ESTUDOS CRIATIVOS PARA O DESENVOLVIMENTO HARMÔNICO DO INSTRUMENTISTA MELÓDICO: UMA...
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO ESCOLA DE COMUNICAES E ARTES
DEPARTAMENTO DE MSICA
ANTONIO CARLOS MORAES DIAS CARRASQUEIRA
ESTUDOS CRIATIVOS PARA O DESENVOLVIMENTO HARMNICO DO INSTRUMENTISTA MELDICO:
UMA CONTRIBUIO PARA A FORMAO DO MSICO
So Paulo 2011
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ANTONIO CARLOS MORAES DIAS CARRASQUEIRA
ESTUDOS CRIATIVOS PARA O DESENVOLVIMENTO HARMNICO DO INSTRUMENTISTA MELDICO: UMA CONTRIBUIO PARA A
FORMAO DO MSICO
Tese apresentada ao Departamento de Msica da Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Msica.
rea de concentrao: Msica.
So Paulo 2011
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Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa desde que citada a fonte.
Catalogao na publicao Servio de Biblioteca e Documentao
Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo Carrasqueira, Antonio Carlos Moraes Dias Estudos criativos para o desenvolvimento harmnico do instrumentista meldico : uma contribuio para a formao do msico / Antonio Carlos Moraes Dias Carrasqueira So Paulo : A. C. M. D. Carrasqueira, 2011. 194 p. : il. + CD Tese (Doutorado) Escola de Comunicaes e Artes / Universidade de So Paulo.
1. Flauta 2. Instrumentos musicais 3. Criatividade 4. Linguagem musical 5. Improvisao 6. Perfomance I. Jardim, Gilmar Roberto II. Ttulo.
CDD 21.ed. 788.51
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Nome: CARRASQUEIRA, Antonio Carlos Moraes Dias Ttulo: Estudos Criativos para o desenvolvimento harmnico do instrumentista meldico: uma contribuio para a formao do msico
Tese apresentada ao Departamento de Msica da Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Msica.
Aprovado em: / / 2011
Banca Examinadora
Prof. Dr. ..................................................................................... Instituio: ..................................................... ......................... Julgamento: ................................... ........................................ Assinatura: ............................................................................. Prof. Dr. ..................................................................................... Instituio: ..................................................... ......................... Julgamento: ................................... ........................................ Assinatura: ............................................................................. Prof. Dr. ..................................................................................... Instituio: ..................................................... ......................... Julgamento: ................................... ........................................ Assinatura: ............................................................................. Prof. Dr. ..................................................................................... Instituio: ..................................................... ......................... Julgamento: ................................... ........................................ Assinatura: ............................................................................. Prof. Dr. ..................................................................................... Instituio: ..................................................... ......................... Julgamento: ................................... ........................................ Assinatura: .............................................................................
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DEDICATRIA
Aos meus pais, Marina e Joo, sempre amorosos, que mostraram caminhos e ensinaram pelo exemplo. Aos meus mestres, pela pacincia e generosidade.
`As novas geraes, nossos filhos, netos e alunos, para que continuem a descobrir e a revelar as maravilhas da msica e da vida.
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AGRADECIMENTOS
A todos aqueles que vieram antes de mim e tornaram possvel o acesso msica e ao pensamento dos mestres. quele que me fez msico e professor; meu pai, paciente e generoso, mestre de vida e da arte, cuja sabedoria continua a iluminar meus caminhos. minha me, pelo carinho, apoio, oraes e exemplar capacidade de trabalho. Benedicta Arcanjo, in memorian pelo carinho, amor e lies de vida. `A Frau Beatrice Dietzius, in memorian, cujo apoio foi fundamental no incio de minha caminhada. Ao Gil Jardim, querido amigo que me honrou com sua disponibilidade e sbia orientao. Sua lucidez de artista foi de importncia fundamental para o desenvolvimento deste trabalho. s minhas irms Marina Celia e Maria Jos, artistas e educadoras, pelo grande incentivo e apoio. Linice Jorge, cuja imensa generosidade e presena entusiasmada deram uma fora enorme nos momentos decisivos. Claudia Arezio, Suely Ceravolo e Eder Luis Jorge cuja inteligncia e domnio das artes da computao foram fundamentais para a formatao deste trabalho. Mnica Haibara, pelas lindas mandalas e presena tranquila e iluminada. Ao Guilherme Sparrapan, pela preciosa colaborao nas transcries, na gravao e na edio das partituras. Vilma Barban, Kika Loureno, a Cicero Couto de Moraes, Etelvino Bechara Marco Aurlio Barroso, Paulo de Tarso Salles e a George O. Toni, pelas sugestes e apoio. Gizah, pela reviso, bom humor e disponibilidade.
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Aos meus professores flautistas, J. D. Carrasqueira, Jean Noel Saghard, Grace Bush, Roger Bourdin, Cristhian Lard, Fernand Caratg e James Galway. Aos professores Laura Ronai, Umberto Magnani e Jos Miguel Wisnik, cujos textos foram fundamentais para o embasamento histrico desta tese. minha esposa Marcia, companheira generosa de todos os momentos. L pela fora e a todos os meus filhos, pela alegria e pelo amor incondicional. Aos meus companheiros do Quinteto Villa-Lobos, Aloysio Fagerlande, Luis Carlos Justi, Paulo Sergio Santos e Phillip Doyle, por sua musicalidade, pela companhia sempre inspiradora e pela disponibilizao de livros e mtodos. A todos os meus companheiros das diferentes orquestras e grupos onde toquei e aprendi tanto. Aos professores msicos Eliane Tokeshi, Betina Stegman, Marcelo Jaffet, Luis Antonio Afonso Montanha, Alexandre Ficarelli e Robert Suedholz pela disponibilizao do material de estudo de seus intrumentos. Aos amigos msicos, Felipe Soares, Gabriel Levy, Luis Bastos, Jonas Ribeiro, e Stefania Benatti, pelas gravaes, transcries e preciosas sugestes. A Maurlio Buduga, Flavio Yamaoka, Renato Camargo, Peninha, Baul e a todos os meus alunos de todos esses anos, que me inspiraram e ensinaram muito. A todos aqueles que, de uma forma ou de outra, colaboraram para que este trabalho se tornasse possvel. Aos auxiliares invisveis, que por misteriosos caminhos sempre trazem a ajuda necessria. USP, pelo apoio e pelas condies de trabalho. Msica, que me salva.
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RESUMO
CARRASQUEIRA, A. C. M. D. Estudos Criativos para o Desenvolvimento Harmnico do Instrumentista Meldico: Uma contribuio para a formao do msico. 2011. 194 f .Tese (Doutorado) Departamento de Msica, Escola de Comunicao e Artes, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011.
Esta tese trata da formao do flautista e de outros instrumentistas meldicos - de sopro, e de cordas no dedilhadas. Ilustrada com exerccios, preldios e estudos, consiste basicamente em uma metodologia de ensino que visa no somente ao desenvolvimento tcnico-instrumental, mas tambm ao pleno entendimento da linguagem musical e ao desenvolvimento da conscincia harmnica. Para isso, prope uma forma de estudo baseada na criao de contedo, e no na repetio de padres preestabelecidos. Palavras-Chave: Flauta. Instrumento meldico. Criatividade. Linguagem musical.Improvisao. Escala musical. Acordes. Performance.
RESUMO CARRASQUEIRA, A. C. M. D. Estudios Creativos para el Desarrollo Armnico del Instrumentista Meldico: Uma contribuicion para la formacin del msico. 2011. 194 f .Tesis (Doctorado) Departamento de Msica, Escola de Comunicao e Artes, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011. Esta tesis trata acerca de la formacin del flautista y de otros instrumentista meldicos de viento y de cuerdas friccionadas. Ilustrada com exerccios, preldios y estudios, consiste basicamente en una metodologia de endeanza que no solamente enfoca el desarrollo tcnico-instrumental, sino tambin el entendimiento pleno del lenguage musical y el desarrollo de la consciencia armnica. Para eso, propone una forma de estudio basada en la creacin de contenidos y no en la repeticin de padrones pr-establecidos.
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Palabras-Llave: Flauta. Instrumento meldico. Creatividad. Lenguage musical.Improvisacin. Escala musical. Acordes. Performance.
ABSTRACT
CARRASQUEIRA, A. C. Creative studies for the harmonically development of the melodic instrumentalist: a contribution to the musician improvement. 2011. 194 f. Tese (Doutorado) Departamento de Msica, Escola de Comunicao e Artes, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011
This thesis is about the teaching of the flute and others melodic instruments namely winds and strings. Illustrated with studies and etudes, it consists basically of a methodology that seeks not only technical development on the instrument, but also the complete understanding of the musical language and the development of harmonic awareness. With this aim, it proposes a way of practicing based on creativity, improvisation and composition, instead of the repetition of established patterns. Keywords: Flute. Melodic instrument. Creativity. Musical language. Improvisation. Scales. Chords. Performance.
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SUMRIO
APRESENTAO
1
CAPTULO 1
2
1. INTRODUO
2
Experincia e Conhecimento: a vida do artista e do professor como referncia da pesquisa.
1.1 Por um pleno entendimento dos elementos da linguagem musical 4
1.2. Consideraes sobre o trabalho do intrprete 5
1.2.1 O discurso musical, msica e sintaxe - tonalismo 8
1.2.2 A Msica e sua relao com outras reas do conhecimento humano 10
2. CONSIDERAES SOBRE O ENSINO ATUAL DOS INSTRUMENTOS
MELDICOS NO BRASIL
13
2.1 Os anos de formao: a Msica na vida familiar em dilogo com a escola e a sociedade
13
2.2 Aspectos do ensino formal de msica e do instrumento propriamente dito
15
2.2.1 Um olhar histrico mecanicismo x criatividade 17
2.2.2 Ausncia da msica brasileira 21
2.3 Anlise do predomnio da viso sobre a audio e os impactos da especializao
23
2.3.1 Predomnio da viso sobre a audio 24
2.3.2 Impactos da Especializao 25
3. DIFERENCIAIS NA CONSTRUO DE UM APRENDIZADO
CONSISTENTE
28
3.1. Trs aspectos fundamentais na formao de um msico no Brasil 28
3.1.1 Conhecimento dos acordes Consideraes sobre a importncia do conhecimento e do domnio dos acordes pelos instrumentistas meldicos.
