muito mais importante para mim do que qualquer outro emprego.

    A presena do TBC, aps menos de um ano de existncia, tivera uma influncia benfica na mentalidade dos paulistanos. O fato de tantas pessoas bem educadas, formadas em universi-

    Ziembinski, na 2 montagem da pea

  • dades, participarem dos espetculos modificara de uma maneira marcante a opinio negativa que o teatro antigamente despertava. Eu mesma mudei. Pedi demisso da Clipper e comecei a ensaiar as duas peas.

    O Grupo do Teatro Experimental renasceu das cinzas: Marina Freire, Lcia Pereira de Almeida e Helenita Queiroz Matoso, intrpretes da pri-meira montagem, mais Ablio, Haroldo Gregory, Glauco de Divitiis. Faltava o segundo ator. Foi

    Cacilda Becker, Madalena Nicol, Milton Ribeiro e Clia Biar em Arsnico e Alfazema

  • Inezita Barroso, apresentandose no TBC

    convidado um artista de televiso: Jota Silvestre, mas ele s chegou a ensaiar durante uma sema-na, pois a TV Tupi no lhe deu licena para se afastar de So Paulo. Ablio ento convidou o ator de quem tinha gostado em A Esquina Perigosa e A Noite de 16 de Janeiro: Paulo Autran. A temporada seria de um ms. Paulo aceitou. Se as duas peas alcanassem um bom pblico, montaramos tambm Margem da Vida, e

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    Paulo ento iria fazer o papel que Caio Caiubi vivera em So Paulo. Alfredo Mesquita, o diretor da pea, consultado, concordou.

    Para ele, era uma grande alegria o GTE final-mente apresentar-se no Rio de Janeiro, mesmo sem sua presena. Levar um espetculo do grupo para a capital da Repblica foi um sonho acalen-tado durante muito tempo. E ns fomos para l, com as trs peas.

    No Rio, conheci um jovem ator gacho que acabara de voltar dos Estados Unidos, onde fora estudar teatro: Jos Lewgoy. Ao saber que levaramos Margem da Vida, contou-me ter representado o papel de Tom na escola e me pediu para ler a traduo de D. Esther Mesquita. Emprestei o texto (naquela poca ainda no sabia que no se empresta nada a colegas de teatro, porque nada volta; conheci um diretor, muito famoso, cuja biblioteca era recheada de livros emprestados e nunca devolvidos!). Acontece que ele estava desempregado e sem dinheiro. Morava numa penso e estava com o aluguel atrasado. O senhorio resolveu ficar com todos os pertences dele e s devolv-los quando pagasse a dvida. Inutilmente fui tentar falar com aquele senhor, l nos cafunds da Lapa, e pedir que me devolvesse a pea, que era minha e eu no tinha nada a ver com a dvida do Lewgoy. Ele foi irre-

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    dutvel. S devolveria a mala, cheia de objetos e roupas, quando a dvida fosse saldada. Nunca mais vi meu texto!

    No Rio tivemos crticas muito boas; ficamos impressionados com o nmero de jornais que havia na cidade e com o interesse que todos demonstravam por teatro. Nas noites de estria ficvamos acordados at de madrugada, para ler as crticas to logo sassem. Era hbito dos crticos escrever o artigo logo ao sair dos espetculos.

    Alguns acharam uma pena que Marina e Ablio fossem um pouco velhos para as duas personagens de A Mulher do Prximo... Imaginem! Eu que era jovem demais para o papel.

    Por causa disso, na pea de Tennessee Wil liams, Ablio resolveu usar uma peruca loira que algum disse que o rejuvenesceria. Foi um horror; acabou parecendo muito mais velho.

    Trabalhar no TBC estava se tornando um privi-lgio. Alm da garantia do pagamento mensal, havia algo incomum nas companhias teatrais da poca: o empresrio fornecia todo o guarda-roupa , mesmo em peas modernas. Na poca, no Rio, os atores eram responsveis por seus trajes em cena. s vezes at eram escolhidos s pelo fato de terem, ou no, uma casaca ou

  • Paulo Autran e Nydia, em Margem da Vida no Rio

  • Ablio Pereira de Almeida, Marina Freire e Nydia,em Margem da Vida no Rio

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    um smoking. As mulheres ento faziam todo o poss vel para se apresentar com vestidos de noite muito elegantes e estolas de peles (podiam ser de peles de coelho, desde que, de longe, pare-cessem raposas).

    Quantos sacrifcios eram necessrios! Muitas vezes, dependia desse detalhe terem ou no um contrato para uma temporada.

    No TBC tudo era fornecido pela empresa. Alm disso, Zampari sempre se preocupou muito com a comodidade dos atores e suas necessidades. Em vrias ocasies adiantou o ordenado, como emprstimo, para que o ator, ou a atriz, pudesse trabalhar sem preocupaes. Para maior conforto dos artistas muitos dos quais entravam no tea-tro uma hora da tarde e saam s