28
-
3.1.1.1 A Prtica da Transposio 32
3.1.2 Emprego da improvisao como ferramenta da experimentao 33
3.1.3 Familiaridade com a msica brasileira 37
4. METAS A SEREM ATINGIDAS
38
CAPTULO 2
40
5. DESENVOLVIMENTO REVELANDO O NO REVELADO
40
5.1. Uma Proposta de Estudo
41
6. ELEMENTOS DA LINGUAGEM MUSICAL
43
6.1 Intervalos 44
6.2 Gnesis Escalas primitivas: pentatnicas e modos naturais 50
6.2.1 Escalas Pentatnicas 52
6.2.2 Modos Gregos 55
6.3 Art et Technique de la Sonorit Ampliando o estudo dos intervalos e descobrindo estruturas simtricas
60
6.3.1 Intervalo de 2 menor - escala cromtica 62
6.3.2 Intervalo de 2 maior escalas de tons inteiros 63
6.3.3 Intervalo de 3 menor; um tom e um semitom - acordes diminutos 65
6.3.4 Intervalo de 3 maior, dois tons acordes aumentados 67
6.3.5 Escalas diminutas - octatnicas 69
6.3.6 Escalas hexafnicas - tons inteiros 72
6.4 - Divertimentos Descobertas 74
6.4.1 Intervalo de 4a justa - dois tons e um semitom 82
6.4.2 Intervalo de 4a aumentada o trtono 83
6.4.3 Intervalo de 5a justa 85
6.4.4 Intervalo de 5a aumentada (4 tons) 88
-
6.4.5 Intervalos de 6m e 6M. 89
6.4.6 Intervalos de 7m e 7M. 92
6.4.7 Intervalos de 8J 94
6.5 - Acordes, estrutura e cifragem - Trades Maiores, Menores, Aumentadas e Diminutas. Inverses e encadeamentos
96
6.5.1 Metodologia para o estudo dos acordes cifras: trades, ttrades inverses
97
6.5.2 Trades maiores e menores no crculo das 5as ou 4as. 105
6.5.2.1 Inverses 107
6.5.2.2 Trades em ciclos de 2s, 3s e 4s 109
6.5.3 Acordes de 6a 122
6.5.4 Campo Harmnico 123
6.5.5 Notas meldicas ou notas de adorno; apogiaturas, bordaduras, retardos, antecipaes, escapadas, notas de passagem e notas pedais
128
6.5.6 Acordes de 7a, 9a, 11a e 13a - escalas de acordes 137
Acordes de 7a 143
Acordes de 7a e 9 152
Acordes de 11a 154
Acordes de 13a 156
7. ANLISE HARMNICA DE ALGUNS ESTUDOS CONSAGRADOS
158
8. ENCADEAMENTO HARMNICO. CADNCIAS 162
CAPTULO 3
169
9. PRELDIOS E ESTUDOS DIDTICOS 169
10. CONSIDERAES FINAIS 188
11. REFERNCIAS 190
ANEXO I Publicaes para outros instrumentos meldicos
ANEXO II - CD
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1
APRESENTAO A presente Tese - Estudos Criativos para o Desenvolvimento Harmnico do
Instrumentista Meldico: uma contribuio para a formao do Msico - insere-se no
empenho da Universidade de So Paulo em produzir conhecimentos que possam
contribuir para a melhoria da qualidade da formao cultural, artstica e educacional
da populao brasileira. Tem como foco a formao do instrumentista meldico.
Corporificada na dimenso de um caderno de estudos e composies, consiste
basicamente na elaborao de uma metodologia de ensino que visa ampliar o
conhecimento obtido pelo mtodo convencional. Baseada no estmulo criatividade,
prope um profundo entendimento da linguagem musical e o desenvolvimento da
conscincia harmnica dos instrumentistas meldicos - de sopro e de cordas no
dedilhadas.
Foi desenvolvida a partir de minha experincia como flautista atuante no
Brasil e no exterior e tambm como professor h 25 anos do Departamento de
Msica da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo e em
diversos festivais nacionais e internacionais. Por meio de uma reflexo crtica, esta
tese objetiva focalizar espaos no contemplados pela formao tradicional,
caracterizando-se como pesquisa de linha qualitativa na busca de um conhecimento
que est encarnado em minha prpria vida e enraizado tanto na histria de minha
formao como em meu trabalho de docncia.
No primeiro captulo do trabalho, fazendo uma reflexo sobre os processos
vividos na aprendizagem da linguagem musical pelo instrumentista meldico, optei
pela forma de um relato de experincia na expectativa de contribuir para a formao
terica e prtica do msico brasileiro. Nessa parte contextualizo essa formao,
apresento um panorama introdutrio geral e uma proposta do trabalho, focando trs
aspectos fundamentais para a construo de um caminho de aprendizado
consistente.
No segundo captulo exponho o desenvolvimento da pesquisa, seguindo os
passos metodolgicos que visam contribuir para a formao do msico.
No terceiro captulo, que inclui um CD anexado, so apresentadas as
composies criadas a partir da metodologia proposta, com a finalidade de ilustrar
determinadas estruturas da linguagem musical. E para concluir, as consideraes
finais, as referncias bibliogrficas e os anexos.
-
2
CAPTULO 1
1. INTRODUO
Experincia e Conhecimento: a vida do artista e do professor como referncia da pesquisa.
Esta tese , em grande parte, a formalizao do que venho realizando com
meus alunos nesses 25 anos na Universidade de So Paulo (USP). Fundamenta-se
na vivncia de 40 anos de vida profissional no Brasil, na Frana - pas onde vivi por
quase seis anos - e em cerca de 50 pases em trabalhos com msicas de variadas
vertentes - erudita e popular, tradicional e contempornea - em palcos e estdios de
gravao, em que venho atuando como camerista, solista, msico de orquestra e
eventualmente como ator e produtor musical. Essa trajetria, que inclui minha
atuao como professor, tem me propiciado uma rica convivncia com artistas e
estudantes de diversas culturas, idades e origens. Seja como intrprete ou
professor, ao longo desse percurso tenho enfrentado grandes e diversos desafios,
cuja superao tem me exigido constante aprendizado e reciclagem continuada.
Minha experincia docente diz que o melhor mtodo , sobretudo, flexvel.
Depende da realidade local e humana e construdo a cada aula, junto com cada
aluno, de forma a fortalec-lo em sua identidade e na busca de um caminho para a
expresso musical. Todos esses anos de trabalho vm me trazendo muitas reflexes
e fortalecendo minha convico de que o aprendizado de um instrumento meldico
no Brasil deveria contemplar de forma mais aprofundada certos aspectos da
formao de um msico. Essa convico o motivo desta tese.
Cabe aqui definir que instrumentos meldicos so aqueles que se
caracterizam por tocar apenas uma nota de cada vez. o caso dos instrumentos de
sopro, como flauta, obo, clarineta, fagote e trompa, que no podem tocar duas, trs
ou mais notas simultaneamente, formando acordes1, como fazem o piano, o violo, o
1 Acordes so estruturas nas quais as notas so superpostas e tocadas simultaneamente. Aqui, no me refiro aos multifnicos, grupos de duas a trs notas conseguidos por meio de posies especiais nos instrumentos de sopro e utilizados por compositores a partir da segunda metade do sculo XX. 2 Termo utilizado pelo Mo. Sergio Magnani para designar apogiaturas, retardos, antecipaes,
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3
rgo ou o acordeo. Os instrumentos meldicos tocam as notas dos acordes de
forma arpejada: uma aps a outra.
Tambm podem ser considerados como meldicos os instrumentos de cordas
friccionadas (violino, viola, violoncelo e contrabaixo), apesar de esses instrumentos
eventualmente tocarem mais notas ao mesmo tempo.
Observando os alunos de flauta que ingressam no Departamento de Msica
da USP, vejo que, com rarssimas excees, mesmo aqueles que apresentam um
bom nvel instrumental, no possuem uma compreenso clara da construo dos
acordes. interessante constatar que, mesmo frequentando as aulas de harmonia,
eles ainda tm dificuldade em pensar harmonicamente quando tocam seus
instrumentos. Como veremos adiante, na metodologia de tradio europia a
formao do instrumentista meldico se d de uma maneira que no o leva a ter
uma compreenso dos acordes. Consequentemente tambm lhe passam
despercebidos outros elementos da linguagem musical tonal, como, por exemplo, as
apogiaturas e as outras notas meldicas2.
Paralelamente, percebo tambm a frustrao de muitos msicos por no
conseguirem improvisar e brincar com a msica como o fazem outros msicos to
naturalmente. Identifico-me com eles, pois comigo aconteceu o mesmo, sendo essa
inclusive uma das razes iniciais deste trabalho.
H alguns anos, j depois de ter completado meus estudos formais na Europa
e sendo um concertista internacional bastante respeitado, eu invejava a capacidade
dos msicos populares, sobretudo do jazz e do choro, de improvisar melodias de
uma forma to espontnea, coisa que eu no conseguia fazer. Isso era para mim
motivo de desconforto e frustrao, que gerou um srio questionamento.
Observando o aprendizado de jazzistas e chores, compreendi que sua
requintada acuidade auditiva vem do fato de que grande parte de seu aprendizado
feito tirando msicas de ouvido3, sendo que os jazzistas, alm desse aspecto,
contam com uma vasta bibliografia que estimula a improvisao, fundamentada no
estudo e no entendimento dos acordes. Incorporando esses elementos minha
forma de estudar, consegui, para minha grande alegria, desenvolver-me
2 Termo utilizado pelo Mo. Sergio Magnani para designar apogiaturas, retardos, antecipaes, bordaduras, etc. MAGNANI, 1989. 3 A expresso tirar de ouvido significa aprender a tocar uma msica apenas ouvindo-a, sem que seja necessrio ler a partitura.
-
4
consideravelmente. Hoje, muito embora ainda me considere um aprendiz, tenho sido
convidado a atuar ao lado de alguns dos melhores chores e improvisadores
brasileiros. Como a alegria ainda mais completa quando compartilhada e ciente do
interesse cada vez maior dos jovens no aprendizado da improvisao, pensei em
desenvolver um trabalho didtico que lhes pudesse ser til.
Este trabalho, que agora toma forma, focaliza alguns aspectos que considero
fundamentais da formao de um msico. Acredito que ser de grande valia para os
estudantes que ingressam em nossas universidades e escolas de msica, podendo
ser utilizado com muito proveito nos primeiros anos de faculdade ou mesmo num
eventual curso de preparao para o vestibular.
1.1 Por um pleno entendimento dos elementos da linguagem musical
H alguns anos, por necessidade prpria e inspirado em meus alunos, venho
criando alguns estudos que visam inteira compreenso dos diferentes elementos
da linguagem musical: intervalos, acordes, notas meldicas, os diferentes modos e
suas combinaes.
Compostos em sua maioria por formas tradicionais brasileiras (choros, valsas,
baies), esses estudos pretendem no somente ampliar a conscincia musical dos
alunos, mas tambm estimular sua criatividade. Lidando com aspectos como
percepo auditiva, memorizao, afinao, agilidade de raciocnio e leitura
primeira vista4, objetivam tambm possibilitar ao instrumentista meldico o
desenvolvimento do ouvido harmnico como consequncia do conhecimento dos
acordes e da lgica de seus encadeamentos.
A compreenso desse material e o desenvolvimento dessas habilidades
possibilitam ao estudante um mergulho na linguagem musical e colaboram para o
pleno entendimento e uma execuo aprimorada das obras musicais. Oferecem
ferramentas e vocabulrio propiciatrios para sua autoexpresso, dando-lhe
condies para criar melodias, frases e preldios, para improvisar e escrever sua
prpria msica. Certamente lhe permitiro abordar com mais fundamentos, facilidade
e natural alegria todo o repertrio musical que lhe ser proposto ao longo de seus
estudos.
4 Agora, em vez de nota por nota, pode-se ler acordes na horizontal.
-
5
Tendo em vista que o aprendizado fruto da observao e da
experimentao e que a improvisao uma ferramenta essencial para a
experimentao, acredito que a melhor forma de compreender e incorporar os
elementos da linguagem musical no apenas ler e repetir ad infinitum o que j est
escrito, de uma forma que tende a ser maante, mas estudar de forma criativa e
prazerosa, individualmente e tambm em grupo. Improvisar e compor com o mesmo
material, ou seja, estudar de uma maneira que no seja baseada somente na
repetio, e sim na criao de contedo, o melhor caminho para atingir tal objetivo.
Concordo plenamente com o clebre professor russo, o pianista Heinrich
Neuhaus (1971, p.26), quando diz: La base la plus solide pour ne pas dire unique
de la connaissance, surtout pour celui qui se destine lart, est celle que lon acquiert
par ces propres moyens et par sa propre exprience 5.
Dessa forma, postulo que possvel, aconselhvel e proveitoso desenvolver
no instrumento no somente todos os aspectos da tcnica instrumental, como
propem os mtodos tradicionais, mas ao mesmo tempo estudar de forma
consciente alm de ler, compreender - os elementos da linguagem musical. Alis,
o pleno entendimento desses elementos a base que possibilita o estudo da
harmonia, do contraponto, da anlise e da composio.
Penso tambm que possvel e extremamente benfico para o
desenvolvimento humano e artstico do estudante contextualizar historicamente o
desenvolvimento da linguagem musical e relacionar o estudo da msica com outras
reas do conhecimento humano.
1.2. Consideraes sobre o trabalho do intrprete.
Em 1976, aps a concluso de meus estudos na cole Normale de Musique
de Paris, participei de uma masterclass na Inglaterra sob a orientao de Sir James
Galway, que viria a ser meu grande mestre. Toquei a Piece para flauta solo, de J.
Ibert. J.Galway, que j me conhecia do ano anterior, ento me disse: Muito bem,
Antonio, vejo que voc aprendeu todos os segredos e requintes da tcnica e da
5 A base mais slida para no dizer a nica do conhecimento, sobretudo para o artista em formao, aquela adquirida por seus prprios meios e sua prpria experincia ( traduo nossa).
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escola francesa de flauta. Mas isso no me interessa nem um pouco; o que quero
que voc toque essa msica novamente, mas agora me diga quem voc .
Essa aula afetou profundamente minha relao com a flauta e com a msica.
Galway me lembrou o poeta portugus Fernando Pessoa (1972, p.164) em sua
persona Alberto Caieiro: O poeta um fingidor. Finge to completamente que finge
ser dor a dor que deveras sente.
Percebi que, como o poeta e o ator, que interpretam pensamentos de
diferentes pocas e estilos, o intrprete musical tambm pode contar a sua prpria
verdade tocando a msica de outro compositor.
O estudo de um instrumento musical pode abrir perspectivas imensas. Alm
de nos colocar em contato com vrios sculos de produo musical, que inclui o
pensamento de gnios como J. S. Bach, W.A.Mozart, L.V. Beethoven, H.Villa-Lobos
e seus contemporneos pintores, escultores, arquitetos, escritores e filsofos,
desvelando-nos a histria da humanidade, pode nos revelar muito sobre ns
mesmos. ainda um exerccio de autoexpresso, pois por meio da msica
conseguimos expressar aquilo que no possvel transmitir com palavras.
A msica mexe com nossa memria afetiva e nos pe em contato com
nossos sentimentos e fantasmas, nossas fantasias, regies profundas de nosso ser.
A busca da beleza, do estilo e do equilbrio, ao mesmo tempo em que desenvolve
nosso senso esttico e aprimora nossa capacidade de pensar, conduz-nos auto-
observao, movimenta-nos em direo do autoconhecimento.
O som pode ser a ponte para um estado de encantamento, para uma outra
dimenso. Assim, a msica, curiosamente, ao mesmo tempo em que nos revela o
mundo exterior, nos faz perscrutar nosso mundo interior. linguagem de grande
poder, mgica, potica; pode nos tocar profundamente, transportar-nos para
diferentes estados dalma, criando um silncio interno que nos permite ouvir nossas
vozes interiores. Pode nos colocar em contato com conflitos internos e por vezes
abrir comportas e libertar emoes represadas, tanto do intrprete como do ouvinte.
Diz o pianista e maestro Daniel Baremboim (2009,p.125):
O poder da msica reside em sua capacidade de se comunicar com todos os aspectos do ser humano o animal, o emocional, o intelectual e o espiritual. Com muita frequncia, pensamos que as questes pessoais, sociais e polticas so independentes, sem influir umas nas outras. Pela msica, aprendemos que essa uma impossibilidade objetiva; simplesmente
-
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no existem elementos independentes. O pensamento lgico e as emoes intuitivas devem estar constantemente unidos. A msica nos ensina, em resumo, que tudo est ligado.
O som que sai da flauta , por assim dizer, um espelho do ser interior do
flautista. O instrumentista trabalha, burila o som de seu instrumento como um
escultor, diuturnamente, anos a fio, durante toda a vida, como quem trabalha a
prpria alma. Arteso e artfice, molda-o de forma a ser capaz de adapt-lo a cada
obra, a cada formao instrumental, e tambm de pronunciar adequadamente cada
nota, cada slaba, cada frase e cada perodo, dando sentido e vida ao texto musical
para torn-lo inteligvel e capaz de atingir o corao e a mente do ouvinte.
Isso pode ser reafirmado no pensamento do lder sufi, Vilayat Inayat Khan:
Trabalhe com o som at ficar surpreso pelo fato de o estar produzindo e surpreso
pelo fato de ser exatamente voc o instrumento atravs do qual o divino flautista
forma seu sons. (KHAN apud BERENDT,1983, p.47).
Essa sensao, difcil de ser descrita em palavras, maravilhosa e rara, mas
acontece. como se no estivssemos tocando, mas sendo tocados ou sendo a
prpria msica.
interessante observar o fato de que em ingls se diz to practise, praticar,
para se referir ao estudo do instrumento musical. Em portugus, diz-se estudar; em
francs, travailler, trabalhar. To play un instrument - jouer un instrument tocar um
instrumento. Os verbos play e jouer tambm podem significar jogar, brincar.
Refletir sobre os significados dessas palavras pode ampliar nossa viso do
que pode ser o estudo de um instrumento musical, mostrando-nos diferentes
enfoques a respeito da mesma prtica. Dependendo de nossa atitude, ela pode ser
agradvel ou maante, inspiradora ou montona, criativa ou repetitiva, mas, parte
fundamental e indispensvel ao desenvolvimento do instrumentista, deve ser diria e
persistente.
Podemos fazer um paralelo entre a prtica do intrprete e aquela do yogue,
como diz o mestre Kuut Hume:
(...) Teus exerccios, pratica-os diariamente com a seriedade de um ritual e com a inflexibilidade e o zelo de um genuno artista interessado em produzir uma obra genial. A obra genial s tu mesmo, e o artista, tambm. (apud HERMGENES, 2008, p.7).
-
8
1.2.1 O discurso musical, msica e sintaxe - tonalismo
O discurso musical construdo numa lgica que lhe d equilbrio formal e
esttico. Porm, nem a msica de gnios como J.S. Bach, W.A.Mozart ou L.V.
Beethoven resiste a um mau intrprete, que pode deform-la, fazendo com que ela
perca a essncia e o interesse. A partitura musical que vai ser interpretada,
traduzida, um texto sem palavras e, portanto, de contedo subjetivo, cujas
sutilezas e ambiguidades precisam ser muito bem compreendidas para serem bem
enunciadas. Essa compreenso dever do intrprete, que atua como um orador, um
contador de histrias; a profundidade e a inteligncia de sua interpretao
dependem de seu conhecimento da linguagem musical utilizada pelo compositor.
A esse respeito, diz o professor Sergio Magnani (MAGNANI,1989,p.75):
[...] Como toda linguagem, a msica possui uma morfologia, uma
sintaxe e uma fraseologia. Embora no seja indispensvel o
conhecimento da linguagem para a captao da mensagem esttica
musical, pois a msica comunica-se atravs do ritmo das suas
tenses, tal conhecimento amplia a compreenso das informaes
estticas.
Uma grande revoluo na histria da linguagem musical foi o nascimento do
sistema tonal. Situando-o historicamente, pode-se dizer que a transio gradual do
modalismo para o tonalismo aconteceu ao mesmo tempo em que ocorreu a
transformao do sistema feudal para capitalista. Consolidou-se paulatinamente na
Europa ao longo dos sculos XVI, XVII e XVIII.
Segundo Wisnik (1989.p.118), da renascena para o barroco a msica no se
contentou em ser um cdigo de carter polifnico, mas mostrou-se uma verdadeira
linguagem dos afetos, um discurso das emoes. A msica de J.S.Bach sintetiza o
cdigo musical, histrica e estruturalmente. Em suas obras convivem polifonia e
linha acompanhada, resoluo horizontal e vertical das tenses sonoras, as duas
dimenses investidas num mesmo projeto discursivo. Isso s foi possvel graas ao
advento e ao acabamento do sistema tonal praticado com todo o luxo polifnico que
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remonta s suas origens, isto , quele longo processo por meio do qual o tonalismo
foi desentranhado dos desdobramentos do modalismo medieval.
Ao comparar a sintaxe das linguagens faladas e escritas com aquela da
linguagem musical tonal, Magnani (1989, p. 93) diz que o acorde de tnica tem uma
funo de substantivo, equivalente do sujeito, atuando como um centro propulsor
de onde partem as aes. Essas aes, que desencadeiam um caminho de tenses
e repousos, irradiam-se para os outros acordes, cuja hierarquia funcional pode ser
comparada dos verbos e demais complementos da linguagem. Dessa forma, no
sistema tonal, cada acorde, que em si um puro fonema, adquire valor sinttico
dentro da frase, representando uma etapa no itinerrio da tenso.
Ainda a respeito do tonalismo, diz Jos Miguel Wisnik (1989, p.105 e 107):
Na segunda metade do sculo XVIII e comeo do sculo XIX, poca do estilo clssico que vai de Haydn a Beethoven, o tonalismo vigora em seu ponto de mximo equilbrio balanceado (no contexto da msica erudita), passando em seguida por uma espcie de saturao e adensamento, que o levam desagregao afirmada programaticamente nas primeiras dcadas do sculo XX. Nesse arco histrico, que inclui a afirmao e a negao do sistema, a linguagem musical contracanta, maneira polifnica, com aquilo que se costuma entender, em seu sentido mais amplo, por modernidade. [...] A grande histria da tonalidade, , assim, a histria da modernidade em suas duas acentuaes: a constituio de uma linguagem capaz de representar o mundo atravs da profundidade e do movimento, da perspectiva e da trama dialtica, assim como a conscincia crtica que questiona os fundamentos dessa mesma linguagem e que pe em cheque a representao que ela constri e seus expedientes. Esse movimento pode ser acompanhado ao longo da sua brilhante histria, que , sem dvida, um dos pontos mais altos daquilo que chamamos Ocidente.
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1.2.2 A Msica e sua relao com outras reas do conhecimento humano
Nos anos 70, vivendo em Paris, assisti no auditrio da Maison de la Radio a
uma srie de aulas pblicas ministradas pelo Prof. Franz Brggen, lendrio flautista
holands, um dos primeiros mestres da interpretao historicamente orientada. Alm
de mostrar seu profundo conhecimento da linguagem e dos diferentes estilos do
perodo barroco, nessas aulas ele enfatizava a importncia da cultura geral e de
uma vida rica em experincias para o trabalho de um msico. Dava a esses
aspectos tanta relevncia quanto necessidade de vrias horas de estudo dirio do
instrumento. A pedagoga Violeta de Gainza costuma dizer que "a msica s vale a
pena se for uma janela para a vida".
O universo musical pode ser apresentado ao aluno de diferentes maneiras.
Pode ser abordado de forma essencialmente tcnica ou ento de modo a estimular a
curiosidade e a reflexo sobre diversos aspectos da existncia, como a histria do
homem e das leis que regem o universo, de forma a ampliar nosso entendimento
sobre importantes questes atuais e da nossa vida cotidiana. A relao da Msica
com outras artes e reas do conhecimento e da especulao humana, como
Matemtica, Arquitetura, Fsica, Medicina, Religio, Astronomia, Geografia, Dana,
Psicologia, Literatura, Filosofia, Meditao, Histria, Sociologia e Poltica, abre
amplos horizontes. Por isso mesmo seria muito benfico que o estudo da msica
fosse incorporado ao currculo escolar desde o ensino bsico.
Ao longo da histria vrios povos vm estudando as propriedades do som.
Como lembra Wisnik (op.cit, p.55 e 56) - e a podemos atentar para o fato de o
mundo grego estar na base de toda a civilizao do ocidente -, a descoberta por
Pitgoras da ordem numrica inerente aos intervalos musicais teve largas
consequncias para a edificao da metafsica ocidental. A analogia entre a
sensao do som e sua numerologia implcita contribuiu para a formulao de um
universo constitudo de esferas analgicas, de escalas de correspondncia em todas
as ordens, que se estende para as relaes entre som, nmeros e astros. Da veio a
ideia fascinante de uma msica das esferas, ou seja, a possibilidade de que as
relaes entre os astros seriam correspondentes escala musical e que o cosmos
tocaria msica inteligvel, mesmo que fora da nossa faixa de escuta.
O chamado quadrivium medieval europeu manteve as disciplinas j citadas
por Plato (Aritmtica, Geometria, Msica e Astrologia) como sendo bsicas para o
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conhecimento do universo. Nessa e em outras pocas - no somente na Europa,
mas tambm no Oriente -, conhecia-se a importncia dos valores transmitidos pela
msica, considerada assunto religioso e moral. Era, portanto, supervisionada pelo
Estado.
Hoje, em diversos pases do ocidente, inclusive no Brasil, sua difuso nas
rdios, televises e lojas controlada e determinada por algumas poucas
corporaes multinacionais. Ser isso uma evidncia de que essas corporaes
substituram os antigos Estados e, apagando a memria musical desses pases,
esto impondo uma nova cultura?
Em relao s transformaes dos costumes e valores no Brasil,
interessante verificar que o maxixe era considerado imoral, sendo execrado pela
sociedade carioca no comeo do sculo XX e, hoje, no mesmo Rio de Janeiro,
predomina o baile Funk, cuja msica largamente difundida pelas rdios e TVs.
A arte parte importante da histria; de certa forma a explica e tambm
explicada por ela. Por isso, revelador observar a contemporaneidade de W.A.Mozart e J. Haydn com a revoluo francesa, influenciada pelos ideais do
iluminismo e da independncia americana (1776). igualmente interessante atentar
para a contemporaneidade de L.V.Beethoven com a poltica expansionista do
Imprio Francs sob o comando de Napoleo Bonaparte. Criadores do sculo XX,
como Villa-Lobos, Bela Bartok, Stravinsky, Oscar Niemeyer e Pablo Picasso viveram
as duas grandes guerras mundiais, a guerra civil espanhola e a revoluo socialista
sovitica; isso certamente influenciou o trabalho deles. A Geografia e a Histria nos
permitem situar e perceber a inter-relao entre a msica de S. Prokofieff, o cinema
de S.Eisentein e a poesia de V.Maiakovsky.
Da mesma forma, o conhecimento do movimento modernista, especialmente
do pensamento do escritor Mario de Andrade, fornece fundamentos para o trabalho
de um intrprete da msica de Camargo Guarnieri e das obras de seus
contemporneos pintores, msicos e escritores.
Perceber a contemporaneidade do momento da criao do Conservatrio de
Paris (1795) com a Revoluo Industrial e conhecer as idias vigentes nesse
momento histrico favorece, por exemplo, o entendimento da pedagogia de seus
professores, cuja influncia se espalhou por tantos pases, inclusive o Brasil, onde
se faz presente ainda hoje.
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Finalizando, eu diria que todos esses e ainda outros assuntos e reflexes
podem e devem mesmo fazer parte do universo do msico, do professor e do
intrprete, dando-lhes fundamentos para seus ofcios, uma viso histrica e um olhar
amplo e crtico do mundo em que vivem e trabalham.
Mas isso nem sempre acontece.
Dependendo da formao de seus professores, dos mtodos e das escolas
em que estudou, um msico pode perfeitamente ser competente em seu ofcio e at
mesmo um grande especialista, j que foi bem treinado para isso, mas ainda assim
um msico limitado, preparado para somente um tipo de trabalho, e uma pessoa de
horizontes estreitos.
Obviamente o contato pessoal com um professor decisivo e pode tanto
ampliar como embotar a viso de mundo do aluno, mas, de qualquer forma, um
mtodo escrito tambm pode despertar nele a curiosidade, o interesse e a
capacidade para perceber o inter-relacionamento entre os diferentes assuntos.
Como o aprendizado de um instrumento musical exige uma disciplina de
muitas horas de prtica diria e costuma ter incio ainda na infncia ou na juventude,
perodos decisivos na formao de um ser humano, importantssimo que essa
pessoa em formao possa desenvolver ao mximo a criatividade e que tambm
seja estimulada a vislumbrar um horizonte mais amplo possvel.
Nesse contexto se insere este trabalho, cujo objetivo contribuir para a
formao de um msico criativo, capaz de se expressar plenamente, preparado para
atuar no Brasil e em qualquer parte do mundo. De um artista que se perceba como
parte de um grande todo, ciente da importncia de buscar fundamentos histricos e
de cultura geral que lhe permitam analisar criticamente o momento presente para
melhor se posicionar e trabalhar como agente da histria na direo de um futuro de
acordo com seus ideais.
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2. CONSIDERAES SOBRE O ENSINO ATUAL DOS INSTRUMENTOS MELDICOS NO BRASIL
Tecer um amplo panorama do ensino da Msica no Brasil transcenderia os
objetivos deste trabalho. Assim, tratarei somente do ensino dos instrumentos
meldicos, tendo como referncia minha formao, a de meus pares e a dos alunos
com quem tenho trabalhado.
2.1 Os anos de formao: a Msica na vida familiar em dilogo com a escola e a sociedade
O artista no um tipo especial de pessoa, mas toda pessoa um tipo especial de artista.
Dourado,1998, p.5.
Os primeiros contatos com a msica, e esse um dado fundamental no
processo de musicalizao, podem acontecer na famlia, por meio do rdio, da
televiso, da Internet, da escola ou dos integrantes da comunidade a que pertence a
criana.
A concepo de formao atrelada idia de cidadania cultural, ou seja, do
direito de cada criana e de cada indivduo ao acervo cultural acumulado na
sociedade requisito para a formao humana plena. Infelizmente, no Brasil esse
um desafio em todas as reas da cultura e da educao, entre elas a Msica.
No final dos anos 60, a Msica, juntamente com outras disciplinas, como o
latim e o francs, foi retirada do currculo das escolas de Ensino Fundamental e de
Ensino Mdio. Assim, para compreender a formao e a referncia musical da
maioria da populao brasileira nos dias de hoje - incluindo-se a cidados de todas
as classes sociais, inclusive dirigentes polticos, elite econmica, professores de
todos os nveis e especificamente nossos futuros alunos - necessrio atentar para
a programao musical das emissoras de rdio e TV.
H algumas dcadas, essa programao ainda era definida por diretores
artsticos e com critrios artsticos. Atualmente, ela determinada pelas grandes
gravadoras e com critrios exclusivamente comerciais. As rdios so pagas para
tocar as msicas que essas gravadoras determinam - prtica que tem o nome de
jabacul ou jab. Como conseqncia, ouve-se, na massacrante maioria das
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rdios e TVs brasileiras, quase que to somente a chamada msica de consumo,
descartvel e sem valor artstico. A msica inteligente, msica como arte, seja ela
erudita ou popular, brasileira ou de outra origem, escutada apenas em rdios
universitrias ou estatais, como a Cultura FM de So Paulo e a MEC do Rio de
Janeiro.
Apesar de atualmente existirem iniciativas de criminalizao do jab, ele
ainda prevalece e pode ser entendido como uma verdadeira tentativa de genocdio
cultural, que gera o empobrecimento, fecha horizontes, tira, rouba das novas
geraes brasileiras o que lhe de direito: sua memria e seu patrimnio cultural.
Ele interrompe, corta o elo de transmisso da cultura.
Consequentemente, as novas geraes no conhecem nem a msica de seus
ancestrais nascidos no sculo XIX, como Henrique Alves de Mesquita, Ernesto
Nazareth, Henrique Oswald, Carlos Gomes e Heitor Villa-Lobos, nem a de seus
contemporneos, como Hermeto Pascoal, Guinga, Egberto Gismonti, Aylton
Escobar, Ronaldo Miranda ou Fernando Iazzetta, que pensam a msica como
expresso inteligente do esprito humano. Isso certamente significa uma perda
enorme, impossvel de avaliar.
Essa situao se insere num contexto mundial, no qual necessria, urgente
e possvel uma mudana de paradigmas para que seja vivel a sobrevivncia da
espcie humana. O planeta continua dominado pelos interesses econmicos de uma
minoria e por uma ideologia em que no h espao para valores de ordem moral; o
que importa o lucro: tudo se vende, tudo se compra. Na lgica monetria do
mercado, tudo passa a ser tratado como mercadoria, inclusive a msica (como
vimos), os medicamentos e a educao. Como consequncia desse quadro,
multiplicam-se aes destruidoras do meio ambiente, que inclui indefesas
populaes locais e povos da floresta. No por acaso a violncia assume nveis
assustadores, sobretudo entre os jovens.
Uma mudana nesse cenrio somente seria possvel com uma j prevista
catstrofe planetria ou com mudanas drsticas na educao.
J h algumas dcadas praticamente abandonada pelo Estado, a educao
pblica (responsvel pela formao da grande maioria de nossas crianas e
adolescentes) em pases como o Brasil, atingiu um nvel lamentvel. Na formao de
nossas crianas (e de seus jovens pais), a escola e as antigas brincadeiras de roda
foram substitudas pela televiso, com as consequncias que isso representa. Para
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se avaliar minimamente o que isso significa, necessrio atentar para o fato de que
uma criana brasileira passa em mdia 4 horas, 50 minutos e 11 segundos por dia
assistindo programao televisiva6 e que o programa de maior audincia da TV
brasileira o famigerado Big Brother, assistido por pais e filhos.
Se existe uma preocupao com a educao da parte dos detentores do
poder econmico, pelo fato de que os trabalhadores precisam estar minimamente
qualificados e treinados para produzirem mais e melhor, gerando mais lucro para
suas empresas. Nada muito diferente do pensamento escravagista que aportou em
nossas terras h mais de quinhentos anos.
2.2 Aspectos do ensino formal de msica e do instrumento propriamente dito
O estudo de um instrumento, que geralmente acontece numa escola de
Msica, pode tambm principiar numa famlia de pais msicos, na banda da cidade
ou na igreja. Normalmente, em qualquer dessas instncias, ele feito por meio de
um livro, intitulado Mtodo Completo para Flauta (ou outro instrumento), aquele no
qual o professor estudou e que foi geralmente escrito por algum autor francs,
italiano ou alemo. Em sua maioria, essas publicaes foram editadas entre a
segunda metade do sculo XIX e a primeira metade do sculo XX.
Alm de revisitar os vrios mtodos e dezenas de cadernos de estudos para
flauta que j conhecia, pesquisei para este trabalho publicaes semelhantes7
concebidas para obo, clarineta, trompete, trompa, violino e violoncelo. Algumas das
mais consagradas e utilizadas pelos professores da maioria de nossas escolas.
Existem muitas semelhanas entre esses mtodos e estudos, e a maioria parece
seguir um mesmo modelo.
Alguns desses trabalhos so valiosos, como os de Hyacinthe Klos (clarineta)
- Mthode Complete pour la Clarinette, (Ed. Musicales Alphonse Leduc, Paris
1845); os de Marcel Moyse (flauta) - trabalhos didticos compostos entre os anos de
1921 e 1935 e agrupados numa srie de nome Enseignement Complet de la Flute e
publicados por Editions Leduc, Paris; e o de Oscar Franz (trompa) - Complete
Theoretical and Practical Horn Method (1880). 6 Painel Nacional de Televisores, IBOPE 2007. 7 A relao desss publicaes consta do anexo I.
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Esses mestres produziram trabalhos amplos e profundos que fundamentaram
a formao de excelentes msicos. Quase todos abordam os diferentes aspectos da
tcnica instrumental, como, no caso dos instrumentos de sopro, embocadura,
respirao, emisso de som, articulao, golpes de lngua, flexibilidade dos lbios,
variaes de dinmica, sonoridade, agilidade de leitura e de dedos, resistncia,
diferentes aspectos mecnicos e atributos fsicos, todos fundamentais na formao
de um bom instrumentista.
Porm, apesar de grandes virtudes, mesmo os melhores desses mtodos
apresentam, a meu ver, lacunas importantes. Essa observao vale tambm para
estudos elaborados por autores da atualidade, como o de Peter Lucas Graf8.
A primeira dessas lacunas a falta de estmulo criatividade. No h espao
para a experimentao, para a improvisao, para a pesquisa de outras formas de
lidar com o material a ser estudado. Prope-se uma forma de estudar engessada,
cristalizada, baseada na repetio.
A segunda lacuna diz respeito ao estudo dos acordes, que raramente
ultrapassa o nvel bsico e que, da forma como proposto, no nos leva a um
entendimento da estrutura desses elementos da linguagem musical. Ser que os
autores desses mtodos acreditam que esse estudo deva ocorrer somente nas aulas
especficas de harmonia?
A busca de uma explicao histrica para essas lacunas pode nos levar a
perceber que existe uma interligao entre elas.
8 GRAF, P. Check-Up: 20 estudos bsicos para flautistas. Mainz, Alemanha: Schott, 2001. Peter
Lucas Graff, excelente flautista, foi durante muitos anos professor no Conservatrio de Basilia, Sua.
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2.2.1 Um olhar histrico mecanicismo x criatividade
Tudo o que no se renova, que no contribui para a inovao do pensar, da sensibilidade e da conscincia, torna-se contraproducente9 (2001,p.46).
H.J. Koellreutter
Tudo indica que a pedagogia dos autores dos mtodos que vm sendo
utilizados em nossas escolas fruto da mentalidade mecanicista gerada pela
revoluo industrial. Como verificaremos, essa concepo de educao musical
representa uma ruptura em relao quela existente anteriormente, sendo
decorrncia de uma nova forma de entender o mundo. A Revoluo Francesa de
1789 e a mecanizao crescente e acelerada da Europa ocidental no sculo XIX
geraram uma nova estrutura social e um novo modo de ver o mundo que se
estendeu a todas as reas do conhecimento humano. O universo e tambm o
prprio homem passaram a ser vistos como mquinas. Como consequncia dessa
viso, a prtica dos msicos tambm foi afetada.
O exerccio da criatividade e o conhecimento dos acordes e de outros
elementos da linguagem musical - fundamentais para o trabalho de compositores e
regentes -, que faziam parte da formao de qualquer msico instrumentista no
sculo XVIII, tornaram-se desnecessrios para o ofcio do instrumentista dos novos
tempos, notadamente aquele que tocaria em uma orquestra e que seria um
especialista, responsvel apenas por um aspecto da produo. Numa linha de
montagem da msica, sua funo equivaleria de um tcnico ou de um
trabalhador braal.
Nos mtodos do sculo XIX (utilizados em nossas escolas) surgem os
chamados exerccios de mecanismo e os exerccios dirios exercices
journaliers, daily exercices, tglishe bngen que trazem passagens padronizadas
para serem repetidas a cada dia. Esses exerccios, que continuaram presentes nos
mtodos editados no sculo XX e, no por acaso, so algumas vezes chamados de
exerccios de automatismo, ainda constituem a base da construo da tcnica do
instrumentista.
9 BRITO, T. A. de. Koellreutter educador: O humano como objetivo da educao musical. So Paulo: Peirpolis, 2001.
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A respeito dessa transformao, na qual a criatividade que se traduzia na
composio de preldios foi substituda pelos chamados exerccios de mecanismo,
diz a Profa. Laura Rnai (2008, p.111):
Num sculo que descobre a industrializao, se encanta com as mquinas e prepara o surgimento das linhas de montagem, parece natural imaginar que no estudo do mecanismo pode-se encontrar a frmula mgica da fabricao de um msico. Assim como o exerccio fsico regular aprimora o atleta, a repetio de passagens padro que ir aprimorar o msico.
Sobre os chamados estudos ou exerccios de mecanismo, a autora Nancy
Toff, (1985, p.116, p.127) tambm comenta:
claro que voc deve tocar os exerccios com articulaes compostas ou misturas de ligaduras e ataques. Variar a articulao tambm ajuda a aliviar a monotonia desses treinos importantssimos, mas reconhecidamente no muito musicais. (...) Lembre-se de que o estudo do msico no l muito diferente daquele do atleta: seu objetivo desenvolver habilidades musculares e agilidade. , antes de mais nada, um processo de aprendizado fsico e, convenhamos, no necessariamente um desafio intelectual. Em seus estgios bsicos, o estudo no um processo criativo, mas o estudo lhe fornecer as ferramentas para ser criativo.
Concordo com Toff quando ela diz que a prtica do msico tem um lado
semelhante ao do treinamento do atleta: dirio e de treinamento muscular. Porm,
discordo quando ela diz que o estudo no necessariamente um desafio intelectual.
Os ditos exerccios so elaborados sobre escalas, intervalos e acordes, elementos
da linguagem musical que, alm de dominados pelos dedos do aluno, poderiam
perfeitamente ser compreendidos por seu intelecto e tocados de forma mais musical
e menos mecnica. Isso aconteceria se fossem explicados e trabalhados de uma
forma criativa, mais artstica, que quebrasse a monotonia e que estimulasse um
pouco mais o uso do raciocnio e da sensibilidade.
A respeito da criatividade, diz o compositor Ernst Widmer (Dourado, 1998,
prefcio):
Potencialidade inata, a criatividade frequentemente incompreendida, esquecida e at oprimida no processo educacional. (...) Muitos educadores no sabem como proceder, seja por terem
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desaprendido a serem criativos, seja por no encontrarem meios didticos apropriados.
Os exerccios de mecanismo, que surgem justamente no momento em que se
abandona a prtica da improvisao e composio de preldios e o conhecimento
da harmonia (necessrio para a improvisao), visam principalmente desenvolver a
agilidade de dedos e de leitura, no o entendimento da linguagem, a conscincia
auditiva e a criatividade.
Citando Rnai (2008, p.111):
Parece-nos at mesmo desnecessrio afirmar que estudos repetitivos de mecnica so imprescindveis a uma boa formao musical. Por isso, uma surpresa constatar que eles no faziam parte da rotina do estudante de msica at o meio do sculo XIX. Nenhum mtodo barroco sugere, de modo inequvoco, que se empreenda esse tipo de trabalho.
A respeito do aprendizado do msico do perodo barroco, indispensvel
citar a publicao LArt de Preluder sur la Flute Traversiere, escrita em 1707 por
Jacques-Martin Hotteterre [le Romain], na qual o flautista e compositor francs
apresenta princpios de como compor preldios que devem ser realizados na hora,
sem qualquer preparo prvio - os chamados preludes de caprice. Alis, improvisar
um preldio10 antes da execuo de uma pea, de forma a se acostumar com a
tonalidade e o esprito da msica a ser tocada, era uma prtica comum no sculo
XVIII e que foi pouco a pouco se perdendo.
Sobre essa questo, Rnai diz que no sculo XVIII o hbito de preludiar era
to difundido que comear uma pea sem um preldio seria considerado estranho.
Um flautista era julgado e avaliado por sua capacidade de preludiar com
criatividade (op.cit, p.229). Autores daquela poca, como Vanderhagen, por
exemplo, recomendavam ao aluno minimamente tocar escalas e arpejos, caso
encontrasse dificuldade para inventar um preldio, pois isso ainda seria melhor do
que nada.
10 Sero esses preldios uma herana dos Alap orientais, que so praticamente obrigatrios na msica na India e no mundo rabe, em que se apresenta e se brinca com os elementos que faro parte da pea "principal" : o maqam, ou o raga?
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No final do sculo XVIII os compositores passaram a escrever todas as notas,
inclusive as dos instrumentos de teclados (cravo ou pianoforte), que antes se
incumbiam da realizao da harmonia indicada por um baixo cifrado.
Assim, cada vez menos se exigia do msico um conhecimento mais amplo de
msica e grande parte dos msicos limitou-se a ler exatamente a partitura, deixando
de desenvolver outros aspectos do pensar e fazer msica.
Certamente as mudanas ocorridas no ensino da Msica foram influenciadas
pelas mudanas da prtica da msica nesse momento da histria europia.
Segundo o Prof. Sergio Magnani (op.cit, p.102), no final do sculo XVIII, com
a ascenso da burguesia ao poder, antes dividido entre o clero e a nobreza, a
msica deixou de ter um carter palaciano-religioso para se tornar um bem de
consumo de domnio pblico. As editoras difundiam as obras, e os compositores
sabiam que poderiam ser interpretados por pessoas sem vivncia alguma do
ambiente em que as msicas haviam sido compostas. Da a preocupao com a
exatido grfica.
Expressando seu ponto de vista em relao s consequncias de uma forma
de estudar que privilegia os repetitivos estudos de mecanismo, Rnai diz (p.cit.
p.128):
O aluno se transforma numa mera mquina que reproduz gestos quase que ininterruptamente, mas que nem mesmo precisa realizar as transposies necessrias a cada nova passagem. Isso se coaduna com a tendncia cada vez mais acentuada de aumentar a importncia do compositor em detrimento da do intrprete. A este cabe obedecer s instrues escritas, sem protestar nem pensar. Ao compositor dada a certeza de ter no intrprete uma azeitada mquina de tocar, capaz de executar qualquer passagem, por mais difcil que esta seja.
Eu acrescentaria que essa mquina de tocar, que no pensa nem protesta
(sic), funcionaria, sobretudo, a partir de um reflexo imediato da leitura da partitura.
No difcil perceber que os mtodos utilizados em nossas escolas,
imbudos de uma concepo mecanicista, visam mais ao treinamento de mo de
obra especializada do que formao integral do indivduo e ao pleno
desenvolvimento de seu potencial humano e artstico, como seria de se desejar.
importante observar, porm, que as formas de aprendizado meramente
reprodutivas no so uma inveno do mundo moderno. Pode-se constatar sua
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existncia para os msicos de orquestra Gagaku, no Japo; num Gamelan, de Bali;
ou mesmo nos mosteiros da Europa Medieval, nos quais o monge demorava cerca
de 9 anos para decorar o bsico do repertrio eclesistico.
Da mesma maneira, necessrio ressaltar que a repetio necessria, pois
sem ela o aprendizado de um instrumento musical no se realiza. Mas ela deve ser
criativa, a exemplo do que acontece na natureza, onde todo dia o sol se levanta,
toda tarde ele se pe, mas cada dia nico, diferente do anterior.
2.2.2 Ausncia da msica brasileira
A msica popular brasileira a mais completa, mais totalmente nacional, mais forte
criao de nossa raa at agora.
Mario de Andrade - Ensaio Sobre Msica Brasileira
Concluindo um diagnstico sobre o ensino atual de um instrumento meldico
no Brasil, observo que existe uma terceira e importante lacuna na formao de
nossos estudantes: a nfima presena da msica brasileira, clssica e popular.
O fato que a maioria, se no a totalidade, dos nossos professores baseia
seu ensino em mtodos europeus. Provavelmente pelo seu desconhecimento da
msica brasileira, que gera o preconceito, tendem a discrimin-la e subestim-la,
sobretudo a tradicional, folclrica e popular. No percebem sua riqueza e a enorme
importncia que ela pode ter num projeto pedaggico e de construo de uma
identidade.
curioso observar que nossos professores, vivendo num pas de cultura
musical riqussima e forte, possam desprez-la. Ser isso reflexo de uma
mentalidade colonizada, que considera a cultura da metrpole superior do pas
colonizado, o chamado complexo de vira-lata detectado pelo dramaturgo Nelson
Rodrigues?
Naturalmente esse descaso pela msica brasileira e a falta de percepo de
sua riqueza tm tambm uma explicao histrica.
Nesses 500 anos de histria do Brasil, nossa cultura popular sempre foi
menosprezada, quando no reprimida. A grande maioria da populao brasileira
sempre foi explorada, escravizada, manipulada, utilizada como massa de manobra
pelos poucos detentores do poder econmico.
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Os cultos religiosos afro-brasileiros, com sua grande complexidade e riqueza
rtmica, assim como a capoeira, hoje presente em quase duzentos pases e
considerada a arte marcial da paz, foram, na maior parte da nossa histria,
manifestaes culturais proibidas por lei e reprimidas pela polcia.
Manifestaes musicais populares, como o jongo, as danas de umbigada, o
lundu, os maracatus e congados tambm sempre foram discriminados e malvistos
pela elite econmica e letrada. Hoje tambm o so, inclusive pelas novas seitas
pentecostais, que esto se proliferando rapidamente e causando o desaparecimento
dos tradicionais grupos de reisados, congados, maracatus e folias, chamados por
elas de macumba.
Conforme presenciei no bairro do Rio Escuro, municpio de Ubatuba, o
cancioneiro tradicional (Noel Rosa, Luiz Gonzaga, Ari Barroso, Dorival Caymmi,
Pixinguinha e muitos outros) vem sendo substitudo por hinos de esttica pop
compostos pelos novos pastores e gravados em CDs, vendidos facilmente aos fiis.
Em Recife, conheci o famoso mestre Salustiano, do Maracatu Piaba de
Ouro, que, convertido a uma dessas novas seitas, deixou de exercer seu cargo.
Felizmente o retomou depois de um tempo. Tem-se a impresso de que uma
verdadeira lavagem cerebral est ocorrendo, visando acabar com as referncias
culturais brasileiras, como se j no bastasse a citada programao musical de
nossas emissoras de rdio e TV.
O choro, nascido no Rio de Janeiro em meados do sculo XIX, raiz da msica
popular urbana do Brasil, msica instrumental da melhor qualidade e gnero hoje
cultuado em diversos pases, produziu, como j dissemos, alguns dos mestres
fundamentais da identidade musical brasileira. Alis, vrios deles flautistas e
compositores, como Joaquim Callado Jr., Pattpio Silva, Pixinguinha, Benedito
Lacerda, Joo Dias Carrasqueira e Altamiro Carrilho, entre outros. No entanto, o
choro tambm era visto, e ainda hoje considerado por alguns, como msica
menor, provavelmente por ser oriunda das camadas populares.
O samba, atualmente tido como a mais autntica manifestao musical
brasileira, sempre foi e ainda vtima de preconceito.
Por extenso, o prprio msico popular tambm era e malvisto por muitos.
Joo Dias Carrasqueira, um dos maiores mestres da flauta no Brasil, nascido em
1908, dizia que, em sua juventude, quem fosse visto carregando um violo era tido
por malandro, quase um malfeitor, tal era o preconceito. Isso explica por que o
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violo, talvez o mais popular dos instrumentos musicais no Brasil, demorou a ser
incorporado ao rol dos instrumentos nobres, mesmo na prpria USP. O mesmo
aconteceu com a viola caipira, recm-admitida na universidade.
Felizmente no Brasil, diferentemente do que aconteceu nos Estados Unidos,
no se chegou a destruir os tambores tocados pelos africanos e seus descendentes,
o que teria representado uma perda incomensurvel para a riqueza e o
desenvolvimento da nossa msica. Mesmo assim, os cultos religiosos afro-
brasileiros, com seus tambores e sua msica sagrada, s deixaram de ser proibidos
e reprimidos pela polcia em meados do sculo XX. Diga-se, a bem da verdade, que
at hoje so muitas vezes discriminados e vistos como instrumentos de feitiaria.
Esses dados merecem uma reflexo, cujo aprofundamento no caberia neste
trabalho, mas importante ressaltar que, devido a esses fatores, muitos dos
professores, que tiveram uma formao acadmica, conhecem muito pouco da
msica brasileira. Assim, preparam seus alunos para tocar a msica de
compositores europeus, mas no para tocar a msica de autores brasileiros.
importante lembrar que hoje j existem excelentes publicaes sobre a
msica popular brasileira, vrias delas com finalidades didticas.
2.3 Anlise do predomnio da viso sobre a audio e os impactos da especializao
Refletindo sobre a situao da educao musical, possvel perceber dois
aspectos que certamente a influenciam e que esto presentes na cultura globalizada
da atualidade como um todo: o predomnio da viso sobre a audio e a existncia
de uma pedagogia voltada para a especializao. Esta no visa formao integral
de seres humanos, isto , uma formao com ampla viso de mundo, no qual os
alunos possam se inserir como protagonistas, criadores e transformadores; antes,
objetiva o treinamento de mo de obra especializada para atender s necessidades
do mercado.
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2.3.1 Predomnio da viso sobre a audio
A grande maioria dos mtodos de ensino de msica baseada na leitura. O
aprendizado pela escuta, tirando msicas de ouvido no estimulado, sendo at
mesmo reprimido.
Na medida em que mesmo os estudos baseados na transposio - que, se
transpostos de ouvido(como fazem os cantores) seriam excelentes para o
desenvolvimento da percepo auditiva e da memria - so escritos integralmente e
tocados lidos, bvia a priorizao do visual sobre o auditivo.
Sobre esse assunto, muito interessante observar o que diz Joachin-Ernst
Berendt (1997, p.21):
Sempre que Deus se revelou aos seres humanos, Ele foi ouvido. Ele pode ter aparecido como luz; todavia, para ser entendido, Sua voz teve de ser ouvida. A expresso e Deus disse est em todas as escrituras sagradas. Os ouvidos so o meio de acesso do receptor. O mbito da viso a superfcie. O mbito da audio a profundidade. Os olhos veem o superficial. No entanto, nada do que percebido pela audio deixa de entrar a fundo. Sim, mesmo quando ouvimos algo superficialmente, h maior penetrao do que quando apenas vemos alguma coisa, pois o olhar que s detecta a superfcie no v alm dela. A pessoa que ouve tem mais oportunidade de aprofundar-se do que aquela que apenas v. A profunda modificao da nossa conscincia (e incontestvel que precisamos de uma nova conscincia, de uma nova percepo de mundo) ser alcanada quando aprendermos a usar inteiramente o nosso sentido da audio tal como usamos nossos olhos e nosso sentido de viso h sculos. Quando tivermos reaprendido a ouvir, tambm poderemos corrigir a nossa hipertrofia dos olhos. S ento compreenderemos como disse Goethe, um homem de viso que os olhos do esprito tm de ver em unssono com os olhos fsicos; caso contrrio, h o risco de ficarmos olhando e, no entanto, as coisas passarem despercebidas.
De fato, a forma pela qual vem se ensinando msica nos leva a olhar e no a
ver, a ouvir e no a perceber. curioso verificar que a palavra italiana para o verbo
ouvir sentire. Sentir, em portugus, tem a ver com emoo e notrio que o
som nos toca emocionalmente muito mais que a imagem visual. Para fazer essa
verificao, basta assistir a um filme de suspense sem a trilha sonora.
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Fritzjof Capra avalia, no prefcio do livro Nada Brahma11 (BERENDT, 1997),
que a compreenso de que o mundo som tem implicaes profundas no somente
para a Cincia e a Filosofia, mas tambm para a vida cotidiana e a sociedade.
Durante muitos sculos a cultura ocidental deu nfase viso em detrimento da
audio. Segundo Berendt, a atual mudana de paradigma inclui uma modificao
essencial dessa nfase. Berendt ainda verifica que tal modificao coincide com a
mudana dos valores masculinos para os femininos, do conhecimento racional para
o intuitivo e da agressividade para a no violncia e a paz.
Por sua vez, o maestro Daniel Baremboim (2008,p.48) comenta que a
educao do ouvido pode ser muito mais importante do que se imagina no somente
para o desenvolvimento do indivduo, mas para toda a sociedade e, portanto, para
os governos. Em seu ponto de vista, a habilidade de ouvir diferentes vozes ao
mesmo tempo, compreendendo a fala de cada uma delas separadamente, assim
como a capacidade de lembrar-se de um tema que reaparece sob uma luz diferente
e outras caractersticas do saber ouvir e estar afinado com outras vozes muito
importante. Pode ajudar a formar seres humanos mais aptos a escutar e a
compreender vrios pontos de vista de uma s vez, mais capazes de avaliar seu
prprio lugar na sociedade e na histria, logo mais propensos a perceber e valorizar
as semelhanas entre todas as pessoas e culturas, em vez de destacar as suas
diferenas.
2.3.2 Impactos da Especializao
Em outras pocas era comum haver homens que dominavam vrias reas do
conhecimento humano. Eram, ao mesmo tempo, arquitetos, engenheiros, artistas,
pensadores, filsofos O exemplo maior talvez seja Leonardo da Vinci, artista da
Renascena.
At o final do sculo XVIII era normal que um msico fosse no somente
instrumentista, mas multi-instrumentista e compositor, muitas vezes tambm
regente. Um belo exemplo o do flautista, terico e compositor J.J. Quantz,(1697-
1773) professor de Frederico II, rei da Prssia.
11 Nada Brahma, do idioma snscrito, pode ser traduzido como: Tudo Som , O Mundo Som, ou ainda Deus Som.
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Com o caminhar da civilizao na direo do desenvolvimento tecnolgico
(em 1712 Thomas Newcomen inventou a primeira mquina a vapor para bombear
gua de minas de carvo) e com o advento da revoluo industrial, paulatinamente
passou a vigorar a concepo do trabalho em srie e especializado, na qual cada
operrio realizava uma funo especfica. Uma magnfica crtica desse sistema nos
dado por Charlie Chaplin em seu filme Tempos Modernos.
Assim tambm nas Cincias, nas Artes e outras reas do conhecimento
humano os estudos foram sendo pouco a pouco direcionados para a especializao.
Surgiram especialistas que se, por um lado, so muito proficientes em um aspecto,
so muito fracos ou mesmo nulos em outros.
No caso da Msica, provavelmente o nvel de virtuosidade instrumental
alcanou patamares mais elevados. Por outro lado, passou a haver compositores e
regentes incapazes de tocar razoavelmente um instrumento e muitos instrumentistas
incapazes de harmonizar uma melodia, por mais simples que ela fosse.
Dessa forma, foram sendo elaborados mtodos de ensino para instrumentos
musicais visando principalmente formao de msicos de orquestra ou, quando
muito, cameristas ou solistas, funes para as quais no era mais necessrio
improvisar ou compor.
Laura Rnai (op.cit.,p.115) observa claramente essa tendncia presente no
sculo XX, na qual o compositor apenas compe, o regente rege e o intrprete
precisa ser virtuose de um instrumento especfico, sem nenhum domnio de outro
instrumento. Em decorrncia dessa realidade, passou a existir uma estrutura
hierarquizada de domnios de conhecimento no universo da Msica, no qual a
criao de domnio do compositor, enquanto o intrprete relegado a um segundo
plano. Os ideais do instrumentista dessa gerao podem ser associados aos
objetivos de um esportista: rapidez e controle. medida que a tcnica se
aprimorava, maiores as exigncias do repertrio. Nesse processo, aquele artista do
perodo barroco, que era capaz de diversificar sua arte em mais de um instrumento e
ainda compor com razovel habilidade, deu lugar ao especialista. O Homem da
Renascena - aquele que sabia de tudo um pouco (ou muito), o homem de cultura
abrangente, universal - passa a ser coisa do passado.
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A respeito da estreiteza de viso decorrente da especializao, importante
lembrar que na histria recente do ensino no Brasil matrias como Msica, Latim e
Filosofia, por exemplo, foram retiradas do currculo das escolas de segundo grau
como consequncia do chamado acordo MEC USAID12. No por acaso isso
aconteceu no final dos anos 60, nos primeiros anos do triste e longo perodo em que
nosso pas viveu sob o jugo de uma ditadura militar, como praticamente todos os
pases da Amrica do Sul.
Parece claro que o objetivo dessa reforma no ensino foi impedir que as novas
geraes tivessem acesso a elementos capazes de faz-las entender melhor o
mundo e assim no questionassem a ordem das coisas.
12 MEC USAID a fuso das siglas: Ministrio da Educao (MEC) e United States Agency for International Development (USAID). Isso se deu por meio da reforma do ensino, na qual os cursos primrio (cinco anos) e ginasial (quatro anos) foram fundidos, passando a se chamar Primeiro Grau, com oito anos de durao; o curso cientfico fundido com o clssico passou a ser denominado Segundo Grau, com trs anos de durao; e o curso universitrio passou a ser denominado Terceiro Grau. A implantao desse regime de ensino tambm retirou do currculo matrias consideradas obsoletas, tais como Filosofia, Latim, Educao Poltica e Msica. Cortou-se a carga horria de vrias matrias, como Histria e Geografia entre outras. Entre junho de 1964 e janeiro de 1968, perodo de maior intensidade de acordos, foram firmados 12 deles, abrangendo desde a educao primria (atual Ensino Fundamental) ao Ensino Superior. O ltimo dos acordos foi firmado em 1976. Destacam-se a Comisso Meira Mattos, criada em 1967, e o Grupo de Trabalho da Reforma Universitria (GTRU), de 1968, ambos decisivos na reforma universitria (Lei n 5.540/1968) e na reforma do ensino de 1 e 2 graus (Lei n 5.692/1971). Fontes: http:projetomuquecababys.wordpress.com/2010/07/21/um-rapper-na-literatura-educaional/. E http://www.ppe.uem.br/dissertes/2009_alan.pdf
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3. DIFERENCIAIS NA CONSTRUO DE UM APRENDIZADO CONSISTENTE
3.1. Trs aspectos fundamentais na formao de um msico no Brasil
Com base no que acabamos de analisar, estou seguro de que
seria muito benfica uma releitura dos mtodos tradicionais de forma a aproveitar e
ampliar o seu contedo, abrindo um espao para a experimentao. O exerccio da
imaginao e da criatividade estimular o desenvolvimento de uma identidade e de
uma personalidade artstica prpria. Alm disso, a improvisao ser uma
ferramenta valiosa no sentido de proporcionar ao estudante a observao, a
compreenso e a conquista de entidades expressivas da linguagem musical, a
exemplo da dimenso vertical contida nas frases meldicas; os acordes, base do sistema tonal.
O terceiro aspecto dessa proposta a incluso da msica popular brasileira
no currculo de nossas escolas, por motivos que explicarei a seguir.Assim , esses
trs aspectos so:
- Aprofundamento da compreenso das estruturas harmnicas;
- Estmulo criatividade, emprego da improvisao;
- Maior contato com a msica brasileira.
3.1.1 Conhecimento dos acordes Consideraes sobre a importncia do conhecimento e do domnio dos acordes pelos instrumentistas meldicos.
Diferentemente dos pianistas, violonistas e acordeonistas, os instrumentistas
meldicos raramente desenvolvem o que chamamos de conscincia harmnica, ou
seja, no tm uma clara percepo das estruturas verticais sobre as quais se
constri a msica no sistema tonal. No percebem tambm que toda melodia tem
uma harmonia implcita13, como diz Arnold Schoemberg (1965,p.29).
Isso acontece porque o estudo que lhes transmitido baseado na leitura
linear, meldica, proposta da totalidade dos mtodos tradicionais eruditos
13 Na msica harmnico-homofnica, o contedo essencial est concentrado em uma s voz, a voz principal, que possui uma harmonia inerente. A acomodao mtua entre melodia e harmonia , num primeiro momento, difcil, mas o compositor no deve jamais criar uma melodia sem estar consciente de sua harmonia.
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pesquisados. Assim, embora toquem at exaustivamente, em forma de arpejo, os
acordes contidos em toda e qualquer msica, no percebem que aquelas melodias,
linhas horizontais, tm sua estrutura baseada em notas que pertencem a uma
estrutura vertical, os acordes. Como acordes so estruturas nas quais notas so
superpostas e tocadas simultaneamente, talvez o instrumentista meldico se
pergunte: Mas por que preciso estud-los, se s me possvel tocar uma nota de
cada vez?.
Uma das respostas possveis que o conhecimento dos acordes gera a
compreenso da frase harmnica que sustenta a frase meldica, e essa percepo
fundamental para a boa realizao da frase, objetivo primeiro do instrumentista
meldico.
Outra resposta evidente que muitas e muitas vezes as melodias so
formadas exclusivamente por notas de determinados acordes, como ocorre, por
exemplo, no concerto para flauta harpa e orquestra, de W.A.Mozart, no qual a
primeira frase da flauta o acorde de D maior:
O mesmo ocorre na primeira frase da Badinerie da Sute em Si menor, de
J.S.Bach, construda apenas com as notas do acorde de Si menor:
Os exemplos so praticamente infinitos. Assim, quanto mais conhecermos os
acordes, mais facilmente os reconheceremos e mais preparados estaremos para
tocar novas obras.
Para o estudo dos acordes utilizaremos as cifras que os representam. Parte
importante da moderna metodologia da harmonia14, as chamadas cifras so
smbolos dos acordes, constitudos por letras e nmeros: Bm5b, Dm, E7, F7M,
14 Aqui, o termo harmonia designa a rea da teoria musical que trata dos acordes, seus encadeamentos e suas funes.
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G# dim, etc. Presentes na notao do jazz e da msica popular brasileira, elas
explicam a formao do acorde, sendo muito prticas e teis para o estudo de seus
encadeamentos.
O desconhecimento dos acordes no privilgio dos estudantes; ele
acontece tambm com msicos profissionais e, o que surpreendente, tambm com
muitos pianistas e violonistas. Vrios msicos de nossas orquestras tm dificuldade
de tocar, de memria, uma sequncia de acordes maiores arpejados num ciclo
cromtico ascendente; no entanto, se esses arpejos estivessem escritos, eles os
tocariam fluentemente. Convivendo com msicos de vrios pases, posso afirmar
que isso no acontece somente no Brasil, o que compreensvel, j que os mtodos
utilizados em seus pases so basicamente os mesmos.
Chega a ser curioso e contraditrio que isso acontea, pois esse
desconhecimento priva o msico da compreenso de elementos bsicos da
composio musical. E, obviamente, quanto mais elementos tivermos para a
compreenso do texto musical, melhor poderemos enunci-lo.
Diz o pianista e maestro Daniel Baremboim (2009,p.130,131):
Um elemento que, na msica tonal, costuma ser negligenciado atualmente a harmonia. A tenso harmnica tem um efeito crucial num trabalho e na maneira que este executado. Dos trs elementos harmonia, ritmo e melodia que influenciam de forma profunda a msica tonal, a harmonia possivelmente o mais importante, porque o mais potente. possvel tocar o mesmo acorde com milhes de ritmos diferentes e lidar com todos eles sem necessidade de modificao. Uma melodia se torna desinteressante se ela no se move harmonicamente, o que implica que o impacto da harmonia muito maior do que o do ritmo e o da melodia. E ele existe em todo trabalho tonal. Existem inmeras distines entre Bach, Wagner, Tchaikovsky e Debussy, mas eles tm algo em comum: a fora do impacto da harmonia. Isso implica que um acorde exerce uma espcie de presso vertical no movimento horizontal da msica. Quando o acorde se desenvolve, o fluxo horizontal da msica modificado. Isso no depende de Bach ou Chopin ou de qualquer outro; em minha opinio, essa uma lei da natureza.
Pode-se dizer que acordes e escalas esto para a msica tonal assim como
tijolos e cimento esto para a construo de uma casa. Algum j disse que tocar
sem perceber a harmonia como ver apenas duas dimenses; perde-se a noo de
perspectiva, de profundidade. Para o instrumentista meldico que toca numa
formao camerstica - duo, trio, quarteto - ou numa formao orquestral, o fato de
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perceber quem est tocando a tnica, a tera ou outra nota de um determinado
acorde permite, entre outras coisas, afinar melhor esse acorde, equilibrando,
timbrando, colorindo a msica com segurana e conscincia.
A respeito da importncia do conhecimento da harmonia, mesmo para o
instrumentista meldico, vejamos o que diz Jos Miguel Wisnik (1989, p.118):
Pelo prprio carter duplamente articulado, meldico e harmnico garantido msica bachiana pelo novo sistema, o discurso tonal pode, no entanto, realizar todas as suas potencialidades no apenas nas grandes massas corais das cantatas e das paixes, com seu tecido de mltiplas vozes, mas, por exemplo, numa simples sonata para flauta solo (assim como nas sonatas para violino ou nas sutes para violoncelo). que a melodia solitria, tocada por um nico instrumento, no mais aquele desenho infinitamente circular em torno do carter de um modo; mesmo quando no acompanhada de acordes, a sucesso meldica depositria da linguagem da simultaneidade onde o fio da melodia no d nenhum ponto sem n harmnico. (...) Assim como o pensamento meldico est investido de harmonia, o pensamento mondico est investido de polifonia e a polifonia apresenta um grau acabado de resoluo harmnica. (...) a grande novidade que a tonalidade traz ao movimento de tenso e repouso (que, em alguma medida, est presente em toda a msica) a trama cerrada que ela lhe empresta, envolvendo nele todos os sons da escala numa rede de acordes, isto , de encadeamentos harmnicos. Tenso e repouso no se encontram somente na frase meldica (horizontal), mas na estrutura harmnica (vertical) ().
As suites para violino e violoncelo solo, de J.S.Bach, assim como as 12
Fantasias, de G.P.Telemann; a Partita en L m, de J.S.Bach; e a Sonata em L m,
de C.P.E.Bach, essas para flauta solo, so timos exemplos de pensamento
mondico investido de polifonia e de melodia investida de harmonia. Para uma
leitura minimamente interessante dessas peas necessrio perceber e ser capaz
de diferenciar as diferentes vozes presentes na mesma melodia. necessrio
tambm valorizar o movimento de tenso e repouso justamente gerado pelo
contraste entre dissonncias e consonncias e pelo encadeamento dos acordes e
suas cadncias. Sem o reconhecimento desses elementos do discurso musical e a
capacidade de ressalt-los, o intrprete fica desprovido de fundamentos para uma
interpretao altura da inteligncia dos compositores.
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3.1.1.1 A Prtica da Transposio s vezes o mestre aponta para a lua, mas o discpulo olha para o dedo do mestre.
Ditado Zen
Um trabalho que pode ser de grande valia para o aprendizado e a assimilao
dos acordes, seus encadeamentos e cadncias a prtica da transposio. Ao
mesmo tempo em que exige um clculo racional, estimula a intuio e desenvolve a
percepo auditiva.
Os cantores, quando realizam seus tradicionais vocalizes de aquecimento em
vrios tons, conseguem faz-lo intuitivamente, de ouvido. Os instrumentistas no
tm essa prtica, que lhes seria muito proveitosa. No entanto, a maioria dos
mtodos e cadernos de estudos que conhecemos apresenta estudos de
sonoridade ou de agilidade baseados em determinados encadeamentos de
acordes que so transpostos para vrias tonalidades. Alguns desses estudos
consistem em apenas uma frase que transposta e escrita nos doze tons.
Curiosamente, porm, a harmonia subjacente a essas frases e sequncias jamais
explicada. Assim os estudantes, na maior parte das vezes, no a percebem e
desperdiam uma excelente oportunidade de aprender algo que lhes seria muito
til15. Como a transposio para outras tonalidades sempre escrita, os estudantes
no so estimulados a pensar. Isso acontece inclusive em trabalhos recentes16,
como o de Phillippe Bernold,
certamente mais fcil realizar as transposies de ouvido com a voz do
que com um instrumento. Porm, se os acordes implcitos na frase a ser transposta
forem compreendidos pelo instrumentista, ele ter fundamentos para realizar essa
transposio sem a necessidade da leitura. Esse procedimento propiciar, por um
lado, um pequeno e benfico trabalho intelectual; por outro, desocupando o sentido
15 Uma honrosa exceo cabe aos tudes Modernes pour la Flute, de Paul Jeanjean, Ed. Leduc, Paris, que mostram, no rodap, os acordes sobre os quais foram construdas determinadas frases. 16 BERNOLD, Philippe. La Technique dEmbouchure: 218 exercices pour matriser toutes ls difficults lies lembouchure de la flte traversire et acqurir une belle sonorit. [S.l.]: Philippe Bernold professor no Conservatoire de Musique de Lyon, Frana.
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da viso, permitir mais ateno auditiva, fazendo com que o estudante possa
atentar para detalhes que antes lhe passavam despercebidos.
Aparentemente, os mtodos e cadernos de estudos acima referidos
subestimam o intelecto dos alunos e fazem com que estes concentrem sua ateno
em somente alguns dos aspectos da msica. No entanto, no deixam de apontar
para a lua, como diz a citao acima.
Na segunda parte deste trabalho, estudos de M.A. Reichert, T. Boehm,
P.Taffanell, M.Moyse e P.Bernold, baseados na transposio de sequncias de
acordes, se